perigosidade -

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Artigo Docente – texto original Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p.22-34, jan./jun. 2013 22 Periculosidade criminal: conceito, tratamento e consequências Criminal hazard: concept, treatment and consequences Leonardo Isaac Yarochewsky * Thalita da Silva Coelho ** Resumo A periculosidade na esfera criminal ganha especial relevância no contexto das medidas de segurança, aplicáveis aos indivíduos classificados como penalmente inimputáveis. O presente estudo aborda a fragilidade da avaliação e constatação da periculosidade de um determinado agente, tendo em vista ser uma tarefa dotada de alta carga subjetiva, traduzindo mero juízo de probabilidade, sem que exista qualquer critério científico apto a conferir segurança jurídica quando da aludida aferição. Para tanto, urge abordar alguns aspectos acerca do estudo do homem delinquente e do constante interesse por parte de algumas Escolas no sentido de traçar um perfil dos denominados delinquentes perigosos. Destaca-se que, em última análise, a punição de um indivíduo com base no diagnóstico da periculosidade consiste em nítida violação aos postulados do Direito Penal atual, no qual resta afastado o direito penal do autor. A par desta realidade, a periculosidade tem sido justificativa para uma série de propostas de política criminal, as quais almejam cada vez mais a prevenção da conduta delitiva por meio da antecipação da tutela penal. Palavras-chave: Periculosidade. Medida de segurança. Abstract The dangerousness in the criminal sphere is of particular relevance in the context of the security arrest applicable to individuals classified as criminally incompetent. This paper addresses the weakness of the assessment and finding of dangerousness of a particular agent, considered to be a highly subjective task, translating merely a probability judgment, with no scientific criterion able to provide legal certainty whithin the mentioned measurement . Therefore, it is urgent to address some aspects about the study of the delinquent man and the constant interest that some schools have in it, in order to draw a profile of so-called dangerous offenders. It is noteworthy that, ultimately, the punishment of an individual based on the diagnosis of dangerousness is a clear violation of the postulates of the current Criminal Law, which remains away from the so called criminal law of the author. Along with this reality, the dangerousness has been justification for a series of proposals for criminal policy, which increasingly aim the prevention of criminal behavior through the anticipation of criminal behavior Keywords: Danger. Security arrest. * Doutor em Ciências Criminais pela UFMG. Professor da PUC-Minas. Advogado Criminalista. Contato: [email protected] ** Mestre em Direito Público pela PUC-Minas. Professora da PUC-Minas. Advogada Criminalista. Contato: [email protected]

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    Licena Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported

    Percurso Acadmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p.22-34, jan./jun. 2013 22

    Periculosidade criminal: conceito, tratamento e consequncias Criminal hazard: concept, treatment and consequences

    Leonardo Isaac Yarochewsky*

    Thalita da Silva Coelho**

    Resumo

    A periculosidade na esfera criminal ganha especial relevncia no contexto das medidas

    de segurana, aplicveis aos indivduos classificados como penalmente inimputveis. O

    presente estudo aborda a fragilidade da avaliao e constatao da periculosidade de um

    determinado agente, tendo em vista ser uma tarefa dotada de alta carga subjetiva,

    traduzindo mero juzo de probabilidade, sem que exista qualquer critrio cientfico apto

    a conferir segurana jurdica quando da aludida aferio. Para tanto, urge abordar alguns

    aspectos acerca do estudo do homem delinquente e do constante interesse por parte de

    algumas Escolas no sentido de traar um perfil dos denominados delinquentes

    perigosos. Destaca-se que, em ltima anlise, a punio de um indivduo com base no

    diagnstico da periculosidade consiste em ntida violao aos postulados do Direito

    Penal atual, no qual resta afastado o direito penal do autor. A par desta realidade, a

    periculosidade tem sido justificativa para uma srie de propostas de poltica criminal, as

    quais almejam cada vez mais a preveno da conduta delitiva por meio da antecipao

    da tutela penal.

