pop/rock à portuguesa

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO Pop/Rock à Portuguesa Trabalho de Conclusão de Curso 2º semestre de 2002

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Livro reportagem feito por Katia Abreu como Trabalho de Conclusão do curso de Jornalismo na ECA/USP em 2002. Apresenta um panorama do pop rock português no século XX.

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Page 1: Pop/Rock à Portuguesa

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO

Pop/Rock à Portuguesa

Trabalho de Conclusão de Curso2º semestre de 2002

Autora: Katia de Abreu PereiraOrientador: Dirceu Fernandes Lopes

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Page 3: Pop/Rock à Portuguesa

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Índice

Apresentação ...................................................................................................................5

Agradecimentos ..............................................................................................................11

No início eram os Beatles e o lápis da censura ..............................................................13

“Ao longo da história fomos encenando diversas aventuras” ........................................19

O “boom” dos anos 80 ....................................................................................................31

Contracultura contra a tradição .......................................................................................40

“A música nos deixa respirar sem constrangimentos” ...................................................45

O lado negro da força .....................................................................................................54

A pop eletrônica ..............................................................................................................62

O Eterno Retorno ............................................................................................................67

“Não há um pop português” ...........................................................................................76

Apêndice .........................................................................................................................91

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Apresentação

"Rock português?! Isso existe?". Ouvi essa pergunta, acompanhada de olhares

desconfiados, durante todo o processo de concepção e execução deste trabalho. As

associações imediatas que qualquer brasileiro faz quando pensa em música portuguesa

são: o fado de Amália Rodrigues, a world music do Madredeus e a excentricidade brega

de Roberto Leal. Parecia inconcebível a ouvintes da antiga colônia lusa que se faça

música pop nas terras d'além mar. Malas prontas para a viagem, e a pergunta ainda

ecoava na minha cabeça. Via pela frente a árdua tarefa de mostrar que, sim, em Portugal

havia bom pop/rock. (Se ele tem alguma "portugalidade" ou se é mera reprodução de

modelos anglo-saxões é outra questão. E aqui vale questionar se boa parte do pop/rock

feito no Brasil, ou em qualquer outro lugar do mundo, não passa também por esses

modelos.)

É a propósito disso que vem este Pop/Rock à Portuguesa: apresentar um

panorama do que foi e é atualmente a música pop portuguesa em variadas vertentes (do

punk ao acid jazz, da eletrônica ao hip hop). Não há a pretensão de ser uma

enciclopédia em que são listados todos os artistas existentes por lá. Muitos ficaram de

fora, especialmente quando fala-se da produção atual. Impossível abarcar todos os

projetos, por mais interessantes que sejam. Impossível conhecer todos os projetos, por

mais tempo que se passe pesquisando. Não é, em absoluto, uma história definitiva do

pop português. Pelo contrário, um ponto de partida para análises mais completas.

Por certo há muito mais a dizer sobre os primórdios da pop em Portugal. Os

conturbados anos 60 não foram embalados apenas pelos Sheiks e pelo Quarteto 1111.

Mas esse nomes me pareceram boas pistas para se entender as dificuldades em se

começar a produzir música jovem em meio à uma ditadura fascista. Dois caminhos

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bastante diferentes que retratam bem à época: a inocência (de certa forma alienada),

copiada dos Beatles (ou melhor, da primeira fase do quarteto inglês), contrastando com

uma tentativa de combate às imposições de um rígido regime político (e talvez a

primeira tentativa de construir uma identidade musical portuguesa).

Os chamados cantores de intervenção são citados vagamente. Assunto que

mereceria mais atenção, não fosse minha idéia primordial falar de um pop mais próximo

do rock, do que da MPP (Música Popular Portuguesa). Afinal, foram duas músicas - "E

Depois do Adeus" (de José Calvário e José Niza, interpretada por Paulo de Carvalho) e

"Grândola, Vila Morena" (de José Afonso) - que serviram de senhas para a Revolução

dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime fascista. De qualquer

forma, as especificidades deste tipo de música não caberiam na proposta deste trabalho.

Com redemocratização do país, nos anos 80 veio o "boom" do rock português. O

punk e a new-wave chegavam com um certo atraso à Portugal e moviam uma série de

jovens a formar bandas de rock e a cantar em português (coincidência com o que

aconteceu na mesma década aqui no Brasil?). Grupos como o GNR, UHF e Xutos e

Pontapés surgem nessa época e continuam ativos até hoje. Aparece também um "pai"

para o movimento: Rui Veloso. E vemos duas tentativas de fazer pop "genuinamente"

português. Uma delas, António Variações, vai buscar inspiração em canções populares

tradicionais. A trajetória é interrompida por uma prematura e, à época, polêmica morte.

A outra, Heróis do Mar, alia a estética neo-romântica a elementos histórico-culturais

portugueses, como a Cruz dos Templários e o tema da saudade. Seu ideólogo, Pedro

Ayres Magalhães, extingue o projeto e alça a música lusa aos quatro cantos do mundo

com o Madredeus.

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Logo o entusiasmo das gravadoras pelo tal rock português diminui. Apostas em

novas revelações já não rendem os lucros pretendidos pela indústria. Isso não impede

que haja um "levante" contra esse sistema que encara a música como mera mercadoria a

ser vendida. Uma "revolta" que toma forma na gravadora independente Ama Romanta.

Um sem número de projetos interessantíssimos, que fogem das abordagens tradicionais,

e com sua peculiar forma de fazer música (e poesia) chocam a opinião pública. Pop

Dell' Arte e Mão Morta, escolhidos para exemplificar isso, continuam na estrada

também. Agora menos marginalizados pela imprensa e pelo público, mas sem perder as

características que tanto chamaram a atenção no começo de suas carreiras.

O hip hop e a pop mais eletrônica, que atualmente desfrutam lugar de destaque

no cenário musical português, dão seus primeiros passos, ainda com status de

underground, na primeira metade da década de 90. Grupos como Da Weasel e Mind Da

Gap, hoje presença obrigatória em qualquer lista de melhores artistas portugueses, vêm

retratar a vida no subúrbio das grandes cidades. O projeto Underground Sound of

Lisbon consegue pela primeira vez levar a produção lusa para às massas fora de suas

fronteiras. Emplacam, no verão de 94, "So Get Up" nas pistas de dança de todo o

mundo. E revelam à cena clubber dois grandes disc jockeis: Rui Silva e DJ Vibe.

Antenados com as manifestações artísticas mais modernas, Pedro Abrunhosa,

Clã e Cool Hipnoise são protagonistas de uma geração que encontra no groove, no acid

jazz forma de expressar seu talento. Abrunhosa é um verdadeiro fenômeno em sua terra,

e alcança uma bem sucedida (embora não duradoura) internacionalização: é capa da

revista americana Billboard no final de 94, vende 800.000 cópias de um single no

Brasil, e faz shows por toda a parte. Mas não consegue se firmar no mercado externo.

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Conquistar público fora de sua terra parece ser a meta de alguns dos jovens

talentos portugueses deste princípio de século XXI. Há uma infinidade de bandas hoje

em Portugal produzindo boa música, cantada em inglês, na maioria das vezes. Grupos

que, em princípio, teriam chance de êxito fora de sua terra natal. Afinal, embora grande

parte da música pop consumida no mundo tenha origem nos Estados Unidos ou no

Reino Unido, recentemente presenciamos a ascensão de projetos que não vêm destes

pólos. Se os suecos do The Hives e do The (Internacional) Noise Conspirancy, ou os

islandeses do Sigur Rós (e estes nem cantam em inglês) e sua compatriota Björk

conseguem "furar" outros mercados, por que o mesmo não poderia acontecer com uma

boa banda vinda de Portugal, como o Coldfinger? Uma resposta a qual não se consegue

chegar facilmente... a indústria fonográfica tem idiossincrasias que me fogem à

compreensão. Uma Polygram (hoje Universal) lançar discos do Silence 4 no Brasil e

nos Estados Unidos e não promovê-los é algo que não entendo.

Essas peculiaridades da indústria têm levado os artistas a um caminho que talvez

seja o mais acertado, não só em termos de internacionalização: as edições

independentes. Não tendo como entrar no catálogo das majors, a saída são editoras

como a Metrodiscos ou a novíssima Subotnick, que apostam em novos talentos. Ou

ainda montar estúdios em casa e partir para "edições de autor", como os portugueses

gostam de chamá-las. Como fez o The Gift, que, depois de conseguirem grande sucesso

em Portugal (de público e de crítica), agora anda em turnês pela Europa e pelos Estados

Unidos, batendo à porta de editoras independentes que se interessem por sua música. Ou

os rapazes Fonzie, que foram a Suécia gravar um disco, entregaram-no pronto a uma

distribuidora e, por esforço próprio, conseguiram lançar seu disco no Brasil, nos EUA e

no Japão, por selos independentes.

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Nesse contexto, em que o "do it yourself", que regeu o movimento punk, é

levado às últimas conseqüências, muitos se sentem encorajados a trazer seu trabalho à

público. O número de artistas cresce exponencialmente, alguns melhores, outros piores.

Não é fácil dizer quem vai sobreviver ao tempo. Não foi fácil "eleger" as bandas que

seriam inclusas neste trabalho. Posso ter cometido injustiças (muito provavelmente as

cometi). Posso ter "apostado" em novidades que daqui há um tempo estarão esquecidas

em um canto qualquer nas lojas de disco. Mas reitero: a intenção não é sentenciar

verdades incontestáveis com este trabalho, e sim, apresentar um panorama. Um

panorama que, inevitavelmente, foi pautado por escolhas subjetivas. Um ponto de

partida, como dissera, para que se descubra o que há de pop em Portugal.

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Agradecimentos:

Aos meus pais, pelo incentivo e por serem minha ligação mais óbvia e direta com o

Portugal; à Babi, pela paciência com que escutou meus discos e idéias; ao Mário Lopes,

pela generosidade ao abrir sua agenda de telefones a uma desconhecida, e pela amizade

que veio a seguir; ao Théo e ao Dirceu, por não terem deixado com que eu desistisse; a

Alex Antunes, pelos discos, livros e conversas; a Henrique Amaro, pelas dicas e pelo

entusiasmo; à Jules, pelos animadores e-mails da madrugada; à Rita, ao Ricardo, à

Clara, à Joana, ao Mário S., à Fernanda e outros amigos portugueses (e não só), pelo

carinho com que acolheram a mim e a meu projeto; e por fim, a todos os que muito

gentilmente contaram-me um pouco de suas histórias, permitindo que eu reconstruísse

parte da trajetória do pop/rock em Portugal.

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Capítulo 1:

No início eram os Beatles e o lápis da censura

Década de 60. O mundo assistia, histérico, à ascensão definitiva da música pop.

Quatro rapazes vindos de Liverpool, na Inglaterra, embalavam toda uma geração ao som

de baladinhas com um certo ar inocente, e se preparavam para revolucionar a história da

música moderna. Na memória dos jovens dessa época ainda figurava uma imagem da

década anterior: Elvis Presley, que mais tarde seria chamado o "Rei do rock'n'roll". E

Mick Jagger e Keith Richards começavam a dar os primeiros passos de uma carreira que

duraria até hoje. Beatles, Elvis, Rolling Stones.

Década de 60. O mundo havia passado por uma guerra terrível contra ditadores

fascistas, e estava dividido em dois grandes blocos: os capitalistas e os socialistas. No

meio disso tudo, Espanha e Portugal ainda viviam à sombra, em um regime totalitarista

de extrema direita. Franco e Salazar já se perpetuavam no poder desde os anos 30,

mantendo a Península Ibérica isolada daquilo que acontecia no resto da Europa e do

mundo. Em Portugal, o nacionalismo se refletia na defesa de canções tradicionais, como

o fado, e na exaltação de valores morais conservadores, que serviam muito bem aos

interesses do regime salazarista. Sem muito contato com que se passava no cenário

internacional, como seria possível, então, que se produzisse algum tipo de música

próxima ao chamado pop rock em terras lusitanas?

"Havia nessa altura uma rádio pirata em Inglaterra, que transmitia através de um

barco, fora das águas territoriais inglesas. Era a Radio King Caroline e estava sempre a

passar as últimas coisas. Também havia amigos que viajavam muito e traziam as

novidades para a gente", explica Paulo de Carvalho, baterista e vocalista de uma das

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mais prestigiadas bandas portuguesas da época, os Sheiks. "O rock, o pop é uma música

de cultura anglo-saxônica. O que é que nós fizemos em Portugal? Nos limitamos a ouvir

a rádio. Compramos instrumentos e começamos a imitar os Beatles, os Rolling Stones,

os Shadows...", acrescenta.

Mas comprar uma guitarra em Portugal nos anos 60 não era uma tarefa muito

simples. Era muito difícil encontrar lojas que vendessem equipamentos de qualidade e

os preços eram proibitivos. As primeiras gravações dos Sheiks foram feitas sem

amplificadores, com os instrumentos ligados a rádios. Nem por isso, os garotos, que à

época tinham seus 15, 16 anos, desanimaram. Lançaram seu primeiro EP (Missing You)

em 1965, e logo estavam sendo chamados de "os Beatles portugueses". Tocavam em

festas universitárias, em bailes de colégio e nos festivais do "iê-iê-iê", que aconteciam

em Lisboa. E proporcionavam a si mesmos e ao público que os acompanhava a

sensação, pelo menos durante os concertos, de serem transportados para a Inglaterra

com que tanto sonhavam. No palco, o som, a postura, tudo era copiado dos modelos

ingleses. Na platéia não era diferente: a mesma histeria que se via nas transmissões

televisivas.

Os Sheiks foram o grupo mais popular dos anos 60 e sua história é emblemática

do que se passou com tantas outras bandas dessa época, como os Ekos, os Chinchilas,

os Jets, ou o Conjunto Mistérios. Ou mesmo a "geração" roqueira anterior, que seguia

os passos acrobáticos de Elvis Presley e Chuck Berry, como Victor Gomes ou

Fernando Conde. A história é sempre a mesma: amigos que se reúnem e decidem fazer

música como a de seus ídolos ingleses e norte-americanos. E depois de um tempo, as

bandas acabam (ou passam por sucessivas mudanças em sua composição, como

aconteceu com os Beatnicks) por que os garotos, ao completarem 21 anos, são

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convocados para o serviço militar. "A Guerra do Ultramar ajudou muito a que os grupos

acabassem", lamenta Paulo de Carvalho. No caso dos Sheiks, a carreira durou apenas

cinco anos (de 62 a 67).

Em meio a um regime político que atrapalhava a fomentação de atividades

artísticas, mantendo o país distante do que acontecia no exterior e mesmo intervindo

através da censura nas atividades culturais que fossem julgadas impróprias, o

movimento pop que se iniciava em Portugal não tinha qualquer pretensão política.

"Havia alguns artistas que tinham alguma consciência política e, portanto, lutavam

contra quem nos governava. Não creio que fosse o nosso caso, com 15, 16 anos. Se nós

realmente tivemos alguma importância social ou política foi um pouco por irreverência

própria da gente nova", comenta Paulo de Carvalho, contrapondo os grupos de "iê-iê-iê"

aos chamados "cantores de intervenção", que viam a música como forma de divulgar

um discurso político e foram peças importantes no processo de redemocratização do

país.

Paulo lembra que a censura nunca caiu sobre os grupos pop dessa época, porque

não tinham consciência política ou social da situação de Portugal. "Havia repressão para

quem conscientemente sabia que a música podia ser utilizada como uma arma. Não para

nós que fazíamos disso uma coisa ingênua. A maioria de nós queria música pela música.

Guitarra, bateria, viola e pronto. Ser conhecido. E depois havia a questão dos namoros...

as miúdas. Isso era o que verdadeiramente nos interessava. Não tinha a ver com

consciência política ou social."

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O rock de intervenção

Entretanto, havia um grupo de rock que, no começo da década de 70, seria

silenciado pelo regime fascista português. O Quarteto 1111 foi o que se pode chamar

de "a outra face" do rock feito em Portugal antes do 25 de Abril. Primeiro porque

cantavam em português (coisa rara nos grupos dessa época) e esteticamente se

diferenciavam das versões portuguesas de bandas estrangeiras. Segundo porque sua

música era engajada. José Cid, ex-vocalista da banda, acredita que sua obra ainda está

para ser descoberta. "O que se conhece do Quarteto 1111, que é a "A Lenda Del D.

Sebastião", "Os Faunos" [duas canções do primeiro EP da banda] e pouco mais, é

somente a ponta do iceberg. Porque o primeiro álbum do grupo (Quarteto 1111), que

saiu em janeiro de 70, foi silenciado uma semana depois de ser lançado, porque aborda

o problema da imigração e do colonialismo". Essas eram duas questões cruciais para

Portugal nesse período, e conscientizar a população a cerca desses problemas não era

visto com bons olhos pelos governantes. O álbum foi engavetado. Mas não era a

primeira vez que o Quarteto sofria punições. Em 67, depois de uma primeira

apresentação da banda em Angola, José Cid e seus companheiros foram proibidos de

voltar ao país africano. "Só pude voltar em 73, mas para cantar já um pop romântico",

recorda Cid.

O Quarteto 1111 se formou a partir de outra banda, o Conjunto Mistério. José

Cid era vocalista de um grupo de jazz em Coimbra e quando se mudou para Lisboa, em

65, encontrou os rapazes do Mistério, que, até então, era um grupo instrumental, a

exemplo dos ingleses Shadows. "Eles já tinham dois discos gravados e precisavam de

alguém que cantasse e escrevesse. Ficamos fechados numa garagem durante quase um

ano, e começamos a, custasse o que custasse, escrever em português. Foi assim que

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nasceu o Quarteto 1111". A vontade de cantar em português, aliada aos temas

escolhidos para as canções, rendeu à banda problemas com a censura. "Nós falávamos

da falta de liberdade de expressão, e do atraso cultural de Portugal em relação ao resto

da Europa", explica Cid. E vai além: "A censura era burra. Nos inspirava, porque nos

obrigava a encontrar metáforas para contornar as palavras".

As músicas do Quarteto também mexiam com valores e tradições do povo

português, como o Sebastianismo, por exemplo. "A Lenda Del D. Sebastião" é um dos

primeiros êxitos do grupo e, mais tarde, José Cid, já em carreira solo, compõe outra

música anti-sebastianista: "D. Sebastião Morreu". "Quando eu escrevi 'D. Sebastião

Morreu' a intenção era mesmo 'dessebastianizar' esse país. A canção era exatamente

para dizer que toda a gente é castigada por acreditar no sebastianismo. Como acreditam

no Milagre de Fátima, como acreditam que Sá Carneiro teria salvo o país se não tivesse

morrido. Há sempre um álibi para qualquer coisa", desabafa Cid.

Com tudo isso, não era de se admirar que o grupo não conseguisse agendar

muitos shows e, quando tocavam, a maior parte do repertório tinha que ser em inglês,

porque suas músicas estavam bloqueadas pelos censores. "Tínhamos muito, muito

pouco trabalho, porque éramos um grupo maldito, como eles diziam. No entanto, nunca

houve prisões nem nada disso, porque eles também sabiam que não pertencíamos a

partido nenhum", explica Cid. Ele também comenta que, certa vez, o comitê de censura

enviou uma carta às editoras pedindo para que avisassem seus artistas para tomarem

cuidado com o que cantavam. "E eu assinei imediatamente um documento à minha

editora, no qual, a liberava de qualquer responsabilidade sobre aquilo que eu cantava. A

responsabilidade era minha".

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A carreira do Quarteto 1111 termina em meados de 1975, depois de incursões

pela psicodelia e pelo rock progressivo. E é nesta última tendência que José Cid se

aventura no seu primeiro álbum solo. 10.000 Anos Depois Entre Vênus e Marte é um

álbum incompreendido na época de seu lançamento, em 76. Ele conta a história do que

seria o último no Planeta Terra. "Um cosmonauta e sua companheira fogem para o

espaço. Conhecem novas civilizações e galáxias e regressam, 10 mil anos depois, como

novos Adão e Eva. Quando o álbum saiu toda gente me chamou de louco: 'Que idéia,

que asneira! Estão todos drogados'", explica o cantor. Entretanto, quase vinte anos

depois de sua edição portuguesa, o disco é descoberto nos Estados Unidos, graças a um

músico português que mostra o álbum a um selo especializado em rock progressivo.

