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1 PENSARES PANORÂMICOS SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O MUNDO DO TRABALHO Ângelo Silva Cavalcante Universidade Federal de Goiás –UFG Idelvone Mendes Universidade Federal de Goiás -UFG Resumo O artigo pretende discorrer sobre a economia solidária como articulação a ser desenvolvida harmônica e pedagogicamente entre o subjetivo e o objetivo, a partir do binômio autonomia e autogestão. Pretende ainda, demonstrar que os fazeres coletivos emancipados representam efetivamente uma possibilidade concreta para a própria elevação do ser humano para patamares superiores no que concerne a integração, a unidade social e o prevalecimento dos reais interesses sociais. Palavras-chave: trabalho. Economia solidária. Autonomia. Autogestão. Subjetivo. Objetivo. Introdução O desemprego é estrutural ao capitalismo. Tem-se que em determinados períodos e por razões diversas, ele sofre maior ou menor intensificação. Neste sentido, as classes mais desprovidas tem, historicamente, sabido desenvolver mecanismos de enfrentamento deste mesmo desemprego. Estes mecanismos assumem as mais diferentes características, se estruturam a partir de arranjos sociais, políticos, econômicos e culturais videntemente originais, coletivamente elaborados e que passam a orientar todos os seus esforços em prol da afirmação do empreendimento coletivo em questão. Este trabalho pretende discorrer sobre os principais elementos sócio-políticos que fundamentam e constituem a chamada economia solidária visando identificar os níveis de viabilidade deste arranjo econômico contemporâneo sob a perspectiva da geração de renda, da criação de ocupações e da afirmação de uma identidade coletiva politicamente integrada e efetivamente fundada no trabalho. Na parte introdutória, se traz à tona, elementos sócio-históricos de evidente relevância para a compreensão dos fazeres sociais envolvidos com a economia solidária e que articulados e em permanente processo de atualização darão forma, sentido e coerência para os empreendimentos coletivos e solidários e que terá como objetivo, construir respostas sociais para problemáticas conjunturais, estruturais e eminentemente coletivas.

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PENSARES PANORÂMICOS SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O MUNDO DO TRABALHO

Ângelo Silva Cavalcante

Universidade Federal de Goiás –UFG

Idelvone Mendes Universidade Federal de Goiás -UFG

Resumo

O artigo pretende discorrer sobre a economia solidária como articulação a ser desenvolvida harmônica e pedagogicamente entre o subjetivo e o objetivo, a partir do binômio autonomia e autogestão. Pretende ainda, demonstrar que os fazeres coletivos emancipados representam efetivamente uma possibilidade concreta para a própria elevação do ser humano para patamares superiores no que concerne a integração, a unidade social e o prevalecimento dos reais interesses sociais.

Palavras-chave: trabalho. Economia solidária. Autonomia. Autogestão. Subjetivo. Objetivo.

Introdução

O desemprego é estrutural ao capitalismo. Tem-se que em determinados períodos e por razões

diversas, ele sofre maior ou menor intensificação. Neste sentido, as classes mais desprovidas

tem, historicamente, sabido desenvolver mecanismos de enfrentamento deste mesmo

desemprego. Estes mecanismos assumem as mais diferentes características, se estruturam a

partir de arranjos sociais, políticos, econômicos e culturais videntemente originais,

coletivamente elaborados e que passam a orientar todos os seus esforços em prol da afirmação

do empreendimento coletivo em questão.

Este trabalho pretende discorrer sobre os principais elementos sócio-políticos que

fundamentam e constituem a chamada economia solidária visando identificar os níveis de

viabilidade deste arranjo econômico contemporâneo sob a perspectiva da geração de renda, da

criação de ocupações e da afirmação de uma identidade coletiva politicamente integrada e

efetivamente fundada no trabalho.

Na parte introdutória, se traz à tona, elementos sócio-históricos de evidente relevância para a

compreensão dos fazeres sociais envolvidos com a economia solidária e que articulados e em

permanente processo de atualização darão forma, sentido e coerência para os

empreendimentos coletivos e solidários e que terá como objetivo, construir respostas sociais

para problemáticas conjunturais, estruturais e eminentemente coletivas.

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É neste universo organizacional aonde irá se situar a economia solidária. Como expressão

concreta, cotidiana e contemporânea da inteligência coletiva dos trabalhadores no sentido da

contribuição com a minimização dos danosos efeitos sociais do desemprego na vida destes

mesmos trabalhadores.

A economia solidária possui uma gênese, uma forma específica de ocorrer nos grupos e

comunidades em que acontece. É de sua lógica de funcionamento o estabelecimento e

aprofundamento de diálogos, aproximações e interações outras a fim do fomento e da

construção de novos referenciais de sociabilidade e que objetivem, enfim, o surgimento de

identidades renovadas e que, mediadas pelo trabalho, este como categórico central para a

própria organização dos trabalhadores em suas lutas, possibilitem a reinvenção da sua própria

existência como possibilidade de individualidades e coletividades integradas, unitárias e

liberadas.

