plutarco. obras morais sobre a amizade

228

Upload: patricia-s-santos

Post on 01-Jul-2015

587 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PlutarcoObras MoraisComo Distinguir um Adulador de um AmigoComo Retirar Benefcio dos InimigosAcerca do Nmero Excessivo de AmigosTraduo do grego, introduo e notas dePaula Barata DiasUniversidade de CoimbraAutor: PlutarcoTtulo: Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo, Como Retirar Benefcio dos Inimigos, Acerca do Nmero Excessivo de AmigosTraduo do grego, introduo e notas: Paula Barata DiasEditor: Centro de Estudos Clssicos e HumansticosEdio: 1/2010Coordenador Cientfico do Plano de Edio: Maria do Cu FialhoConselho Editorial: Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva, Francisco de Oliveira, Maria do Cu Fialho, Nair Castro SoaresDirector tcnico da coleco / Investigador responsvel pelo projecto PLUTARCO E OS FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE EUROPEIA: Delfim F. LeoConcepo grfica e paginao: Rodolfo LopesObra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e HumansticosUniversidade de CoimbraFaculdade de LetrasTel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000447 CoimbraISBN: 9789898281289ISBN digital: 9789898281296Depsito Legal: 309396/10Obra Publicada com o Apoio de: Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de CoimbraReservados todos os direitos. Nos termos legais fca expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.VolumeintegradonoprojectoPlutarcoeosfundamentosdaidentidadeeuropeiaefnanciadopela Fundao para a Cincia e a Tecnologia.Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfca independente.NDICEI. Introduo Geral71. Os Tratados de Plutarco sobre a Amizade72. Contextualizao ScioCultural da Produo Plutarqueana sobre a Amizade393. A Orientao Filosfica de Plutarco444. Porqu a Amizade? A Importncia do Tema noMundo Antigo e em Plutarco515. Sobre a Traduo576. Bibliografia58I. Como Distinguir um ADulADor De um Amigo63Palavras Introdutrias65Como Distinguir um ADulADor De um Amigo Traduo73II. Como retirAr BenefCio Dos inimigos165Palavras Introdutrias167Como retirAr BenefCio Dos inimigos Traduo173III. ACerCA Do nmero exCessivo De Amigos201Palavras Introdutrias203ACerCA Do nmero exCessivo De Amigos Traduo207IV. ndices225ndice Onomstico227ndice de PalavrasChave2316 7introDuo gerAl6 7INTRODUO GERAL1. Os tratados de Plutarco sobre a amizade1 Areunionumsvolumedaversoportuguesa dos tratados de Plutarco que abordam o tema da amizade resulta,decertaforma,deumabusonosso,posto quenohelementosquepermitamsuporqualquer intencionalidade,dapartedoPolgrafoQueronense, emapresentaroComoDistinguirumAduladordeum Amigo, o Como Retirar Benefcio dos Inimigos e Acerca do NmeroExcessivodeAmigoscomoopsculossujeitosa uma qualquer disposio que os agrupasse. Variamnoestilo,nadimenso,napocade composio,nosdestinatrios,e,semdvida,como osttulospermitemdenunciar,noprpriopontode vista de partida a que se sujeita, nas trs obras, o vasto temadaamizade.So,cadaum,umaobracompleta, 1 Adoptaremos as seguintes abreviaturas: AD Como Distinguir umAduladordeumAmigo,de48Fa74D;ICComoRetirar BenefciodosInimigos86,deBa92F;AMAcercadoNmero Excessivo de Amigos, de 93 A a 97 APaula Barata Dias8 9 8 9estruturalmenteconstrudacomotal,semquese estabeleanenhumadependnciaentreelas,doponto de vista da construo literria. Sentimonos, contudo, legitimados a proceder a esta reunio.Emprimeirolugar,porque,apesardeestarem sujeitosaumaunidadedetema,osassuntosneles explanados,diversifcados,noserepetem,nemse contradizem.Plutarco,emboranotenhadeixado nenhuma refexo terica sobre o tema da amizade como fzeram muitos autores antigos, sentiuse vontade em discutir, dar a sua opinio, argumentar, aconselhar, ou seja,emproduzirumdiscursodendolepragmtica paraosseuscontemporneosemboraseexplicitem destinatrios directos sobre os problemas que a amizade acarreta.Acresce o facto de as trs obras partilharem uma estruturaretricasemelhante,particularmentenoque toca introduo, e ao modo de o A. focalizar os tpicos propostosparadiscusso.Plutarcoiniciaostratados apoiado na fgura do estranhamento, tomando para si o papel de defesa de um ponto de vista que no maioritrio e que, primeira vista, se revela mesmo contrrio razo. Assume, diante do destinatrio e do receptor, um grau fraco de credibilidade na exposio da tese inicial, que assumecontrariarosensocomum,aindaquesempre evocandoautoridadesflosfcascomocoadjuvantes, quevaicrescendonaspremissassecundrias,todas sustentadas por um discurso demonstrativo2.2HeinrichLaubsberg,ElementosdeumaRetricaLiterria, (Bona, 1967; trad. port. FCG, 3 ed., 1982), p. 90; p. 112.8 9introDuo gerAl8 9Assim,emComoDistinguirumAduladorde umAmigo,(48F)Platoqueafrmaquetodos (hapantas)aprovamohomemquedizterumelevado amor prprio. Este um grande mal, pois leva a que se percaaobjectividadequepermitiriaaalgumserum juiz imparcial de si prprio. O excesso de amor prprio comprometeoautoconhecimento,eelemesmo chamarizparaosaduladores.Nestascircunstncias,as vtimasdosaduladoressovtimasdasuairrefexoe da sua inpcia. Em Como Retirar Benefcio dos Inimigos, (86 DE), se para os outros (hoi alloi), tal como para os homens primitivos, no ser prejudicado pelos inimigos jeraumavitria,jXenofonteafrmaraquesaber extrairvantagensdosadversriosumaqualidadedos homens inteligentes. Assim, que se tome esta premissa e que se apresente o mtodo de lucrar com as inimizades. EmAcercadoNmeroExcessivodeAmigos(93BC), Scrates a autoridade evocada para torcer o argumento do senso comum, desmascarado, no passo em causa, a partirdaironiasocrtica,quedeixaanuaignorncia doseuinterlocutor.Comopodesernegativoter muitosamigos?Noseremosalvoderisoosque,no estando seguros de ter um s amigo, receamos cair no meiodeumamultidodeles?Est,assimconquistada aatenododestinatrio,eesttambmassumido umtommedianamentepolmicoecrticoquantoaos dominantes sociais em termos de opinio comum.Aamizadetratadaquerenquantoconceito potencial,isto,comoorientaraquelequeprocura navegarnasguasestabilizadorasdeumarelao Paula Barata Dias10 11 10 11verdadeira,querenquantorealidadeconcretado quotidiano:ouseja,orientandoomododeagir daquele que vive num ambiente social intenso, no qual relaesinterpessoaismarcadaspeladiversidadedos intervenientesseencadeiam,etornammaiscomplexo o acto de discernir e avaliar o outro enquanto fonte de bemestar e de felicidade para o indivduo.Plutarcointegrounestesescritosumarefexo coerentesobreacomplexagestodaamizade, resultandodoconjuntoumaabordagemintegrada doquepoderemosconsiderarseropontodevistade Plutarcosobreestetipoderelaohumana.Acresce, evidentemente,comosustentculodoseudomnio prtico sobre a questo, a experincia pessoal enquanto homemdeintensavidasocial,quesoubecultivara amizadeequedelacolheudocesfrutos,durantea sualongavida.Parece,pois,natural,queumhomem como Plutarco se sentisse autorizado a partilhar as suas refexes, amadurecidas pela experincia de vida e pelo seu poder de observao.Surpreendentemente,aocontrriodasrefexes literrias e flosfcas sobre o tema, que Plutarco conheceu e por que se deixou infuenciar, no entrevemos no A. a preocupao de defnir teoricamente ou flosofcamente oconceitodeamizade.Afocalizaoincidesobreos aspectos concretos do que pode correr mal, ou do que compromete o gozo de uma amizade.Plutarcorecorresuaerudioliterriapara seancorarnestedomnio,delaseservindocomoum catalizadorparaapresentarumatipologiadeexemplos 10 11introDuo gerAl10 11edequestesquesesituamnasfronteirasdaamizade enquanto estado ideal de concrdia entre dois espritos, masquecomelanoseconfundem.Anaturalidade comqueprocedeanlisedetemassocialmente delicados,emesmoinconvenientes,resultam,quanto ans,doconhecimentoeruditoqueoautorreuniue que lhe permitiu compor as Vidas Paralelas biografas de homens famosos de diferentes momentos da histria antiga grega e romana, todos fazendo parte, por razes diversas, das elites polticas e culturais. feito, por isso mesmo,umextensousodeexemplacomunsaosque encontramos nas suas Biografas episdios, anedotas, ditosfamososparacorroborarosseuspontosde vista e as suas tomadas de posio, facto que deixamos assinaladonasnotasqueacompanhamatraduo.A tradio literria fccional da Antiguidade est tambm presente,atravsdacolaodeexcertosdospoetas, picos,trgicosecmicos,quecompuseramnassuas obras retratos modelares de heris e de mitos nos quais oenleiodaamizadeeaarmadilhadasuaaparncia condicionaramaexistnciadepersonalidadescomo Hracles,AquilesePtroclo,Agammnon,Heitor, Menelau, Pramo, Ulisses. Dos historiadores, flsofos, oradores,edetodaatradioliterriaanteriorasi, retirou no s exemplos de caracteres, mas tambm um manancial considervel de ditos sentenciosos, mximas, provrbios,ousimplesexpressesquenopoucas vezesseencadeiamnodiscurso,completandooou precisandoo, facto que se aplica ao estilo plutarqueano em geral.Paula Barata Dias12 13 12 13Nestembito,destacamseoscasosemque Plutarcoassumediscordnciacomasautoridades mencionadas,oquenosintroduzumanotade variaoedesurpresanodiscurso,mastambmnos permiteentreverumPlutarcoderostomaiscrticoe modelado, tanto pelos seus gostos literrios, como pelas suas concepes ticomorais.Nodeixa,contudo,deserumpouco desconcertante que a focalizao a que Plutarco sujeita a amizade seja precisamente a da sua negao: os casos em que esta se apresenta deformada por realidades que com ela se confundem, que o da adulao (he kolakeia) e o do excesso de amigos (he polyphilia). Temos tambm o desconcertante caso em que a amizade no existe de todo, sendo substituda pela inimizade (o segundo dos opsculos), por sinal a nica das situaes a que Plutarco reconhece vantagens inerentes.Anooplutarqueanadeamizadebaseiaseno conceitodesemelhanahomoiotes)entreaspartes, como se afrma em Como Distinguir um Adulador de um Amigo (51 B)o princpio (arche) da amizade reside na semelhana (homoiotes) de objectivos (epitedeuma) e de costumes(ethos),equealegrar-secomasmesmascoisas (olostokairein),erejeitarasmesmascoisas(totauta pheugein), , de um modo geral, o que em primeiro lugar aproxima(sunagei)aspessoas,easune(sunistesi)por meio da concrdia de sentimentos (omoiopatheia)Asduastipologiasplutarqueanasde paraamizade,relaesque,dealgummodo, imitamnasuperfcieasqualidadesdaamizade;e 12 13introDuo gerAl12 13denoamizade,relaoquenega,poranttese,a essncia da amizade, resultam todas elas da corrupo desteprincpiodasemelhanaentreaspartes, criandose,portanto,umdesequilbrioestrutural:a dissemelhanadequalidadeentreosindivduos,no necessariamente uma desigualdade de condio social, poltica e econmica, mas de carcter, de propsitos, de interesses,atrairrelaesperversas,quesesustentam apenas enquanto forem motivadas externamente.EmComoDistinguirumAduladordeum Amigo,umdosenvolvidosnestepardeatraco mtuadeformada,oadulador,aquelequereproduz, exagerandoat,asvantagens,oprazer,easvirtudes dosamigos,mastalmododeagirmotivadopela satisfaodosseusinteressesparticulares,enopela promoodobenefciomtuo.Masooutromembro deste par, a vtima do adulador, no menos inocente: asuadifculdadeemidentifcarossinaisdaadulao so tanto maiores quanto mais o seu carcter for escravo daspaixes,quantomenosvirtuososeapresentar.O aduladorestsempreprontoareforarasfragilidades decarcterdaquelequepretensamenteserve,noo contrariando, no o advertindo dos perigos, descuidos, negligncias ou ms aces em