10.000 Anos Depois é relançado pelo Art Sulime em 94. Quatro anos depois, a revista

norte-americana Billboard nomeia o disco, em 57º lugar, entre os 100 melhores álbuns

de rock progressivo do final do século. "Isso para mim foi muito impressionante. E é um

álbum que eu hoje ouço e me sinto completamente impotente de fazer. Eu hoje não

conseguiria fazer isso", afirma Cid.

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Capítulo 2:

“Ao longo da história fomos encenando diversas aventuras”

Pedro Ayres Magalhães é idealizador e principal compositor e guitarrista da

banda portuguesa mais conhecida mundo afora: o Madredeus. Mas sua carreira como

músico não começa em finais da década de 80, quando suas composições tomam corpo

na belíssima voz de Teresa Salgueiro.

Ele já usou jaquetas de couro, calças surradas e toda a indumentária

característica dos roqueiros da época, quando em 1976, 1977, integrou uma das

primeiras bandas de punk portuguesas, os Faíscas. Depois, veio a new-wave

performática do Corpo Diplomático, que, basicamente eram os músicos do Faíscas,

reforçados pelo tecladista Carlos Maria Trindade. A seguir, Pedro Ayres criou os

Heróis do Mar, grupo fundamental na década de 80, não só por sua música (new wave

com incursões pelo eletropop, tão característico do período), mas pelas discussões que

trouxe à tona, quando, editado seu primeiro álbum, em 1981, foram taxados pela

imprensa portuguesa de fascistas.

Numa agradável manhã do verão de 2002, em Lisboa, Pedro Ayres resgatou em

sua memória mais de 15 anos da história do rock em Portugal. Inevitavelmente, falou

das dificuldades pelas quais passou em seus projetos e contou porque decidiu desplugar

os instrumentos e formar o Madredeus, que segundo ele ainda tem um bocado de rock

em sua estrutura.

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A sua primeira experiência com música foram os Faíscas, no final da década de 70.

Por que começar com o punk?

Nós estávamos em 76, 77. Tínhamos um grande fascínio pela música pop e rock dos

anos 70, e a conhecíamos bem. Não havia, no final dos anos 70, nenhuma tradição de

música elétrica em Portugal. Havia os conjuntos de baile, depois havia dois ou três

músicos de rock sinfônico [denominação genérica que se dá ao rock progressivo em

Portugal]que emulavam grupos ingleses e cantavam em inglês. Portanto, a música

elétrica não estava a ser usada como meio de transmitir mensagens sociais. Não havia o

hábito, não havia concertos, não havia nada. E nós tínhamos essa cultura da música

popular ligada a movimentos pacifistas [bandas populares na época, como os

Beatnicks, seguiam uma estética e discurso hippie]. E então, fizemos os Faíscas com o

intuito de ter um grupo que tivesse ação direta, que tivesse a ver com a vida das pessoas;

também com a idéia de compor, cantar em português; e também porque nós próprios

gostávamos de nos insurgir contra o ambiente.

Vocês tinham quantos anos mais ou menos nessa época?

Tínhamos 18... Nessa época, havia uma espécie de fatalidade em Portugal que era a

música de intervenção [após o processo que levou à Revolução dos Cravos, a música de

teor político ganha muito espaço na mídia e na vida dos portugueses, que agora viviam

em um governo socialista]. Havia mau som, concertos em cima de tratores. Uma coisa

muito despegada do tempo. Nós nos insurgimos contra isso. Nos Faíscas, nós é que

fazíamos tudo. Fazíamos os ensaios, depois montávamos os concertos, fazíamos os

bilhetes, os posters... Isso é que foi o princípio, não havia instrumentos, não havia

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amplificadores, não havia nada em Portugal. Mesmo assim, ainda fizemos vários

concertos...

Mas vocês não chegaram a gravar nada, a registrar o material.

Não. Nem nós, nem ninguém. Não gravávamos discos. Era muito difícil. Só dois anos

depois, já com o Corpo Diplomático, gravamos um LP (Música Moderna), porque a

editora gostava muito de nós desde a época dos Faíscas. Então, lá nos deram três dias de

estúdio para gravar um disco. Por isso, percebe-se bem como era pioneira a atividade.

O Faíscas durou quanto tempo?

Deve ter durado uns dois anos. O Corpo Diplomático deve ter durado isso também, uns

dois anos.

E era uma música diferente, a do Corpo Diplomático, em relação ao Faíscas.

Eu gostava imenso desse grupo. Pronto, juntamos teclados ao grupo. Na altura tinha

muito isso de colocar teclados. O núcleo dos Faíscas era eu e um guitarrista que se

chama Paulo Gonçalves. Aí, juntamo-nos ao Carlos Maria Trindade, que ainda hoje toca

comigo nos Madredeus. E assim se fez o Corpo Diplomático.

E porque a mudança? Buscar um tecladista, sair do punk rock?

A gente não saiu. Quer dizer, nós apenas fazíamos uma música elétrica dura, muito

ritmada e com muita energia. Não éramos nós que chamávamos a nós próprios de

punks. Chamavam-nos. Ao Corpo Diplomático também chamavam punk. Nessa altura

deixamos de usar as roupas de cabedal [couro] e essas coisas, estávamos em outra

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época. E tentamos criar uma coreografia para o grupo, que no fundo tinha mais a ver

com o nosso tempo, com a new wave. O Corpo Diplomático deve ter sido, em 78, 79 e

80. E em 81 já estávamos a lançar os Heróis do Mar.

Os Heróis do Mar era uma coisa bem atual, muito parecida com o que se fazia pelo

mundo, não ficava nada a dever ao que se fazia na Inglaterra, era o som

característico da década de 80...

Nós quando chegamos aos Heróis do Mar já conseguimos, por exemplo, ter para o

primeiro disco dez dias de estúdio ou oito. Gravava-se muita música ligeira. Portanto,

era difícil conseguir um bom som. Não existia a tradição da produção de discos cá.

Portanto, nós éramos pioneiros. Tivemos que sair dos ensaios para aprender a fazer isso:

saber gravar, escolher os instrumentos.

Com os Heróis do Mar, um dos músicos que entra é o Tozé Almeida, que era o baterista

de uma banda que foi pioneira também em Portugal, os Tantra [banda de rock

progressivo, com contornos psicodélicos]. E ele já tinha experiência, já tinha gravado

dois ou três álbuns com bom som, e com instrumentos elétricos. Então, ele nos

emprestava alguns instrumentos, amplificadores. Os Heróis do Mar nunca foram uma

banda produzida em estúdio. Era um grupo que gravava o que tocava.

Mas a sonoridade era contemporânea ao que se fazia na Inglaterra...

Pois é. Nós trabalhávamos tanto nos arranjos e na música que fazíamos, que a qualidade

e o bom gosto daquilo que a gente fez era bastante mais elaborado do que o que se fazia

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na época cá. E ainda hoje é. Ainda hoje o som dos nossos discos, que foram gravados há

20 anos, não é comparável aos outros todos que se foram fazendo.

O Heróis do Mar tinha toda aquela presença cênica.

Nós nos víamos um bocado como se fôssemos uma companhia de teatro. E ao longo da

história fomos encenando diversas aventuras, em cada um dos discos que nós gravamos

(ao todo foram cinco álbuns). Então, os álbuns eram temáticos.

Os Heróis do Mar era música elétrica, mas de dança. Entretanto, havia poucas

discotecas naquela época. Digamos que foi uma cultura que foi se apercebendo ao longo

dos anos 80. À essa altura, se saísses à noite - e nós éramos novos e gostávamos de sair

à noite para dançar - passavas uma noite inteira e só ouvias música em inglês. Não havia

mais nada. E nós queríamos fazer mesmo música para as pistas. Em português.

Mas, depois de algum tempo de trabalho, as músicas de vocês tocavam nas

discotecas.

Logo tivemos êxitos... "O Amor", "A Paixão" são singles que tocaram todo o verão em

todo o lado. Uma coisa incrível! Mas nós tínhamos por um lado essa dimensão, mas por

outro temos que relacionar o nosso trabalho com a nossa cultura, com a expressividade

de Lisboa nessa época. Se em um ano fazíamos 30 concertos só 10 é que tinham

equipamento suficiente, e contexto suficiente para o concerto soar como nos

gostávamos. Porque os outros 30, 40, as instalações, os palcos, o som... tudo isso era

sempre uma coisa a meio caminho. Foi uma grande luta fazer sobreviver esse grupos. E

sobreviver nós próprios como músicos e autores.

Page 24: Pop/Rock à Portuguesa

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Foi uma grande luta conosco próprios. Porque nessa altura, tocamos em França, em

Espanha, enfim. Com essa experiência, vínhamos para Portugal e tínhamos a noção de

que não só o equipamento não era o da indústria (como devia ser) como o público não

sabia o que havia de fazer em nossos concertos. Porque não existia a cultura de vídeo.

Fazias um grande espetáculo e fica tudo a olhar, a ver-nos dançar e tocar. Ficavam a

olhar, sem saber como se comportar.

Isso, se deve a um grande atraso do país, cuja exceção foi apenas dois ou três jornalistas

que escreviam de maneira diferente sobre a música, e que tinham uma outra cultura

sobre a música popular no mundo inteiro, e podiam enquadrar aquilo que a gente fazia

por conta do resto. Os Heróis do Mar são um grupo que durante esse anos todos tem

dificuldades em expor a sua especulação artística, diferente entre um ano e outro, entre

um álbum e outro, entre uma fase e outra.

E somos um bocado empurrados para a imagem do primeiro disco. É difícil depois

renovar a mensagem porque ficaram muito marcados esses dois primeiros anos do

grupo. Nos outros anos nos sentimos um bocado presos nesse determinismo inicial. E

no entanto, agora em 2002 se juntaram a EMI e a Polygram para reeditar todos os

nossos discos e as pessoas vão poder ver que nós gravamos ao longo dos anos 80 e que

se houve uma coisa que os Heróis souberam fazer foi renovar-se a si próprios em cada

momento.

Page 25: Pop/Rock à Portuguesa

25

E agora com o relançamento dos discos, você acha que as pessoas vão poder ter

uma idéia do todo, entender melhor a obra de vocês?

Eu espero que as pessoas tenham pelo menos a idéia do extraordinário, da dimensão que

foi o trabalho dos Heróis do Mar. Quer dizer, era tabu muita coisa. A partir dos anos 80,

era tabu falar do nosso país, era tabu encontrar influências nas raízes portuguesas, que

não fosse para falar do pão, da habitação. Era tabu falar de amor. Tudo era muito difícil.

E nós arranjamos formas de o fazer, na nossa língua, sem cair no mau gosto e sempre,

penso eu, com grande inventividade.

É um pouco por causa disso que houve toda aquela polêmica em que se taxou os

Heróis do Mar de fascistas?

Isso aconteceu quando saiu o nosso primeiro disco. Estávamos no princípio dos anos 80,

havia o movimento neo-romântico na Europa, que era o Spandau Ballet, Duran Duran, a

música dos sintetizadores. E as pessoas, os músicos vestiam-se como os salteadores

escoceses ou coisas assim... Havia uma grande identidade visual das bandas. E nós

decidimos fazer o mesmo. O nosso grupo também queria lançar a importância da moda

cá em Portugal. E decidimos fazer uma espécie de montagem, como se o Heróis do Mar

[primeiro disco da banda] fosse uma epopéia dos portugueses. E nos outros discos, não

se fala nem do Vasco da Gama, nem de nenhuma pessoa, nem de nenhuma data. Apenas

tentamos fazer uma nova leitura, digamos, uma leitura de emoções e sentimentos dessas

características dos portugueses. E, encarnamos no palco essas figuras. Fizemos umas

fardas com peles, e tambores, e usamos bandeiras. E falamos das fogueiras e da guerra,

do fascínio do oriente, do fascínio pela África.

Page 26: Pop/Rock à Portuguesa

26

E infelizmente para nós, nessa altura essas coisas eram tabus em Portugal. E portanto, as

idéias que dominavam a imprensa em Portugal eram de que o país não devia ser um

país, devia ser uma república internacionalista, não devia haver fronteiras, devíamos

pertencer ao bloco dos países soviéticos, ou então cair sob a ameaça do imperialismo

americano... Havia uma propaganda fora de época igual àquela que devia ter sido feita,

se calhar, no início do século XX, mas que aqui só começou a ser feita abusivamente

nos anos 80. Nós fazíamos as coisas também com a idéia de provocar esses tabus,

porque achávamos que tínhamos o direito de viver tranqüilamente como portugueses e

com a nossa história. Mas na altura havia muitas feridas. Havia as feridas da

descolonização.

É um pouco confundirem nacionalismo com fascismo?

Nacionalismo não. Patriotismo. Queriam negar às pessoas todas, nessa altura, o direito

de gostarem da história de seu país em particular. Tinham que gostar da história do

mundo, da história geral. Um mundo sem fronteiras, um mundo sem histórias. A

história era só a história da economia. E nós, éramos novos e achávamos isso

completamente contingente àquela época. E quisemos provocar reações. Então, sim

senhor, falamos em Portugal. Nem pudemos pôr Portugal em nenhuma letra. Não se

podia dizer o nome do país sem ser chamado de fascista! Então, não pusemos a

palavra...

Mas faziam referências à história.

Fazíamos referência à História, mas de forma metafórica. E usamos a cruz da Ordem

dos Templários, que é a cruz das caravelas. Quer dizer, é a única coisa que não

Page 27: Pop/Rock à Portuguesa

27

dividimos com mais ninguém. Depois eu vim saber que houve uma espécie de

maquinação em que quiseram nos empurrar como se fôssemos uma manobra da direita

em Portugal. E nós éramos um grupo completamente independente! Disseram que

recebíamos dinheiro e favorecimentos... umas grandes fantasias. Porque a esquerda

perdia terreno em relação àquilo que se julgou poder fazer depois da revolução.

Principalmente terreno político. Perdia muito terreno, mas tinha muita implementação

nos meios de comunicação e então, inventaram que nós éramos fascistas. Vinha nos

jornais...

Isso, então, era uma coisa que vinha da imprensa?

É. Vitimizaram-nos dizendo "não, são uns fantoches da direita". Umas fantasias. Foi

muito chato. Para nós foi uma grande dor, porque achamos uma grande injustiça.

Mas esse rótulo depois...

Pesou durante anos. Acho que ainda hoje deve pesar. Não se fala dos Heróis do Mar

sem vir com essa coisa dos fascistas. Uma estupidez completa. Mas foi uma surpresa tão

grande que de um grupo musical surgir toda essa discussão sobre um partido político

que mais ninguém se esqueceu.

Seis meses depois disso estávamos a receber uma placa do sindicato dos jornalistas a

agradecer, quando o nosso trabalho foi reconhecido pela Rock and Folk, e andamos a

fazer turnê com o Roxy Music pela Europa.

Page 28: Pop/Rock à Portuguesa

28

Chegaram a conseguir uma internacionalização?

Não... Fomos editados em Espanha e França. Fizemos alguns shows por lá. Mas acho

que é importante lembrar uma coisa. A música era interessante e original. O grupo

tocava muito bem e tinha boa imagem. Mas como era um grupo de rock, não só tinha

muitos instrumentos como era caro produzir um concerto (equipamentos e essa coisa

toda). E então, nós tivemos essas oportunidades todas de tocar, mas, como para fazer a

nossa arte gastávamos muito dinheiro, era muito difícil promover o grupo.

De modo que, foi desse sofrimento, dessa sensação de impotência que tínhamos aqui em

Lisboa quando éramos convidados a ir para o Festival X, Festival Y (não havia cachê, a

banda era desconhecida, era para nos promover; e não tínhamos como chegar lá, não

tínhamos um caminhão, nem nada), foi com essa preocupação que eu criei os

Madredeus.

Foi o final do Heróis do Mar e veio o Madredeus?

Não. Foi ao mesmo tempo. Os Heróis do Mar acabam em 89, e os Madredeus começam

em 85. Eu quis fazer um grupo portátil, em que fosse possível tocar em qualquer lado,

só com um carro. Poucos instrumentos, pouco equipamento, pouco backlight. Um grupo

em que fosse possível fazer um grande concerto para levar longe.

E na música, vocês foram buscar mais elementos da tradição portuguesa...

O caminho era o mesmo. Só mudaram os instrumentos. É o mesmo caminho dos Heróis

do Mar. Mesmo nas letras. É o mesmo estudo. É a saudade, é a essência portuguesa, é a

história de Portugal. É o universalismo português: é o Brasil, é a África, é a Índia, é

Page 29: Pop/Rock à Portuguesa

29

Macau. É mesmo o mundo. Só que com menos instrumentos. Só com uma viola, um

acordeão, um violoncelo, um cardiotone, fizemos o Madredeus. E íamos viajar em um

carro. Não havia dinheiro, mas a gente tocava a mesma, em um castelo. Fazíamos um

grande concerto. Havia pouco equipamento e o concerto era bonito na mesma. Percebia-

se tudo o que a Teresa dizia, ouvia-se a poesia, ouviam-se os instrumentos. Pronto. Foi

mudar as expectativas. No início nos queríamos power, não é? Queríamos luzes,

queríamos equipamentos e não havia.

E partindo para uma coisa mais acústica ficou mais fácil de transportar, de

apresentar.

Foi exatamente essa idéia. Eu passei dez anos - toda essa história que estou a contar, os

Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do Mar - com problemas desses. Grandes convites

para ir a festivais ou tocar em França ou Espanha, e sem hipótese nenhuma de

transportar o equipamento. Era impossível. Ainda hoje, os Madredeus, somos muito

famosos e tal, mas somos um grupo completamente independente. A atividade do grupo

é igualzinha a que era a dos Faíscas, é independente, interventiva, provocatória.

E a aceitação dessa nova proposta que vocês tinham como Madredeus, aqui em

Portugal, foi boa? Conseguiram logo uma editora?

Não, para não haver grandes rescisões de contrato (como ainda existia os Heróis do

Mar), gravamos sem contrato. Com duas pistas, durante duas noites. O primeiro disco

do Madredeus foi gravado assim. Com o primeiro DAT [um gravador digital com

apenas dois canais de áudio] que houve cá. Gravamos as músicas todas que tínhamos e

Page 30: Pop/Rock à Portuguesa

30

foi muito bem recebido pela crítica. Claro, houve muita gente que disse que estava mal

tocado, que éramos uns putos [moleques].

Os Dias de Madredeus sai em 87. Depois, à altura nos perguntavam qual era a nossa

idéia. Não era um grupo para dançar. Nós dizíamos que queríamos fazer recitais em

castelos e jardins, nos teatros velhos. Queríamos, como qualquer grupo, fazer a apologia

pela música. E o grupo era amador até 91, quando fizemos a primeira turnê nacional.

Você já disse em entrevistas que o Madredeus tem um bocado de rock...

Sim, porque é também uma linguagem construída em grupo. Se fores ver a autoria das

músicas, vais reparar nisso. Sempre foi uma linguagem criada coletivamente, sob a

minha direção, mas de certeza que convidamos toda a gente a participar, a escrever

canções. Portanto, isso é uma grande característica da música popular, nos grupos de

rock, que é quando a música deixa de ser escrita por um único compositor e passa a ser

elaborada em conjunto.

Depois tem a ver também com a independência e com a iniciativa sui generis. Os

Madredeus não correspondem à continuação de um estilo que exista. Os Madredeus

procuraram durante esse tempo todo se libertar da idéia de que a música tradicional de

Lisboa é obrigatoriamente o fado. Tentamos todo o tempo fazer uma coisa que seja

também um recital de poesia; que seja cantado em português, e não é música para

dançar. Embora tenha sido usado em muitos balés. É uma criação diferente, como rock.

Não segue nenhuma escola, nenhum estilo pré-determinado, se não a liberdade de seus

autores.

Page 31: Pop/Rock à Portuguesa

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Capítulo 3:

O “boom” dos anos 80 (ou a descoberta de um negócio rentável)

O rock português não teria se tornado um fenômeno nos anos 80 não fosse uma

senhora do Porto viajar até Lisboa com algumas fitas cassetes dentro de sua bolsa e

bater à porta da maior editora do país, a EMI-Valentim de Carvalho. O rock português

não teria um "pai" não fosse uma mãe ter acreditado no talento e nos sonhos de seu

filho. Rui Veloso talvez tivesse passado o resto de sua juventude tocando blues

timidamente para uma escassa platéia de amigos e familiares, não fosse a audácia de sua

mãe. "Foi ela quem trouxe minhas fitas para a Valentim de Carvalho, sem eu saber, me

roubou-as", lembra Veloso.