    Palavras-chave: Periculosidade. Medida de segurana.

    Abstract

    The dangerousness in the criminal sphere is of particular relevance in the context of the

    security arrest applicable to individuals classified as criminally incompetent. This paper

    addresses the weakness of the assessment and finding of dangerousness of a particular

    agent, considered to be a highly subjective task, translating merely a probability

    judgment, with no scientific criterion able to provide legal certainty whithin the

    mentioned measurement . Therefore, it is urgent to address some aspects about the study

    of the delinquent man and the constant interest that some schools have in it, in order to

    draw a profile of so-called dangerous offenders. It is noteworthy that, ultimately, the

    punishment of an individual based on the diagnosis of dangerousness is a clear violation

    of the postulates of the current Criminal Law, which remains away from the so called

    criminal law of the author. Along with this reality, the dangerousness has been

    justification for a series of proposals for criminal policy, which increasingly aim the

    prevention of criminal behavior through the anticipation of criminal behavior

    Keywords: Danger. Security arrest.

    *Doutor em Cincias Criminais pela UFMG. Professor da PUC-Minas. Advogado Criminalista. Contato:

    [email protected] **

    Mestre em Direito Pblico pela PUC-Minas. Professora da PUC-Minas. Advogada Criminalista. Contato: [email protected]

  • Leonardo Isaac Yarochewsky e Thalita da Silva Coelho.

    Percurso Acadmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 22-34, jan./jun. 2013 23

    Consideraes iniciais

    No ordenamento jurdico penal atual, a questo da periculosidade criminal se

    encontra exposta especialmente ao tratar das denominadas medidas de segurana. Tais

    medidas, consistentes em internao em hospital de custdia e tratamento ambulatorial,

    so destinadas queles indivduos avaliados como inimputveis, em decorrncia da

    ausncia de autodeterminao, dotados de algum grau de periculosidade, que

    cometeram um ato penalmente punvel.

    Ocorre que, no obstante o seu aparecimento restrito no tocante legislao

    penal, o que se observa que a periculosidade criminal tem informado cada vez mais as

    polticas criminais adotadas, que caminham no sentido de prevenir as condutas

    perigosas e no de reprimi-las. Este cenrio, gerado especialmente pelo fenmeno da

    sociedade do risco, acaba por aproximar o direito penal, at ento do fato, do direito

    penal do autor, revelando aspectos totalitrios.

    1 Percurso histrico do estudo do homem delinquente

    Conforme afirma Prado (2010), desde a histria penal dos povos primitivos

    possvel perceber a existncia do interesse em proteger a sociedade de determinados

    indivduos que representavam uma constante ameaa no tange a prtica de novos

    crimes, razo pela qual a mera represso atravs da pena passou a se mostrar

    insuficientes para fins de preveno individual.

    Deve-se Escola Positivista italiana, inaugurada por Lombroso, em 1876,

    quando foi publicada a primeira edio de Luomo delinqente, bem como a Ferri

    (1931) e Garfalo (1925), o pioneirismo no estudo do homem criminoso.

    Foram os positivistas que procuraram as diferenas entre o homem delinqente

    ou anormal e o homem no-delinqente ou normal. Cada um dos aludidos autores

    apresentou seu prprio enfoque na fundamentao de suas teses acerca do criminoso

    nato, baseando-se, para tanto, na teoria da degenerao1, conferindo grande relevncia

    1 Segundo Lemos; Silva (2012), a teoria da degenerao foi elaborada pelo francs Bendict-Augustin

    Morel, em 1957, o qual defendeu a existncia de um grupo de degenerados ou loucos hereditrios, que

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    natureza do homem criminoso em detrimento da gravidade do crime praticado,

    delegando ao direito penal a funo de proteger a sociedade dos indivduos ditos

    perigosos, deixando em segundo plano a ideia retribucionista e ressocializadora da pena

    (LEMOS; SILVA, 2012).