que se envolve. Assim, sob a capa de uma servil obedincia e lealdade, escondese o falso amigo, todo ele doura e prestabilidade, incapaz deumolharcrticoefrontalparaaquelequeadmira, emteoria.Assim,fcaanuladaamaiordasvantagens daamizade,nascidadaalteridadeedeliberdadede Paula Barata Dias14 15 14 15conscincia: o indivduo no pode esperar desta relao colher o estmulo para pr prova, treinar e educar o seu carcter, pelo que se afunda em progressivas vicissitudes, frutosdeumcomportamentoerrticoededecises precipitadas.Oaduladorapresentaaindaoperigode, sendo ele cioso do espao que ocupa nos afectos do seu alvo, afastar os verdadeiros amigos que poderiam exercer essa funo protectora. No servindo como amigo, cria sua volta um deserto afectivo, que, embora prazenteiro eagradvelnoimediato,comprometeafelicidadeeo sucesso a longo prazo.Oaduladordistinguesedoparasitapela perseverana, calculismo, danos provocados e subtileza demtodos.Chega,inclusivamente,aservirseda franquezaaparresiaapangiodosespritoslivres que conscientemente se revelam aos seus pares como modo de se valorizar diante do seu alvo, cumprindo at ao fm a sua estratgia de imitao da amizade.Estacapacidadedeseesconderentreostraos daverdadeiraamizadeconduzPlutarcoaodesenrolar deumcasusmodecomportamentosadulatrios, como forma de ilustrao e de mtodo para favorecer o reconhecimento deste mestre do disfarce. neste passo que o texto de Plutarco ganha uma particular animao, pelo realismo e ironia dos casos documentados.Nestedomnio,estamosconvencidosdeque Plutarco foi bastante auxiliado, no s pela sua experincia eobservaodanaturezahumanauniversal(diramos que a leitura de certos excertos produziro em qualquer umdensumsorrisodereconhecimentoprticodas 14 15introDuo gerAl14 15situaes descritas), mas tambm pela tradio literria da Comdia, concretamente de upolis e de Menandro, cada um deles autor de uma comdia sob o ttulo preciso de Ho Kolax, O Adulador. As comediografas grega e a romanacompuseramcommestriaretratosdoparasita aquele que come das sobras da mesa, e conhecemse, dentrodogneroliterriodramticocmico,estas manifestaes explcitas de um quadro individualizado para o adulador.Plutarcodistanciase,noentanto,domodeloda comdia.Nocasodeupolisdoretratoproduzido, considerandoqueeleseaplicamaisaoparasita,e,no casodeMenandro,colocandooexemplodeadulao apresentadoporesteautornumnvelpoucosubtil, poucoelaborado.Oadulador,embora,porumlado, reproduzaalgunsmodosdeagirdoparasita,pertence aumoutronveldeperigosidadeedesubtilezade estratgiae,poroutrolado,ocarcterplsticodo aduladorapresentamodulaesqueultrapassamo testemunho de Menandro.Estanecessidadeemdemarcarombitodoseu objectofaceaumacomposiodecarcterresultante deumaanliseanteriorfornecenosindciosseguros dapresenadestesintertextossobreaadulaoeo adulador,peloqueserplausvelpensarquePlutarco se tenha inspirado na obra de upolis e de Menandro, explicitamentereferenciadospeloautorem59Ce54 B.IndicanostambmquePlutarcoassimilou criticamente o legado recebido. Ou seja, os quadros vivos Paula Barata Dias16 17 16 17da actuao sinuosa deste perfl humano (AD 48 e 59), desmontados com uma complexidade casustica, ironia, anlise psicolgica e detalhe invulgares, particularmente osqueresultamemquadrosilustrativospotenciais, especulativos,queenvolvemannimos,podemter sidoinspiradosemepisdiosdacomdia,mas ntida, em Plutarco, a insatisfao em relao ao perfl anteriormenteproduzidoque,segundoele,precisade ser afnado: no s deve ser claramente destrinado do perfl do parasita, como ser desmascarado pela aparncia do bem que produz.Plutarcosentenecessidadeemidentifcaro aduladordedifcilpercepo,aquelequeseconfunde comoamigomaisfeleprestvel,ouseja,propese criarummtodoparaidentifcarestadeformaoda amizade. A que devida esta insatisfao?Emprimeirolugar,hemPlutarcouma sustentaoflosfcatica,quenotextoantecipaou concluiasilustraesproduzidas,naqualpossvel identifcaroutrasfontesdeinspirao,comoveremos. Ou seja, Plutarco conduz a refexo sobre as agruras que envolvem a amizade a um nvel mais elaborado do que oquetransparecedascomposiescmicas.Masest tambmpresenteaquiloaquechamaremosoardo tempo, ou seja, o juzo de Plutarco quanto ao perodo histrico, poltico e social em que vive.precisamentenosegundotratadoapresentado que encontramos uma frase que, desvelando um tom de crtica sua poca, nos autoriza a pensar que Plutarco incorporounestesopsculos,conjugandofontes 16 17introDuo gerAl16 17literrias,flosfcas,experinciaeobservaopessoal, um juzo lcido e algo cptico sobre o seu presente:E visto que a amizade tem, nos dias de hoje, a voz dbil para a franqueza no falar enquanto a adulao que dela vem bem sonoraeasuaadmoestaopermanecemuda,dabocados inimigos que se deve escutar a verdade (IC, 89 C)Outrosautoresantigosestabeleceramperfspara o adulador:Teofrasto,emCaracteres,apresentouologono segundoquadro.Osexemplosdocomportamento tpicoapresentadospeloFilsofosucessorde Aristteles no Liceu ateniense so, no por expresses exactas,masporequivalnciadosseusefeitos,em muitos aspectos similares aos que Plutarco assinalar, como damos conta nas notas. Em suma, no h uma intertextualidadedirecta,masclaramenteumabase comumderefexosobreestatipologiahumana. Ccero,(tambmexplicitamentereferenciadopor Plutarco,emIC,91A)noseudilogoDeAmicitia (9199),dissertasobreoprejuzodasimulaoeda lisonja, armas predilectas dos aduladores, apresentando osexemploshistricosdasuaperigosidadeparaa vidapblicaeparaaRepblica.Sobressai,dalonga interveno de Llio, o mesmo argumento que iremos encontrar em Plutarco (97): a vtima da adulao o que j est predisposto para a lisonja fcil, o que simula ser virtuoso mas que, na verdade no o , em suma, o que tem uma imagem adulterada de si prprio, e que Paula Barata Dias18 19 18 19assim se deixa, progressivamente, deformar ao aceitar interagir com os aduladores. Noprimeirodostratadossobressaiaindaa franqueza a parresia como tema associado amizade: seoaduladorimita,exagerando,ascaractersticasda amizade, a ponto de imitar a franqueza tpica dos amigos, o que pode fazer o verdadeiro amigo para se distinguir? Aindaquepareaprestarosmesmosservios,agradar damesmaforma,advertireusardafranqueza(tudo isso o adulador faz com desmesura), distinguirse pelo sentido da oportunidade nas suas intervenes o kairos epelaconstnciadasuapresena,particularmente nosmomentosdeinfortnio.Dispostoaaconselhar, semdvida,mastambmaconsolar,afagandouma alma sofrida, mesmo quando para tal forem necessrias omisses,silnciosdeconvenincia,ouaquiloaque classifcaramoshojecomomentiraspiedosas.Estas proporcionaro, como um lenitivo, o conforto provisrio que permitir a um esprito desesperado reerguerse.nestascircunstnciasqueoaduladorrevelaa suaverdadeiranatureza,predadoraporessncia:por oposio,usadamaisdesbragadafranqueza,acusando ehumilhandoquemacaboudetombar,denunciando aposterioriaverdadecruadosmauspassosdeque foicmplice,poracoouomisso,masdelesse distanciandoquandoumaadvertnciateriasido tobemvindanomomentoapropriado!emnada confortando,contribuindoapenasparaoadensardo desespero. O adulador e o amigo distinguemse tambm por esta inverso de funes: na ventura, o amigo estar 18 19introDuo gerAl18 19l para advertir dos perigos e da necessidade de sensatez; o adulador, para infar as velas do excesso de confana. Nadesventura,atrocadecomportamentosrevela dramaticamenteesemremdio,averdadeiranatureza dos que rodeiam o indivduo.Estasduasrefexes,apredisposiodecertos caracteres para se tornarem alvo preferencial da adulao, e,afcilconfusoentreasmanifestaesexterioresda amizadeedaadulaoquandoseexcluiocontexto que as suscitam o kairos conduzem o leitor a uma concluso fundamental: a chave para distinguir os dois perfs reside no conhecimento de si prprio, e no assumir dequeaalmahumanacontraditriaemsimesmo, complexamente incorporando uma pulso para o bem e o racional, e uma pulso para as paixes e o irracional (AD20).Assimoamigoeoaduladorseaproximam, estimulando um a nossa tendncia para o bem, o outro reforando as nossas cedncias ao irracional.Estamos,pelaformulaodePlutarco,muito perto da concepo do daimon que infuencia as decises conforme bom ou mau quanto sua natureza, e a um passomuitoprximodedeterminadoselementosda angelogia e da demonologia crists das primeiras eras do cristianismo,fortementeinfuenciadapelamisticismo flosfcocaractersticodohelenismodoperodo romano.Tambmsetornafundamentalumareviso interior do carcter, um treino moral que torne incuos, ouneutralize,osaspectosmenosnobresdocarcter decadaindivduo:oorgulho,aclera,avaidade,a superfcialidadedelinguagem.Essaautopurifcao Paula Barata Dias20 21 20 21tornar a pessoa mais capaz de, lucidamente, resistir aos ataques do adulador (2527). Umtemaemgrandedestaquenestetratadoo da franqueza no falar a parresia conceito aqui muito distante do valor que apresentara na Atenas democrtica, etambmmuitodistantedoqueviraternamoral ascticacrist.Entreestesdoismundostoafastados osc. Va.C.eocristianismoprimitivodosc.IIIIV Plutarcoimpesecomotestemunhodeumaponte evolutivanoconceito:aparresia,inicialmente,um conceitopolticoassociadoaousodaliberdadeno falar entre cidados de igual estatuto, prpria do polites eleutheros, o cidado livre, na posse plena da isegoria como direito associado ao regime poltico da democracia. Neste contexto,aparresiaumvalorglobalmentepositivo, aplicvelesferadeactuaopblicadohomem.No cristianismo,noentanto,particularmentenodiscurso asctico cristo, corresponde verborreia tagarelice vcio de carcter que perturba a paz interior3. Tratase de um termo da esfera privada e espiritual do indivduo.Plutarcoapresentanosaparresiacomoum conceitoambivalente:ousolivredapalavrajno um direito poltico associado liberdade e igualdade proporcionadas por uma determinada forma de regime poltico. uma caracterstica neutra, que pode ser usada peloindivduonosseusrelacionamentossociais,quer peloaduladorquerpeloamigo.Falarabertamente, semmedo,podeseruminstrumentodeinsinuao 3 Ver D. Pierre Miquel, Lexique du dsert, S. O. 44 Bellefontaine, 1986, pp. 219132 s. v. Parresia.20 21introDuo gerAl20 21paraoadulador(59C,60C),utilizadaparareforar oamorprprioouparaintensifcarosvciosdo adulado. O amigo tem uma responsabilidade acrescida no emprego da parresia: para esta ser positiva, deve ser ponderadacomokairosomomentooportuno.A suautilidaderesultadoscondicionamentosdasua motivao,objectivoeoportunidadedoseuemprego. Tornase,portanto,umconceitorelativo,empregue pelos aduladores em benefcio prprio, e pelos amigos, emdiversascircunstncias,umasajustadaseteis, outrasdespropositadaseinteis.Paraserbenfca etilaoamigo,aparresiadeveserpurifcada(67E), modeladaconveninciaeaopropsito,sobpena de,inclusivamente,prejudicaroqueaempregacom boainteno,seoindivduoalvodaparresiativer opoderdoseulado.Estamos,portanto,longeda liberdadedeexpressoempregueentreindivduos quesereconheciamcomoiguais.Aparresia,reduzida aqualidadesocialdedimensoprivada,podeservir propsitosvis,sefordeliberadamenteempreguepelos aduladores,comoprejuzoclarodoalvodaadulao, e ser inconvenientemente e de modo desastrado usada pelosamigos,atraindosobreosqueaempregamsem atenderemumasriededissaboresinteis.Assistimos, portanto, singular evoluo de um conceito na mesma lngua,emquePlutarcosurgeatestemunharum momento de transio.Como agir diante de um quadro socialmente to fudo? Plutarco no cessa de alertar para a necessidade