Com seu primeiro álbum, Ar de Rock, de 1980, conquistou uma editora e todo o

país. Canções de apelo pop, rock leve com uma levada bluesy e uma das melhores

música de todo o rock lusitano "Chico Fininho" (que rompeu o tabu de se falar sobre

viciados em drogas publicamente), renderam a Rui Veloso milhares de cópias vendidas

e o título de "pai do rock português". "Eu fiquei famoso do dia para a noite, não é? E

toda gente toca as músicas em todo o lado. Em discotecas, nas rádios, nos parques...

Ficou muito conhecido esse disco. E realmente o cantar em português foi importante",

afirma Veloso, que acredita que ter impulsionado outros artistas a gravarem

composições em português. E é nisso que ele vê a "paternidade" que a imprensa lhe

confere.

Entretanto, o título é bastante injusto. Como já foi visto, não foi na guitarra de

Rui que o rock português começou suas atividades. Quando o menino vindo do norte de

Portugal entoava seus acordes em todas as rádios do país, muitos já haviam deixado sua

Page 32: Pop/Rock à Portuguesa

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marca nas mal traçadas linhas da história do rock lusitano, desde finais da década de 50.

Rui pode ter sido aquele que primeiro atraiu a atenção da indústria e da mídia para o

rock feito em Portugal e cantado em português. Mas não foi o primeiro a fazê-lo. Até

porque ele mesmo, quando começou a carreira (antes de gravar o primeiro disco),

compunha com o amigo, e exímio letrista (um dos mais importantes de Portugal) Carlos

Tê, canções em inglês. "Quando nos sugeriram que compuséssemos em português,

torcemos o nariz. O Carlos estava habituado a fazer música em inglês e foi um bocado

complicada a adaptação. As primeiras letras que ele escreveu em português são as que

estão no Ar de Rock", comenta Veloso.

Atribuir a ele a iniciativa pioneira de cantar em português é injusto mesmo se

considerarmos, como alguns, que o "nascimento do rock português" se dá na década de

80 (hipótese discutível já que o argumento para tal é que o rock que se fez anteriormente

era cópia chapada dos modelos norte-americanos; a pergunta que fica é se o rock que se

faz a partir de então não é também calcado em referências e parâmetros anglo-saxões,

como de fato é todo o rock). Em 1980, quando se edita Ar de Rock, já se escutava nas

rádios da capital a canção "Jorge Morreu" dos UHF, há quase um ano.

Vindos da maltratada Almada (cidade dormitório, vizinha de Lisboa à margem

sul do Tejo), António Manuel Ribeiro e seus companheiros começaram suas atividades

no final da década de 70 com um som sujo e duro, bastante influenciado por Jim

Morrison e o seu The Doors. "Jorge Morreu", que conta a história de um amigo da

banda que se suicidou cansado do "dia-a-dia asfixiante, cínico, necrótico, de uma cidade

pobre de contactos humanos" (como escrevem na contracapa do EP homônimo), foi o

primeiro hit do grupo, em 1979, e pavimentou o caminho para o sucesso que viria com a

edição do álbum À Flor da Pele, pelo qual receberam disco de ouro, em 1981.

Page 33: Pop/Rock à Portuguesa

33

"Nós sentíamos a mesma raiva que sentíamos que vinha lá de fora. Mas

queríamos senti-la em português, cantá-la em português. Em 74 tinha havido uma

revolução para nós muito importante. E digamos que entre 74 e 78, quando nós

começamos a tocar a sério, com o nome UHF, nós queríamos fazer coisas a nossa

maneira. Fomos buscar precisamente a música rock como fator de agressão, fator de

penetração, digamos", explica António sobre o surgimento do UHF. Durante algum

tempo o grupo ficou restrito ao chamado circuito underground. Mas logo no início dos

anos 80 ganham projeção nacional.

Para o líder da banda o sucesso se explica porque o rock vinha preencher uma

lacuna cultural que havia em Portugal nessa época. "Acho que estava-se a espera

daquilo, acho que a juventude naquele momento estava a espera de alguém, de um

grupo que sinalizasse uma ruptura. E nós fizemos essa ruptura com o passado. Era

mesmo o passado de antes de 74, a música fuleira que havia na altura e também alguma

música que apareceu depois, chamada música revolucionária que era muito, muito

pobre. Havia (e há) grandes cantores nesse país, Zé Mário Brandes, Sérgio Godinho,

José Afonso... é indiscutível. E são para mim um referência, talvez mais na poesia do

que na música. Mas musicalmente eles eram pobres. Era tudo com uma viola. Uma

viola e uma flauta. E nós viemos para agredir. E para agredir é preciso chegar lá e dar

um grande soco. E a música rock tem esse soco." E ao que parece, o soco veio, e veio

com força.

Afinal, a descoberta!

"Já havia rock português desde o final dos anos 50. Agora, o rock português a

sério, com uma estrutura profissional, com vendas discográficas importantes,

Page 34: Pop/Rock à Portuguesa

34

espetáculos regulares; com uma indústria capaz de suportar os concertos e a produção; e

editoras, que também tiveram que se modernizar, crescer... isso só aconteceu nos anos

80", comenta o líder do UHF.

O estouro, ou "boom" do rock em Portugal aconteceu a partir do sucesso do

UHF e de Rui Veloso. Daí em diante, muitos discos editados, muitos concertos, toda

uma indústria se desenvolveu em torno do pop/rock. O jornalista António Duarte, em

seu livro A Arte Eléctrica de Ser Português (Livraria Bertrand, 1982), fornece algumas

pistas para que se compreenda o fenômeno que aconteceu em Portugal na década de 80.

"A existência de programas radiofônicos e de jornais especializados mais vivos, mais

progressistas e mais abertos à nova música cantada em português, a aposta e

investimentos - e depois algum oportunismo - das editoras nacionais na fabricação de

um novo mercado discográfico, o apuramento das técnicas promocionais, o aumento do

poder de compra da juventude e a utilização de uma linguagem simples direta e

quotidiana nos discos editados explicam, genericamente, a explosão do 'fenômeno' do

rock 'português'. Rock que desde há vinte e cinco anos é cantado em português e em

inglês, com algumas boas provas de qualidade, mas que nunca tinha sido boom".

No início da década de 80, as editoras desataram a contratar artistas que faziam

rock em português. Tinham descoberto a fórmula do sucesso (ou do lucro) com Ar de

Rock e À Flor da Pele, e seguiram-se dezenas de lançamentos de bandas e mais bandas,

como os Taxi, que foram a coqueluche adolescente à época com "Chiclete" (nome mais

do que apropriado para a canção que lançou o grupo de pop bubblegum, altamente

vendável), mas depois sumiram.

A indústria fonográfica contava ainda com a ajuda da mídia. Aos semanários que

já existiam desde finais da década de 70 - como os extintos Rock Week e o Se7e - veio

Page 35: Pop/Rock à Portuguesa

35

se juntar o Blitz, em 1984, que logo se tornou o mais importante veículo de divulgação

musical em Portugal. Da mesma forma, impulsionavam o público a consumir a

produção nacional programas como o Pop Off, na televisão (havia apenas dois canais,

ambos estatais, nesse período, a RTP 1 e a RTP 2), e Rolls Rock, na Rádio Comercial.

Não tardou para que começassem a surgir lugares onde as bandas pudessem

fazer seus shows. Em 1980, o inesquecível Rock Rendez-Vous (raro encontrar algum

português com mais de 30 anos que não se lembre com saudade desse local), aparece e

se torna o palco mais importante da capital portuguesa, a partir do qual bandas como

Xutos e Pontapés conquistaram seu público. Mais tarde, em 1984, o Rock Rendez-Vous

viria a promover os famosos Concursos de Música Moderna, revelando muitos talentos

como os Mão Morta. O hoje mítico Festival Vilar de Mouros, volta em 1982 (houve

uma edição em 1972 e depois um hiato) e se mantém até hoje, como um dos eventos

musicais mais importantes do país (um festival que dura quatro dias e acolhe mais de 30

mil pessoas, reunindo músicos portugueses e grandes nomes do rock internacional).

Irreverentes e polêmicos

Um dos grupos mais interessantes desse começo de década é o GNR (ou Grupo

Novo Rock). Marcaram sua new-wave à portuguesa, desde o início, pela irreverência,

das letras e da postura da banda. "O próprio nome GNR é uma provocação. GNR, ou

Guarda Nacional Republicana, é uma polícia de choque, uma coisa antiquada,

ultrapassada, com farda antiga... é uma polícia que na época do fascismo reprimia as

pessoas", esclarece o vocalista Rui Reininho. Já no primeiro single "Portugal na CEE"

(antes mesmo de Reininho, famoso por seu humor ácido, integrar a banda) ironizavam a

Page 36: Pop/Rock à Portuguesa

36

maneira idílica com que muitos portugueses estavam encarando a entrada do país na

União Européia (à época ainda chamava-se Comunidade Econômica Européia).

A entrada de Reininho no primeiro LP, Independança, em 1981, e o fato de ele

se tornar a partir de então o responsável pelas letras do grupo veio afirmar o humor

como característica incontornável do GNR. Reininho escreve canções onde o nonsense

e o jogo de palavras não nos deixam conter o riso, mesmo quando o teor dos textos é

crítico (como quando fala da futilidade e da decadência do cotidiano oitentista em

"Absurdina"). E em palco, as performances do grupo levavam a cabo a máxima de Gil

Vicente de que "é rindo que se castigam os costumes".

Ao longo dos anos, a banda sofreu uma série de mudanças em sua formação,

numa história tão rocambolesca que verdadeiramente se parece com enredo de novela

televisiva. O núcleo fundador do GNR era Victor Rua, Alexandre Soares e Toli César.

Em seguida, entra Reininho e eles lançam Independança, em que no lado B ousaram

uma faixa experimental de 27 minutos chamada "Avarias". Simplificando a trama,

acontece que Rua gosta muito do resutlado de "Avarias" e acaba entrando em contato

com outros músicos (ligados à música eletrônica minimal) e decidindo que quer dar esse

rumo à sua carreira. Sai da banda (entretanto alega que "demitiu" o restante do grupo e

não que saiu) e segue uma carreira na área musical que lhe interessa. Obviamente a

questão vai parar em juizo e tudo o mais por causa de direitos de propriedade

intelectual, tanto de algumas músicas como do nome do grupo, que Rua, reivindica para

si. Entra no lugar de Rua, o guitarrista Jorge Romão, e fica sendo esta a formação da

banda até 1986, quando Soares deixa o GNR, segundo o próprio "por divergências

estéticas".

Page 37: Pop/Rock à Portuguesa

37

É verdade que o rumo estético que o grupo deu a seu trabalho passou a não

agradar a todos. Muitos fãs viram com restrições álbuns como Mosquito, considerado

"muito comercial". Sobre as críticas às mudanças na sonoridade do grupo, Reininho é

taxativo: "Vendemos mais de 100 mil discos e tem aquela gente mais branché que acha

que já é mais comercial. Eu gosto do que faço e gosto que chegue ao maior número de

pessoas".

Outra banda que tem a irreverência como marca são os Xutos e Pontapés. Sem

novelas envolvendo o entra e sai de músicos, como nos GNR, os Xutos conservam

praticamente a mesma formação desde o princípio de sua carreira, nos idos de 1978. Zé

Pedro, Tim e Kalú à época do "boom" não foram contratados por nenhuma major.

Tiveram seus discos editados por uma gravadora independente, a Rotações. Não fizeram

sua carreira nos programas de rádio ou na TV. Mas nos palcos do Rock Rendez-Vous,

onde são recordistas de apresentação (mais de 20 durante os nove anos da casa). O

hard-rock (que por vezes visitava também o punk) dos Xutos só alcançaria sucesso

comercial no final da década. E viriam a influenciar bandas como Peste & Sida e

Censurados, que mesclam punk ao hard-core.

No começo, foram tidos como "banda maldita" por sua agressividade (não só nas

guitarras), mas nas letras. Duas em especial chocaram a opinião pública portuguesa,

"Mãe" e "Ave Maria", por tratarem de incesto e religião, respectivamente. Hoje, a banda

é tida como das mais importantes no país. A crítica não se cansa de dizer que "são uma

banda de palco", para elogiar os inesgotáveis shows, que mostram muita energia apesar

dos mais de 20 anos de estrada.

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Portugalidade?

Rock português, simplesmente porque feito em Portugal. É a conclusão que

muitos chegam. Não estão de todo errados. Mas vale mencionar que houve louváveis

tentativas de tentar "aportuguesar" a estética rock. Os Heróis do Mar, de Pedro Ayres

Magalhães, por exemplo. Technopop falando de saudade, um sentimento tão caro aos

portugueses. A Cruz dos Templários e a história do povo português sempre

acompanhando a banda. E toda a polêmica relacionando-os a uma suposta estética neo-

fascista. Vocais que lembram o tradicional fado e, eventualmente, a manipulação de um

instrumento ou outro que dá um toque étnico às canções (como o sintetizador e a

guitarra em "Saudade", primeiro êxito do grupo). Dos Heróis do Mar derivaram duas

outras bandas relevantes para o cenário pop português. Esteticamente muito semelhante

aos Heróis, temos o Sétima Legião. E uma versão sem sintetizadores, seriam os Delfins.

"Estou Além"

Unindo a tão procurada "portugalidade" à irreverência, aparece um rapaz, com

roupas estranhas, cabelos coloridos e brincos cantando "Povo Que Lavas No Rio",

cantiga popular tradicional, imortalizada por Amália Rodrigues. Um escândalo. Duplo.

Primeiro foi considerado "herege" por ter dado uma feição pop à cantiga. Em seguida,

chamado "paneleiro" (gay) por sua indumentária.

Talvez o mais inventivo dos artistas portugueses - especula-se se não teria sido

ele a traçar os rumos do que seria o "verdadeiro" pop (não tão rock) português -

António Variações morreu muito cedo (em 1984, com 40 anos), deixando apenas dois

álbuns editados (o primeiro, Anjo da Guarda, produzido pelo GNR, o segundo Dar e

Receber, pelos Heróis do Mar). E mais uma vez foi alvo de comentários pejorativos

Page 39: Pop/Rock à Portuguesa

39

(desta vez não musicais, sua obra já havia conquistado público e crítica). Em uma época

em que a Aids era tida como "praga homossexual", levantou-se o debate (outra vez) a

cerca da sexualidade de Variações, quando é internado com problemas respiratórios

muito graves e vêm a falecer em pouquíssimo tempo.

"Estou Além", uma de suas canções define bem o que era o artista. Um homem

que tentou mesclar as experiências recolhidas em suas viagens pela Europa (morou em

Londres e Amsterdã) e a tradição popular que tanto o encantava desde a infância, na

pequena aldeia na região do Alto Minho onde foi criado. Não era músico. Compunha,

como conta Pedro Ayres Magalhães, "as músicas com uma pandeireta... depois

tínhamos que ajustar as coisas aos tons". Além de seu tempo, conheceu o sucesso pouco

antes de deixar a vida, escutando pela primeira vez uma canção sua no rádio quando já

estava no Hospital.

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Capítulo 4:

Contracultura contra a tradição

Veio a explosão. A indústria investiu pesado nas revelações do pop nacional,

mas, como era de se esperar, logo o mercado começou a se retrair a partir da metade da

década. Muitas bandas que apareceram no rastro do sucesso dos "fundadores" somem.

Entretanto, uma cena interessantíssima começa a se desenvolver em torno de um bairro

lisboeta famoso pelos artistas que nele residiram e por sua tradição progressista. Campo

de Ourique, última morada do poeta Fernando Pessoa. O bairro de onde partiram as

primeiras pedras da revolução que derrubou a monarquia portuguesa em 1910.

Foi este local que serviu de cenário para um surto criativo dos mais intensos que

a terra de Camões assistiu. Música como arte. Música pela música. Mensagens

contundentes. Melodias e arranjos diferentes do lugar-comum feito pelo rock vendido

pelas grandes editoras. Bandas que se posicionavam contra o sistema, como o Linha

Geral, com seu "Hino À Nossa Luta", ou o Grito Final, com as críticas às

convocatórias para "Ser Soldado" e ao "Bairro da Fome". Grupos que se aventuravam

em linguagens musicais inusitadas para o grande público, como o Mler Ife Dada, que

recriava uma atmosfera de cabaré em suas canções, ou o Pop Dell' Arte, que

experimentou de tudo um pouco. Ou ainda uns Ena Pá 2000, irreverentes até os ossos.

E uma Mão Morta, vinda do norte do país, para dar bons tapas no conservadorismo da

sociedade portuguesa.

Page 41: Pop/Rock à Portuguesa

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Do it yourself

"Eu quis formar uma banda porque era meu sonho, fazer música, desde miúdo. E

quando eu descobri na faculdade que eu podia, quando eu queria, ter um certo carisma

provocador... Também tem a ver com o punk, não musicalmente, mas em termos de

atitude, eu identificava-me. O punk e a new wave mostraram que qualquer pessoa podia

fazer música, se tivesse algo a dizer. Era tocar, pronto." A declaração é de João Peste,

vocalista do Pop Dell Arte, e reflete o pensamento dessa geração. O "do it yourself" foi

a força motriz de Peste, não só para a banda, mas para uma editora, a Ama Romanta,

que se encarregou (por algum tempo) de promover a esse rock "marginal".

A fundação da Ama Romanta foi motivada pelo Concurso de Música Moderna

do Rock Rendez-Vous (RRV), em 1985, onde o Pop Dell' Arte havia ganho o prêmio de

originalidade e a oportunidade de gravar um EP pela gravadora do RRV. (No ano

anterior, quando estreou o concurso, fora o Mler Ife Dada quem foi congratulado pela

originalidade; no ano seguinte, o Mão Morta.)

Peste conta que quando o RRV ofereceu o EP houve um problema com uma das

músicas. Era regra da casa que só se editassem músicas cantadas em português, e um

dos temas do Pop Dell Arte era, como define o músico, "um poema fonético". "Turin

Wellisa Strada" não poderia, portanto, entrar no disco. "Eu pensei: 'temos a

oportunidade de gravar um disco, mas não vamos gravar um disco como eles querem.

Vamos gravar um disco nosso', e comecei a pensar se não seria possível formar uma

editora", relata Peste. Juntou-se então à Maria João Serra e criou a Ama Romanta. "O

objetivo incial, da minha parte, era editar os Pop Dell' Arte. Depois pensei, se calhar era

mais giro [legal] como apresentação fazer uma coletânea com muitos temas".

Page 42: Pop/Rock à Portuguesa

42

E apareceu Divergências, em 1986, reunindo boa parte do "pessoal" de Campo

de Ourique. Mas o grande destaque da coletânea não foi nenhuma banda. Foi uma

entrevista dada pelo sociólogo Paquete de Oliveira a Peste em que discutem a ameaça

das "ditaduras culturais". Para Peste, que também é sociólogo, a entrevista serviu como

uma espécie de manifesto da Ama Romanta. "Pretendíamos dar um contributo, por mais

ínfimo que fosse, ao combate às ditaduras culturais, nesse caso através da música. Não

era para estar a dizer que música é que as pessoas deveriam ouvir, mas para dar

alternativas para as pessoas poderem escolher o que querem ouvir". O vocalista do Pop

Dell' Arte acredita que a entrevista servia para "legitimar a existência de cultura

independente... música independente, cinema independente, teatro independente etc."

O choque

Havia outras editoras independentes em Portugal nesse período (a Rotações, que

lançou os Xutos e Pontapés; a Fundação Atlântica, comandada por Pedro Ayres

Magalhães, e a gravadora do RRV). Mas nenhuma delas apareceu com um discurso tão

contundente como o da Ama Romanta. "Acho que nunca ninguém tinha questionado

dessa forma um país, que, ainda por cima, viveu o fascismo por 50 anos, como o

nosso... as pessoas levaram com essa... e uma música que achavam estranha", lembra

Peste, que para além de colocar o discurso de Paquete no álbum de estréia da Ama

Romanta, fazia questão de citá-la nas entrevistas que dava à altura. "Era um choque para

muita gente".