    O ex-mdico militar Lombroso enfatizou aspectos antropolgicos, formulando e

    desenvolvendo sua teoria do delincuente nato, uma espcie de ser atvico,

    degenerado, marcado por uma srie de caractersticas fsicas e estigmas corporais, tais

    como anomalias do crnio, orelhas em forma de asa, formas do nariz etc.

    (LOMBROSO, 2001), assinalando que a persistncia no crime e, portanto, a

    reincidncia revelava o criminoso nato, principalmente se tal ocorresse antes da

    juventude (BISSOLI FILHO, 1988).

    Ferri (1988), alm de ratificar o pensamento de Lombroso em relao s

    condies orgnicas e psquicas do criminoso, realou os fatores sociolgicos ou

    sociais, tais como a misria, a educao, a profisso etc., bem como a influncia das

    condies ambientais e fsicas, tais como o clima, a temperatura etc.

    Garfalo (apud BISSOLI FILHO, 1988, p. 127), por sua vez, enfatizando os

    elementos psicolgicos, desenvolveu em sua pesquisa a idia da: [...] anomalia moral

    ou psquica do criminoso, ressaltando ainda que: [...] alm da anomalia fsica, h a

    moral, a qual a verdadeira causa do crime [...]. Em decorrncia deste entendimento,

    sua proposta era que a pena fixada fosse proporcional periculosidade do indivduo e

    potencial leso que este pode gerar.

    Assim, o crime deixa de ser julgado como episdio isolado, e ganham

    destaque as caractersticas fsicas e psquicas de quem o praticou.

    Desaparecem as distines entre imputveis e inimputveis e a

    periculosidade passa a ser fundamento e medida da atuao penal.

    Todos os delinquentes so perigosos, em maior ou menor grau, pelo

    simples fato de terem praticado um crime. (PRADO, 2010, p. 629).

    No tocante forma de teraputica destinada aos degenerados, a Escola

    Positivista Italiana, tambm conhecida por escola de antropologia criminal, formulava,

    em suma, trs propostas: a eliminao total, por meio da internao ou da morte; a

    possui desvio doentio em relao aos demais membros da sociedade, que atuava de forma regressiva ao

    longo das geraes que o transmitia.

  • Leonardo Isaac Yarochewsky e Thalita da Silva Coelho.

    Percurso Acadmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 22-34, jan./jun. 2013 25

    eliminao provisria, atravs da teraputica; e a eliminao parcial ou relativa, com a

    castrao ou esterilizao (LEMOS; SILVA, 2012).

    Certo que com a escola positivista nasceu a criminologia cientfica, que apesar

    de todas as restries e crticas que lhe so atribudas, possui mrito que no lhe pode

    ser tirado, qual seja, o de abrir caminho para o estudo do indivduo delinqente.

    A Escola Positivista, que se opunha Escola Clssica, apresentou uma

    caracterstica metodologicamente marcada pelo mtodo experimental, alm da negao

    da culpabilidade individual e do livre-arbtrio como seus fundamentos.

    No final do sculo XIX as teses lombrosianas haviam logrado grande xito em

    todo o mundo e influenciado vrios estudiosos. Contudo, j no incio do sculo XX

    fortes crticas irromperam em relao s teorias biolgico-antropolgicas apresentadas

    pela Escola Positivista.

    Uma dessas principais crticas refere-se ao estudo limitado feito principalmente

    por Lombroso, j que o mesmo limitava-se a observar criminosos condenados que se

    encontravam em estabelecimentos penitencirios, sujeitos, portanto, s condies e aos

    efeitos do aprisionamento.

    Importa aqui remarcar que o crime e o criminoso no podem ser considerados e

    analisados isoladamente, desprezando-se outros fatores e circunstncias importantes

    como, por exemplo, a influncia do meio social na formao do delinqente.