De forma inequívoca, é exatamente a capacidade de tecer diálogos, admitindo nuanças

culturais, submetendo-se e, ao mesmo tempo, instigando alterações na própria organicidade

social e econômica vigente, no sentido de reforçar laços comunitários e coletivos, a força que

de forma substantiva, irá mover a idéia da solidariedade econômica como mediação possível a

partir dos estratos sociais inferiores.

Tem-se que cumpre refletir sobre as dinâmicas e interações econômicas ocorridas no interior

dos empreendimentos de economia solidária, bem como as tendências desse movimento no

horizonte da própria afirmação da economia solidária como modo de produção.

Economia Solidária: Matrizes Sociais e Históricas Já no começo, se assume, com o rigor científico necessário para o trabalho que se pretende

desenvolver, que o clássico modelo da identificação temporal e espacial, bem como da

paternidade teórica ou organizacional do objeto em questão, no caso a economia solidária irá

inegavelmente, redundar em inevitável fracasso. E a bem da verdade, a explicação deste

anunciado fracasso não é de difícil lida. Ocorre que a economia solidária, em sua condição de

criatividade atual e incorporada sob as mais diversas formas na vida cotidiana de uma

infinidade de homens e mulheres, traz em seu corpo de conceitos e representações, bem mais

do que a força midiática de seu prevalecente estatuto de política pública.

Neste paralelo, o entendimento da economia solidária como, tão somente, mais uma política

de governo, dentre as muitas que governos, em geral, de forma malsucedida, diga-se de

passagem, costumam desenvolver a fim de mitigar os dramáticos efeitos do desemprego e que

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atinge a imensa maioria dos trabalhadores do mundo, é adotar uma perspectiva claramente

reduzida acerca deste fenômeno sócio-histórico e que desde sempre acompanha os

movimentos das classes sociais mais empobrecidas.

De outra forma, a real e efetiva compreensão da economia solidária só é possível se os seus

principais constituintes sócio-históricos vierem à tona sob a perspectiva crítica e analítica do

próprio desenvolvimento orgânico da classe trabalhadora em suas permanentes lutas por

afirmação e emancipação. Em um arremate, é mais interessante para este estudo o decurso

sócio-histórico assumido pela classe trabalhadora, seus embates, limites, avanços e

contradições e que inexoravelmente culminam naquilo que contemporaneamente se concebe

como sendo economia solidária do que a mera a descrição do seu formato de política pública

e que assume nos tempos presentes.

É comum a leitura de que esta forma de organização econômica tenha surgido no período que

compreende a chamada revolução industrial como resposta dos trabalhadores aos dramas

vividos naquele instante. Singer (2002, p. 24), irá afirmar que:

A economia solidária nasceu pouco depois do capitalismo industrial, como reação ao espantoso empobrecimento dos artesãos provocado pela difusão das máquinas e da organização fabril da produção. A Grã-Bretanha foi a pátria da Primeira Revolução Industrial, precedida pela expulsão em massa de camponeses dos domínios senhoriais, que se transformaram no proletariado moderno.

A definição exposta, em que pese mostrar-se cristalinamente didática, não leva em conta,

diversas outras experiências de economia espraiadas em todo o curso da história humana e

orientadas por princípios essencialmente sociais e comunitários. Certamente, a referida

citação faz alusão ao surgimento do cooperativismo, sem sombra de dúvidas uma das

iniciativas motores e que compõe a economia solidária. Ocorre que desde sempre homens e

mulheres, motivados por toda sorte de escassez, buscam construir soluções para seus

problemas cotidianos.

Soluções em condições de garantir algum tipo de facilidade para suas vidas. Em termos

gerais, se afirma que os trabalhadores, ao longo da história, imersos em relações sociais

profundamente desiguais, sempre que tomavam consciência de sua condição de

desfavorecimento se lançavam no desafio de construir formas de resistência ao ambiente de

adversidades em que se achavam submetidos.

São muitas as iniciativas que se converteram em tipos de intervenções sociais. Iniciativas

motivadas pelo reconhecimento de algum tipo de problema ou dilema individual ou coletivo.

Da mesma forma, são múltiplos os experimentos saídos da observação cotidiana de homens e

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mulheres envoltos com os rigores de seus afazeres e que, partindo da identificação de

problemas reais e representativos de algum tipo de obstáculo, são convertidos pela ação

deliberada destes mesmos seres humanos, em possibilidades econômicas concretas.