O assombro com que a produção da Ama Romanta era recebido não parou em

Divergências. Peste recorda o lançamento do primeiro disco do Pop Dell' Arte. "O Free

Pop foi um escândalo. Certos setores da crítica atacaram o disco ferozmente, outros

Page 43: Pop/Rock à Portuguesa

43

elogiaram. Ficamos entre epítetos de fraude e gênios". Segundo ele, boa parte da crítica

não estava preparada para aceitar coisas novas. "Eram uns gajos que achavam que a

música portuguesa ou era o Rui Veloso ou... e não aceitavam as coisas mais novas, da

nova geração. Houve um que escreveu um artigo que dizia assim: 'eu já recebi esse

disco há mais de um mês, ouvi-o e decidi que não ia escrever nada sobre ele porque não

valia a pena. Mas pensando melhor, e com o intuito de informar as pessoas, eu acho que

tenho que escrever que isto é (e isso é o título do artigo) exemplo de tudo o que um

disco não deve ser: de como não se deve cantar, de como não se deve escrever, de como

não se deve gravar, de como não se deve produzir, de como não se deve fazer uma

capa'. Acho que foi o artigo mais elogioso que eu já tive...". Imagina-se o impacto que

um disco do Pop Dell' Arte, banda com declarada influências do movimento dadaísta,

tinha sobre apreciadores do bluesman Veloso.

O mesmo tipo de estranhamento por parte de alguns setores da crítica aconteceu

com o Mão Morta. Canções que falavam de crimes e sexo, afrontando os valores

tradicionalistas portugueses. Guitarras agressivas e, principalmente, a persona Adolfo

Luxúria Canibal. Se nos registros em estúdio o torpor e a lascividade que sua voz um

tanto "satânica" dava às músicas já escandalizavam os mais pudicos, suas performances

ao vivo não deixavam pedra sobre pedra. O ápice da subversão mão-mortiana aconteceu

em 1989, quando em um concerto no RRV, Adolfo deu um golpe em sua perna com

uma faca. Mais tarde, em março de 1993, ele daria a seguinte declaração em uma

entrevista ao Blitz: "O ambiente na sala estava pesadíssimo, havia necessidade de

aplacar um bocado as coisas e eu pensei que o sangue poderia acalmá-los... o sangue

assusta. Afinal, o sangue acabou por ser demais e eu percebi que tinha feito asneira".

Page 44: Pop/Rock à Portuguesa

44

Ama Romanta Sempre

Em 1989, depois de lançar 20 discos de variados artistas (incluindo um Victor

Rua pós-GNR), a Ama Romanta encerrou suas atividades. "Estava mais ou menos

condenada a desaparecer porque ela começou com dívidas", explica Peste. "Contra

todas as expectativas levamos a coisa até onde podíamos. Eu não tinha qualquer tipo de

jeito, e nem tenho, para coisas organizadas, contábeis... a minha sócia também não sabia

tratar dessas coisas e, era complicado... impostos, e mais não sei o que, e papeladas... e

eu não me dou nada bem com isso. As dívidas estavam cada vez a aumentar mais, até

que tivemos que parar."

O Pop Dell' Arte acabara no mesmo ano, mas volta a se reunir três anos depois,

após um "auto-exílio" de Peste em Londres, e continua "vivo" até hoje. O Mão-Morta

nunca parou, embora sua formação tenha mudado diversas vezes, e se consolidou como

uma das mais importantes bandas portuguesas de sempre.

No final da década de 90, entretanto, alguns discos da Ama Romanta foram

reeditados pela gravadora Música Alternativa. Divergências se tornou Ama Romanta

Sempre e ganhou mais algumas faixas. A propósito disso, Peste se lembra de um artigo

publicado no Blitz sobre essas reedições: "o gajo que faz a crítica aos discos reeditados

pergunta-me 'mas ainda existem pessoas dessas em Portugal?', ou seja, capaz de

fazerem um disco, independente de estar mal gravado ou não. Pronto, foi um disco que

teve coragem, que marcou, e até esteticamente tem coisas interessantes".

Page 45: Pop/Rock à Portuguesa

45

Capítulo 5:

“A música é o espaço que nos deixa pensar sem constrangimentos”

Um dos principais grupos do "rock marginal" português foi o Mão Morta.

Vindos do norte do país, da cidade de Braga, mexeram com os alicerces da cultura

portuguesa. Sua música é fruto de um momento histórico cultural peculiar em uma

cidade igualmente ímpar para que se desenvolvesse o tipo de arte que eles fizeram (e

ainda fazem). Letra e música em total comunhão: a mesma agressividade expelida pelas

guitarras pode ser sentida na poesia cantada; a lascividade com que as palavras se

contorcem acompanha as batidas e arranjos de cada composição.

Com uma dezena de ótimos álbuns editados (mesmo não sendo a música a

principal atividade destes senhores), colecionam elogios de crítica e público em

Portugal, bem como prêmios (como o de Originalidade no festival do extinto Rock

Rendez-Vous, em 1986, e o de Carreira do jornal Blitz, em 2001). No "currículo" do

Mão Morta podemos incluir também inenarráveis shows, sejam de abertura para estrelas

internacionais como Nick Cave & The Bad Seeds, The Jesus & Mary Chain e The Fall,

ou os concertos em nome próprio, sempre marcados pela atmosfera pesada e

angustiante.

Adolfo Luxúria Canibal (não poderia haver melhor nome para o vocalista desta

banda), que hoje vive em Paris, contou, por e-mail, um pouco da história de um dos

grupos mais (in)tensos da música portuguesa. Falou de como a banda de formou e da

importância que a música tem na vida dos Mão Morta. "A liberdade criativa deixa de o

ser se está dependente da sobrevivência física".

Page 46: Pop/Rock à Portuguesa

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Havia em Braga uma grande efervescência cultural, nos anos 80, época em que o

Mão Morta começou. Como era esse cenário artístico na cidade e de que maneira

isso tem a ver com a formação e a proposta do Mão Morta?

É verdade que Braga teve uma grande efervescência cultural no início dos anos 80.

Digamos que foi o encontro de duas gerações, num momento histórico muito particular.

Mas o melhor é começar do início... Braga, em termos de importância, é a 3ª/4ª cidade

de Portugal (a disputa é com Coimbra...), mas, em termos culturais, sendo uma cidade

muito marcada pela Igreja (foi 'pertença' da Santa Sé até o século XVII) e com uma

existência civil ligada quase exclusivamente ao comércio, sempre foi um local muito

fechado e estéril (excetuando a arquitetura e as artes decorativas de motivo religioso,

com expoente máximo no barroco). Era uma cidade beata, onde praticamente toda a

gente se conhecia, com meia dúzia de famílias dominantes. Os "filhos de família" iam

estudar para as três universidades do país (Coimbra, Porto e Lisboa) e, desde 69, muitos

vinham de lá ligados a organizações de extrema-esquerda, maoístas ou trotsquistas.

Com o 25 de Abril de 74, e os anos revolucionários que se lhe seguiram, toda esta gente

veio para a rua e, como aconteceu no resto do país, em Braga a extrema-esquerda

alastrou para as faixas liceais e ao operariado em formação, sobretudo na indústria têxtil

e na construção civil.

Só que em Braga, local de onde havia partido o golpe de 28 de Maio de 26 que deu

origem à ditadura de Salazar, o poder religioso, no Verão de 75, organiza-se e leva as

massas católicas a opor-se à revolução, incendiando sedes de partidos e organizações de

esquerda, colocando bombas, assassinando figuras emblemáticas, financiando e

apoiando logisticamente organizações bombistas, como o ELP (Exército de Libertação

Page 47: Pop/Rock à Portuguesa

47

de Portugal) ou o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), etc. Este

processo acaba em 76/77, com a vitória do Partido Socialista nas primeiras eleições

democráticas. Mas, entretanto, uma grande fatia da juventude ligada à extrema-esquerda

tinha evoluído da rigidez maoísta ou trotsquista para posturas mais radicais e

alternativas, para um anarquismo de contornos fluídos e uma vivência de contracultura,

com consumo de drogas e um individualismo crescente, na procura de um quotidiano

sem entraves e pautado pelo prazer. É claro que uma existência assim acabou a

dispersá-los para fora de Braga, alguns para o estrangeiro (Paris, Bruxelas, Berlim...). E

os que ficaram pela cidade, com a normalização democrática e o retorno ao

cinzentismo, arrastavam os seus dias mergulhados no tédio.

Com a democracia, Braga cresce, duplica de tamanho, triplica, ganha uma Universidade

e deixa de ser uma cidade de famílias para se encher de rostos anônimos. No estrangeiro

acontece o punk, que começa a dar repercussões em Portugal (sobretudo Lisboa) a partir

de 78/79. É um incentivo ao "faça-você-mesmo", que indiretamente está na origem do

"boom" do rock português de 80-82. Mas antes da explosão midiática, com o Rui

Veloso e os UHF, foi um movimento subterrâneo, primeiro com os Faíscas, depois com

os Xutos & Pontapés e, sobretudo, os Corpo Diplomático.

Eu tinha ido para Lisboa, cursar Direito, no ano letivo de 78/79, e acompanhei toda essa

efervescência do punk lisboeta, os primeiros concertos dos Xutos, os dos Corpo

Diplomático... Tudo era novo, excitante, e fácil de fazer! Nas idas a Braga, nas férias,

tentei passar à prática - mas as pessoas com quem me dava, sobreviventes da revolução,

ou estavam no estrangeiro ou sem alento nem força anímica, agarradas ao free jazz e ao

Page 48: Pop/Rock à Portuguesa

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tédio. Acabei por encontrar em dois estudantes liceais, colegas do meu irmão, os

cúmplices para o ato. Formamos os Bang-Bang em 80, grupo que nunca saiu da sala de

ensaios, uma dependência do liceu onde um deles estudava. Em 81, sempre nas férias

escolares, formamos os Auaufeiomau.

Entretanto tinha havido o "boom" do rock português e por todo o lado surgiam grupos,

como cogumelos. Em Braga tinha aparecido um grupo de miúdos, chamado WC, com o

qual o meu irmão tocava harmônica, e nós fomos vê-los ensaiar e ao seu primeiro

concerto. Como não tínhamos baterista nem local para ensaiar (nem aparelhagem...),

convidamos o vocalista do grupo (Miguel Pedro) a tocar bateria na nossa banda -

passamos a ter baterista, ensaiávamos na garagem onde eles ensaiavam e com a

aparelhagem deles! Estreamo-nos na passagem de ano 81-82, numa festa "marginal"

organizada numa serração desativada, propriedade da família de um amigo do grupo

(essa serração, denominada A Fábrica, viria a ser, nos anos seguintes, um local

obrigatório e mítico do escasso circuito de concertos em Portugal, e onde, a par do Rock

Rendez-Vous, os Xutos ganharam a sua legião de fãs).

O fim-de-ano é uma época (Natal) em que toda a diáspora bracarense está na cidade e

toda a gente estava nessa festa. E, não sei porquê (as coisas deviam estar maduras para

isso, apenas precisavam de um abanão...), o concerto foi um sucesso. A geração da

revolução, ex-maoístas, ex-trotsquistas, ex-freaks [hippies], encafuada em Braga ou em

trânsito pelo país ou pelo estrangeiro, e a nova geração, contemporânea do punk,

encontraram nele uma base de trabalho comum. Os Auaufeiomau transformaram-se

rapidamente num grupo mutante, numa redoma suficientemente aberta por onde

Page 49: Pop/Rock à Portuguesa

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passaram músicos diversos, aspirantes a músicos, pessoas que apenas queriam divertir-

se de uma forma criativa, e alargou-se ainda mais, para abarcar trabalhos de fotografia,

de pintura, de cinema, de escrita... Outros grupos musicais surgiram, com pessoas que

tinham passado pelos Auaufeiomau, ou só para desenvolverem idéias mais específicas,

como os Ruge Ruge, os Fanfarra Atroz, os Comédia Selvagem, os Humpty

Dumpty, etc.

De repente, toda a gente queria fazer coisas e toda a gente fazia coisas! O ativo núcleo

inicial, de uma quinzena de pessoas, alastra, começa a agregar universitários da novel

Universidade do Minho, atrai pessoas do Porto, mesmo em Lisboa começa a haver

repercussão do que se vai passando em Braga, sobretudo após o espetáculo "Rócócó Faz

o Galo" (Abril 83), que teve sessões esgotadas, e onde os Auaufeiomau encenam, com

música, teatro e dança, uma história sobre o grau zero da existência com recurso aos

personagens clássicos da Comedia Dell' Arte. Faziam-se filmes em super 8,

performances, concertos, exposições, lançavam-se livros, revistas, montou-se uma rádio

pirata, abriram-se bares (Braga não tinha nenhum local de encontro, à parte os cafés, e à

noite não havia para onde ir, a não ser para casa uns dos outros, que começavam a ser

pequenas para tanta gente) como o Deslize e o Zanzibar, que serviam como locais para

exposições, performances e concertos, organizavam-se grandes festas. Tomou-se conta

do inativo CineClube de Braga (uma forma de ir buscar financiamento, que começava a

faltar), faziam-se semanas culturais, com poesia, teatro de rua, música, cinema, enfim,

toda a gente se divertia! Mas tanta atividade começou a criar fraturas no núcleo mais

ativo, a que não foi alheio a entrada da heroína como droga mais consumida.

Page 50: Pop/Rock à Portuguesa

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Por outro lado, toda esta efervescência atraiu os empresários da noite para Braga, que

ficou enxameada de bares, clubes e boites abertos toda a noite. As pessoas, pouco a

pouco, foram deixando de executar as idéias, foram mesmo deixando de as ter,

embaladas pelo eldorado do pó e das adolescentes que pululavam sob o neon das pistas

de dança, e Braga acabou por passar a uma fase seguinte, a do divertimento noturno.

Os Mão Morta, quando surgem, em finais de 84, surgem no início da decadência da

efervescência cultural bracarense, quando se dão as primeiras fraturas visíveis no seio

do núcleo ativista - pode mesmo dizer-se que são disso conseqüência. E acabaram por

ser os herdeiros da postura que esteve na sua gênese...

Como foi que o Mão Morta foi parar na Ama Romanta? Havia semelhanças na

cena bracarense com a cena de Campo de Ourique?

Não havia qualquer contato nem qualquer semelhança entre a cena bracarense e a cena

de Campo de Ourique. Os Mão Morta estrearam-se ao vivo em Janeiro de 85, no Porto,

nas instalações de uma coletividade local chamada Orfeão da Foz. Esse concerto, que

englobava outras atividades e outros grupos, era organizado por uma rapariga de Braga,

que fazia parte do núcleo ativista bracarense, agora a viver no Porto, juntamente com

um grupo de pessoas do movimento alternativo da cidade, conhecidos como a Tertúlia

de Espinho. No âmbito desta Tertúlia de Espinho movia-se um grupo de garagem

chamado Os Cães, A Morte e o Desejo, mais tarde Cães Vadios, que estavam na

assistência e que gostaram muito do nosso concerto. Não sei qual a origem da relação

entre eles, mas Os Cães, A Morte e o Desejo e a Tertúlia de Espinho tinham contatos

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com a cena de Campo de Ourique, vindo o grupo, aliás, a fazer parte da coletânea de

estreia da editora Ama Romanta, Divergências (86).

Quando no fim desse ano de 85 fomos tocar ao Porto, ao bar Aniki-Bóbó, o grupo

estava novamente na assistência e no fim do concerto veio falar conosco, fazendo-nos

uma entrevista para um fanzine que editavam, o Cadáver Esquisito. Foi aí que nos

falaram do João Peste e da Ama Romanta, e do disco que estava para sair

(Divergências), coisas que nós desconhecíamos. Disseram-nos ainda que tinham falado

ao Peste de nós, que éramos um bom grupo para meter na coletânea, mas já tinha sido

demasiado tarde, porque já não havia espaço. No início de 86 fomos tocar a Lisboa, à 1ª

eliminatória do III Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous, estava na

assistência a irmã do João Peste, que fez um artigo super-elogioso no fanzine que

editava, o Enfim Sós.

Eu continuava a estudar Direito em Lisboa e, de vez em quando, ia almoçar com os

meus avós, que viviam em Campo de Ourique e que tinham por hábito comer num

restaurante do bairro chamado O Gigante. Normalmente, almoçava no mesmo

restaurante um casal e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, sempre vestidos de preto.

No filho vim a reconhecer mais tarde o João Peste, quando fui ver um concerto onde

tocavam os Pop Dell' Arte, no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da

Empresa), onde o Peste estudava Sociologia. Um dia, depois de almoçar, quando

esperava o elétrico, vem ter comigo o Rui Vargas, co-editor do Enfim Sós, que eu não

conhecia, entregar-me um exemplar do fanzine. Ainda nesse ano de 86, depois de um

concerto em Sintra, o José Pedro Moura [baixista do Pop Dell' Arte que depois tocou

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baixo no Mão Morta até 2000], que estava na assistência, vem ter comigo felicitar o

concerto e convidar-me para aparecer por Campo de Ourique. Julgo que foi na

seqüência que conheci o João Peste e foi feito o convite para editar na Ama Romanta.

Por que é que nunca fizeram da música um meio de vida? Sempre mantiveram

suas profissões "tradicionais" em paralelo com a atividade artística?

O não viver da música foi uma opção natural, tomada desde o início (se pode-se chamar

opção a uma escolha que nunca foi objetivamente equacionada nem discutida, porque

intrínseca ao desejo que nos levou para a música). A música, para nós, nunca foi vista

como profissão mas como liberdade criativa e a liberdade criativa deixa de o ser se está

dependente da sobrevivência física. Gostamos da música não porque ela nos permita

viver sem horários nem superiores hierárquicos, fugir a um qualquer destino de trabalho

assalariado, mas porque ela nos canaliza o questionamento entre nós e o mundo, é o

espaço vazio que nos deixa respirar e pensar sem constrangimentos. Ora se tivéssemos

que pagar a renda de casa com os rendimentos da música, isso seria um

constrangimento...

Sempre mantivemos outras atividades a par da música, ora como estudantes ora como

"profissionais". Eu fui jurista, advogado, e agora, em Paris, escrevo crônicas, faço

reportagens, estudos de viabilidade financeira, traduções... O Miguel Pedro [bateria] é

jurista, Diretor do Departamento Jurídico da Câmara de Braga. O António Rafael

[teclas] é Técnico de Turismo, trabalha como free-lancer para a Junta de Turismo do

Alto-Minho. O Sapo [guitarra] é vendedor de instrumentos musicais, subgerente da

Valentim de Carvalho Eletrônica, Ldta. O Vasco Vaz [guitarra] é sociólogo no

Page 53: Pop/Rock à Portuguesa

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Ministério da Justiça. A Joana Longobardi [baixo] inicia a sua carreira de designer,

depois de ter acabado o curso o ano passado. Esta pluralidade de atividades não só nos

arranca do meio unidimensional dos fazedores de música como acaba por ser muito rica

de experiências e por nos aproximar do mundo real de toda a gente. Claro que também

tem um lado negativo, que é basicamente a falta de disponibilidade para arrancarmos

para o estrangeiro, tentar a internacionalização...

Page 54: Pop/Rock à Portuguesa

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Capítulo 6:

O lado negro da força

Desde meados dos anos 80, a cultura hip hop torna-se uma das mais

interessantes manifestações artísticas nos Estados Unidos. Protagonizado por jovens

negros que vivem no subúrbio das grandes cidades americanas, o hip hop não tarda a

ecoar do outro lado do Atlântico. Já no fim da década de 80, podia-se encontrar na

Margem Sul do Tejo grupos dançando break nas ruas e fazendo algum rap

despretensioso entre amigos, como os B Boys Boxers, de onde sairia um dos mais

famosos rappers portugueses, General D. Cantavam em inglês, por vezes, misturando

algumas expressões do calão africano, próprio das comunidades negras em Portugal (a

maior parte delas foi formada a partir da vinda de imigrantes das antigas colônias

lusitanas na África).

Nomes como Beastie Boys, Public Enemy e The Disposable Heroes of

Hiphoprisy faziam a cabeça dessa juventude suburbana, que se identificava com o

discurso dos "irmãos" norte-americanos. "Eram moleques de rua que viam de uma

forma muito poderosa e cheia de conteúdo o que ia nas comunidades, não diria negras,

mas as que mais sofriam", explica Virgul, um dos vocalistas do Da Weasel, um dos

projetos mais comentados no cenário musical nos últimos anos.

"Não fazemos hip hop convencional, puro. Misturamos muito reggae, rock e

hard-core", conta o baixista João Nobre (ou Jay Jay Neige, como é conhecido na banda).