de o indivduo estar atento, de observar os outros e os Paula Barata Dias22 23 22 23contextosenvolventes,massobretudodesevigiara siprprio(tofulattesthai),paranoseserlevadopor atitudes e acontecimentos imprevisveis. Sanciona, deste modo, a aprendizagem de um mtodo programado de interaco humana, estudado ao pormenor, optimizado pelo autoconhecimento e pelo autocontrolo, consciente dovalorobjectivodosindivduosinteragentes,eda importncia do que posto em causa, neste jogo social em que a mscara dos afectos o rosto que alcana ganhos concretosdeprestgio,poder,infuncia,proximidade com as elites, enfm, os modos de projectar do sucesso pessoal sobre os outros.O terceiro dos tratados, aqui apresentado Acerca doNmeroExcessivodeAmigos,mantmestetom decepticismonaabordagemdasrelaeshumanas, procurandodesvendaroscaminhosparaafruio benfca de uma amizade. Plutarco mantmse apostado em desmistifcar as formas aparentes de amizade: tivemos a ilustrao do adulterar da sua qualidade no primeiro tratado. nos agora apresentada a distoro da amizade pelofactordaquantidade.Aconveninciaemterum grande nmero de amigos tinha sido j posta em causa por Aristteles, na sua tica a Nicmaco4.Ograndenmerodeamigosconceitoaque chamaremossegundooneologismopolifliano autorizaningumadizersebemservidopelaamizade. Adesproporonumricadosenvolvidos,ouseja,uma multido de amigos em redor de um indivduo convertido 4 Aristteles EN 9.10, 1171 a 1419.22 23introDuo gerAl22 23emalvo,tercomoresultadoapenasumaaparnciade amizade. Para agravar o tom negativo e crtico de Plutarco, tal situao nem sequer poder ser classifcada de neutra quanto s vantagens para o sujeito nela envolvido. que a multido de amigos rene o pior de dois mundos: no comportaosbenefciosdaamizade,econtmtodosos malefcios especfcos da sua corrupo.Naintroduodotpicoadiscutir,Plutarco previneodestinatrioparaaestranhezadoponto emdiscusso.Este,quantoans,umargumento suplementarunidadedetemaemrelaoaotratado anterior: do ponto de vista retrico e estilstico, Plutarco partedeumtpicoquecolocaasuaargumentao emregistodedesvantagemedecontradioquantoa umpontodevistamaioritrio.Permitenostambm infrmar a tendncia para classifcar este curto opsculo, de apenas nove captulos, como superfcial e algo cho pelaargumentaopresente,legitimadaporsetratar deumacomposioseguramenteproduzidaparauma leitura pblica, como se de uma conferncia se tratasse. De facto, o texto apresentasenos um Plutarco refexivo, dispostoasustentarsolidamenteoseupontodevista, sem brechas nem excursos, retoricamente elaborado.Assim, mantmse o subtil jogo, com antecedentes naflosofasocrtica,oquenestetratadosurge explicitamenteassumidologonoincio(93A),entre averdadeeassuasfrgeiseenganadorasaparncias. TalcomoScratesdesmontaraasconcepeserrneas de Mnon o Tesslio, algum que confundira a virtude enquanto conceito com as suas mltiplas manifestaes Paula Barata Dias24 25 24 25concretas,isoladaseatcontraditrias,equeesta multiplicidade s expunha a ignorncia do visado quanto aoobjectodaquesto,Plutarcolevantaodilema:no correremos o grande risco de, no estando seguros quanto natureza de um amigo (em confronto com a virtude, referidaporScrates),cairmosinvoluntariamentenos enleiosdeumamultidodeamigos?(emcontraponto com as manifestaes casusticas da virtude, expostas na rplica de Scrates). Mas, se porventura no estivermos segurosdeterumamigoqueseja,noserestauma questo intil, tal como o homem cego e maneta, que temeoinfortniodesetransformaremmonstrosde mltiplos braos e olhos?Apoiado na autoridade argumentativa de Scrates, Plutarco no s nega esta premissa, que se mostra intacta na sua aparncia de verdade, como expe os argumentos que a permitiriam reforar, tomando para si a funo do contraditrio. Termina o primeiro captulo encerrando achaveporquevaipautartodooseudiscurso,todo elesustentadonaexposiodaamizadeeticamente fundamentada:maravilhosopoderafrmarse, comoMenandroofaz,quesetemasombradeum samigo,equeconsideraronmerodeamigosque sedizterumavantagememsimesmoumerroque mereceserdesmontado,nopelafalsidadeeengano nesteradicados,massobretudopelaperigosidadeque os efeitos prticos desta crena podem aportar vida de um homem pblico.Muitosamigostornamoindivduodesatentoe superfcial:acapacidadedejulgarnovasamizadesfca 24 25introDuo gerAl24 25comprometidaeodesassossegopermanente(93C). Talcomo,nanatureza,orioquecorreparaafoz,se divideembraoscadavezmenoscaudalososemenos fuentes;talcomooanimalquegeraumaninhada menosgenerosonosseuscuidadosparentaisdoqueo animal que tem uma cria de cada vez, assim a amizade, divididapormuitos,enfraquecenasuaintensidade (93 F). Plutarco no reconhece ao enxame de amigos vantagemalguma,namedidaemqueocupamo espaoquedeveriaestarreservadopotencialmente aosgenuinamenteamigos,peloquecontribuem,pelo menos, para um saldo nulo na qualidade das relaes que o homem virtuoso pode desenvolver. Em suma, tratase derelaesque,reduzidasaoseuimpactomnimo,se tornam irrelevantes (a poliflia no seu grau mais tnue) e, ampliado o seu potencial destrutivo, podem revelarse catastrfcas (o exemplo o dos aduladores que desertam, ao menor sinal de desventura (cf. 94 A).PostuladanovamenteateoriaaristotlicadeEN 1156a1156b) acerca dos trs requisitos para a amizade verdadeira,asaber,avirtude(arete),aintimidade (sunetheia) e a utilidade (chreia) Plutarco recomenda o discernimento(hekrisis),oavaliarjustoecomtempo (dokimasai),prvioaoactodeaceitarumamigo(94 BC), pois s este procedimento permitir que os bens da amizade foresam, cada um na sua escala especfca, respectivamente, na elevao do carcter (to kalon); no deleitecolhidoaolongodaproximidade(tohedu);na satisfao prtica de aspectos necessrios (to anankaion). Umamultidodeamigosprivaoindivduodeste Paula Barata Dias26 27 26 27escrutnio, restandolhe uma massa informe e inorgnica de conhecidos, sem vantagem evidente.Nesteponto,Plutarcoaforaateoriaacercada natureza dos grupos humanos, que, na sua perspectiva, estdependentedeumacertaharmonizaodas diferentesqualidadesexibidaspelosindivduosque constituem um grupo (94 C D). Num curto espao de tempo, e rodeado de tanta gente, ningum pode avaliar comclarezaquemtemtalentoparaintegrarumcoro, quem pode ser acrobata, quem tem qualidades para ser um bom mordomo, ou um bom pedagogo, nem sequer asconsegueseleccionarumgrupodeamigoscapazes de serem aliados para os combates proporcionados pela fortuna. Assim, a massa de indivduos pode reunir, no seu conjunto, as qualidades individualmente requeridas a uma corte harmoniosa de amigos, mas pode ter falhado a avaliao individual dos mesmos que asseguraria uma coesofuncionalaocolectivoque,porfalnciadeum exercciodediscernimentodointeressado,serevela uma soma disfuncional de partes, e no um organismo coerenteharmonizadodeacordocomosinteressesa serem assegurados pelo senhor. Na hora devida, no se realizaraconjugaodepersonalidadeseafusode benevolncias que tornar a amizade virtuosa, agradvel e til (95 B). Estamos, como evidente, dentro da fria linguagem,acessvelmentalidadecontempornea, daoptimizaodosbenefcioscolhidosnasrelaes sociais, tendo em vista o seu contributo para o bem estar individual5.5Omesmotipodeargumentaoquantocomplexidade 26 27introDuo gerAl26 27Osexemplosreferidosparecemnosno sdeliberadoscomovisaremumdeterminado perfldeindivduodestinatrioparaestetipode aconselhamentos: algum que exerce responsabilidades cvicasepolticasnaspleisprovinciaisdoimprio romano,deadministrao,emlargamedida, descentralizada,conservandoportantointactasos mecanismosdegerao daselitesurbanasprpriasdo mundo helenstico: por isso, algum que tem, por sua conta, a organizao de festivais religiosos e artsticos, quegereumsquitodeindivduosprofssionalizados numsaberespecfco,(mordomo,pedagogo)eque, de algum modo, projecta o seu sucesso pessoal e a sua infuncia atravs do grupo de amigos que o rodeiam.Tambmem95C,Plutarcocircunstancializao perfldodestinatriodoseudiscurso,apropsitoda incapacidade que este tem em ser prestvel aos amigos seestesforemnumerosos:umquequerviajarpede companhia,outrosolicitaocomotestemunhanum processojudicial,vemfulanoquedemandaquecom ele julguemos uma causa, e mais um que o auxiliemos emnegciosdecompraevenda,ouquecomele celebremososrituaispropiciatriosdoseucasamento, queoacompanhemosnumfuneral.Osinteresses assumidosporesteperflsodendoleprivada,mas claramente urbanos, e prprios de um indivduo activo, politicamente,economicamenteesocialmente,noseu dosgruposhumanosesuaordeminternaquenoseesgotana justaposio das partes e na soma das suas qualidades internas pode serencontradoemConiugaliaPraecepta,III,34(pp.322324), neste caso aplicado ao grupo humano constitudo pelo casal.Paula Barata Dias28 29 28 29meio6.Nohavendoodomdaubiquidade,tornase antipticooamigoquehierarquizaassolicitaesdos amigos.Claro,podemsempreutilizarseasmentiras piedosasdosdescuidosouesquecimentos.Mas cultivar o ressentimento e o cime aquele que confessar no ter visitado o amigo com febre porque assistia um outronumbanquete.Afnal,oquehierarquizar?As solicitaes dos amigos, ou a profundidade dos afectos? Plutarconotraa,portanto,osseusaconselhamentos visandoumidealhumanoabstracto,massimum destinatrio concreto, sociologicamente e historicamente plausvel.Plutarcoretomanesteopsculoaimportncia dofactortempocomoelementoescrutinadore modeladordasamizades(94F95C).Airrequietude eoimediatismoquerodeiamquemtemmultidesde amigossoadversasaoaprofundamentodasrelaes, eassimseperdeoprazerdaconvivnciaprxima eprolongadaquegeraaintimidade.Nomomento dasadversidades,essessuperfciaiscontactos,ainda quenumerosos,comnaturalidadesedispersaroem mltiplosenocoincidentesinteresses,deixandos quem se julgara escudado em slidas amizades.Alm de uma amizade trada pela desateno ou negligncia se transformar na mais amarga e perigosa das inimizades (pois que o agora inimigo sabe de ns aquilo que a um inimigo declarado muito custaria a obter (94 6 Estes conselhos no visam, portanto, o intelectual, o flsofo, osbio,esimohomemocupadopelasmltiplassolicitaesdo diaadia,equeagradeceumaorientaobenfcaparanelasno tropear.28 29introDuo gerAl28 29D),acresceoperigosoefeitodecontgio,quandoso perturbadas as relaes entre amigos. O nmero potencia orisco,poistornaseimpossvelescaparinclume aosjuzosaqueoutremsujeitouosnossosamigos.O exemplotrazidoporPlutarcoinatacvel.Alexandre condenoutorturaemorteosamigosefamiliaresde ParmnioeFilotas(membrosdoseucrculochegado derelaes),Dionsio,Nero,Tibrio,contamse entreosdspotasqueestenderamcomcrueldadeo castigoaosamigosdosalvosdosseusrancores.Ou seja,estamultidodeamigos,semnadabenefciarda proximidadecomopoder,pereceuquandoarodada fortunagiroucontraoobjectodosseusafectos(96C D).Istopassasecommaisfrequncia,precisamente, com os homens de elevado carcter, que coerentemente noseafastamdosamigosemdifculdadeseperecem dos males avassaladores que se tornam comuns. Assim, a peste da Atenas, segundo Tucdides, vitimou os mais solcitos e generosos, que, ao acudirem os seus amigos, fcavam contagiados pela doena (96 D).Plutarcoadoptaumpontodevistapragmtico: qual foi o factor de perturbao nos exemplos referidos? Aamizadefundamentasenareciprocidade,ouseja, devem ser acolhidos como amigos os que esto altura de retribuir em afecto, em companhia, em prestabilidade; na semelhana (homoiotes) e harmonia de personalidades, desentimentos,demodosdevida,oquenoobriga