Rech (2000, p. 09) afirma:

Na verdade, se fizermos uma pesquisa histórica aprofundada, vamos observar que tipos semelhantes de organização apareceram muito antes do século passado. Os grêmios do antigo Egito (reunindo agricultores escravos, com o incentivo do estado), as orglonas e tiasas na Grécia (formadas por cidadãos livres e escravos para garantir enterros decentes), os colégios (reunindo carpinteiros e serralheiros) e as sodalistas (de caráter beneficente principalmente para garantir enterros religiosos) dos romanos, os ágapes dos primeiros cristãos, citados nos Atos dos Apóstolos da Bíblia (que objetivavam atender principalmente as necessidades de consumo dos seus integrantes), foram indicações exemplares da proposta cooperativista. Aqui na América, os incas (com os ayllus – unidade social baseada em vínculos de sangue e trabalho comum) e os Astecas (com os calpulli – destinados ao desenvolvimento da atividade agrícola em comum) tinham formas expressivas de solidariedade e cooperação no trabalho e na vida geral.

De forma geral, não seria exagero se afirmar que as populações excluídas da economia

dominante sempre e a seu modo, desenvolveram formas próprias de existência econômica,

quase sempre vinculadas ao modo de organização econômica predominante. Fato é que

escravos, servos ou assalariados, ou pelo menos frações destes segmentos, sempre atuaram no

sentido da elaboração de novas possibilidades e alternativas em torno do trabalho, o que

implica necessariamente o surgimento de novas percepções, sensibilidades e mesmo de uma

nova consciência relacional para com o mundo envolto.

Em todas as épocas se vê formas específicas de organização econômica e que tem como

origem e base, culturas advindas das comunidades locais. Tais culturas e comunidades

convivendo, diga-se de passagem, em relativa harmonia com organizações e sistemas

econômicos predominantes.

A freqüência destes experimentos ou inventos sociais está condicionada, sobretudo, ao

cenário político predominante. É a dimensão política, e não a economia, o determinante de

maior importância para a compreensão dos níveis de interação e coesão social, bem como a

qualidade destas mesmas interações. A política que é praticada aponta, com contradições e

possibilidades, para os próprios níveis de interação entre indivíduos de uma comunidade dada

aspecto central para o êxito de qualquer organização ou criatividade sócio-econômica.

Finalmente, é a capacidade que determinado segmento social possui de vincular-se e de

estabelecer ligações políticas elementarmente sólidas que possibilitará, em maior ou menor

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intensidade, a consecução de ensaios envolvendo a redefinição e, por conseguinte, a re-

organização das economias locais a fim, objetivamente, da superação de obstáculos concretos

para a vida social.

Fundamentalmente, a comunidade que enseja pelo surgimento de uma economia de tipo novo

e que a beneficie mais diretamente só é possível a partir de determinadas vinculações

políticas. Tem-se que é o nível de proximidade entre os trabalhadores, bem como as

convergências políticas criadas e recriadas no cotidiano que serão, enfim, os determinantes

para o estabelecimento da empreitada sócio-econômica. Política neste sentido, é o fundamento

ativo, infra e intra-comunitário que possibilitará dinamizar e fazer fluir novas práticas e, por

conseguinte, novas sensibilidades e percepções que irão garantir coerência e unidade mínimas

para a edificação da infra-organização básica e essencial que possibilitará dinamismo para a

nascedoura sociabilidade econômica.

O resgate do sentido da política como dimensão fundante para quaisquer iniciativas que

envolva economia social é, pois, um imperativo epistemológico para este trabalho e, a bem da

verdade, este debate irá transversalizar das mais diferentes formas, todas as análises que se

seguem em torno da economia solidária. Terminologicamente, não pode haver produção

econômica sem formação social, portanto, política, que lhe constitua.

Boockhin (2003. p. 12) afirma:

Antes da formação do Estado-nação, a política tinha um sentido diferente deste de hoje. Ela significava a gestão dos negócios públicos pela população em nível comunitário; negócios públicos que, em seguida, tornaram-se o domínio exclusivo dos políticos e dos burocratas. A população geria a coisa pública em assembléias cidadãs diretas, no cara a cara, e elegia conselhos que executavam as decisões políticas formuladas nessas assembléias. Estas controlavam de perto o funcionamento desses conselhos, revogando os delegados cuja ação era objeto da desaprovação pública. Mas limitando a vida política unicamente às assembléias cidadãs, corria-se o risco de ignorar a importância de seu enraizamento numa cultura política fértil feita de discussões públicas cotidianas, nas praças, nos parques, nas esquinas das ruas, nas escolas, nos albergues, nos círculos etc.

A política é, sob esta perspectiva, elemento estruturante da vida social e, afirmar a sua

centralidade nos fazeres econômicos é desta forma, o caminho metodológico de maior

pertinência para a compreensão e que se pretende estabelecer em torno dos princípios que

fundarão a contemporânea economia solidária.