    1 Periculosidade

    De acordo com o Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa, a

    periculosidade o estado ou a qualidade do que perigoso, consistindo no conjunto de

    circunstncias que indicam a probabilidade de algum praticar ou tornar a praticar um

    crime.

    Para Bruno (1984), a periculosidade um estado de grave desajustamento do

    homem s normas de convivncia social. Mais adiante, o autor afirma que se trata de

    um juzo de probabilidade, necessariamente sujeito a erro.

    A periculosidade , portanto, um juzo de probabilidade de que novos crimes

    sejam praticados. Um juzo sobre o comportamento futuro do agente, constituindo-se

    uma verdadeira fico jurdica (FRAGOSO, 1984, p. 1922), posto que no existe

  • Artigos Docentes - Artigo: Periculosidade criminal: conceito, tratamento e consequncias.

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    frmula positiva ou cientfica para determinar a periculosidade do indivduo. Assim, ao

    juzo de culpabilidade, em razo de sua prpria natureza, deve ser dado apenas um valor

    relativo (FRAGOSO, 1984).

    A periculosidade no pode nem deve ser simplesmente presumida, mas

    plenamente comprovada. Sua apreciao, no dizer de Casabona (1986), implica juzo

    naturalstico (no tico, no moral ou no de valor), clculo de probabilidade, que se

    desdobra em dois momentos, derivados de sua prpria definio: a comprovao da

    qualidade sintomtica de perigo (diagnstico de periculosidade), por um lado, e a

    comprovao da relao entre tal qualidade e o futuro criminal do agente (prognose

    criminal).

    Camargo; Ellerman; Ramon (1995) sustentam e propem a necessidade de uma

    reviso do conceito de periculosidade utilizado pela psiquiatria forense. Segundo eles, o

    conceito de periculosidade axiomtico e, portanto, sem valor terico luz da

    metodologia cientfica.

    Metodologicamente, no es vlido examinar una realidad, buscando un

    resultado prefijado, se este resultado no fuera hipottico. Al revs del este hombre es peligroso?, deberamos usar el existe un tipo de hombre peligroso, y si fuera as, en qu medida este ser uno de ellos?. En el primer caso, tenemos una hiptesis basada en un axioma, ya dado como vlido de

    antemano: el de que existen hombres peligrosos. En el segundo caso,

    tenemos dos hiptesis a ser demonstradas (CAMARGO; ELLERMAN;

    RAMON, 1995, p. 84).

    Para os citados autores, impossvel admitir que uma pessoa possa ser

    penalizada, no por lo que hizo, sino por lo que se supone que har (CAMARGO;

    ELLERMAN; RAMON, 1995, p. 84), sendo que a soluo para o problema de indicar

    ao juiz as possibilidades e probabilidades de o paciente reincidir deveria comear pela

    abolio do conceito de periculosidade e por sua substituio pelo conceito de

    pronosticabilidad.

    O conceito de prognstico parte da idia de incerteza. Por definicin, la certeza es imposible en el pronstico...Todavia en la observacin clnica del

    hombre, sea enfermo, sea sano, existen elementos que permiten inferir las

    frecuentes excepciones, siempre con el margen de duda inherente a cualquier

    pronstico. El perito, al emitir su opinin de pronosticabilidad, estar

    ofreciendo al juez un indicador de las posibilidades y de las probabilidades de

    que el enfermo vaya a cometer nuevos delitos, dada la historia de su vida, y

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    dentro de ella, la historia de su enfermedad, la naturaleza de la misma, an

    ms, los signos y manifestaciones de ella en las disposiciones de su voluntad,

    de su personalidad y de las peculiaridades de su psicologia individual.

    Relacionar toso eso, ciertamente a las circunstancias de vida, medio

    ambiente y entorno social donde vive el paciente, y todavia as, apenas

    pronosticar. No estar diciendo que este hombre pertence a una variante de

    seres humanos: a la de los peligrosos (CAMARGO; ELLERMAN; RAMON, 1995, p. 85-86).