homogeneidade,massimcomplementaridade. Assimaamizade,talcomoamsicapolifnica, desenvolvesedentrodaharmonizaodaspartes, Paula Barata Dias30 31 30 31individualmenteconsistentes,virtuosas,sabedorasda suafunoespecfcaparafazerfuncionaraestrutura grupalemquecadaumseinsere,queassimdeixade serumamassaamorfaquesomaindivduos,ousons, para ser uma s alma, dividida em mltiplos corpos (96 D).Ora,esseselementosencontramseperturbados partida:arelaodepoderdesigualentreosprncipes evocadoseassuascortesnopermitiaclassifcarse, luz da teoria aristotlica da amizade, como geradora do circuitorecprocodebenefciosprpriosqualidade doafectoemcausa.Emltimainstncia,entreos vitimadospelapestedeAtenas,terseiaestabelecido adesigualdadeentreossaudveiseoscontaminados. Usado como exemplo, Plutarco procurou ilustrar, com a apresentao de uma situao de contornos anlogos, os efeitos perniciosos do contgio, logo, da perigosidade de uma amizade ferida pela desconfana, pelo rancor, ou tosimplesmentepeladesigualdadedeestatutosentre os que se tomam por amigos.Aconclusodesteopsculoconvergecom amensagemdeixadanofnaldoprimeirotratado apresentado, Como Distinguir um Adulador de um Amigo. Acima de tudo, o indivduo deve adquirir, para si, um carcterconstanteeslido.Eseofzer,nodispor, naturalmente, da apetncia pela diversidade confusa do acomodar multides de amigos. Esses mesmos traos de carcterdeveescrutinarnaquelesquepretendetomar poramigos,esesses,aindaquepoucos,valeroa pena.30 31introDuo gerAl30 31Como Retirar Benefcio dos Inimigos, o segundo dostratadosaquiapresentado,umcasodistintodos anteriormente comentados.Do ponto de vista formal, um texto que apresenta um destinatrio explcito, Cornlio Pulcro, governador romano na Acaia, poltico que assumira para leitura de bolso os Preceitos de Governao do Queronense. A relao entre eles seria, portanto, sufcientemente prxima para Plutarco lhe dirigir uma espcie de acrescento ao texto primeiramente citado, passado escrita depois de ter sido tema de uma conferncia. uma obra manipulada para responder s necessidades de escrutnio de um homem deEstadocomoCornlioPulcro,eporissoassumeo compositor o compromisso de omitir as consideraes j feitas nos Preceitos de Governao.Estesingulartratadopartedeumpressuposto sustido at ao fm e que , de algum modo, estranho aos discursos morais contemporneos. O ponto de vista de Plutarcoodequeuminimigosersempreinimigo, noestemcausaasuaneutralizao,oureabilitao noutracategoriaporventuramenosnociva.Aceitese, portanto a hostilidade de outrem como uma realidade adquirida, e procurese benefciar com ela.Aintroduodaobraestconstrudacoma mesma tcnica retrica da anlise do contraditrio dos anteriorestratados.Comesta,ressaltaseobviamente ointeressedoleitorpelaargumentaodotratadista, que lana sobre si prprio o desafo de provar uma tese quecontrariaosensocomumeosjuzosmaioritrios: como pode um inimigo ser til? Como pode a negao Paula Barata Dias32 33 32 33da amizade trazer benefcios quele que, em princpio, s pode ser por ela vitimado (86 DE)?Mas este modo de pensar deve ser questionado, por uma srie de razes: em primeiro lugar (argumento de autoridade), Xenofonte j defendera que os homens sensatos devem saber benefciar dos inimigos. Depois (argumentodanecessidade),jqueimpossvela umhomempbliconoatrairinimizades,hque encontrar a melhor forma de contornar este incmodo. Finalmente,saberlidarcomosinimigosedatirar proveitoresultadeumtreino,daaplicaodeum mtodo que s enriquece quem o pratica. Novamente osargumentosdereforoaodesafodasposies assumidaspassam,almdaevocaodasautoridades (Plato,Scrates,Xenofonte),tambmpelaevocao desituaesparalelasnomundonatural.Anatureza, animalevegetal,selvagemeindmita,serveos homens de mltiplos modos, graas ao conhecimento ehabilidadeacumuladasaolongodaevoluoda espcienocaminhodacivilizao.Asferashostisao homemfornecemlheasuapele,asuacarne,delas seextraisubstnciasmedicamentosas;srvoresque noproduzemfrutocomestvel,oagricultorconcede outrosfns.Aprpriaguadomar,impossvelde beber, habitat dos peixes e recurso imprescindvel ao movimento de cargas e de passageiros. A natureza vem mostrarquearealidadecomplexamentecomposta deaspectospositivosenegativos,ecabeaohomem, paraseuproveito,distinguireusarosprimeiros, neutralizando os segundos.32 33introDuo gerAl32 33Emprimeirolugar,aadversidadepode,porsi s, constituir um perodo de retempero para o sujeito: aproveitaseaocasiodadoenaparadardescansoao corpo(87A);aperdadosbenseoexliotrazemcom eles o convite mudana radical do modo de vida, um convite meditao e flosofa7.Mas a existncia e a aco do inimigo podem ser benfcasparaaedifcaodeumindivduo.Emque medida? (87 B 89 A). O echtros vigia atentamente todos os passos do alvo do seu dio, procurando fragilidades, negligncias,descuidosoumesmoprojectosquepossa condicionar ou comprometer. Desta forma, a existncia de inimigos impem uma disciplina de carcter rigorosa, umacondutairrepreensvel;umcontrolosobreas emoes, um propsito de vida equilibrado e inatacvel. O treino do esprito na autoconteno, na sobriedade e na refexo atempada formam, pelo hbito, um carcter robusto e capaz de uma conduta pblica irrepreensvel. Aconscinciadequeseestsoboolharvigilantede uminimigodeveser,portanto,umestmuloparao 7Osexemplosderenncia,motivadosporcircunstncias externas evocados por Plutarco, Crates, Digenes e Zeno, tiveram eco na literatura latina: Ccero comps as Tusculanas num assumido momento de retirada, no inteiramente voluntria, da vida pblica. TambmSneca,noDeTranquilitateAnimiIII,defendeparao sbiooafastamentodastribulaesqueaproximidadecomo podersempreatraem.Tambmnocristianismoencontramosa renncia aos bens e ao conforto do espao conhecido, voluntrio ou involuntrio(xenitheia,patridossteresis)comoumaoportunidade paraalcanaratranquilidadeasctica(e.g.S.Jernimo,emEp. 23AMarcela,54AFria;108,ElogiofnebreaSantaPaula, cartas em que defende e descreve a radical entrega vida asctica aps a provao da viuvez, da perda de um flho, ou da perda das riquezas).Paula Barata Dias34 35 34 35cultivo de uma imagem pblica irrepreensvel. Faz parte da natureza humana o empenharse mais aturadamente quando sabe que est a ser avaliada, ou que atravessa uma competio.Aausnciadeobstculospode,portanto, serelaprpriacausadoradodesleixo,daacomodao, da falta de brio.Comenteseque,nestaetapadodiscurso,todos ostermosapontamparaaausnciadetransformao docarcterntimo,daverdadeirapersonalidade,nessa espciedecoreografasocialankaimikronhologos sunepilambanetaiporpoucoqueoespritoesteja envolvido(87C).Pareceestarapenasemcausaa protecodaquiloaquechamaramosaimagem pblica,acondutaeobomnome(87fantagonisten biou kai doxes ton echtron onta o inimigo um obstculo vida e ao bom nome. A vergonha diante dos erros um fardo mais pesado de suportar diante dos inimigos do que diante dos amigos.Nesteconceito,Plutarcorecuperamuitoda culturadavergonhaedomritoprpriadatica homrica, ou seja, o valor de um agathos lhe conferido pelo reconhecimento devolvido pelos seus pares. Desta forma,seapessoadermostrasderespeitabilidade, sensatez, justia e disciplina, no s calar no inimigo a censura e a crtica ostensiva, como o deixar perturbado, pela impossibilidade de desferir um ataque.Masosargumentostornamseprogressivamente mais profundos.Nodelicadomomentodecensuraruminimigo, necessrioestarsesegurodequenosesofredos 34 35introDuo gerAl34 35malesqueseexpemnoinimigo(88D).Issoobriga aumexercciodeautoconhecimento,derefexoe, sobretudo, de esforo para eliminar as falhas de carcter encontradas. Exemplos histricos desse agir irrefectido, emrpidastiradaseivadasdaironiaprpriado anedotrio, que critica nos outros aquilo que mancha o carcter do prprio acusador, so por Plutarco includos noseudiscursocomoelementosdeilustrao.Mas pode cairse no oposto, que o de criticar no outro um defeitodistinto,masnomenosgrave,doqueaquele que em ns est patente (88 F89 A). E um novo ciclo de exemplos, risveis de facto, ilustra a falta de sensatez do que pensa que ataca um inimigo ao esgrimir contra ele, em pblico, falhas de carcter facilmente arremessveis, eintensifcadas,asiprprio.Plutarcoest,portanto, contraqualquerconfrontoempblico.Avozsonante noderrotauminimigo.Oqueodeitaporterraa nobreza de carcter (89 B).Nestecrescendodeetapassobrecomoenfrentar o inimigo, chega fnalmente a fase do confronto verbal: criticaruminimigoexige,dapartedequemcritica,a seguranaqueresultadoautoconhecimento.Ouvir crticasdosinimigostornaoindivduomaisalerta para os erros que escaparam autoanlise, pelo que os adversrios so to teis para a edifcao de um carcter slido como os amigos. Ouvida uma crtica, mesmo que parea infundada, no deve o indivduo ceder paixo de dar o troco com as acusaes que se tiver mo (88 D).Oresultadocomparvelaumalutanapoeirae nalama,daqualnohvencedores,apenaslutadores Paula Barata Dias36 37 36 37enlameados e o gudio da multido. Pelo contrrio, uma acusao falsa deve despertar no seu alvo o propsito de vigilnciaedepesquisasobreascausasdainformao errada.NovamentePlutarcocedeexemplosde personalidades histricas a quem uma falsa imputao de carcter prejudicou: Lcides, Rei dos Argivos, Pompeu, Crasso,PostmiaeTemstocles,todosinocentesdos boatoseacusaesquelhesforamlevantados,mas queerraramaonomodifcarocomportamentoque estevenaorigemdacredibilidadequefoiconcedida ataisacusaes.Destaforma,hqueprotegersedos defeitosdecarcter,mastambmdaquelestraosque, nosendodefeitos,podemprojectarnosoutrosuma iluso deformada da nossa conduta. Por isso no se deve desvalorizaroqueparecerincoerenteouexcessivoda boca dos inimigos, pois so estes que melhor pressentem e expem as nossas fragilidades, ao passo que os amigos efamiliares,atpelaconvivnciaquetmconnosco, apresentam, em comparao, uma viso subjectiva (90 B).Odestinatriodesteopsculodevevalorizar, sobretudo, o silncio (glottan enkrateia, he sige 90 BC), pois, nestas circunstncias, o confronto verbal veculo daspiorespaixes,entreelasaira.Aimpassibilidade (hesychia)diantedosinsultosedasacusaes,mesmo quandopartemdosquesoprximos(amigo,irmo, esposa,pai,me),constituiumbomexerccioparao fortalecimento de um carcter imperturbvel (athumon). Mas melhor que esta experincia de dessensibilizao e 36 37introDuo gerAl36 37do alcanar da tranquilidade (hesychia) ocorra junto de inimigos e de estranhos (90 E).Tambmnoprpriodeumaalmaelevada procurarvingarsedeuminimigo.Sergeneroso comumamigoconferealgummrito,maseste indubitavelmente ampliado quando este amigo atravessa difculdades,alturaemquesumamentevergonhoso no o apoiar. Agora a um inimigo, a suprema grandeza de alma est em, vendoo cado, no contribuir para as circunstncias da queda e, vendoo em bonana, no se eximir de elogilo. Deste modo, toda a censura que for feita posteriormente ao inimigo credvel, porque no motivadapelodioaohomem,nemtendenciosa, mas porque se lhe reprovam os actos (91 A). O hbito de louvar os inimigos tambm promove uma alma livre decimeedeinveja,paixesnegativasqueroubama impassibilidade (91 B).O fulcro da questo no deve ser posto no nosso adversrio e no seu destino, que nos devem ser alheios. O que est em causa o modelo ticomoral adoptado peloindivduo,edequemodoestepodeserafectado porumaprticasocialdefeituosa.quedeixarquese desenvolvampaixesnocivas(ira,inveja,dio,cime, malcia,engano,intriga)naalma,umavezinstaladas, tornase difcil no fazer do seu uso um hbito, mesmo contraosamigos.Oinimigo,porfornecercondies passionais