O Da Weasel lançou seu primeiro EP (More Than 30 Mother Fuckers), em 1992, com

letras em inglês. "Na altura, pro PacMan [Carlos Nobre, principal vocalista e letrista da

banda] era muito mais fácil compor em inglês já que as referências eram quase todas

Page 55: Pop/Rock à Portuguesa

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norte-americanas", comenta Virgul. Entretanto, no primeiro álbum Dou-lhe Com a

Alma, de 1995, as palavras de PacMan vêm na língua mãe, facilitando a transmissão e a

compreensão de suas mensagens. "O Pac não conseguia no início se expressar em

português. Quando tentou, viu que de fato era muito mais fácil dizer exatamente o que

se pensa, com uma recepção e uma identificação muito maior do que cantando em

inglês", enfatiza Jay Jay.

Hoje a cena hip hop é uma das mais ativas em Portugal. Grupos como o Sam

The Kid, Dealema, Micro, Chullage lançando discos (quase sempre em edições

independentes) sempre muito elogiados pela crítica, Mind Da Gap e Da Weasel se

consagrando nos festivais de verão. A voz da Margem Sul, de "Almada City", como se

vê grafitado nos muros da cidade, nunca teve tantos representantes. Mas nem sempre foi

assim. "Sem dúvida o movimento cresceu. Quando começamos, era tudo muito

embrionário, havia apenas algumas boas mostras, como o General D e os Black

Company, que se calhar estavam bem mais preparados do que nós", lembra o baixista

do Da Weasel.

A cena hip hop 'tuga (como eles abreviam carinhosamente) permaneceu

totalmente underground até 1994, quando a Sony Music decide reunir boa parte do

material produzido até então em uma coletânea chamada Rapública. Era um momento

em que o interesse pelo rap norte-americano tinha aumentado consideravelmente em

Portugal. Nada mais sensato do que editar artistas locais que faziam algo similar. O

grande êxito radiofônico de Rapública foi "Nadar", do Black Company. A canção não

tinha o teor contestador, de denúncia, mas serviu para abrir portas para que o

movimento se firmasse. Dentre os grupos que fizeram parte da coletânea, estavam ainda

além dos Black Company, Boss AC, Zona Dread, Family, Os Líderes da Nova

Page 56: Pop/Rock à Portuguesa

56

Mensagem entre outros. No mesmo ano, o brasileiro Gabriel, o Pensador entra no

mercado português passando a ser uma referência de como "rapar" em língua

portuguesa. Gabriel mantém algum contato com artistas da cena local, mais

especificamente com General D com quem se apresentou ao vivo em uma de suas idas a

Portugal. No ano seguinte, a exposição conseguida com Rapública foi consagrada na

entrega dos Prêmios Blitz. General D foi escolhido como o artista do ano, e Da Weasel

foi o melhor grupo de 1995.

Entretanto, a indústria não estava interessada em manter o hip hop. Rapública

havia sido lançado, com a intenção clara de aproveitar um momento em que o rap

internacional atraía as atenções dos jovens portugueses. Dessa forma, à parte da edição

da coletânea, o hip hop volta ao underground luso, onde se solidifica, e a partir de 98,

99, explode com força total, por iniciativa própria, sem apoio de grandes editoras.

Clareando... o groove

Quando se fala em anos 90 em Portugal uma figura vem imediatamente a mente:

Pedro Abrunhosa, que com os seus Bandemónios, foi a "vedete" da década. Um tipo

esquisito, um tanto misterioso, sempre de óculos escuros e de pele branca. As

influências de sua música, entretanto, não poderiam ser mais negras: do funk de James

Brown ao jazz, culminando no que os modernos gostam de chamar de acid jazz. O

sucesso vem logo no primeiro disco, Viagens, de 1994, que tem como convidado o

saxofonista Maceo Parker (que trabalhou com James Brown). Já neste primeiro

trabalho, Abrunhosa parte para uma internacionalização, fazendo shows em países como

Brasil, Estados Unidos, Espanha, França e Itália. Viagens lhe rendeu ainda disco triplo

Page 57: Pop/Rock à Portuguesa

57

de platina, um mega-hit "Não Posso Mais", e uma capa da revista Billboard em

dezembro de 94.

A carreira de Abrunhosa é a prova cabal de que a internacionalização de um

artista passa quase que necessariamente por esforços da gravadora. No caso dele, a

Polygram (hoje Universal), que além de lançar tanto Viagens quanto Tempo, o terceiro

álbum do artista, em 1996, em todo o mundo, agendou shows e promoveu decentemente

o trabalho do artista, agendando shows para divulgar os álbuns. No Brasil, Abrunhosa

fez algumas apresentações, incluindo uma em parceria com Elba Ramalho, no Festival

Vinho do Porto, em 1997, realizado no Memorial da América Latina com apoio do

ICEP (Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal) e do Ministério da Cultura

Brasileiro, e o single "Se eu fosse um dia o teu olhar" (tirado do álbum Tempo) figurou

na trilha sonora da novela global Por Amor e vendeu 800.000 cópias em apenas um ano.

Todo esse sucesso meteórico abriu espaço na mídia (e consequentemente no

mercado) para outras bandas de acid jazz em Portugal, como o Clã e o Cool Hipnoise,

que já vinham desenvolvendo seu trabalho antes de todo o burburinho e do estouro em

torno de Pedro Abrunhosa.

O Clã havia se formado em 92 e suas primeiras apresentações acontecem em

pequenos bares do Porto dois anos mais tarde. Hélder Gonçalves, mentor do grupo,

assim como Abrunhosa, vinha de uma escola jazzy e essa influência é notável em suas

composições, assim como o hip hop e o soul. Mas ao contrário do que acontece no

trabalho de Abrunhosa, o Clã tem uma componente rock mais acentuada. A guitarra de

Hélder dá um tom mais "pesado" às músicas sem que, no entanto, se perca o groove

próprio das bandas de acid jazz.

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58

A vocalista da banda, Manuela Azevedo, explica que em 95, quando começaram

a procurar uma editora para lançar seu primeiro álbum, ainda havia pouca disposição em

se apostar em sonoridades desse gênero: "Nossa tentativa era de integrar a música

portuguesa com outras coisas que estava a vir naquela época: hip hop, acid jazz,

referências mais modernas. No entanto, esse tipo de música cantada em português era

algo muito novo e não era visto com muito bons olhos pelas editoras". Ainda este ano, o

grupo consegue um contrato com a EMI-Valetim de Carvalho para lançar Luso

Qualquer Coisa (que iria a público apenas em 1996) "impulsionados" pelo sucesso de

vendagem de Viagens e as comparações são inevitáveis. "Apanhamos pessoas a dizer

que estávamos a seguir o estilo do Abrunhosa, quando na verdade éramos

contemporâneos dele", desabafa Hélder. Manuela acrescenta que "havia uma grande

expectativa em torno do grupo por causa das apresentações ao vivo, o fato de a

gravadora ter segurado o álbum por quase um ano fez com que tivéssemos problemas na

divulgação de Luso Qualquer Coisa".

O primeiro álbum do Clã entretanto é bastante elogiado pela crítica e a banda foi

aclamada como um dos projetos mais interessantes do ano pelo semanário Blitz. Mas

êxitos radiofônicos e forte exposição midiática só vieram com o sucessor, Kazoo

(1997); mais especificamente com a canção "Problema de Expressão", cuja letra é de

Carlos Tê (tradicional parceiro de Rui Veloso). Kazoo rende a Manuela o Prêmio Blitz

de melhor voz feminina em 97.

A parceria de Hélder e Tê acontece desde o primeiro registro sonoro do Clã. "Na

época, nós não estávamos totalmente satisfeitos com algumas letras e o Mário Barreiro

[produtor musical e ex-Jáfumega] sugeriu que procurássemos o Tê, que era uma pessoa

mais experiente e podia nos dar alguns conselhos. E ele não só nos deu bons conselhos

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como gostou bastante do projeto e logo na altura se tornou nosso cúmplice nessa área",

recorda o guitarrista.

No terceiro e mais bem acabado álbum da banda, Lustro (2000), além da

colaboração habitual de Tê, outros artistas foram convidados a escrever letras para o

Clã, entre os quais Sérgio Godinho, monstro sagrado da música popular portuguesa. A

parceria com Godinho vinha do Projeto Afinidades, na Expo '98, que mais tarde seria

levado a outros palcos portugueses em uma mini turnê que culminou no álbum

Afinidades editado em 2001. Outro que participou como letrista em Lustro foi o

brasileiro Arnaldo Antunes.

Tanto Hélder quanto Manuela têm uma paixão declarada pela música brasileira e

neste álbum, além dos elementos já citados presentes na sonoridade da banda, podemos

notar alguma bossa incorporada às composições de Hélder. "Nós reparamos no trabalho

do Arnaldo Antunes por causa de discos da Marisa Monte, do Gilberto Gil etc.", afirma

Hélder. "A maneira como Arnaldo trabalha a música, especialmente a língua portuguesa

nos interessa imenso", complementa Manuela. O contato com Arnaldo foi intermediado

por um produtor português (Paulo Junqueira) que havia trabalhado no Brasil durante

algum tempo. "O Paulo [Junqueira] enviou os discos a Arnaldo, que respondeu dizendo

que tinha gostado do nosso trabalho e enviando três letras para que nós escolhêssemos.

Foi assim que surgiu 'H2Homem'", conclui Hélder.

O acid jazz também flerta com a música brasileira no trabalho do Cool

Hipnoise. Jazz, alguma bossa, soul, funk, percussões africanas e elementos de

eletrônica e de hip hop - tanto na música (scratches), quando nas letras (letras que falam

dos problemas dos afro-lusitanos, das drogas às mazelas sociais e seqüelas da guerra

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colonial). Os três disco da banda mostram uma evolução sonora de acordo com os

"avanços" tecnológicos.

No primeiro, Nascer do Soul (1995), as seções de metais dão à maioria das

músicas um ar bem jazzy, mas o funk e o groove marcam forte presença, e fazem pensar

se não seriam os Cool Hipnoise uma filiação dos Jafumega, banda que misturava esses

mesmo ritmos, além de alguma música latina, na década de 80, quando a maior parte

dos grupos portugueses se dedicava ao punk ou à new-wave. Nos álbuns seguintes,

Missão Groove (1997) e Música Exótica para Filmes, Rádios e TV (2000), a eletrônica

e o hip hop dão um tom mais moderno ao trabalho, sem que se perdesse a identidade

musical apresentada no début. Numa versão especial de Missão Groove incluíram uma

versão de "Águas de Março" lado a lado com uma versão de "One Love", do Massive

Attack, e de "Don't Stop Till You Get Enough", de Michael Jackson. Em Música

Exótica... a tônica é dada pelo dub, pelo funk e pelo drum'n'bass. Neste álbum, a carioca

Fernanda Abreu empresta sua voz e a canção "Dois" para os rapazes do Cool Hipnose.

Soul Brothers

Misturando rock'n'roll, soul e hip hop, já na curva para o século XXI, surge no

cenário luso uma das mais empolgantes bandas da nova geração portuguesa: o

Wraygunn. Nos shows, a irreverência e o senso de humor peculiar de Paulo Furtado,

líder da banda, ficam evidentes. Quase sempre sem camisa, se apresenta com os

seguintes escritos no peito: "Soul Power" e uma sete indicando a região pélvica no

moço. "Power" é a melhor maneira de resumir o som do Wraygunn. Na mesma medida

em que as canções nos trazem suingue e uma vontade quase incontrolável de dançar, as

guitarras têm uma potência incrível, mostrando que o rock'n'roll vive ali. Três vozes

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(duas masculinas e uma feminina) fazem com que as músicas ora tenham um tom mais

gospel – Raquel Ralha canta como um anjo ou como uma diva, conforme a necessidade

–, ora sejam baladas ou blues, com a grande maioria das letras em inglês. "O conceito

da banda é misturar influências diversas, sem cair no óbvio. Usamos batidas de hip hop,

bases rítmicas de soul, guitarras de blues, a voz lírica da Raquel, meio gospel, meio

R&B... poderíamos ter uma cantora negra, mas essa opção seria muito batida", explica

Paulo. E para reproduzir tudo isso nos concertos, a banda teve de "crescer" do EP

Amateur (1999) para o primeiro álbum Soul Jam (2001). Antes contavam com quatro

integrantes, agora são sete. "Precisávamos de mais opções sonoras. Não queríamos fazer

um disco que depois não pudéssemos apresentar ao vivo", completa o líder da banda.

Paulo é o tipo de pessoa para quem a música é uma paixão. Antes de criar os

Wraygunn, era guitarrista dos Tédio Boys, importante banda "punkabilly" dos anos 90.

Hoje, além de manter a banda, desenvolve um projeto a solo chamado The Lendary

Tiger Man. "Uma one-man band tipo aquelas coisas que existiam no começo do século

XX nos Estados Unidos", define. "É uma coisa bem mais específica, blues. Não pode de

modo algum chegar a muitas pessoas", acrescenta. Para lançar este projeto, bem como

os próximos discos do Wraygunn e outros trabalhos que sejam interessantes, fundou em

2002 o selo Subotnik, sediado em Coimbra. "O caminho parece ser esse, editar material

de maneira independente e depois ir atrás das majors para a distribuição", conclui.

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62

Capítulo 7:

A pop eletrônica

O número um na parada britânica de singles no começo 2001 era português. Um

DJ chamado Rui Silva (ou Rui Da Silva, para os ingleses). "Touch Me", uma house

com elementos de trance, embalou festas na virada para o século XXI em todo o

mundo. Sorte? Não. A carreira do DJ e produtor português já vinha sendo acompanhada

pela cena clubber desde 1994, quando o selo Tribal distribuiu internacionalmente "So

Get Up" do Underground Sound Of Lisbon (duo formado por Rui, que à época

assinava Doctor J, e por Tó Pereira, mais conhecido como DJ Vibe).

"So Get Up" fez o verão de 94: de Ibiza a Los Angeles. A música era uma

remixagem dos renomados produtores americanos Danny Tenaglia e Júnior Vasquez,

para o tema "Get Up", que constava no primeiro álbum do USL lançado em Portugal em

93. O companheiro de Rui, DJ Vibe, além de se consolidar como um dos melhores e

mais requisitados DJs em sua terra, como residente do Kremlin (um dos clubes lisboetas

mais conhecidos nos anos 90), também ganhou as pistas do mundo impulsionado pelo

sucesso do USL, tendo passado por discotecas de toda a Europa, dos Estados Unidos, e,

inclusive, pela Love Parede alemã.

Darin Papas, um surfista e artista multifacetado (escultor, fotógrafo e escritor)

californiano que viveu em Portugal nos anos 90, era dono da voz e das palavras de "Get

Up" (que originalmente era um poema de Papas). O "hit" abriu portas para que ele

conseguisse um contrato com uma editora portuguesa e lançasse seu projeto Ithaka, em

que pode-se notar as raízes musicais de Papas, fincadas no hip hop de Los Angeles, cuja

efervescência, desde o final da década de 80, foi captada pelas lentes de sua máquina

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63

fotográfica. Flowers and the Color of Paint foi o primeiro disco do Ithaka, em parceria

com Pedro Passos (DJ Grizzly), e com colaborações de artistas portugueses, como

General D e Francisco Rebelo (baixista do Cool Hipnoise). A recepção da crítica ao

trabalho que misturava rap, soul, blues e música eletrônica fez com que Papas assinasse

com uma major, a Norte Sul. Depois de quatro discos editados em terras lusas, Papas

regressou a Los Angeles, onde continua com seus projetos.

Trip à moda da casa

Fora das pistas, ouvia-se um eco de Bristol. Três Tristes Tigres traziam a

Portugal sonoridades próximas do que artistas como Massive Attack, Portishead e

Tricky faziam na Inglaterra. "Diziam que fazíamos trip hop, nós respondíamos que

fazíamos trip pop, porque era uma coisa meio à trip mas não tinha elementos de hip

hop, que são próprios do estilo", explica Alexandre Soares, ex-GNR, responsável pelas

guitarras e programações do grupo. Sobre as semelhanças dos Tigres com a cena

inglesa, Alexandre acrescenta: "Andávamos em um universo que é real, mas ao mesmo

tempo há alguma 'sugestão', um universo alterado... Era uma vivência urbana, se calhar,

próxima, mesmo que estivéssemos longe. São ao mesmo tempo pessoas em sítios

diferentes a passar pelas mesmas experiências. Foi por aí a proximidade... não por ouvir

os discos deles".

Os Tigres se formaram em 92 e no início Ana Deus e Regina Guimarães foram

“testando” o terceiro elemento do grupo: primeiro Ricardo Serrano, depois Paula Souza.

Alexandre aparece tocando guitarra como convidado no primeiro álbum, Partes

Sensíveis, um ano mais tarde. Entretanto, a saída de Paula faz com que o guitarrista

passasse a integrar definitivamente a banda. Sua entrada é notada na sonoridade dos

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Tigres, que se torna mais experimental e mais eletrônica. Alexandre, que desde a sua

saída do GNR vinha desenvolvendo trabalhos no campo da eletroacústica, fazendo

trilhas para espetáculos de dança e projetos a solo que classifica como "pouco

importantes", traz elementos mais "modernos" à música do grupo. "No começo era uma

coisa mais acústica, um bocado cabaré, piano e voz e pouco mais, com textos

feministas, com muito humor. Quando entrei, trouxe a maquinaria...", conta Alexandre.

Guia Espiritual, segundo registro da banda, assinala essa virada e rende aos

Tigres dois Prêmios Blitz em 1996, ano em que é lançado: melhor álbum nacional e

melhor grupo nacional. Dois anos mais tarde, vem a obra-prima Comum, o nome mais

irônico que este trabalho poderia ter. A exímia produção, assinada por Alexandre e por

Joe Fossard (inglês radicado em Portugal, considerado um dos melhores produtores em

terras lusas atualmente), está em qualquer lista de melhores discos portugueses da

década. A eletrônica assume lugar de destaque oscilando entre o trip hop (impossível

não comparar, apesar da explicação do músico) e o drum'n'bass, sem entretanto que a

habilidade com a guitarra de Alexandre seja descartada: ora usada como base para os

bits digitais ("Linha Turva"), ora cortando a melodia com riffs distorcidos ao melhor

estilo rock ("Falsa Parte"), ora com uma belíssima guitarra portuguesa (que

acompanhada de cellos da o tom em "Visita de Estudos").

Se não podemos dizer que Bristol ecoou no trabalho dos Tigres por faltar ao

último nuances de hip hop, o mesmo não pode ser dito do Coldfinger. Em seu primeiro

álbum, Lefthand, de 2000, a influência de Massive Attack é inegável. E scratches de hip

hop não faltam. Elogiados pela crítica desde seu début, o Coldfinger (Margarida Pinto e

Miguel Cardona) são um dos mais promissores projetos da nova safra pop portuguesa.

Sua música é delicada, fundindo melodias jazzísticas com arranjos eletrônicos (que

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passam pelo downbeat e pelo drum'n'bass). A poesia de Cardona, quase sempre em

inglês, toma corpo na belíssima voz de Margarida levando o ouvinte ora à introspeção

contemplativa, ora à uma vontade incontrolável de se levantar e dançar.

O terceiro trabalho do duo (o segundo foi Return To Lefhand, uma releitura das

canções com que estrearam), Sweet Moods & Interludes, editado em 2002, mostra um

Coldfinger mais ciente de sua identidade musical. As influências já não pesam de

maneira tão óbvia. O hip hop ganha mais espaço, quer pelo uso dos scratches, quer pela

participação de Ace, MC do Mind Da Gap. Linhas suaves de pianos (tocados por

Margarida) estão presentes em todo o registro, emoldurando uma bela narrativa sobre

encontros e desencontros na cidade.

Com uma sonoridade um pouco mais densa, o The Gift também envereda pelos

caminhos da pop eletrônica intimista. Já no primeiro disco, Digital Atmosphere, de 97,

receberam elogios da crítica especializada e a atenção de algumas editoras. Entretanto,

nenhum contrato foi assinado, devido à banda cantar em inglês, permanecendo o The

Gift como um grupo independente. No ano seguinte, Vinyl alçou a banda ao sucesso,

sendo considerado o melhor disco nacional do ano pelo jornal Diário de Notícias. A

parti daí, partem para o exterior, se apresentando na Expo 2000 em Hanover, e no

festival Eurosonic, na Holanda.