    Bissoli Filho (1988) preciso ao afirma que:

    [] a teoria da periculosidade restou tributria quase que exclusivamente de construes dogmticas. O conceito de personalidade perigosa, produzido

    unicamente pela Dogmtica Penal, vago, confuso e caracterizado pela

    subjetividade. (BISSOLI FILHO, 1988, p.169).

    De toda sorte, ainda que se busque estabelecer critrios para a determinao da

    periculosidade, o que se verifica a imensa fragilidade de seu conceito, desprovido de

    maiores certezas, representante verdadeiro exerccio de futurologia, o que se mostra

    absolutamente incompatvel com a segurana jurdica almejada pelos ordenamentos.

    2 Tratamento e consequncias

    A soluo encontrada por diversas legislaes penais para o tratamento do

    indivduo perigoso, que cometeu um ato punvel em decorrncia de sofrimento mental,

    est na medida de segurana. Assinala Prado (2010, p. 632), que as medidas de

    segurana, que possuem natureza jurdica de sano penal, consistem em consequncias

    jurdicas do delito, que consubstanciam-se na reao do ordenamento jurdico diante da

    periculosidade criminal revelada pelo delinquente aps a prtica de um delito [...]

    impedindo que este volte a delinquir.

    Prado (2010) destaca que foi na Inglaterra, nos idos de 1860, a implantao do

    primeiro tratamento psiquitrico para criminosos doentes mentais, decorrente da

    Criminal Lunatic Asylum Act. Segundo o aludido preceito normativo, tais criminosos

    doentes mentais deveriam ser internados em um asilo. Foi, ainda, no mesmo pas, o

    surgimento do primeiro manicmio judicirio.

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    Segundo Ferrajoli (2010, p. 718)

    certo que a maior contribuio introduo das medidas de

    segurana no nosso ordenamento (leia-se: ordenamento italiano), ou

    quanto menos a sua legitimao ideolgica, foi um legado da Escola Positiva, ou antropolgica do direto penal, que, como se viu, substituiu a categoria da responsabilidade por aquela da

    periculosidade, e concebeu o crime como um sintoma de patologia psicossomtica, devendo enquanto ser tratado e prevenido mais do que

    reprimido, por medidas pedaggicas e teraputicas destinadas a

    neutralizar as causas exgenas.

    Verifica-se, pois, que a teorizao da medida segurana, instituto atualmente

    adotado pelo ordenamento jurdico brasileiro, tambm se deve Escola Positiva,

    todavia, a sua sistematizao efetivamente ocorreu com o Anteprojeto de Cdigo Penal

    Suo de 1893. Bruno (1984, p. 117), fazendo meno ao aludido Estatuto (art. 42),

    aborda a imposio de medida de segurana por tempo indeterminado para aquele que

    incorre em vrias infraes, depois de sofrer numerosas penas privativas de liberdade,

    revelando, segundo o autor, tendncia ao crime, vida desordenada ou ociosidade.

    Em momento ulterior, precisamente em 1830, a medida de segurana foi

    sistematizada de modo completo no Cdigo Penal Italiano, elaborado inicialmente por

    Ferri, no qual se pretendia a adoo do sistema vicariante, pelo qual pena e medida de

    segurana receberiam a denominao nica de sanes penais, aplicadas sempre

    segundo o critrio da periculosidade subjetiva. (PRADO, 2010, p. 630). Todavia, o

    indigitado anteprojetou no obteve xito na sua aprovao, prevalecendo a proposta de

    Arturo Rocco, que apregoava, em oposio ao sistema vicariante, o sistema dualista,

    que autoriza a cumulao da pena e da medida de segurana.