extremas, fornece uma boa ocasio de treinar edeacostumarossentimentoseoscomportamentos correctosquedevemsertidoemrelaoaosamigos. Seformosbondososejustoscomosinimigos,alm Paula Barata Dias38 39 38 39deosdeixarmossemresposta,commaisfacilidade manifestaremosumaboandoleparacomfamiliarese amigos.Na impossibilidade de os eliminar por completo, aexistnciadeinimigospermitequesobreelessejam concentradosossentimentosnegativos,libertando aalmaeaboadisposioparaosverdadeiramente amigos(92B).Observarosucessodosinimigos, analisarobjectivamenteomodocomoalcanaram osseusobjectivos,sotambmboasfrmulaspara aprender com as suas virtudes e empenho, ao invs de se deixar consumir pelo rancor e por um (92 C D) juzo deformado sobre a verdade dos acontecimentos.Pelo contrrio, se o inimigo colheu o sucesso custa dedesonestidades(92D)taldevemanteroindivduo imperturbvel, e mesmo deixlo alegre, pela liberdade, pela reputao e conduta inatacveis de que goza.Termina Plutarco por salvaguardar, no confronto comosinimigos,aimportnciadavirtudeeda honestidadedecarcter,quesomaisvaliosasdoque todoosucessofugazjuntodospoderosos,ariqueza granjeadapormeiosduvidosos,aaclamaopblica eanotoriedadenascidasdeumcomportamento excessivo.Assim,semprequeosinimigosgiramna rodadafortunadasinconstantesrelaessociais,que cada um seja capaz de, objectivamente, colher o melhor ensinamento:protegendosedosfracassos,sermelhor doqueosadversrios,etomandooscomoexemplos para os sucessos, se possa ultrapasslos (92 EF).38 39introDuo gerAl38 392. Contextualizao scio-cultural da produo plutarqueana sobre a amizadeQuesto interessante a de percebermos se estes discursossobreaamizadepretendemdeliberadamente refectirasociedadecontemporneadePlutarco,ou secorrespondemdasuaparteaumexercciomais formalizadodeexpressodepontosdevistapessoais, tendocomopontodepartidaasuavastaerudio literria.Plutarcoumobservadoratentodarealidade socialdoseutempo,eportantoatribumosaestes tratados uma capacidade de ler o ambiente que envolve os participantes na comunicao literria destes discursos.A presena explcita de dois destinatrios directos AntocoFilopapo,patronodasartes,feitocnsul sufectoem109peloImperadorTrajano,descendente semtronodosreisdeComagenaaresidiremAtenas (AD)eCornlioPulcro,Procuradordaprovncia romanadaAcaia(IC)aquemPlutarcosedirige comaconselhamentosprticossobreagestodassuas amizades,indiciaumaligaopreliminarrealidade social que circunda estas personalidades.Jdenuncimos,naanliseprviaquefzemos dastrsobras,umcertocepticismonafocalizao plutarqueana.Nosetrata,paraoautor,dedefnir amizade,massimdeprdeguardaumdeterminado perfl humano quanto perigosidade das suas falsifcaes (AD,AM)edeoajudaraprepararumaalternativa proveitosa quando a amizade no est de todo presente (IC). Haver, portanto, um certo realismo na abordagem Paula Barata Dias40 41 40 41destamatriatodelicadacomoadaqualidadedas relaes interpessoais.AcresceofactodePlutarcolidarcomasfontes literriasquecitadeummodoamplamentecrticoe selectivo: no lhe serve o retrato que a comdia emprestou ao perfl do adulador, que mal se distingue do parasita8. AmiudamentediscordadeEurpides(AD,109E;71 A; AM, 95 E), e, pelo menos uma vez, critica Grgias (AD 64 C) e do que lhe parecem ser os pontos de vista ingnuosesuperfciaisproporcionadospelasofstica. Na verdade, Plutarco colocase em contracorrente em relao ao relativismo tico, sustentado pelo domnio da retrica como receita para o sucesso individual.Enquanto cultor do Platonismo Mdio, nenhum flsofolhemerecetantoapreocomoPlatoea suapersonagemmaiorqueScrates,eXenofonte. Aristteles,easuateorizaoacercadaamizadefeita naticaaNicmaco(1156A1156B)estosempre presentesenquantofrmulabsicaapartirdaqualse defnemastipologiasdenoamizade(e.g.AD51B; AM94B),mas,curiosamente,oEstagiritassurge explicitamente referenciado uma vez (AD 53 D), e num contexto que no o liga fenomenologia da amizade.Plutarcoparecetambmadmirarossbiose flsofosqueadoptaram,naconduodasuavida, atitudes correctas, quer quanto a si prprios, quer no seu relacionamento com os outros, e citaos como exemplos, quer pelos seus actos quer pelas suas palavras: Antstenes, Digenes, Bon de Boristena, Crates, Cleantes, Fcion, 8 Ver Infra, p. 6.40 41introDuo gerAl40 41DemtriodeFalron(oudeAlexandria)Zeno, Carnades9.H,contudo,quereconhecer,narealidade explicitamentecomentadaecontextualizada,um desfasamento de tempo e de espao entre as referncias literrias, flosfcas e polticas usadas por Plutarco, e o imprioromanodosc.IIquelhecontemporneo. Estas escolhas remetemnos para o mundo grego de h cinco sculos, distncia que aumenta quando pensamos nocasoespecfcodasrefernciasliterrias,(Homero autormaiscitado,seguido,acurtadistncia,pelos tragedigrafos) tal como pertencem tambm ao mundo helenstico psAlexandrino a maioria dos exemplos de teor poltico: para alm da fgura nuclear de Alexandre, a gerao dos didocos e dos strapas que fornecem o ambiente das suas cortes e dos seus palcios como matria paraosexemplosreferidosporPlutarco,prncipes, tiranos e reis das cidades helensticas psalexandrinas. Secundariamente mencionamse os romanos do perodo dofnaldaRepblica:Cato,Csar,Pompeu,Ccero, Antnio. O mais tardio dos romanos a ser mencionado Nero, em circunstncias pouco nobilitantes.Como entender este desfasamento, num contexto emquePlutarco,ignorandoopresente,procurava fundar valores morais para o quotidiano numa histria remota? No nosso entender, o distanciamento temporal 9Cynicism,NewPaulysEncyclopaediaoftheAncient World, (Brills,10521060),p.1053,alistadosrepresentantesdo movimentocnico,SegundoDigenesLarcio.Telegacyof SocratesinW.K.C.Guthrie,AHistoryofGreekphilosophy,III (Cambridge, 1969, pp. 485499).Paula Barata Dias42 43 42 43cumpreumobjectivo,isto,exerceumafuno,na economia do discurso plutarqueano.Emprimeirolugar,Plutarcomanipulaas informaesqueforamjalvodesedimentao,e quepertencemaumpatrimniocomumdomundo antigo grecoromano, de matriz cultural essencialmente helenstica,para,dealgummodo,seconcentrarno conhecimentoenainterpretaoquepodemser decantadosdessainformao.Faz,destemodo,justia aoprofundosentimentodeunidadeculturalrealizado pelasntesegrecoromanadafasemaisluminosado imprio. Acrescentemos a ndole de Plutarco, que prima pela discrio, no evitar de menes directas a situaes concretas do seu tempo. Essa ligao, a ser feita, teria de ser estabelecida pelo leitor.Masparecenosevidentequenestestratados perpassa,nasescolhasfeitas,umainterpretao dahistriapolticadopovoaquepertence,como afrmouRicardoMartnezLacy10.Aquasetotalidade dosexemplospolticosintegradosnestestratados pertenceaomunuspresentetambmnasVidas, havendo,portanto,umaorientaoideolgica:os reinoshelensticosconstituramumadegenerao 10R.Martnezlacy,LapocaHelensticaenPlutarco,Italo GalloeBarbaraScardiglieds.(Npoles,1996),pp.221225,p. 223 cit:Plutarco contribuy decivamente a la conformacin de una visin armniosa de la historia de la antigedad clsica segn la qual Roma no conquist y anex Grecia, sino que, mediante su virtud, cre un marco propicio para el desarrollo de la civilizacin, consideratagriegaporantonomasia.Enestavisin,losreinos helensticos aparecen como degeneraciones de los reinados gloriosos de Filipo y Alexandro, opresores de los griegos42 43introDuo gerAl42 43orientalizada(MartnezLacy,op.cit.,p.224)no plano moral, cultural e poltico.Ostratadossobreaamizadeapresentam explicitamenteumdestinatrio:ohomemcom responsabilidadesdeEstado(CornlioPulcro,IC)ou aqueleque,noastendo,tidocomoumafgurade referncia na cidade que o acolhe (Antoco Filopapo, AM). So estes os alvos preferenciais dos efeitos perniciosos das deformaesaqueaamizadeestsujeitaePlutarco nocessadeapresentarexemplosdecomooexerccio poltico, o discernimento, a justia e a liberdade de aco foram, no passado, afectados por esses males.A mensagem contm, no nosso entender, bvios contornos polticos: entre as elites urbanas das cidades provinciais do Imprio Romano no Oriente, com uma administrao e um governo de modelos descentralizados, prprios de territrios pacifcados, eram em grande parte mantidososrituais,oscomportamentos,osmodosde vida da poca Helenstica, o que valida, para o presente, os juzos feitos sobre um passado em muito semelhante ao presente.possvel,poroutrolado,rastrearpontosdo discursoemquenospareceserclaroojuzosubtilde Plutarco sobre um presente que lhe no merece admirao, comofomosassinalandonaanliseintrodutriaaos tratados e nas notas traduo (e. g. AD, 56 C, quanto falsifcao do sentido das palavras, citando Tucdides; IC 92 E, quando refere o valor relativo das aclamaes noteatro,dosbanquetes,deacompanharoseunucos, concubinas ou strapas que servem os reis).Paula Barata Dias44 45 44 45Plutarco est consciente que escreve para uma elite que exerce o poder, real ou simblico. Por isso, informa que o adulador no afecta o pobre, ou o annimo, mas pode tornarse um risco para as grandes casas e grandes negcios, alm de subverter reinos e principados (AD 48 C); e concede que um grande nmero de conhecidos no implica que se benefcie de uma amizade de qualidade: tratamse,portanto,deorientaesdadasaquem ocupaocentrodeumamoldurahumanacomplexa, marcadaporrelaesdedesigualdadeedehierarquia. Podesobreviraadversidadedeuminimigo,sempre uma provao para um homem que tem uma imagem pblicaadefender.Comoorientarseentresinais enganadoresecontraditrios,numambienteinstvel emquesejogavanosareputao,mastambmos afectos e a prpria vida? Plutarco prope que a soluo para distinguir os amigos passa por um exerccio prvio derefexo,autoconhecimento,eperfeitaconscincia dospropsitosassumidos,navidapblicaenavida privada.3. A orientao flosfca de PlutarcoPlutarcolidou,enquantoautor,comasfontes flosfcasmaisdiversas,epodemosclassifclocomo um autor ecltico no domnio das suas leituras flosfcas, factoaquenoseralheiaamultiplicidadedetemas porsiabordados,desdeaosestritamentefsicos,aos metafsicos, sociolgicos, pedaggicos e artsticos.Nestes opsculos, bem como em outros agrupados nosMoralia,Plutarcodcontadointeresseem 44 45introDuo gerAl44 45acompanhar o homem na sua integrao social. Embora o ponto de vista do autor parta dos escolhos que podem atrapalharoucomprometeraamizade,tomemosem considerao que esta no aparece como um fm em si mesmo, mas como um veculo para tornar o indivduo melhor e mais feliz, expurgado a perturbao e agitao motivadas pelas falsifcaes da amizade11. Plutarco faz, assim,umconviteaohomempblicoaqueadopte parasiumadisciplinaeummtododeavaliao,de si prprio e dos outros, que o torne mais sbio, e mais capaz de conduzir uma vida sem tribulaes.Oconhecimentodaverdadequanto realidadeenvolventeequantoaocarcterdosque nosrodeiam,isto,ojuzosobreaverdadeesuas iluses,umaquestoflosfcaqueperpassaos textos aqui trazidos, e parecenos claro, neste ponto, reconhecerainfunciadaflosofaticadematriz socrtica,aqueseassociam,emPlutarco,asfortes crticasaorelativismo,aodesvioesilusesquanto essncia da amizade12, que um conceito absoluto. H, como claro na expressa admirao pela flosofa desenvolvidapelosdiscpulosdeScrates(Plato, Xenofonte,Aristteles),umaforteaproximao origemsocrtica,concretamentepelorecursoaos fundamentos conceptuais nela sustentados pela tica 11 E. L. Shields Plutarch and the Tranquillity of Mind CW, 42, 15 (1949), pp. 229234, p. 232.12SusanPrinceSocrates,Antisthenes,andtheCynics,S. AhbelRappeandR.Kamtekareds.ACompaniontoSocrates (Blackwell, 