A voz grave de Sónia Tavares, um baixo bem marcado, teclados (muitos

teclados) e samplers dão um tom sombrio às canções, enquanto o saxofone, violoncelo e

violinos criam uma atmosfera etérea, e melodias (assim como no Coldfinger) pendendo

para o jazz, resultando num trabalho harmônico. Com o terceiro álbum, Film, editado

em 2001, o The Gift se firmou definitivamente em sua terra natal. Agora, depositam

suas fichas no mercado externo. O grupo tem viajado com os discos debaixo do braço

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em pequenas turnês pela Europa e pelos Estados Unidos, batendo à porta de editoras

independentes que se interessem por lançar seu interessantíssimo trabalho fora de

Portugal.

Nova safra

Cada vez mais comuns são as incursões da jovens bandas portuguesas nos

caminhos das experimentações eletrônicas. Projetos como o Hipnótica oscilam entre

uma lounge music com ares refinados e uma house (por vezes tech-house) capaz de

incendiar pistas de dança. Estão para o Moloko, como o Coldfinger está para Massive

Attack. Se os ingleses tem "The Flipside" contrastando com "Fun For Me", os

portugueses tem "Japan Underground" e "Closer". Mas vale ressaltar que Hipnótica

pende mais para um lounge do que para as pistas. O mesmo lounge, aliás, em que

podemos colocar o LF Cool, com seus lampejos funk por vezes lembrando um

Jamiroquai mais "digital".

Para as pistas, Portugal oferece um sem número de DJs nas mais variadas

vertentes da eletrônica moderna, como Morrice (techno), Frank Murrel (house), DJ

Pena (trance) e Huma-Noyd (drum'n'bass). E ainda uns Blasted Mechanism que fazem

dançar com sua salada rítmica: da África à Rússia, passando pelo techno e pelo dub.

Há que destacar ainda o trabalho feito pelo ex-Mler Ife Dada, Pedro D'Orey em

seu projeto Word Song, em homenagem ao poeta Al Berto: um livro e um disco, em

que a poesia é cantada (quase declamada) ao som de bits eletrônicos, linhas de baixo e

teclados muito fortes. A sonoridade passa, inevitavelmente, pelo downbeat, pela bossa-

nova e pelo acid jazz.

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Capítulo 8:

O Eterno Retorno

O ano de 1998 marcou uma virada no mercado português. Uma virada parecida

(embora oposta) com a que aconteceu no início da década de 80, quando houve o

"boom". Se àquela época as gravadoras haviam "descoberto" no pop/rock cantado em

português uma (supostamente) inesgotável fonte de lucros, agora foi a vez da língua

inglesa ocupar esse espaço. O estouro veio com Silence Becomes It, o elogiadíssimo

primeiro álbum do Silence 4, que logo no seu lançamento conquistou primeiro lugar nas

paradas. De certa forma, podemos dizer que este sucesso abriu portas para que outras

bandas que cantavam em inglês conseguissem atrair a atenção da mídia e das

gravadoras.

Irônico pensar que as belas e melancólicas canções do Silence 4 ficaram

"encubadas" durante dois anos justamente por as letras não serem em português. A

banda se formara em 1995, mas apenas conseguira um contrato (com a Universal) para

editar suas canções depois de muitas idas a festivais independentes e da inclusão de uma

versão de "Little Respect" (sem as afetações eletrônico-oitentistas do Erasure) em uma

coletânea contra o racismo entitulada Sons de Todas as Cores, em 1997. David Fonseca,

líder e vocalista da banda, comenta que não esperavam tanto sucesso. "Quando

surgimos, havia um grande descrédito comercial em qualquer banda portuguesa que

cantasse em inglês. Nunca nenhuma banda tinha conseguido vender discos em Portugal

desta forma. Foi uma surpresa para todos (inclusive nós próprios) quando o fenômeno

se instalou".

Page 68: Pop/Rock à Portuguesa

68

Para David, compor em inglês não tem a ver diretamente com a famigerada

internacionalização. "A língua inglesa pode ser uma forma de chegar a outros países,

mas também pode tornar o processo mais difícil, visto haver milhares de bandas por

esse mundo fora à espera de uma oportunidade... Quando comecei a escrever músicas,

não usava as minhas próprias letras, mas sim as letras de um amigo meu chamado

Bruno Urbano. Todas as letras que ele escrevia eram em inglês, por isso a sonoridade da

música ganhou imediatamente uma característica da qual já não me quis desassociar.

Acho que a grande influência que a música anglo-saxônica tem sobre mim também é

uma pista válida sobre o porquê de fazer música em inglês".

Com o segundo álbum, Only Pain is Real (2000), o sucesso se repetiu e o

Silence 4 consolidou sua posição na cena pop/rock portuguesa e começou algo como

uma “internacionalização” de sua música fazendo shows na Espanha e na Inglaterra e

levando seus discos para os Estados Unidos. No Brasil, a Polygram (hoje Universal)

havia editado Silence Becomes It, um ano antes. No entanto, não houve qualquer esforço

de promoção. Encontrava-se o disco, meio por acaso, perdido nas seções de música

portuguesa em mega-stores, misturados à obra de Amália e do Madredeus, e não na

seção de pop/rock internacional, onde deveriam estar. O máximo de exposição que a

banda teve em terras brasileiras foram os clipes de "My Friends" e "To Give"

(respectivamente tirados de Silence Becomes It e de Only Pain is Real) no finado

programa Mondo Massari da MTV Brasil. Algo inexplicável para uma banda que tinha

tanto potencial quando um Travis ou um Coldplay para emplacar no mercado brasileiro.

Silence 4 marcou a entrada de portugueses cantando em inglês nos tops de

vendas e nas play lists das rádios nacionais. Hoje a quantidade de bandas que fazem uso

da língua inglesa para se expressar é imensa: do pop inspirado nos Smiths do Austin ao

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nu-metal do Slamo. Influências que inevitavelmente vêm de fora de Portugal, de

modelos ingleses e americanos, e são assimiladas em tentativas de se produzir boa

música, e, quem sabe, com algum diferencial.

Nesse contexto, é de se destacar o trabalho de um original e "dramático" Belle

Chase Hotel, que vai buscar influencias tão díspares quanto David Bowie e Glenn

Miller, ou o rock e o tango, e que não se prende ao inglês como forma de expressão: vão

ao francês, ao português e ao "brasileiro". Na canção "São Paulo 451", do segundo

álbum da banda, La Toilette des Étoiles, há uma boa tentativa de se abrasileirar o

sotaque luso do vocalista JP Simões. O Brasil parece ser uma referência para o grupo de

Coimbra, que nessa mesma música evoca explicitamente Chico Buarque, nos arranjos e

linhas melódicas. O disco de estréia Fossa Nova evoca o movimento brasileiro não

apenas no título, mas em grande parte das canções.

Por outro lado, temos um Plástica que, apesar de ter boas canções, de grande

apelo pop (daquelas que você escuta uma vez e já está cantando junto), não acrescenta

nada em relação ao modelo em que se inspiraram. O rótulo de "Suede português" cai

sobre os rapazes desde sua primeira aparição em uma coletânea de novos talentos

chamada Optimus 2000: We've Been Watching You. A maneira como o vocalista Vitor

Raposo canta lembra absurdamente Brett Anderson. Em palco, o português oscila entre

o carisma de Anderson e o tom blasé de outro inglês famoso, Liam Gallagher. Paulo

Ventura, empresário da banda e presidente da editora independente Metrodiscos,

responsável pela compilação que lançou o grupo, conta que Vitor sequer conhecia

Suede quando entrou para a banda: "Quando ele fez o teste, não demos conta da

semelhança. Só depois de a canção estar gravada é que percebemos. Falei com ele e o

Vitor disse que não conhecia o Suede. Nós é que lhe demos os discos para que

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percebesse que queríamos que ele evitasse o registro tão parecido. Mas o problema é

que é o registro natural dele". Ventura lembra que na gravação do álbum de estréia da

banda, Pop Songs & Rock People, editado pela Valentim de Carvalho, "o produtor

tentou que ele cantasse de outra maneira, mas não resultou". "Eu tenho lá culpa de que o

rapaz seja bonito como o Brett Anderson, tenha charme e classe como o Brett

Anderson? É pop! O que vamos fazer se ele tem um registro vocal próximo ao do outro?

Nada. Nem ele, nem eu. Ele canta bem", conclui o empresário. Acredite-se ou não na

explicação de Ventura, a semelhança entre Plástica e Suede é inegável.

Um bom exemplo do que seria se "apropriar" de um modelo em benefício

próprio é o Bypass. Poderíamos enquadrá-los como uma banda "post-rock" (embora

esse seja um rótulo um bocado vazio), tal os escoceses do Mogwai, os islandeses do

Sigur Rós, ou os americanos do Tortoise. O que fazem? Desconstróem canções. "Nós

tentamos manter a energia e a força do rock, com guitarra, baixo e bateria, mas

adicionamos instrumentos que são pouco característicos deste estilo, como o

parlophone. Também tentamos fugir da estrutura básica das canções pop/rock: parte

um/refrão/parte dois...", explica Eduardo Raon, guitarrista da banda. Antenados com o

que de mais atual se faz hoje no rock mundial, mas sem simplesmente reproduzir o que

escutam. Na mesma linha experimental, há o Stowaways, que mexem mais com

texturas sonoras (menos com as estruturas propriamente), lembrando um pouco

Radiohead pós-Ok Computer. As duas bandas partiram para um caminho que, ao que

tudo indica, parece ser o mais acertado: edições independentes. O Bypass conseguiu um

contrato para lançar seu EP de estréia com a Metrodiscos graças a um concurso no qual

ganharam o primeiro prêmio. Stowaways foram além, e produziram e gravaram eles

próprios o primeiro EP.

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71

O mesmo fizeram os meninos do Fonzie. Os integrantes da banda de punk

melódico juntaram dinheiro e foram à Suécia gravar seu début Built To Rock. Voltaram

para casa com o CD prontinho debaixo do braço. E ao invés de começarem a procurar

uma editora portuguesa que os quisesse lançar, pensaram logo no mercado externo.

"Fomos buscar uma editora que pudesse lançar logo o álbum em toda a Europa, nos

Estados Unidos e na América do Sul", esclarece Hugo Maia, vocalista da banda. Ele

conta que foi mais fácil conseguir um selo nos Estados Unidos (Jumpstart Records) do

que em Portugal, porque a banda havia conseguido alguma visibilidade no meio

underground quando venceram um concurso promovido pelo grupo americano

Millencolin, de quem a banda é fã confessa. "Ganhava quem fizesse a melhor cover de

um tema deles. O prêmio era publicidade no site do Millencolin", conta Hugo. Ele

acrescenta que outro fator importante que ajudou o Fonzie a conseguir levar seu

trabalho para fora de Portugal foi a participação de Ingemar Jansson, vocalista do No

Fun At All. "Ele nos passou muitos contatos para começarmos a divulgar nosso

trabalho", comenta.

Depois de assinarem com a Jumpstart Records, foi a vez da Movieplay

portuguesa, que teoricamente tem os direitos de distribuição do grupo no resto da

Europa. Em seguida, o Fonzie contatou o selo brasileiro Barulho Records, que está

responsável pelos rapazes por aqui, e no Japão são representados pelo Underground

Liberation Force Records. Para Hugo e sua banda a internacionalização é a única saída a

um mercado tão pequeno como o português. Eles assumem que sim, cantam em inglês

para poder tocar fora de seu país. "Portugal não tem muito a cultura do punk, do rock.

Se ficássemos só aqui seria complicado", avalia Hugo.

Page 72: Pop/Rock à Portuguesa

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Em algum lugar do passado...

A mesma sensação de que Portugal não era lugar para a sua música, sentiram os

Tédio Boys em meados da década de 90. Influenciados pelo grupo norte-americano The

Cramps, os Tédio Boys ficaram conhecidos por suas performances insanas ao som do

que chamavam de "punkabilly". O ex-guitarrista do grupo Paulo Furtado, hoje líder do

Wraygunn, desabafa: "não éramos viáveis em Portugal". A banda sobreviveu durante

dez anos sempre no underground. Editaram três de seus quatro discos nos Estados

Unidos, pelo conceituado selo independente Elevator, fizeram turnês pelo circuito

underground norte-americano, chegando a tocar em uma festa de aniversário de Joe

Ramone, por convite do próprio, em uma dessas passagens pela terra do Tio Sam. "Ele

ouviu dois concertos nossos em Nova York e convidou-nos. É bastante curioso, porque

de repente és uma banda portuguesa e chegas em Nova York e és convidado para tocar

no aniversário de Joe Ramone. E eram poucas bandas, todas mais ou menos conhecidas

dele", lembra Paulo, contrastando o fato com o pouco reconhecimento que o grupo tinha

em Portugal na altura. Ele recorda que os Tédio Boys eram postos de lado pela imprensa

durante os anos 90. "As pessoas levam um tempo a reconhecer as coisas, hoje os Tédio

Boys são considerados referência. Se calhar é porque a geração que está hoje nos jornais

é a mesma que a nossa, cresceu ouvindo o mesmo que nós".

Tédio Boys são hoje de fato referência no rock português. E são também um

verdadeiro celeiro de bandas. Dos cinco integrantes da banda, apenas um não está hoje

trabalhando como músico, o baixista André. Paulo fundou os Wraygunn e mantém seu

projeto solo Legendary Tiger Man. O vocalista Tony Fortuna hoje comanda o

barulhento d3o. O baterista Kaló toca bateria e canta no eletrizante Bunnyranch. E o

guitarrista Vitor Torpedo foi para Londres, onde tem colhido criticas mui elogiosas ao

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punk '77 do seu The Parkinsons (o semanário inglês NME colocou a banda entre as 10

imperdíveis para 2002, e os chamou de "a resposta mais suja e esnobe do Reino Unido

aos Strokes").

Idéias distorcidas

Bem longe das praias do punk rock, surge, ainda em finais da década de 80, o

More República Masónica. Rock barulhento, guitarras pesadas e distorcidas. A

primeira aparição do grupo foi no 6º Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-

Vous. E logo chamaram a atenção, não apenas por sua música inspirada na escola

alternativa americana (Dinosaur Jr. e Sonic Youth, entre outros), mas por terem

quebrado deliberadamente as regras do concurso, apresentando um tema em inglês

quando as normas diziam que apenas canções em português poderiam concorrer.

"Partimos do princípio de que quando alguém quer criar alguma coisa deve criá-la com

a liberdade total para fazer o que quer que seja e exprimir-se da maneira que quiser",

justifica o baixista Jorge Dias.

O More República é uma banda alternativa. Independente. No som e na atitude.

Foram das primeiras bandas a editarem seus discos por conta própria. "Nós começamos

a gravar um disco, investimos nosso próprio dinheiro e depois fomos procurar alguém

para lançá-lo", lembra Jorge a propósito do primeiro Mini-LP da banda More More

More. As auto-edições continuam hoje, ainda que agora a banda seja contratada da

Metrodiscos. Apesar de, como diz Jorge, "a banda ter um percurso discreto", o álbum

Chemical Love Songs rendeu ao grupo um hit, "Answer Machine", e críticas bastante

boas, ao disco que foi produzido por Jack Endino (que havia trabalhado com Nirvana

em Bleach). Mesmo com "Answer Machine" destoando um pouco do restante do disco,

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que é bem mais pesado, Jorge acredita que "a escolha de uma música mais acessível

transportou a banda para o olhar das pessoas". "Ouviram falar de nós, ouviram a nossa

música", completa.

Outra banda que também foi buscar referências na cena underground americana

de fins dos anos 80, começo dos 90 foi o Blind Zero. "Nascemos, em 94, um bocadinho

à sombra do movimento grunge, de bandas como Nirvana, Pearl Jam, Alice In Chains

etc. E isso nos deu visibilidade à altura", afirma o vocalista Miguel Guedes. Entretanto,

o rótulo de "Pearl Jam português" pesou bastante sobre o grupo. "Durante anos andamos

a dar entrevistas em que falávamos mais dos Pearl Jam do que de nós próprios", emenda

Miguel lembrando que a comparação no início até era agradável e procedia, mas depois

tornou-se insuportável. "Nosso primeiro disco [Trigger, 1995] era dentro do grunge,

talvez um pouco mais pesado até; o segundo [Redcoast, 1997] é, em algum sentido,

mais pop; e este terceiro [One Silent Accident, 2000] é uma volta às raízes do rock, mais

zepeliniano, se calhar. É a tentativa de fazer o nosso disco de rock", enfatiza.

O monstro fala português

Difícil encontrar uma banda com influências vindas do rock alternativo

americano ou inglês, mas que cante em português. Difícil, mas não impossível: Ornatos

Violeta, formado em 91, no Porto, justamente por quatro amigos que eram fãs de

Violent Femmes. Segundo o ex-tecladista da banda, Elísio Donas, a influência do

Violent Femmes ficou no início da banda, quando ainda tocavam apenas em bares e

pequenos festivais amadores. Em 97, quando lançaram o primeiro disco Cão! a

sonoridade da banda mesclava pop/rock com ska e funk. Este primeiro álbum foi muito

bem recebido pela imprensa e os singles "Punk Moda Funk", "A Dama do Sinal" e

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"Mata-me Outra Vez" indicaram ao público a genialidade do poeta e compositor

Manuel Cruz, vocalista do Ornatos.

O Monstro Precisa de Amigos, editado no final de 1999, um dos melhores discos

do pop português, rendeu à banda quatro prêmios Blitz no ano seguinte: grupo do ano,

álbum do ano, voz masculina nacional e melhor canção nacional ("Ouvi Dizer). Outra

música que merece destaque em O Monstro... é "Capitão Romance": pop com arranjos

de fado, belíssima, e com a participação do líder dos Violent Femmes, Gordon Gano.

É pena que a pequena obra-prima do Ornatos Violeta tenha sido também o

último registro de originais da banda, que anunciou seu fim em 2002, deixando um

lugar a ser preenchido pela nova geração de artistas pop/rock portugueses. Ao que

parece o mercado já anda novamente saturado de bandas que soem como inglesas ou

americanas. Os catálogos nacionais das grandes gravadoras estão cada vez mais

enxutos, e elas preferem continuar jogando com o time que vem (ou bem ou mal)

"ganhando" há alguns anos, do que apostar suas fichas em novos talentos, que não são

meras reproduções de artistas do exterior. Talvez seja a hora de um novo "boom". De se

(re)descobrir a língua como forma de expressão poética. E quem sabe de remexer um

pouco no passado da música portuguesa e encontrar meia dúzia de referências que

valham a pena. O "pop/fado" de "Capitão Romance" pode ser uma boa pista.

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Capítulo 9:

“Não há um pop português”

Mais de 50 anos se passaram desde que o primeiro músico português empunhou

uma guitarra para imitar seus ídolos norte-americanos e ingleses e começou a fazer algo

que se possa chamar de rock. Entretanto, ainda é questionável se existe mesmo um rock

à moda portuguesa, ou se ele não passa de pastiche do que se faz fora do país. O

radialista Henrique Amaro, um dos maiores impulsionadores do pop/rock português nos

últimos dez anos, acredita que não. Que a identidade musical portuguesa ainda não está

construída. Para Amaro, faltam referências aos jovens músicos para que possam criar

algo novo, diferente do que se faz no resto da Europa e do mundo. Falta "descobrir a

língua". Falta pararem se de preocupar com a internacionalização e olharem mais para

as raízes, para o próprio país.

O radialista concedeu essa entrevista em agosto de 2002, nos estúdios da Antena

3, uma das principais rádios jovens de Portugal. É desse estúdio que Amaro comanda há

oito anos o programa "Rádio Clube", em que se dedica a divulgar a nova música

portuguesa, e lusófona, nomeadamente brasileira, que ele considera um exemplo a ser

seguido em Portugal, no que diz respeito à construção de uma identidade. Cita os

Tropicalistas e o movimento Mangue Beat como fundamentais para que o pop brasileiro

se tornasse o que é hoje. Para seus "afilhados", a nova geração do pop/rock português,

deixa um recado: "se eu não tiver qualquer tipo de informação em relação ao meu

passado, eu sinto que não sou capaz de construir um futuro com referência no país."

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No seu programa, além de novos artistas portugueses, você passa muita música

brasileira. Por que isso?