    No Brasil, o primeiro resqucio acerca da medida de segurana pode ser

    vislumbrado no Cdigo Penal do Imprio (1830) e, posteriormente, em vrias outras

    propostas que no passaram de projetos. Na redao original do Cdigo Penal de 1940,

    a responsabilidade penal era examinada por meio da capacidade de compreenso da

    ilicitude do crime de tal forma que, se o indivduo possua inteira incapacidade de

    autodeterminao seria considerado inimputvel, ao passo que se o indivduo possusse

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    discernimento relativo seria considerado semi-imputvel. Esta distino segue

    exatamente a linha adotada pelo atual artigo 26 do Cdigo Penal, ocorre que, naquela

    ocasio, era possvel, para os semi-imputveis, o acmulo da pena e da medida de

    segurana (sistema do duplo binrio).

    Com a reforma de 1984, restou definitivamente afastada a hiptese de aplicao

    da medida de segurana para o imputvel, ao qual aplicvel exclusivamente a pena,

    nos moldes da sua culpabilidade. Assim, a medida de segurana, hodiernamente

    questionada, reserva-se em nossa legislao atual aos casos de inimputabilidade penal e

    no aos de periculosidade simplesmente, lembrando que, com a reforma de 1984, do

    Cdigo Penal brasileiro, o legislador foi bastante feliz ao abandonar o sistema dualista

    ou do duplo binrio.

    A exposio de motivos do Cdigo Penal do Brasil (Lei 7.209/1984) no item 87

    dispe:

    Extingue o projeto a medida de segurana para o imputvel e institui o

    sistema vicariante para os fronteirios. No se retomam, com tal

    mtodo, solues clssicas. Avana-se, pelo contrrio, no sentido da

    autenticidade do sistema. A medida de segurana, de carter

    meramente preventivo e assistencial, ficar reservada aos

    inimputveis. Isso, em resumo, significa: culpabilidade-pena;

    periculosidade-medida de segurana. Ao ru perigoso e culpvel no

    h razo para aplicar o que tem sido, na prtica, uma frao de pena

    eufemisticamente denominada medida de segurana.

    A reforma penal brasileira, segundo Toledo (1999), com isso,

    [...] longe de retornar a frmulas clssicas, d um passo adiante, com

    soluo coerente para o srio problema do agente imputvel que j se tenha

    revelado um delinqente habitual ou por tendncia, sem necessidade de

    recorrer-se pena totalmente indeterminada ou frmula do duplo binrio

    que, como se viu, no foi bem assimilada pela experincia brasileira

    (TOLEDO, 1999, p. 77-78).

    Embora bastante semelhante, para no dizer idntica, a forma de execuo tanto

    da pena quanto da medida de segurana, ambas so executadas com a privao da

    liberdade. Contudo, certo que em um Estado Democrtico de Direito, segundo Ferrari

    (2001, p. 135), a medida de segurana criminal, alm de constituir uma das espcies de

    sano penal, est condicionada presena de dois pressupostos obrigatrios e

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    irrenunciveis, quais sejam: 1) a realizao de um fato ilcito-tpico penal; e 2) a

    presena da periculosidade criminal. Ainda de acordo com o autor, em um Estado

    Democrtico de Direito a medida de segurana criminal (sano penal) est vedada a

    estados de paradelinquncia, infraes exclusivamente polticas ou de marginalismo

    criminoso, j que ausentes estaro as prticas dos ilcitos-tpicos criminais (FERRARI,

    2001, p. 135).

    O grande questionamento acerca da medida de segurana, em nosso

    ordenamento jurdico, gira em torno da ausncia de um prazo mximo de submisso do

    portador de sofrimento mental ao tratamento ou internao compulsria.

    A forma penal desta coero compromete grandemente a liberdade das

    pessoas a ela submetidas. Preocupa, sobremaneira, a circunstncia de

    no terem as medidas um limite fixado na lei e ser a sua durao indeterminada, podendo o arbtrio dos peritos e juzes decidir acerca

    da liberdade de pessoas que, doentes mentais ou estigmatizadas como

    tais, sofrem privaes de direitos, ainda maiores do que aquelas que

    so submetidas s penas. O problema no simples, e a pouca ateno

    que geralmente se d s medidas de segurana, do ponto de vista

    dogmtico, torna-a bastante perigosa para as garantias individuais.