2006) pp. 75. No h, portanto, em Plutarco, nenhuma simpatia pelo relativismo sofsta.Paula Barata Dias46 47 46 47aristotlica,verdadeirosesteiosemtornodoqual Plutarco constri a sua argumentao.Noentanto,afnalidadedasuaescrita eminentementepragmticaedirigidaaoindivduo. Visaagirsobreaconduta(hediaita)dosindivduos enquanto parte de um todo social, com a fnalidade de lhe proporcionar a felicidade que decorre de um carcter treinadonavirtude,conscientedasuanatureza,em qualidades e defeitos, e capaz de exercer um discernimento claro quanto a situaes ou indivduos terceiros. Embora Plutarco refra o bem comum e a interveno benfca dohomemvirtuosonasociedadequeorodeia13,e particularmentenosamigosenasrelaessociaisque oenvolvem,pensamosqueestesbens,objectivamente considerados,soexternalidadesqueresultamdeum prvioaperfeioamentodoindivduo.Estetornase tilparaogrupoporquereuniuascaractersticasque o tornam um sbio, capaz de examinar (exetazein) a sua vida, de discernir e de avaliar o que o envolve e quem oenvolve,degarantirafelicidadequeresultadeum processo de conhecimento14.13 W.K.Guthrie, op. cit.,vol.III,p. 487.Dizoautorqueo legadodeScrates,expostonavariedadedecorrentesflosfcas nele inspirados, pretendem responder a uma questo que o Filsofo deixou sem resposta: o bem (to agathon), para qu? cit. in one way, then, the aim of Socrates immediate followers and their scools was to give content to te good which he had set them to seek, but himself left undetermined14 Richard Kraut, Te Examined Life, (ibid. ) 228241. Plato, Apologia de Scrates, 38a56, vide o signifcado do termo exetazein testar,experimentarparaaticasocrtica.Destaquemosa importnciaqueostermosquetmavercomasemnticado examinarapresentamnodiscursoplutarqueano(verndicede 46 47introDuo gerAl46 47 neste aspecto que nos parece detectar a presena deumaoutralinhaflosfcadescendentedeScrates. Defacto,aticaaristotlicaanunciaque,aindaqueo bemsejaomesmoparaoindivduoeparaacidade, o bem colectivo sempre maior, mais completo, mais perfeito, mais abenoado15. Em Plutarco, este binmio aparece, tal como o descrevemos, mas com a ordem de factores invertidos.OCinismonopode,nodizerdosentendidos, classifcarse como uma escola flosfca, na medida em queosseuscultoresforamavessosformaodeum corpodoutrinriosistemtico,peloqueamaiorparte dainformaosobreosCnicosvemdetestemunhos terceiros.Masosseusprotagonistasforamfgurasto controversascomopopulares,emparticularemduas alturasdistintasdahistriadomundoantigo:osdois sculosiniciaisdapocaHelenstica(IVIIIa.C.,o CinismoAntigo);eoperodoimperialromano(IV d.C., o Cinismo Imperial)16.AlgumasdaspersonalidadesdoCinismoAntigo estoreferidasnestestratadosdePlutarco,emregra elogiados pelo bom exemplo de conduta. Para os Cnicos, a virtude e o bem estavam para alm da conceptualizao, peloquesasuaprticapodiatornarsepedaggica. Teramosaquiloaquesepodechamarumaflosofa palavraschave). 15Rhet.1356a2627W.K.Guthrie,op.cit.volVI,p.331; p.336citethicaltrainingistheindispensablefoundationfor political life, or rather perhaps for citizenship..16 Cynicism, New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills,) p. 1054.Paula Barata Dias48 49 48 49desituao17.Obemrealizaseconcretamente,a virtudemanifestaseporactosemcontexto. Talcomo nos Cnicos, Plutarco tambm descura uma teorizao prpria,preferindoumdiscursoexemplstico,que mostraeilustraoseuentendimentodosconceitos discutidos, atravs de uma evoluo casustica.Temos, depois, a resposta questo socrtica, que, segundo Guthrie, fcou por responder pela flosofa dos scs. V e IV. Para que serve o bem? Plutarco adopta, em resposta, uma focalizao profundamente individualista econcreta:oindivduobomefelizpodederramar sobre a comunidade os benefcios que resultam do seu aperfeioamentoindividual,masestequedevesero objectivo de qualquer treino de carcter.OutrostraosnosapontamoCinismocomo infuncia flosfca implcita dominante nestes tratados: no se fala de deuses, de religio, ou de qualquer conexo entreadivindadeeumamoralidade18.Ocepticismo pontilhadodeironia,emesmodehumor,adoptado comopontodepartidaparaaargumentao,assim comoafrmularetricaquepresideenunciaodas premissasemcadatratado,fundadanaexploraoda surpresa pelo estranhamento e pela adopo da posio 17LouisUcciani,IronieetDrision,DelIronieSocratiqueala Drision Cynique, (Besanon, 1993), p. 144; p. 175 18P. B. Branham, M.O. Goulet Caz, Te Cynics, the Cynic movementinAntiquityandItslegacy,(California,1996)p.73 cit.wediscoverthatthegodsareinsignifcantinCynicism andthatinDiogenesphilosophythereisnoplaceforreligious preoccupations. In the eyes of Diogenes, religion serves no purpose, and is even un obstacle to the cynic aim of detachment.48 49introDuo gerAl48 49minoritria; uma certa tendncia para, em determinadas fases do discurso, optar por uma linguagem sentenciosa eproverbial,deelocuobreve,surgem,nonosso entender,comoumforteindciodainspiraoCnica sobrePlutarco,mesmodopontodevistaformal19. Acresceaconstantecomparaoentrearealidade humana e paralelos recolhidos do mundo natural, estas trazidascolaocomoformadeimporanatureza comosenhoradafortuna,humanaecsmica,asduas condicionadas por leis e regras universais impossveis de ser modifcadas pela vontade ou pela razo humana, quer sejamounoconhecidaspeloshomens.Ocepticismo de Plutarco aparecenos comofundadona conscincia dos limites da interveno do sujeito na modifcao das circunstnciasedarealidadequeoenvolve.Huma atitudefatalista,porexemplo,noaceitardosinimigos como uma realidade absoluta e no reconhecimento da inevitabilidade das falsifcaes da amizade.Finalmente,encontramospresenteemPlutarco algumas ideiasfora comuns moral cnica, que teriam integrado, no Cinismo Imperial, uma espcie de smula deflosofapopular,sobretudoapartirdosDiscursos deDigenesLarcio20:aconscinciadafragilidade humana,sultrapassvelporumarigorosadisciplina; opropsitodefelicidade,fundadonoexpurgardas 19 Louis Ucciani, op. cit. Rire, ironie, drision. lments pour une critique par les formes exclues, pp. 257270.20M.O.GouletCaz,LascseCynique,UnCommentairede DiogneLarce VI70-71,(Paris,1986)(Cynicism,NewPaulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills), p. 1059.Paula Barata Dias50 51 50 51emoesdolorosaseinteis,comosoaira,ainveja eocime,oorgulho,atristeza,oressentimento;o alcanardatranquilidadeedosilnciofaceaorudo impostopelasobrigaessociais;aexignciadeum treino, de um mtodo para, primeiramente, ser capaz de seexaminarasimesmo,e,secundariamente,discernir sobre a qualidade dos relacionamentos a que se prope.Noser,pois,diantedasideiaschave mencionadas,difcildepreverodestinodestes opsculosdeflosofaprticadedicadosamizade. NamesmaalturaemquePlutarcocompunhaasua obra,umanovareligiofaziaasuaentradanomeio intelectualeurbanodoHelenismo,adoptandouma linguagemfavorecedoradoproselitismo,deixandose, nestacaminhada,interpretareenriquecerluzdas correntes flosfcas dominantes.Determinados aspectos da flosofa Cnica, como uma atitude crtica face sociedade, o desprendimento emrelaoaosvaloresmateriais,arenncias convenesimpostaspelasociedadedominante,a busca da impassibilidade pela aniquilao das emoes (nanovareligioconsideradasvcios)atravsdeuma ascese,iroencontrarsecomumacorrenteespecfca do cristianismo, com propsitos renovadores, como foi o monaquismo. Vamos encontrar, particularmente nos Padres Gregos, um amplo acolhimento ao pensamento de Plutarco, mas ser dentro do movimento monstico quealgunsMoraliareceberoumacolhimento verdadeiramentehonorvel,sendotraduzidospara Siraco,aoserviodeumacomunidadedemonges. 50 51introDuo gerAl50 51Um manuscrito procedente do Monte Sinai, do sc. VI, contm,juntamentecomaApologiadeAristides,trs tratadosmoraisatribudosaPlutarco:ODeCapienda Ex Inimicis Utilitate, o De Cohibenda Ira (Peri aorgesias), e o falsamente atribudo a Plutarco De Exercitatione (Peri Askeseos).Paraestesmonges,osconselhosdePlutarco iam ao encontro do treino necessrio para o alcanar das metas espirituais a que se propunham21.4. Porqu a Amizade? A importncia do tema no Mundo Antigo e em PlutarcoParecersurpreendenteorelevoqueomundo antigoconcedeuanlisedestaformaespecfcade relacionamentohumano,semparalelonomundo contemporneo.Defacto,naphiliaounaamicitia, traduzidas nas lnguas contemporneas pelo equivalente amizadefacilmenteseverifcaodesviodeconceitos edeaplicaoreferencialentreomundoantigoe amentalidadedohomemcontemporneo.Hoje, aamizadeocupaaesferarestritadavidaprivada,e concorre com outras formas de relacionamento humano queselhesobrepem,pelomenosnassociedades ocidentais, com pontuais momentos geracionais em que o grupo de amigos se reveste de singular importncia: aconjugalidade,afliao,afamlianucleare alargada, as relaes de trabalho constituem formas de relacionamentoquedefnem,pelomenosemteoria, 21EberhardNestle,ATractofPlutarchontheAdvantadgeto be derived from ones enemies (De capienda ex inimicis utilitate) Te Syriac Version, (Cambridge, 1894).Paula Barata Dias52 53 52 53campossemnticosefuncionalidadesdistintosda amizade (embora haja, obviamente, pontos de contacto, que no entanto no comprometem as diferenas).No mundo grecoromano, nenhuma das formas de relacionamento atrs mencionadas tinha a importncia, oupodiapreencheracomplexidadefuncionalcontida dentrodorelacionamentodaphilia,odaamicitia.Os conceitos estavam particularmente ligados vida pblica dohomemantigo,cobrindoumlequederelaes externamenteassumidas,marcadaspelocompromisso deassistnciaedereconhecimentodovalordooutro. Aamizadeassimumvalorquedeliberadamentese concede,marcadopelaconstncia,pelaafnidadede interesses,pelapartilhadeactividadesedeobjectivos. Tratandoseessencialmentedeumactodeescolha,de vontadeportanto,nohlugarparaaespontaneidade ouparaorelevoconcedidoadesoafectiva,quens hoje tanto valorizamos22:22 Jonathan Powel, Fiendship and its problems in Greek and RomanTough,(D.Innes,Ch.Pellingeds,EthicsandRhetoric, Classical Essays, Oxford, 1995, p. 33, refecte sobre a importncia dotemadaamizadenaproduoflosfcaeticaantiga,em contrapontocomaescassezdotratamentodotemanomundo contemporneo. Te importance of amicitia in ancient public life itthusheldtoberefectedintheprominencegiventoitinthe ethical writings of the philosophers; and since our own public life is supposed not to be based on amicitia; and in any case what we mean byfriendshipissomethingdiferent,therelativeunimportance ofthistopicinmodernethicalwritingbecomesapparentlyless surprising.TambmSimonGoldhill,1986,p.82,apudDavid Konstan p. 2) Te appellation or categorization philos is used to mark not just afection but a series of complex obligations, duties and claims.52 53introDuo gerAl52 53Amicitiaisnot,atroot,asubjectivebondofafectionand emotional warmth, but the entirely objective bond of reciprocal obligation; ones philos is the man one is obliged to help, and onwhomoncan(oroughtobeableto)relyforhelpwen oneself is in need23 (Malcom Heath, 1987: 7374, in David Konstan, p. 2)Nosnossosdias,noerraremossepensarmos que, para a maioria, a amizade motivada pelo afecto, peloladoemocionaldaspessoas,umsentimento semdvidacultivado,masmaisabrangentenassuas manifestaes, menos codifcado, e integrado na esfera privada das relaes interpessoais, do mesmo modo que ser acertado dizermos que no fundamos a nossa vida pblica ou profssional em relaes de amizade.Poroutraspalavras,admitimosqueestavida pblica pode e deve desenvolverse dentro dos