Eu acho que há uma certa coincidência entre o que aconteceu em Portugal e no Brasil

em relação à música pop. Não estamos a falar de uma tradição grande. Estamos a falar

de uma coisa recente. Nós tivemos o primeiro surto de rock nos anos 80 e o de vocês é

em 84, quando acaba a ditadura militar. As coisas hoje no vosso país, se calhar

aceleraram por um lado, no nosso foram por outro lado, isto do ponto de vista de uma

identidade musical. Nessa altura, pode-se falar de um hip hop brasileiro, de um pop

brasileiro. Em Portugal não. Não há um pop português. Não há um hip hop português.

Até porque é uma geração que ainda não descobriu a língua. A vossa já descobriu.

Por isso é que eu achei que era interessante começar a por uma nova geração de bandas

brasileiras quando começo a fazer o programa aqui. Ouço o primeiro do Chico Science,

Da Lama ao Caos, ouço o Usuário, do Planet Hemp, ouço uma série de discos que me

marcaram e que eu começo a dar divulgação a esse tipo de projetos. E no início as

pessoas cá sempre tendem a franzir o olho... Por que? Porque a maior parte dessa nova

geração acha que no Brasil só há axé, só há MPB... Agora até acham engraçado e

dizem: "eh, pá... como é que há tanto já falavas disso e ninguém dava nada, e agora já

estamos todos a espera de qual é o novo disco de não sei quem". Quer dizer, há um

nicho de mercado, que fique compreendido. Começas a falar do Arnaldo Antunes, do

Lenine, uma série de nomes que há já um grupo de pessoas que está atento. Não por

acaso a Adriana Calcanhoto, embora seja uma artista que se calhar é uma coisa mais

adulta, mas já chega aqui e enche os Coliseus, vende discos o que há sete anos atrás

não...

Page 78: Pop/Rock à Portuguesa

78

Seu programa já tem quanto tempo?

Eu faço rádio há mais tempo. Aqui na Antena 3, portanto, para todo o país há oito anos.

E um programa, que é pioneiro na rádio portuguesa, por ser um programa diário

dedicado à música portuguesa, e a... vamos chamá-la lusófona, muito embora eu não

toque grupos cabo-verdianos ou africanos, porque eu não tenho conhecimento de causa

para mexer nisso. Então, basicamente tem uma fatia, uma porcentagem pequena de

brasileiros, e portugueses.

Várias pessoas comentam que você é um grande incentivador da música

portuguesa no rádio, por tocar coisas novas e...

Sim. Isso é um bocado de identidade. Eu quando começo a pegar gosto pela música e

comprar discos, eu sentia vontade de comprar o novo dos Police ou dos Bauhaus, mas

sempre tive uma grande... sempre gostei de ouvir as coisas... e quando eu começo ter

dinheiro para comprar discos tenho 11, 12 anos é a altura que surgiu esse "boom" do

rock português. Então, eu sempre tive afinidades, comprava os "meus Paralamas", os

"meus Titãs", percebes? Quer dizer, aquilo que para vocês foram os Paralamas, os Titãs,

Barão Vermelho... eu comprei cá. Então, depois dei seguimento à carreira deles.

Comecei a achar graça a construção das músicas, a diferença estética entre todos, as

letras, os espetáculos.

Quando entrei para a rádio... basicamente o meu gosto é mais musical do que de rádio.

Minha ligação com a rádio não é... há muita gente que tem aquela paixão de trabalhar na

rádio. Eu não. Eu gosto de música e me uso da rádio para mostrar a música que eu

gosto. Sempre tive um certo gosto (não foi naquela perspectiva de serviço público, de

Page 79: Pop/Rock à Portuguesa

79

ser obrigado a...) de construir o meu programa de autor, em que tinha por finalidade

divulgar os grupos emergentes que existiam em Portugal, quer era através de edições

independentes, quer através dos que chegavam às multinacionais, quer através das fitas

demo. Ora, o que foi que aconteceu? Quando começa, há oito anos atrás (aqui porque eu

já tinha passado por uma rádio em Lisboa que também tinha um impacto grande, a

Rádio Energia), há uma geração de pessoas que cresceu a ouvir rádio, e que começou a

comentar o meu nome com essa característica. Então, a olhar para o meu nome era

sinônimo de que era um programa onde podiam ouvir os novos grupos portugueses.

Portanto, esse miúdos cresceram com isso, como eu cresci com outros locutores de

rádio, o António Sérgio e outros tantos que para mim foram muito marcantes. Por isso é

que as pessoas referenciam.

Você cresceu ouvindo música portuguesa e agora trabalha com isso... como é que

avalia essa trajetória do rock em Portugal, do pop/rock português?

Por um lado bem, se falarmos do ponto de vista do desempenho de músicos, do

desempenho técnico, os músicos de hoje são bem melhores, bem melhores,

tecnicamente do que aqueles de há 20 anos atrás. Se acompanharmos do ponto de vista

de estrutura, temos uma estrutura em Portugal hoje que não existia há 20 anos. Nesse

aspecto há uma evolução. Agora, se falarmos do ponto de vista da criação de uma

música pop portuguesa, eu acho que o balanço é terrível. Não temos isso. Agora,

também podemos discutir porque é que não temos isso.

É assim, fazendo uma comparação com o Brasil, em Portugal não tivemos uma

Tropicália. Em Portugal não houve uma série de referências que vocês tiveram e que

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80

vos ajudaram a construir uma música pop (quando eu digo música pop estou pondo

tudo... estou a falar dos Racionais MCs, estou a falar de tudo um pouco, do Planet

Hemp, do Marcelo D2...).

Durante os anos 60 havia o que? Grupos a imitarem os Beatles. Nos anos 70 apareceram

os grupos, os chamados cantores de intervenção, que há três que podiam ser grandes

referências (são para alguns não são para todos), que são o Sérgio Godinho, o José

Mário Branco e o Zeca Afonso. O Fausto também. Figuras de referências que não foram

adotadas... Estão a ser descobertas agora. Quero com isso dizer que não há referências

no passado para essa construção da música pop nacional.

E depois, temos um problema grande, também. Que é olhar mais para a Europa do que

para o próprio país. As pessoas que tem hoje 30 anos ou 20... na televisão não houve

programas de música, na rádio pouca música portuguesa passou... Então as referências...

o crescimento deles se fez com o que? Fez-se com referências inglesas ou americanas.

Portanto, Portugal, enquanto vocês, como um país grande, estão relativamente afastados

da América, e muito afastados da Europa, Portugal não. Portugal está na Europa e tem

também, como qualquer país do mundo, muita informação americana. Então, o

crescimento desses jovens músicos foi com referências exteriores. Há pouca auto-estima

em relação à música local. Quer dizer, é falta de referências. E não houve nenhum

abanão, não houve um choque... se calhar não houve nenhum talento como os

tropicalistas conseguiram e como o Mangue Beat depois conseguiu também.

Page 81: Pop/Rock à Portuguesa

81

Você acha que isso de buscar referências no passado é essencial para se construir

uma identidade?

Eu creio que sim. Nem que seja para descobrir a língua. Porque assim, se não existisse

Tropicália... Repara, a Tropicália junta o que? Junta uma série de características

próprias, da região e do país, com um bocadinho de Beatles, com um bocado das coisas

que estavam a acontecer. Cá o que é que se fez? De fato só olhamos para os Beatles, não

olhamos para o país. Eu creio que sim. Eu acho, como dizia o Chico Science, é

"organizar o passado", uma referência qualquer em relação ao passado... eu acho isso

fundamental. Não podemos desgrudar o passado das coisas. Se eu não tiver qualquer

tipo de informação em relação ao meu passado, eu sinto que não sou capaz de construir

um futuro com referência no país.

Mas a questão da língua, quando houve o "boom" nos anos 80, GNR, UHF, Xutos

e Pontapés... cantavam em português...

Cantavam, de fato cantavam. Mas repara, o Rui Veloso começa a cantar em inglês,

depois é que passa para o português. Os GNR para mim são os grandes construtores,

estão na gênese daquilo que poderia ser a música pop portuguesa. O álbum primeiro do

GNR, o Independança, é um monumento à música portuguesa. Ainda porque não é

fundamentalista em relação à língua. O GNR em sua carreira tem temas em italiano,

francês, inglês, português... algumas vezes até misturados. Não sei. Se calhar já eram

adultos. Acho que depois teve a ver, se calhar, com uma certa saturação. Na altura até

houve muitos grupos a cantar em português. Mas depois já era uma linguagem tão

banalizada que não furou. Já houve tantos sucessos de edição, tantos sucessos de letras

pobres, que aquilo já era grupo de baile, que não vingou. Mas se tu repares o que é que

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ficou... o que é que nós recebemos de 80? UHF, GNR, Xutos e Pontapés, Heróis do

Mar... E repara que desses grupos todos, os Heróis do Mar conseguem fazer algo

original daquilo que depois podemos chamar de uma pop portuguesa e não têm qualquer

tipo de descendência. Não há descendência...

Os mais jovens não vão buscar nem essas referências mais próximas...

Os Delfins se calhar... os Delfins foram mais ou menos, mas não conseguiram. Foram

um bocado do ponto de vista ideológico, mas pouco do ponto de vista musical, buscar

referências aos Heróis do Mar. Portanto, há grupos e não há filiação. No Brasil, há

filiação. Dos Paralamas há filiação. Há filiação da Legião Urbana... dos Titãs. Cá não. A

única filiação que houve mais ou menos fincada foi com os Xutos e Pontapés. Os outros

não tiveram.

Quem seriam as filiações do Xutos?

Os Peste & Sida foram-no. Os Censurados foram.

A geração mais punk?

Sim. Os Xutos e Pontapés basicamente o que faziam na altura era acentuadamente rock,

mas uma vertente punk rock. Uma espécie de Clash portugueses. Ainda hoje vendo em

palco, vídeos da altura, apresentações ao vivo da altura, até do ponto de vista estético,

da emblemática da banda, roupas, a indumentária é um bocado Clash, que era "a" banda

da altura. O Zé Pedro, que foi o ideólogo da banda (um dos... são quatro personalidades

muito fincadas), Clash era a banda de adoração dele. Esses ainda deixaram alguma

descendência.

Page 83: Pop/Rock à Portuguesa

83

GNR e outros... você não vê isso?

GNR... os Mler Ife Dada poderão ser uma descendência do ponto de vista de ser uma

banda liberta, dos experimentos. Era uma banda de pop, mas que também tinham um

bocado de pop experimental. Não era um pop rígido: ponte/refrão/parte um/parte dois/

ponte/refrão/parte um/parte dois... Os Mler Ife (e isto já estamos a falar em 84, o álbum

só sai em 87, o Coisas que Fascinam que é um disco também marcante), do ponto de

vista de língua é uma banda que procura... tem temas em egípcio... a Anabela Duarte, a

vocalista, era antropóloga, então tentava criar uma espécie de imaginário Mler Ife

Dada... Mas de resto...

Então tens isso. Essa "classe" de 80, 82, do "boom". Depois tens uma espécie de

renascimento no final da década, 86, 89... Tens os Mler Ife Dada, os Delfins começam a

aparecer... enfim, sem ser tão marcante como o início da década de 80, é de algum

modo um reabilitar da cena portuguesa. E depois há um apagamento total. Com

lançamentos, é claro, a indústria não parou de lançar discos, mas do ponto de vista de

movimento, de muitos grupos a acontecer..

Isso não volta a acontecer nos anos 90, não?

Sim, mas mais para frente... é praí 94, que coincide com o início da rádio, que surge o

hip hop, e uma geração toda que consegue fazer seus primeiros discos: os Cool

Hipnoise, os Da Weasel, os Turbojunkie, no Porto, os Ornatos Violeta, o Pedro

Abrunhosa. Portanto, há uma espécie de geração groove. Uma pop meio dançável. Me

parece que é mais uma cena. Pronto. E depois, algumas foram diminuindo, outras foram

amadurecendo até chegarmos aos dias de hoje, em que tens ótimos discos, do ponto de

Page 84: Pop/Rock à Portuguesa

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vista estético e técnicos, mas continua a haver uma inexistência de uma música pop

portuguesa. Mais tarde ou mais cedo isso vai aparecer. Esse encontro com a língua...

mais tarde ou mais cedo tem que aparecer.

Hoje, pelo menos a idéia que eu tenho, de 98 para cá, praticamente as bandas todas

a cantar em inglês...

Quase todas. Dos melhores discos para mim lançados esse ano, é do Sam The Kid...

umas coisas com hip hop... A história do hip hop português é engraçada. A cena surge

no início da década de 90, espalhada. Em 94 ela estava coletada no Rapública, que é o

primeiro disco, quer dizer havia experiências pequeninas no passado...

Mas é o primeiro disco que consegue algum tipo de exposição.

É o primeiro disco a conseguir exposição midiática. Muito grande. Um hit, que era o

"Nadar", dos Black Company, e mesmo nessa altura há muita gente ainda a cantar em

inglês. Não vou dar isto como um dado, tem discussão, mas quem é que em parte é

fulgral para o hip hop passar ao português? Os Da Weasel, com seu primeiro disco...

Pac Man é um dos melhores letristas da música portuguesa na atualidade. O primeiro

disco deles lançado em 94 é cantado em inglês. Quem é que aparece no meio dessa

coisa toda e faz o pessoal do hip hop mudar? Quer dizer, perceber, ter uma referência?

O Gabriel, o Pensador. Na primeira vez que vem a Portugal. Quer dizer, levas com uma

maneira nova de fazer hip hop e com uma escrita que ninguém tinha tido... quer dizer,

não havia nenhuma referência de como era escrever isso para o português. E a pessoa

que vem mostrar isso em Portugal é o Gabriel, o Pensador, com o sucesso estrondoso do

seu primeiro disco. Está aí uma referência, e o hip hop cresceu...

Page 85: Pop/Rock à Portuguesa

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E depois, o que é que está acontecer hoje em dia? O pessoal que compõe as bases de hip

hop está a perceber que há vinil português como referência, estão a vasculhar vinis a

procura de pedacinhos de coisas antigas portuguesas que os vão fazer distinguir dos

americanos, dos franceses... Portanto, o hip hop em Portugal, além de através do hip

hop poderes ter um espelho do país (sob o ponto de vista lírico), estão também a

conseguir uma identidade musical que os diferencia do resto.

E agora com o estouro dos Da Weasel (em 2002 tocaram em quase todos os

festivais)...

Em todo o lado... todo o lado... a banda tá... E repara, o Rapública veio em 94, depois...

os discos de hip hop... o que é que aconteceu? Os Black Company, a Sony contratou.

Fez dois discos e a banda morreu. Os Da Weasel, que são uma banda que tem uma

componente hip hop, é tipo Planet Hemp, não é uma banda de hip hop, tem uma

componente de hip hop. Depois os Mind Da Gap. Mas quase todos os anos eram esses

dois. Quando não aparecia um, aparecia o outro. As coisas estavam reduzidas a duas ou

três referências. Agora temos os Micro, os Sam The Kid, o Phil, os Dealema... enfim,

tem saído muitos discos de hip hop, tudo auto-edições, que algo também que Portugal

está a descobrir agora. Portanto, acho a nova música portuguesa, como eu lhe chamo,

está a construir-se. Todos os anos há um dado novo, uma coisa nova. Aprendem uma

coisa nova.

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E excetuando o hip hop, o que mais você destacaria dentro do que se faz hoje em

Portugal?

Eh, pá... uma espécie de um nova música tradicional portuguesa. Mais ou menos como

aquilo que vocês têm no Brasil com o Mestre Ambrósio, por exemplo, acho que também

vamos tendo aos poucos uns novos artistas... Há um novo fado. Até o próprio fado,

depois da Amália, quase não tivemos um conjunto de grandes nomes como estamos

tendo agora, é o caso do Camané, a Cristina Branco, a Mísia... enfim. E eu destaco

depois essa nova música tradicional portuguesa com os Gaiteiros de Lisboa, acho que

são dos melhores coletivos de música em Portugal...

E eles vão buscar coisas tradicionais...

Vão, de uma perspectiva urbana. Mas não há aquela coisa de fundir com máquinas, não

tem que ser necessariamente naquela idéia de "ah, eu ponho aqui uns scratches por cima

e é moderno". Não tem nada disso. Eles são fundamentalistas em relação ao

tratamento... trabalham só do ponto de vista orgânico. Instrumentos de sopro, têm

cordas, muita percussão.

Outras coisas ligadas mais à pop?

Este ano (2002) temos quatro discos, pelo menos até agora, os mais marcantes. Esse do

Sam The Kid; o disco do Bullet, um disco de instrumentais, feito por um tipo que

trabalhou nos Da Weasel e que saiu neste último disco, o Armando, compositor

excelente; o Coldfinger; e os Blasted Mechanism, um disco muito bom, mais uma vez

ele vai buscar instrumentos a China e não sei o que, e traz para um tipo de Cabo-Verde,

mas respirar Portugal, não respira e eu acho que isso é prioritário. Porque há uma coisa

Page 87: Pop/Rock à Portuguesa

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cá, que vocês não tiveram, se calhar porque o vosso mercado é grande e um bocado por

causa da dimensão do país, e as pessoas cá, a maior parte dos músicos, sempre tentaram

conquistar o exterior antes de conquistar o interior, o que é uma idéia... não tem

qualquer tipo de cabimento.

E ninguém conseguiu isso...

Claro, não tem qualquer tipo de cabimento. Não consegues vender no exterior uma

coisa que não vingou no seu próprio país. Não tem muito nexo. E também, a maior

parte, nunca perceberam que essa coisa de internacionalização não é só música.

Internacionalizar... tocar na MTV ou ir para o Top inglês... não é só música. Isso é

música e milhares de euros. Muito dinheiro. Não é só música. Os Gift está a passar por

isso na pele. Contatos com a Virgin, uma auto-iniciativa fortíssima, mas estão a passar

isso na pele. De certeza que só vão conseguir editar os discos lá fora, por editoras...

minúsculas. Mas essa perspectiva de que internacionalização é o disco lá fora...

O que você acha que tem que acontecer para Portugal começar a exportar música?

Exceto o que já exporta, é claro (fado, Madredeus...)

Portugal já exporta muita música. Se fores ver, o que é que exporta? Aquilo que as

pessoas lá fora não têm... os Madredeus, nenhuma parte do mundo há igual. Exporta um

bocadinho de fado novo, com Camané... Exportou os Moonspell...

São mais conhecidos na Alemanha do que em Portugal.

São bastante conhecidos cá também... mas na Alemanha têm um culto... entram pro top

de lá. Mas por que? Porque também tinham uma característica... os Moonspell criaram

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um imaginário, um bocado culto ao negro... mas falam muito, no país não tanto, mas

vão buscar referências tipo os lobos, tem um álbum chamado Wolfheart, mas vão buscar

um pouco aquele cinzentismo, aquela cor negra que às vezes predomina num retrato de

Portugal. Portugal vai ficar sempre preso a esse lado cinzento, nós não somos

brasileiros, percebes? Não temos aquela alegria... E eles vêm buscar um pouco esse tipo

de discurso. E no início é até uma coisa parva, que chamariam Lusitanian Metal... que é

uma coisa um bocado barroca. Mas que no início deu para pegar. E depois juntaram-se a

uma editora que é a Century Media, que agora tá na falência, mas na altura era a melhor

editora do mundo pro estilo deles. E sediada fora de Portugal. Eles "nascem" lá fora.

Primeiro através de umas independentes francesas depois através da Century Media.

Portugal já exporta música... o que é que falta para exportar mais? não sei...

Exportar o que se houve aqui, o que você toca no seu programa...

O que é que falta para exportar uns Ornatos Violeta... Não faço idéia, acho que falta

dinheiro.

Mas a questão é só econômica?

É... bom, pelo menos eu acho que há uma série de grupos em Portugal que por muito

bons que sejam não marcam qualquer tipo de diferença em relação a outros que estão

por aí. De certeza que também há grupos na Suécia muito bons que eu também não

conheço, que estão a se debater com o mesmo dilema de se exportarem.. Mas acho que

há duas coisas: uma é essa demarcação, fazer uma coisa mais identificativa, fazer um

som próprio, ter uma identidade própria, para se diferenciar do que se está a fazer no

resto da Europa e no resto do mundo; e a outra tem a ver com o ponto de vista

Page 89: Pop/Rock à Portuguesa

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executivo, é econômica, é de agenciamento, é de management... é o lado burocrático. E

isso tinham os Moonspell, tinham os Madredeus... tinham suporte do ponto de vista

empresarial muito forte. Quer dizer, o conquistaram. E os The Gift estão a tentar

arranjar isso agora. Temos que diferenciar também o que é que nós queremos. É chegar

ao número 1 do top inglês? O primeiro lugar na virada do milênio no top inglês era

português. Era o Rui da Silva com "Touch Me", que é um DJ, faz música de dança... E

assim que se faz crescer a música portuguesa? Não é. Isso são histórias para o

imaginário. Não passa disso.