    (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 731).

    Numa anlise perfunctria do tema, verifica-se que a inexistncia de um limite,

    acerca da durao da medida de segurana, representa evidente violao Constituio

    brasileira, a qual determina, em seu art. 5, XLVII, b, a proibio da pena em carter

    perptuo. Em outras palavras, significa dizer que ao portador de sofrimento mental que

    comete um ato punvel dispensado tratamento muito mais gravoso, quando comparado

    ao imputvel, que possua, ao tempo do crime, plena capacidade de discernimento e

    autodeterminao.

    A discusso a respeito do tema, por parte da doutrina, parece estar longe de

    alcanar um posicionamento satisfatrio, prevalecendo, todavia, o entendimento de que

    a medida de segurana encontraria o seu limite no mximo da pena cominada

    abstratamente para o delito cometido. Ultrapassado tal limite e persistindo a

    periculosidade do agente, cessa-se a interveno penal, passando-se a questo para a

    esfera cvel. Proposta apresentada recentemente no Anteprojeto de Cdigo Penal que

    ora tramita perante o Senado.

  • Leonardo Isaac Yarochewsky e Thalita da Silva Coelho.

    Percurso Acadmico, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 22-34, jan./jun. 2013 31

    Enquanto alguns pases tentam resolver tal questo por meio da pena, outros,

    como a Alemanha, Estados Unidos, Sua, Japo e recentemente a Espanha, tambm

    recorrem s medidas de seguridade como soluo do problema em testilha. Lado outro,

    a apario dos meios de comunicao de alcance mundial, o desenvolvimento de novas

    tcnicas de resposta penal (controle telemtico e outras formas de terapia social), aliado

    ao interesse poltico e social no sentido de garantirem maior proteo aos bens jurdicos

    mais caros, impulsionou a adoo de novas medidas para conteno dos delinquentes

    reincidentes e/ou perigosos, envolvendo internao em centros de terapia social,

    castrao qumica, controle telemtico, dentre outros.

    Verifica-se, ainda, que atualmente, no Brasil e em diversas partes do mundo, h

    uma tendncia muito forte em acabar com os chamados manicmios judicirios, onde

    se tem verificado que o delinquente , geralmente, abandonado prpria sorte e

    esquecido pela sua prpria famlia. Conforme sabido, desde o incio do denominado

    Movimento Antimanicomial2, as diretrizes psiquitricas deixaram de serem aquelas

    vinculadas ao tratamento por meio hospitalar e passaram a apregoar a prtica teraputica

    integrada comunidade. Esta postura tem por escopo conceder o cuidado adequado aos

    portadores de sofrimento mental, a partir, no s dos preceitos advindos da medicina e

    da Psicologia, mas, tambm, do princpio da dignidade da pessoa humana. Desta forma,

    a manuteno da medida de segurana no ordenamento jurdico vem de encontro

    proposta acima, no podendo o delinquente perigoso acometido por uma doena mental

    receber tratamento mais gravoso.

    Concluso

    Em definitivo, entendemos no ser a medida de segurana, muito menos por

    tempo indeterminado, capaz de resolver o problema do delinquente portador de

    sofrimento mental, que tambm no solucionado pela pena privativa de liberdade.

    Conforme podemos constatar a periculosidade criminal, conceito subjetivo, vago,

    indeterminado e carecedor de preciso cientifica, mas que, atualmente, alicera a

    medida de segurana, remete ao direito penal do autor, prprio de regimes totalitrios e

    antigarantistas.

    2 Em termos normativos, a Luta Antimanicomial ganhou fora especialmente aps a Lei 10.216/01 (Lei

    Paulo Delgado), a qual determinou a extino progressiva dos manicmios, estabeleceu um rol de direitos

    do portador de sofrimento mental e novas diretrizes de tratamento.

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