princpios dacordialidade,dalealdadeedaconfanarecprocas, masreservamosotermoamizadeparaasesferas maisntimasdasrelaeshumanas,remetidasparao confortodohomemenquantoentidadeprivada.No mundo antigo, no havia lugar para a realidade muito comumnosnossosdias,sobretudoemdeterminadas geraes, que a do amigo secreto. A amizade existia namedidaemquepodiaservista,comprovadapor gestos recprocos de ddiva, de entreajuda, de socorro, edetinhaumaimportnciaquesuperava,masno exclua, o conforto e estabilidade psicolgica individual. Ainda que os termos fossem empregues em contexto em 23 Malcom Heath, 1987: 7374, apud David Konstan, Friendship in the Classical World, (Cambridge, 1997) p. 2Paula Barata Dias54 55 54 55que sobressai a afectividade, pensamos que no ser esse o ponto de vista que teria motivado a teorizao antiga sobreaphilia24.Alis,oprprioAristtelesque,ao defnir os fundamentos da amizade, menciona o prazer na mtua companhia como algo agradvel trazido pela amizade25.A importncia da amizade para o homem antigo pode ser aferida pela abundante produo terica alusiva ao tema, sem comparao com o que ocorre no mundo contemporneo:almdeseralvodeamplodestaque como tema na literatura grega de fco, Plato, com o dilogo Lysis; Aristteles, com a tica a Nicmaco e com a tica a Eutidemo; Ccero, com o seu tratado A Amizade. Depois,hainformaodeumasriedetratados desaparecidos, atribudos a Smias de Tebas, Espeusipo, Xencrates,Teofrasto,Clearco,CleanteseCrsipo. TambmEpictetoescreveuumdiscursosubordinado aotema.Epicurodeixoufragmentosqueserevelam pertinentes para o estudo do conceito de amizade para aflosofaepicurista26.Encontraremosaindacartasde Snecadedicadasamizade.Tambmcontriburam para a discusso deste tema Valrio Mximo, Luciano. 24 David Konstan Greek Friendship, AJPH 117, 1, 1996, pp. 7194fezumestudocomparadodoscontextosdeutilizaodos termosphilosephilia,atestandooseuempregonocontextodas relaes familiares, com valor afectivo. Tratase, portanto de termos polissmicos.25JohnM.Cooper,Aristotelesonfriendship,Essayson Aristoteles Ethics, A. Oksenberg Rorty ed. (UCP, Berkeley, 1980), p. 306.26J. Hilton Turner, Epicurus and Friendship CJ, 42, 6, 1947, pp. 351355.54 55introDuo gerAl54 55Na Antiguidade Tardia pag, juntemos os trabalhos de Mximo de Tiro, Temstio e Libnio. Entre os autores cristos,distinguiramseGregrioNissaeBasliode Nazianzo;AmbrsiodeMiloePaulinodeNola,da parte dos autores latinos27.Nonoscabefazerumaanlisedaevoluo doconceitodeamizade,ousequerapresentaruma panormicaquedescrevaotratamentodotemapelos autoressupracitados.Concentremonos,noentanto, nos aspectos que esto implicados em Plutarco. Plutarcofundamentaseemcategoriastericas sobreaamizadequeforamtraadasporPlato, Aristteles, Xenofonte, no ocaso da cidade clssica.Nessamedida,areciprocidadeeaidentifcao depropsitos,deafectosedeinteressesfaziamparte do cnone do relacionamento entre philoi, ou, latina, entresocii,indivduosinseridosnumacidadeestado, irmanados pela partilha semelhante de papis sociais e deactividadepoltica.Nestecontexto,aliberdadede expresso, ou a parresia, emerge, no contexto da cidade clssica, democrtica, como um direito e uma qualidade prpria do homem livre, juridicamente regulamentada, mas no condicionada ao lao da amizade28.Noentanto,omundoderefernciadePlutarco apocaHelenstica,perodoemqueascondies paraaexpressopolticadoscidadosserestringiram. 27 Jonathan Powell, op. cit. p. 32, o elenco de autores dedicados aotema. TambmapublicaodeDavidKonstan,Friendshipin the classical world, faz uma apresentao exaustiva dos autores e das obras que focaram a amizade e suas deformaes.28 David Konstan, op. cit. p. 92.Paula Barata Dias56 57 56 57Opodercentralizado,nasmosdereisedetiranos, subvertem,nombitodavidapblica,ascondies paraamanifestaodaamizadecomorelacionamento entreiguais.Noperodoromano,foramemgrande partemantidasascaractersticasdegovernaonas cidadespacifcadasdoOrientehelenstico,sendoo poderexercidoporprocuradoresdelegadosdeRoma, ou por reis aliados ou vassalos do imprio. No cepticismo de Plutarco quanto possibilidade de haver boas amizades, no seu cuidado em escrutinar acasusticadassuasmanifestaes,nomodocomo eleacentuaosaspectosdisformesougeradoresde instabilidadenasrelaesinterpessoais,parecenos possvelentreveraconscinciadanecessidadeem adequarumateoria,previamenteformuladaparaa cidade clssica, a um novo mundo, em que as relaes dedesigualdadeedehierarquizaodominam,eem que a maioria destas no ocorre entre pares, e sim entre umgrupoeumindivduoprivilegiado,portadordo poder, real ou simblico. Neste sentido, impese uma disciplina parresia, que passa a ser uma virtude privada, que para salvaguarda do que dela faz uso, se transforma numexerccioestudado,adequadoscircunstncias, deadvertnciaaooutro,quesetempormissoservir e agradar. A prpria adulao (kolakeia), ou a multido deamigos(polyphilia)nacortedeumpoderoso,se tornamcaractersticasestamoldurahumana,pautada peladesigualdadeeporumaprogressivainstabilidade no seu estatuto29.29Id.,pp.93105.p.101,cit.Whileadulationwasnot 56 57introDuo gerAl56 57Plutarco,membrodaselites,colocaseaolado dosque,numambienteconfusoeruidoso,tmde escolher bem os seus relacionamentos, sem tropear em enganos. Estes, alm de no contriburem para a virtude individual,podemdestruiraobrapblicadosquese enleiamemrelacionamentosdefeituosos,levando,por arrasto,aperdioacidadeseaEstados.Umhomem com responsabilidades pblicas tem a obrigao de lutar contraosdefeitosdecarcter,ouvciosprivados,pois afectamoseudiscernimentoparaoexercciodavida pblica. Plutarco tornase assim um autor em que podemos com mais facilidade colher argumentos para a defnio doconceitodeamizadenomundoantigocomouma interaco humana racionalizada, socialmente codifcada e politicamente motivada.5. Sobre a traduoFoi utilizada para a traduo o texto grego da edio teubneriana de 1974, da responsabilidade de W. R. Paton eI.Wegehaut.Cadaumdosopsculosestprecedido por uma introduo que o apresenta, o contextualiza na vastaproduoplutarqueana,eoanalisasumariamente enquanto texto literrio. Quanto s anotaes traduo, elas procuram restringirse identifcao de passos comuns narestanteobraplutarqueana,aoassinalardasfontes unknownindemocraticAthens,itwasnotnormallyarticulated asanimitationoffriendship.Flatteryimplicitlyacknowledges thesuperiorstationofanother,and()theegalitarianideology ofthedemocracydiscouragedtherepresentationofrelationsof dependency among free citizens.Paula Barata Dias58 59 58 59literriasutilizadasporPlutarco,ouaesclarecimentose comentrios que entendemos como enriquecedores para oacessoobra.Semprequenosreferimossobrasde Plutarco,optmosporutilizarottulolatinoporque estas se fazem conhecer internacionalmente, excepto nos casos em que j est disponvel a traduo em portugus, sendo esta a obra indicada.6 Bibliografa:Edies de PlutarcoW. R. Paton , I Wegehaupt, M. Pohlenz eds., Plutarchus MoraliaI(Teubner,Leipzig,1974),s.v.De Adulatore et Amico, p. 97; De Capienda ex Inimicis Vtilitate,p.172,DeAmicorumMultitudine,p. 197.R. Klaerr, A. Philipon, J. Sirinelli (ed. e trad.), Plutarque, Oeuvres Morales, t. I, 2 (Paris, Les Belles Lettres, 1989).F.C.Babbitt(ed.etrad.),PlutarchsMoralia,t.I QuomodoAdulatorabAmicoInternoscatur, pp.264395,(Loeb,Harvard,1969),t.II, DeCapiendaexinimicisVtilitatepp.441;De Amicorum Multitudine pp. 4669.Outros autores e bibliografa geralCcero,AAmizade,SebastioTavaresdePinhotrad., (CentrodeEstudosClssicoseHumansticos, 1993).58 59introDuo gerAl58 59Ccero,DeAmicitia,M.SeyfertC.F.Mllered.E trad., Hildesheim, 1965.Kock,T.,ComicorumAtticorumFragmenta.3vols (Leipzig, 1870, repr. 1976).Nauck,A.,TragicorumGraecorumFragmenta(Leipzig, 1924).T. Bergk, Poetae Lyrici Graeci, 3 vols (Leipzig, Teubner, 19141923).Teofrasto, Caracteres, J. Rusten, I. C. Cunningham, A. D. Knox ed. E trad. (Harvard University Press, 2 ed. 1993).Teofrasto,OsCarateres,MariadeFtimaSilvatrad., (Relgio dgua, 1999).Homero, Ilada, F. Loureno trad., (Cotovia, 2005).Homero,Odisseia,F.Lourenotrad.,Cotovia, 2003).Aristteles,ticaaNicmaco,A.C.Caeirotrad. (Quetzal, 2007).DavidKonstan,FriendshipintheClassicalWorld, (Cambridge, 1997).D.Babut,PlutarqueetleStocisme(Lyon,P.U.F., 1969).E. L. Shields Plutarch and Tranquillity of MindTe Classical Weekly, 42, 15 (1949), pp. 229234.Paula Barata Dias60 61 60 61Eberhard Nestle, A Tract of Plutarch on the Advantadge tobederivedfromonesenemies(Decapiendaex inimicisutilitate)TeSyriacVersion,(Studia Sinaitica III, Cambridge, 1894).J. T. Fitzgerald Ed. Friendship, Flattery and Frankness of Speech. Studies on Friendship in the New Testament World.(SupplementstoNovumTestamentum, 82). Leiden, Brill, 1996.John M. Cooper, Aristoteles on friendship,Essays on AristotelesEthics,A.OksenbergRortyed.(UCP, Berkeley, 1980) pp. 301340.Jonathan Powel, Fiendship and its problems in Greek and Roman Tough, D. Innes, Ch. Pelling eds, EthicsandRhetoric,ClassicalEssaysforDonald RusselonhisSeventyffthBirthday,(Oxford, 1995), pp. 2945.New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills, 10521060), s.v. Cynicism.P.B.Branham,M.O.GouletCaz,TeCynics,the CynicmovementinAntiquityandItslegacy, (California, 1996).P.BarataDias,Plutarcoeosautorescristosda AntiguidadetardoMedievallimitese possibilidadesdeumarecepo,OsFragmentos dePlutarcoeaRecepodasuaObra,(Coimbra, 2003) pp. 15717760 61introDuo gerAl60 61R. Martnez Lacy, La poca Helenstica en Plutarco, Teoria e prassi Politica Nelle Opere di Plutarco, Atti del V Convegno Plutarcheo, 79 Jiugno 1993, Italo GalloeBarbaraScardiglieds.(Npoles,1996), pp. 221225. RichardKraut,TeExaminedLife,S.AhbelRappe andR.Kamtekareds.ACompaniontoSocrates (Blackwell, 2006) pp. 228241.RichardSorabji,EmotionandPeaceofMind,From StoicAgitationtoChristian Temptation,(Oxford, 2000).Susan Prince Socrates, Antisthenes, and the Cynics, S. AhbelRappe and R. Kamtekar eds. A Companion to Socrates (Blackwell, 2006) pp. 7591.W.K.C.Guthrie,AHistoryofGreekphilosophy,vol. III(Cambridge,1969),pp.485499),s.v.Te legacy of Socrates.W. K. C. Guthrie, A History of Greek philosophy, vol. VI (Cambridge, 1969), pp. 331391 s. v. Aristotle, an encounter, Te Philosophy of Human Life.62 63 62 63Como Distinguir um ADulADorDe um Amigo64 65PAlAvrAs introDutriAs64 65PALAVRAS INTRODUTRIASOtratadoComoDistinguirumAduladordeum Amigo, integrado no corpus de Planudes com o nmero sete, e no Catlogo de Lmprias com o nmero oitenta enove,foiporPlutarcodedicadoaJlioAntoco Filopapo, o descendente dos reis de Comagena, que se estabelecera em Atenas depois que Vespasiano destituiu a sua famlia do poder, em 72 d. C. Tal como Plutarco oapresentaemQuaestionesConuiualesI,10(Obras Morais, No Banquete, I, 10, 628 A), ele era rico, popular (tinhadesempenhadonesseanoocargodecoregode todasastribos),efaziapartedaelitecultivadaque privava socialmente com Plutarco.Apartirdabiografadodestinatrio,pode concluirsequeotratadotersidocompostoentre90 e 116 d. C.. Tratase, pois, de uma obra de maturidade dentrodaextensaproduodePlutarco.Tambm asrefernciasfrequentesspersonalidadeshistricas retratadasnassuasVidas(Alexandre,Alcibades, Paula Barata Dias66 67 66 67Antnio, Fcion) podem indiciar que esta obra, como se verifca para a generalidade dos Moralia, foi composta aps as biografas respectivas.Estetratadoformalmenteumadiatribe, pertencendoaogrupodasobrasflosfcasdecariz ticodidctico.Aocontrriodosoutrostratados