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APÊNDICE

Alguns artigos e entrevistas que publiquei sobre o assunto após a finalização deste

trabalho em 2002.

Malhas que o destino teceVozes do trip hop português sobrepõem a imagem de uma Amália pós-moderna a uma Beth Gibbons ibérica

“O fado é saber que não se pode lutar contra aquilo que temos. É aquilo que não

podemos mudar". A definição é da diva Amália Rodrigues, a melhor e certamente a

mais conhecida intérprete do estilo tradicional português. A palavra fado significa

destino, um destino tão inevitável que por mais que se tente negá-lo, não se pode dele

escapar. Talvez isso explique o fascínio dos portugueses por uma música de linhagem

triste e melancólica. Talvez ajude a compreender por que grupos de trip hop e eletrônica

downbeat como Lamb, Morcheeba, Hooverphonicsg e Gotan Project alcançam um

sucesso em terras lusas - vendem muitos discos, lotam shows e encabeçam festivais de

verão - que não encontram em outros lugares do mundo.

Claro que existe também um interesse dos portugueses por sonoridades mais

“quentes” - e isso, qualquer brasileiro que visite o país vai constatar rapidamente em

conversas regadas a cervejas no Bairro Alto (zona boêmia de Lisboa). Mas sempre

como algo estrangeiro e que muitos deles julgam não serem capazes de fazer. Como me

disse Henrique Amaro, que tem um programa na Antena 3, uma das rádios jovens mais

populares por lá: “Portugal vai ficar sempre preso a esse lado cinzento. Nós não somos

brasileiros, percebes? Não temos aquela alegria".

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Qualquer pessoa que tente compreender o que faz um artista, por melhor que seu

trabalho seja dentro de determinado gênero, ser reconhecido fora de sua terra vai

esbarrar no quesito originalidade. Quando falamos de música portuguesa, isso fica

muito claro. O que você, caro leitor, conhece da música produzida por lá? Além do

fado, provavelmente, o Madredeus – que embora não se proponha a fazer releituras de

fados ou coisa assim, tem lá sua raiz bem fincada, e o tal espírito português marcado em

suas canções. Mas há um sem-número de outros artistas fazendo música interessante na

“terrinha". E talvez não seja mero acaso o fato de alguns dos projetos mais criativos

estarem nas incursões pela eletrônica, especialmente pelo trip hop.

As atmosferas densas, por vezes sombrias, e as paisagens sonoras sugestivas do

estilo criado em Bristol conseguem ser captadas pelos portugueses de maneira tão eficaz

que nos faz questionar se não seria o downtempo a versão pós-moderna do fado. Figuras

femininas que com sua voz e presença fazem ecoar tanto a imagem de uma Amália

nascida no século XXI quanto uma Beth Gibbons latina. Maquinária eletrônica,

reverberações de guitarras, linhas de baixo bem marcadas e batidas desaceleradas

emolduram letras que falam de encontros e desencontros, de amor, de saudade – e de

todos esses temas decorrentes no imaginário pop.

É curioso ver que, para alguns desses artistas portugueses, a relação com o tipo

de música feita por gente como o Massive Attack e Tricky não é de causa-e-efeito ou

mesmo de influência. “Andávamos em um universo que é real, mas ao mesmo tempo há

alguma ‘sugestão’, um universo alterado... Era uma vivência urbana, se calhar, próxima,

mesmo que estivéssemos longe. São ao mesmo tempo pessoas em sítios diferentes a

passar pelsa mesmas experiências. Foi por aí a proximidade... Não por ouvir os discos

deles”, comenta Alexandre Soares, o homem por trás das guitarras e programações do

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Três Tristes Tigres, formado no início da década de 90, portanto, contemporâneo da

turma de Bristol. Ao lado de Regina Guimaraes e Ana Deus, que dividem os vocais e as

letras, Alexandre é responsável por um dos melhores discos portugueses de sempre,

Comum (1998). Uma pequena obra-prima (que nome irônico leva esse álbum), que ora

pende para o downbeat, pra para o drum’n’bass, e ainda conta com a belíssima “Visita

de Estudos”, na qual Alexandre exibe seus dotes à guitarra portuguesa.

Um discurso parecido, para se referir à proximidade de suas músicas com a

estética trip hop, é adotado por João Pedro Coimbra, líder do Mesa. Em entrevista ao

jornal Público, ele diz que não costuma ouvir artistas contemporâneos quando está

compondo justamente para não contaminar a criação e credita às experimentações com

equipamentos eletrônicos o resultado de seu trabalho. O primeiro álbum do grupo,

editado em outubro passado, Mesa, revela uma infinidade de possibilidades musicais -

jazz. blues. pop, bossa. algo rock - mas sempre gerando um produto final coeso que é,

essencialmente, eletrônico. Aqui, é Mônica Ferraz quem dá cara e voz ao grupo, uma

das revelações da jovem geração lusitana.

Outros expoentes do que se poderia chamar de uma “geração downbeat" em

Portugal são o Coldfinger e o The Gift. Em ambos, também é através de uma voz

feminina e cheia de personalidade que a música nos chega aos ouvidos. A voz suave de

Margarida Pinto nos conduz a uma viagem contemplativa pelas melodias criadas por

Miguel Cardona para o Coldflnger. Em seu primeiro álbum, Lefthand (2000), é

impossível não pensar em Massive Attack. Dois anos depois, Sweet Moods & Interludes

traz uma banda mais madura, mais ciente de si, com scratches e linhas de piano

delicadas se juntando a bases eletrônicas, resultando em um registro singular e

iluminado.

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Por caminhos mais escuros, nos guia a voz grave de Sónia Tavares que,

juntamente com Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro, forma o The Gift.

Baixo forte, teclados e samplers dão um tom sombrio às canções, enquanto saxofone,

violoncelo e violinos criam uma atmosfera etérea. Com três discos lançados (Digital

Atmosphere, de 1997, Vinyl, de 1998, e Film, 2001) são considerados um dos mais

interessantes projetos portugueses hoje e, assim como o Coldfinger, estão buscando

maneiras de “furar” o mercado externo.

Se essa empreitada vai dar certo, não é possível afirmar. O The Gift, por

esforços próprios (sem qualquer ajuda da Universal, que editou seus discos em

Portugal), tem feito shows no resto da Europa e nos Estados Unidos. Miguel Cardona,

do Coldfinger, agora é sócio de uma gravadora independente, a Lisbon City Records, e

vende seus discos online. Potencial para “ganhar o mundo”, se dependesse apenas da

qualidade artística, qualquer dos grupos citados nesse artigo tem. Como canta Amalia:

“sabe-se lá / quando a sorte é boa ou má / sabe-se lá / amanhã o que virá I (...) ninguém

foge ao seu destino/ nem para o que guardado”.

Publicado originalmente em dezembro de 2003, na revista B*Scene

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O preço da liberdadeTrês décadas depois, a liberdade conquistada com a Revolução dos Cravos permite a Portugal um panorama musical com algumas idiossincrasias mas repleto de bons artistas*

Trinta anos atrás, Portugal amanheceu diferente, liberto de uma ditadura

totalitarista de direita que perdurava desde os anos 30. Era início de primavera e as ruas

estavam repletas de pessoas celebrando a liberdade, entregando cravos umas às outras.

25 de abril de 1974 é, certamente, a data mais importante da história contemporânea

portuguesa e, muito provavelmente, um marco para a cultura do país.

Sob a égide do fascismo, Portugal passou boa parte do século vinte imerso em

suas próprias trevas. Praticamente sem contato com mundo lá fora, a efervescência

cultural dos anos 60 e 70, por exemplo, ecoou muito timidamente por lá. No âmbito pop

(que é do que aqui vamos tratar) mais pelo isolamento do que pela censura

propriamente. Ainda assim, como é natural a qualquer juventude bem informada

(mesmo que para isso fosse preciso sintonizar rádios piratas inglesas ou "contrabandear"

discos quando algum conhecido ia viajar) tiveram lá os portugueses os "seus" Elvis

(Vitor Gomes e Fernando Conde), os seus Beatles (Os Sheiks) e a sua psicodelia-hippie

(Beatnicks). Mas tudo muito calcado nos modelos que seguiam, cantando em inglês,

sobre o amor - já que assim, não incomodavam ninguém. Os únicos que ousaram

incomodar, tocando na grande ferida da época (a Guerra Colonial) foram censurados,

claro (mas sem violência - menos mal): o Quarteto 1111, de onde saiu José Cid, autor

do disco 10.000 Anos Depois Entre Venus e Marte, indispensável a qualquer um que

diga gostar de rock progressivo.

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Vieram os capitães de abril e com eles as chaves para destrancar as portas que

separavam Portugal do resto da Europa. O punk logo começou a dar as caras, e ainda

hoje é um gênero com bastantes seguidores por lá. Mas até o começo dos anos 80 ainda

não havia estrutura para a indústria cultural e ainda se vivia uma certa ressaca

revolucionária. Os chamados "cantores de intervenção" como José Afonso e Sérgio

Godinho (para citar os mais consistentes) ocupavam lugar de destaque. Isso não

impediu que se começasse a semear aquilo que seria depois chamado de o "boom" do

rock português (que tal como aqui, aconteceu nos anos 80). Entretanto, criou-se uma

dicotomia, a meu ver, complicada: de um lado o teor mais político, revolucionário; de

outro, jovens vestindo roupas de couro que acabavam se preocupando mais em olhar

para a Europa do que para si mesmos.

Atenhamo-nos ao segundo caso. A new-wave "Portugal na CEE", primeiro

single do GNR, é bastante representativa disso. Trata do deslumbre que existia por

serem finalmente parte da Europa. Nenhum problema. Globalizar é bom, ao contrário

do que muitos dizem. E a geração do chamado "boom" da qual faz parte o GNR, o UHF

(com inspirações a The Doors) e Rui Veloso (tido como "pai" do rock português) fez

isso. Alargaram os horizontes da música pop, sem renegar a si mesmos. Olharam para

fora, mas cantavam o que viviam (a juventude é mais ou menos igual em toda parte, por

isso, os temas também não variavam muito) e na língua em que sentiam tudo aquilo

(embora a questão da língua, em alguns casos, estivesse mais ligada a uma lógica de

mercado do que artística).

Mas voltando um pouco ao calor pós-Revolução dos Cravos, houve uma

história, no mínimo, curiosa, e ilustrativa da maneira como hoje, muitos grupos

renegam até mesmo a língua portuguesa (haverá coisa mais pertencente a essência de

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um povo do que sua língua?). O outro grande nome do "boom" foi o Heróis do Mar (que

acabou dando origem ao grupo português mais famoso mundo afora, o Madredeus).

Pedro Ayres Magalhães e seus amigos eram entusiastas de outra vertente pop muito em

voga nos anos 80: o new-romantic. E, como é sabido, são característicos do estilo os

tecladinhos, os sintetizadores e toda uma indumentária teatral evocando mitos e

tradições. Salteadores escoceses, no caso do Spandau Ballet. As grandes navegações e a

Cruz dos Templários, no caso dos Heróis do Mar. Pois bem, passados tantos anos em

um regime em que a tradição era tão exaltada, vocês podem imaginar que isso causou

problemas: foram acusados de neo-fascistas em um artigo de jornal, o que, obviamente,

causou furor.

É aqui entra o que eu vou chamar de "complexo de europeu". Por terem sido

submetidos de maneira tão ostensiva e por tanto tempo a um confinamento em suas

fronteiras e tradições, quando se viram diante do mundo, numa atitude altamente

compreensível, fecharam os olhos a suas origens, àquilo que poderia os diferenciar do

restante. O caso Heróis do Mar é o mais emblemático, até porque depois provou por a +

b que o que pode realizar o sonho de ultrapassar as fronteiras é (pelo menos essa é a

maneira mais simples) esse diferencial. Provou isso quando Pedro Ayres se tornou o

músico português mais conhecido em todo o mundo com o Madredeus, que ele próprio

diz que usa as mesmas matrizes, só que agora em formato acústico, que sempre usou em

sua música (antes do Heróis ele teve um grupo punk chamado Corpo Diplomático).

Esse "complexo de europeu" é o que justifica os Tédio Boys terem flopado na

década de 90. A banda de punkabilly, como eles próprios se intitulavam, nunca chegou

a sair verdadeiramente dos porões do underground. Se julgam incompreendidos em seu

país e tem como maior glória o fato (certamente louvável) de terem lançado discos nos

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Estados Unidos e de terem tocado numa festa de aniversário de Joe Ramone a convite

do próprio. Mas sempre correndo por trilhos subterrâneos, o que é muito pouco para a

ambição que tinham. O Tédio Boys acabou e dele surgiram quatro bandas bastante boas:

Wraygunn, d3o, Bunnyranch e Parkinsons (estes agora radicados na Inglaterra). Todas

fazendo rock em inglês, em parte para tentar furar o mercado externo, em muito porque

dizem não conseguir sentir o rock em português. Esse sentimento parece ser comum aos

jovens músicos portugueses. Os rapazes do Fonzie têm o mesmo discurso em relação ao

seu emocore. E vão pelo mesmo caminho dos Tédio Boys: discos editados no Japão,

nos Estados Unidos e no Brasil. Talvez tenham mais sucesso na empreitada, visto que o

século XXI parece mais aberto à música não vinda dos eixos tradicionais (EUA e Reino

Unido) e as teias do underground são hoje mais fortes.

Poderia escrever um calhamaço só citando bandas que seguem esse mesmo

discurso. (Poderia citar montes de bandas independentes brasileiras também, que dizem

o mesmo... parece que é impossível a alguns ouvidos que a música pop soe bem em

outra língua que não o inglês.) Não quero com essa observação condenar os que usam a

língua de Shakespeare. O artista é, antes de tudo, livre para fazer o que bem entender.

Nem acho que reside na língua o principal problema de identidade musical de qualquer

banda. Quero apenas pontuar que enquanto fizerem música da mesma maneira que seus

ídolos fazem não vão alçar grandes vôos fora de sua terra. Por melhores que sejam. O

Silence 4, por exemplo, tornou-se um fenômeno a partir do verão de 98 e manteve-se no

top de vendas até a banda terminar. Era uma banda realmente muito boa. David Fonseca

honra as influências que tem. Lançaram o primeiro disco aqui no Brasil e ninguém ficou

sabendo. O disco esgotou, sabe deus como, e nunca repuseram os estoques. Não houve

promoção, o que talvez tivesse tornado o fim da história diferente - mas isso nunca

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saberemos. O Coldfinger e o Gift têm álbuns magníficos. E estão na luta para emplacar

seus discos fora de Portugal. Acho provável que consigam. O público de música

eletrônica é bastante curioso. Mas nunca serão no mundo o que são em Portugal - onde,

talvez, pudessem até ser maiores.

Voltando a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, depois de exposto o

"complexo de europeu", que ela causou, não podemos deixar de ver também suas

benesses - que são infinitamente mais numerosas, felizmente. O próprio fato de os

artistas terem se aberto a novas influências (ainda que muitos estejam apenas as

reproduzindo, em vez de assimilá-las para criar algo novo, diferente) é resultado dessa

liberdade.

Imagino um mundo sem Revolução dos Cravos e não acho espaço para a luxúria

do Mão Morta, para a insanidade do Pop Dell Art. Não consigo ver reconhecida a

poesia feminista e libertária e as experimentações eletrônicas dos Três Tristes Tigres (e

conseqüentemente não ouço o disco do Mesa, que para mim é como uma continuação

do excelente trabalho dos Tigres, JP Coimbra como herdeiro do legado de Alexandre

Soares). Não teria visto emergir o monstro Ornatos Violeta (que infelizmente, teve vida

curta). Não vejo o Belle Chase Hotel, flertando, em português, em inglês e em francês,

com Chico Buarque e Fernando Pessoa na poesia de JP Simões. Não consigo conceber

Pedro D'Orey nos revelando Al Berto, com o Word Song. Também não enxergo o

encontro do Clã com Ségio Godinho. Não escuto nada vindo da periferia de Lisboa e do

Porto, dos afrodescendentes, retornados após a Guerra Colonial. Não há hip hop. Não há

o Sam The Kid. As fitas perdidas do Bullet não são encontradas. O caldeirão do Blasted

Mechanism não ferve. Nem me tranqüilizam as paisagens sonoras do Bypass ou do

Stoaways. Um mundo bastante triste, portanto.

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Trinta anos depois da Revolução isso tudo é possível. Minha aposta, agora que

as feridas do salazarismo estão cicatrizando, é que o "complexo de europeu" cada vez

mais ceda espaço a criação espontânea, livre de verdade. Como apontei acima, isso já

está acontecendo. Trinta anos depois de sepultadas as trevas do conservadorismo e da

tradição é hora de exumar o cadáver e ver se não há lá nada de bom que se aproveite.

Pode haver boas surpresas. Se para nada servir, que vasculhem ao menos na memória e

encontrem aquele espírito aventureiro e conquistador que moveu os portugueses há mais

de 500 anos. Há hoje na música tanto a ser explorado quanto havia naquele tempo nos

mares.

* Sem a pretensão de querer comentar toda a arte feita por nossos patrícios, pegamos a

música como exemplo para avaliar as implicações da Revolução dos Cravos no Portugal

moderno. Se querem uma desculpa que não a minha quase completa ignorância sobre as

outras artes lusas, tenhamos em conta "Grândola, Vila Morena", que serviu de senha

para a revolução. Uma música, e não um livro, um quadro, uma peça de teatro ou filme.

Mas que este artigo suscite a vontade do leitor em descobrir a recente (e interessante)

produção cultural na terra de Camões.

Publicado originalmente em abril de 2004, na revista eletrônica B*Scene

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Mitos, monstros e rotas alternativas da música portuguesa

Chega a ser irônico, mas, para muitas pessoas, pensar em música portuguesa

ainda é lembrar de Amália Rodrigues. A saudade, a melancolia... o fado. Mas o mundo

gira e, claro, a lusitana roda. O fado? Vai bem. Perguntem aos novos fadistas: a Mariza,

ao Camané e a Mísia. Como o mar há mais de cinco séculos, a música é território vasto

e com muito a ser explorado.

Os instrumentos para desbravar novos horizontes podem ser os triviais baixo,

guitarra e bateria. Nos anos 80, duas bandas foram os "Vascos da Gama" no cenario

musical português. Quando o rock ja havia deixado de ser uma brincadeira de moleques

rebeldes para dar muito dinheiro a senhores engravatados, duas figuras rebelaram-se

contra o status quo. Do norte do país, acena a Mao Morta de Adolfo Luxúria Canibal.

Sexo, violência e outros tabus chocam a opinião pública embalados por canções

vigorosas, lascivas e soturnas. Em Lisboa, emerge a irreverência pop dell Arte de João

Peste. De incompreendidos a importantes bandas portuguesas, as duas pavimentaram o

caminho para grupos como o Belle Chase Hotel, que mistura poesia, tango, MPB,

música de cabaré e rock.

Mudam os tempos, e os instrumentos também. Cada vez mais a eletrônica serve

aos que procuraram novidade, e surgem projetos que encaram a tecnologia como parte

do processo criativo e não como seu fim. Gente que alia programações a guitarras e

baixos, criando atmosferas densas, como o The Gift. Outros que constroem climas

jazzísticos sublimes juntando a maquinaria delicadas linhas de piano e baixo, como o

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Coldfinger. Ou então os que injetam sofisticação e abusam de texturas em canções pop

de efeito devastador, como o Mesa.

Por isso, é irônico que a música portuguesa esteja fadada a ser associada as belas

e tristes músicas interpretadas por Amália. Soa como se todos acreditassem no tal

destino, e ele tivesse reservado aos portugueses apenas uma diva de voz e olhos

profundos. Todos, menos os portugueses.

O fado, novamente, vai muito bem. Ele é como o Tejo, e como diz o poema do

mestre Caeiro, não é mais belo que os rios que correm pelas outras aldeias.

Publicado originalmente em junho de 2004, na revista Jungle Drums