dedicados amizade, este foi composto primordialmente para ser lido, isto , no resultou de uma resenha posterior feita a uma conferncia, como o caso do tratado Acerca doNmeroExcessivodeAmigos.Issomesmopodemos depreenderpelasfrequentesnotasmetatextuais, indicadorasdopulsardodiscurso,pelaschamadas eremissesinternasaoutraspartesdotratado,oque constitui, no nosso entender, a prova de um deliberado planifcar da exposio deste que o mais longo e o mais complexo dos textos que Plutarco dedicou ao tema da amizade em geral (como podemos ver no incio do cap. 6; fnal do cap. 8, incio do cap. 10; incio do cap. 17; fm do cap. 20 e incio do 21; incio do cap. 25; fnal de cap. 25, fnal de 27; incio do cap. 30).Aobradivideseemquatroparteslgicas, compostaspelosdoisassuntosdominantesquea fguramequeseinterrelacionamatravsdeumcorpo central mediador:Docap.1aocap.25,oautordedicasea analisarassemelhanaseasdiferenasentreoamigo eumadulador.Nestaparte,surgembemdestacados os caps. 14, a introduo em que se procura justifcar apertinnciadotema,ouseja,danecessidadeem distinguirestasduascategorias,adeamigoeade 66 67PAlAvrAs introDutriAs66 67adulador, de superfcie to similar. O cap. 5 programa as motivaes da obra: visto que o adulador reproduz e mimetiza os ganhos da amizade, isto , o prazer, o bem e a utilidade, (cf. Acerca do Nmero Excessivo de Amigos 93 B) chegando ao ponto de utilizar, como estratgia, a prpria franqueza de linguagem para fngir que amigo, tal como um animal dotado de mimetismo, propsito doautordesmascarlo,exporassuasmilartimanhas, deixloexpostotalcomoele,vazioedesprovidode qualidades que o tornem interessante.Termina esta parte lgica, precisamente, a recuperar o assunto que tinha deixado vincado no cap. 1, que o da imperiosa necessidade do autoconhecimento nestas questesdaamizade.Assim,fundamentalquecada umseconheaasiprprio.Abdicardoamorprprio edoorgulhoproporciona,entreoutrosbenefcios,a lucidezquepermitereconhecerosaduladoresquando estes se disfaram de fervorosos amigos.Entre os caps. 17 e 20, o autor introduz o tema da franqueza na linguagem (parresia), instrumento que, posto ao servio da amizade, nela promove o bem. Mas delatambmoaduladorfazumautilizaoperversa, em seu benefcio, subvertendoa na forma de elogios e louvores.Entreoscaps.21e24,discutidootemadas ajudasedosbenefcios(taschreiaskaitashupourgias), ouseja,aquelesaspectosquepermitemsatisfazero requisitodautilidadecomocaractersticaimportante paraaamizade,equetambmoaduladorconsegue manipular.Paula Barata Dias68 69 68 69Estasduaspartesintermdias,dedicadas subversodafranquezaedosbenefciosreaiscomo requisitos de uma verdadeira amizade que os aduladores conseguemmimetizar,sonesteponto,nomeiodo tratado,exploradascomoassuntoscomplementares, pensamosnsquecomoobjectivodereforara necessidadededestrinaentreoqueconstituiou noaamizade:afranquezadelinguagemeosfavores prestados, normalmente associados s caractersticas da amizade, podem ser prejudiciais, se estiverem ao servio de um adulador e, pior que isso, no permitem, por si s, retirar o homem da solido de no ter amigos. Ou seja,ohomemtornasevtimadeumsimulacrode amizade, intil e prejudicial.A partir do cap. 25, o autor apresenta as regras de utilizao da franqueza de linguagem com os amigos, ou seja, depois de ter sido exposto o mau uso da parresia, descrevemseagoraascondiesemqueelapode frutifcar em benefcios.Aunidadedecomposiodesteexcerto(caps. 2537),porvezes,apontadacomoumsinaldeque Plutarcodestinariaestetrechoaumtratadodiferente, ouqueopresentetratadoreuniriaduaspeas inicialmente compostas como obras distintas. Concorre paratalinterpretaoofactodeestasegundaunidade temtica da obra, a parresia no constar do ttulo, ainda quesejadiscutidacomumespritoanalticoedeum modomaisexaustivodoquePlutarcodedicaatemas mais insignifcantes, e a quem conferiu a dignidade de constituir uma obra isolada.68 69PAlAvrAs introDutriAs68 69De facto, tal como no incio do cap. 25, o autor recuperaapremissafundamentalenunciadanocap.1 (cap.1,48Aasprincipaisvtimasdosaduladoresso os que tm um amor desmesurado por si prprios, e cit. 65 E Por este motivo, quando comemos o nosso discurso, aconselhmos, e agora novamente aconselhamos, a arrancar de ns o amor-prprio e a arrogncia). Tambm no cap. 37,elerecupera,comgrandecoerncia,asafrmaes feitasnocap.25(cit.,66BPorquetalcomoacontece com qualquer outro medicamento, o facto de se ser franco, senoforaplicadonomomentooportuno,apenastraz sofrimento intil e agitao cf. cap. 37, 74 D Portanto, vistoque,comojfoidito,afranquezamuitasvezes dolorosa para a pessoa em que ela aplicada, necessrio imitar os mdicos).Acrescentaseainda,emapoiodateseda composiodistintaeautnomadasduaspartesda obra, a diversidade de imagens. At ao cap. 25, Plutarco utiliza metforas do comportamento animal: o caruncho, ospiolhos(49B,49C);sorelevadasasqualidades mimticasdosanimaisqueseprestamdissimulao, que podem ser o polvo, (cf. Acerca do Nmero Excessivo de Amigos, 96 F), o mocho (52 B), o camaleo (53 D, 54 B), o co (55 E), o macaco (64 E). A partir do cap. 25, embora estas ainda se mantenham presentes, dominam as metforas do campo semntico da medicina. O amigo comparado a um mdico ou a um cirurgio, que usa a franqueza de linguagem como um medicamento (69 B, 70 F, 73 A, 73 F, 74 D), que pode ser amargo (73 b) ou possuir um sabor agradvel, doce e ser oloroso (55 E), Paula Barata Dias70 71 70 71mas tem sempre um poder cicatrizante e curativo (54 E, 73 E). O excesso de parresia e o seu efeito desastroso comparado ao uso de estimulantes nos olhos infamados e inchados, o que s agrava o mal (69 B).Acrescentese, em apoio da tese da composio em diferentesmomentos,ofactodeAntocoFilopaposer directamenteinterpeladoapenasduasvezes,umalogo no incio do cap. 1, outra, no que se poderia considerar oeplogoparaumaprimeiraparte(cap.25,66B).E o prprio autor menciona o que seria um justo remate paraasuaobra,numlinguagemqueno,contudo isentadeambiguidade,(cap.25,66E,cit:este assunto, que reclama ser continuado, parece estabelecer-se como a concluso para este nosso escrito).Osindciosapontam,portanto,paraumaobra cujo resultado fnal passou pela reunio de dois escritos distintos, relacionados por terem como tema a amizade na sua dimenso geral e social (tal como existem relaes comosoutrosdoistratadospresentesnestevolume), destinadosaseremoferecidosaoseuamigoAntoco Filopapo,queforamreunidoseligadosentresipor captulos intermdios.OtemadosaduladorestememPlutarcoum tratamento infuenciado pela tradio literria anterior. Teofrasto, em Caracteres, mas tambm os comedigrafos, Aristfanes,upoliseMenandrodelescompuseram caricaturas que permaneceram como tipos teatrais, mais ou menos associados ao perfl dos parasitas. , alis, o prprio Plutarco a reconhecer que lida com uma categoria bemconhecidapelatipologiadassuasmanifestaes. 70 71PAlAvrAs introDutriAs70 71Deixa, no entanto, o aviso, de que o adulador mais do que um parasita: mais perigoso, mais determinado, mais subtil(50C,54B),pelasuaacojuntodehomens poderosos,caramreinoseprincipados(49C).Neste ponto, Plutarco parece distanciarse de tradio literria tipolgica, j que, reconhecendo a sua existncia, no a recupera nas suas ilustraes, como se tivesse conscincia deque,aesterespeito,produznovidadetericaque quer realar.Convmnos,porisso,resistiraqualquer tentao de reduzir este texto de Plutarco sucesso de umaabundantecasusticadecomportamentossociais, descritos na sua tipologia, com ironia e fna observao, no qual Plutarco d azo sua proverbial curiosidade e observao dos caracteres humanos. Este , sem dvida, umdosencantosdestaobradePlutarco:odetalhena apresentaodassemelhanasedasdiferenasentre oaduladoreoamigo,ocuidadopostonoregisto particulardascircunstnciasemquecadaumse manifesta,osconselhossobreobomeomauusoda franqueza de linguagem restauram, na nossa memria, quadrosdocomportamentohumanoquepodemos reconhecercomointemporaiseuniversais.Ricaem observaes,ditosparte,citaesdeautoresfamosos com quem se entra em dilogo, construo de quadros psicolgicoscomplexosqueseconfrontamnojogo socialdosinteresses,estetextotransportanosparao que poderia ser uma crnica da alta sociedade do sc. II, seus interesses, aspiraes e modo de agir, que Plutarco conheceu e viveu intensamente.Como Distinguir um ADulADorDe um AmigoTraduo74 75Como Distinguir um Amigo De um ADulADor 74 751Platoafrma,meucaroAntocoFilopapo1,que todosdoassentimentoaohomemqueconfessaum amordesmesuradoporsimesmo,masqueistocriao maior de todos os males, em conjunto com outros, que o facto de no ser possvel a tal homem ser juiz honesto e imparcial de si prprio. Pois o amor fca cego vista do amado2, salvo aquele que, pela aprendizagem, se tenha acostumado a dar valor e a seguir mais as coisas belas do que as familiares e as privadas.Estefactoforneceaoaduladorterrenolargo parapassaratravsdaamizade,porquetemnonosso amorprprio uma base de ataque propcia contra ns, 1AntocoFilopapo,personagemquetambmsurgeem QuaestionesConuiualesI,10(VerObrasMorais,NoBanquete I,2008,10,p.83),ondeapresentadocomocoregodemuitas tribos.JlioAntocoFilopapodescendedosreisdeComagena, reside em Atenas, desde que foi destitudo do trono pelo imperador Vespasiano (72 d. C). Tal como ele apresentado em No Banquete, depreendese que pertenceria elite rica, cultivada e bem relacionada de Atenas. 2Plato,Leis,731de.Plutarcoutilizaamesmasentena platnica em Como Retirar Benefcio dos Inimigos 90 A e 92 E.48fPlutarco76 77 76 7749abcdque leva a que cada um seja para si prprio o primeiro e o maior adulador, e por isso no nada difcil acolher junto desialgumdeforacomotestemunhaeconfrmao das coisas que tem no pensamento e na vontade. que aquelequecriticadoporgostardeaduladoresum amador tenaz da sua pessoa, e o afecto que dedica a si mesmo levao a desejar ter, e a pensar que tem, todas as virtudes.Ora,estedesejoemsinoanormal,masjo pensar comporta riscos e necessita de muita cautela. Pois se, segundo Plato, a verdade divina, e o princpio de todas as coisas boas para os deuses e para os homens3, h o risco de o adulador ser um inimigo para os deuses, em particular do deus Ptio. De facto, ele contradiz sempre o princpio Conhece-te a ti mesmo, desenvolvendo em cada um o engano, e mesmo a ignorncia, no s sobre si prprio, mas tambm sobre as coisas boas e as coisas msquelhedizemrespeito,tornandoasprimeiras imperfeitas e inacabadas, e as segundas completamente impossveis de corrigir.2Comefeito,senestestermos,comoamaior partedosoutrosmales,oaduladoratacarsomente, ousobretudo,osquesomaisvulgaresemesquinhos, nosertoterrvel,nemtodifcildevigiar.Pois, talcomoocarunchoentracommaisintensidadenas madeiras macias e doces, tambm so as mais generosas, honestas e promissoras das personalidades que acolhem 3 Plato, Leis, 730 C.76 77Como Distinguir um Amigo De um ADulADor 76 7749abcde alimentam o adulador quando este se agarra. Tal como Simnides afrma:O potro no faz amizade com o jacinto, mas sim com os campos frteis4.Assim,nsobservamosqueaadulaono acompanha os pobres, os annimos, ou os fracos, mas tornaseumaarmadilhaeumapesteparaasgrandes casaseosgrandesnegcios,emuitasvezessubverte reinos e principados. Estar vigilante quanto a ela no , portanto, uma tarefa menor, nem que carea de pouca previdncia,demodoapoderdetectlaempleno,e impedila de prejudicar a amizade, ou de a fazer c