Outra importante consideração é a que trata dos elementos constitutivos dos sistemas

econômicos predominantes, da forma como se organizam, se articulam e geram continuidade

para o seu prevalecimento. A compreensão desses aspectos é exercício marcante para a

posterior identificação das reais possibilidades dos trabalhadores em prol da fazimento e

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viabilidade de um empreendimento econômico contra-hegemônico. Em outros termos, a que

se considerar as contradições de um modelo econômico predominante e que engendrarão o

surgimento de formas econômicas autônomas advindas, necessariamente, e por exigência

histórica, dos trabalhadores. Nesses termos, determinadas conjunturas se apresentam mais

favoráveis que outras para as lutas, reivindicações e mesmo o desenvolvimento de formas

específicas de resistência econômica.

A economia solidária como sendo uma atualidade das lutas dos trabalhadores se insere

inexoravelmente neste cenário e nestas relações. Traz vocabulário, interfaces e estratégias

específicas do tempo presente e seu re-surgimento como tipo atualizado a contribuir com a

retomada das lutas dos trabalhadores deita raízes nos processos sócio-históricos da primeira

revolução industrial.

O surgimento efetivo da economia social, economia solidária, como estratégia dos

trabalhadores no enfrentamento do desemprego ocorre, para a maioria dos seus estudiosos e

analistas, a partir da primeira metade dos anos de 1980, contudo, o seu formato

contemporâneo terá origem no ambiente de múltiplas adversidades da revolução industrial.

Singer (2003, p. 117), afirma: A economia solidária, tal qual a vivemos hoje, na passagem ao século XXI, em numerosos países, tem como antecedente principal o cooperativismo operário, surgido das lutas de resistência contra a Revolução Industrial, ao longo do século XIX e XX. Ele foi concebido e praticado por Robert Owen (1771-1859), possivelmente o mais importante iniciador do que hoje é o movimento socialista. Ao contrário de seus contemporâneos Charles Fourier (1772-1827) e Claude-Henry de Rouvroy, Conde de Saint Simon (1760-1825), que se limitaram a escrever obras e sobre elas fundar escolas de pensamento, Owen sempre timbrou em testar suas proposições na prática social e econômica, primeiro na grande indústria têxtil em New Lanark, depois na colônia cooperativa de New Harmony, nos Estados Unidos, mais tarde à testa de potente movimento sindical, pregando a formação de cooperativas para tomar os mercados dos capitalistas.

Considera-se que a assim chamada Revolução Industrial, acontecida na Inglaterra no século

XVIII, marcará um tipo específico de intensificação das atividades produtivas e que, por

conseguinte, mudará todo o mundo, mas também irá demonstrar, como em nenhum outro

instante da história humana, as imensas contradições e que serão estabelecidas a partir das

conflitantes relações envolvendo capital e trabalho.

Neste contexto se atesta, com certa facilidade, iniciativas dos trabalhadores, a imensa maioria

deles, advindos de áreas campesinas, envolvendo algum tipo de arranjo sócio-econômico em

que novas práticas de produção, distribuição ou consumo foram estabelecidas entre indivíduos

de uma mesma comunidade.

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Asseguradamente, este aspecto se liga ao fato de que a revolução industrial não fora tão

revolucionária a ponto de possibilitar inclusão e trabalho para milhares de trabalhadores

ingleses.

Hobsbawn (2000, p.151) afirma: As discussões até agora não têm sido, portanto, inconclusivas. Elas têm eliminado, por enquanto, a hipótese de um aumento substancial das rendas reais médias, embora deixando em aberto a escolha entre outras. Elas eliminaram assim, pelo menos em suas versões mais simples, o argumento por meio do qual os estudiosos otimistas tentaram evitar a interpretação tradicional e predominantemente sombria dos efeitos sociais da Revolução Industrial e as evidências e argumentos sobre os quais ela se baseou (...). Os efeitos da Revolução Industrial sobre os trabalhadores pobres são tanto econômicos (no sentido estreitamente quantitativo e material) como sociais. Os dois não podem ser isolados uns dos outros. E agora que a tentativa de provar que os benefícios econômicos foram tão grandes que não havia realmente nenhum motivo de descontentamento foi rejeitada, é tempo de voltarmos à perspectiva mais ampla e mais sensível dos historiadores pré-Claphamistas. O caso deles foi reformulado em termos modernos como se segue: A Revolução Industrial foi uma coisa má para os trabalhadores pobres – pelo menos durante várias décadas – porque produziu “pressão sobre o consumo e os padrões de vida materiais das massas da população numa ocasião em que esta foi forçada a se adaptar a mudanças sociais importantes.

O que se quer enfatizar é que o desfavorável cenário da Revolução Industrial propicia o

surgimento de encontros entre trabalhadores a fim da solução de problemas que os atingem

diretamente. Nesta conformidade, têm-se ainda, que a Revolução Industrial irá fornecer, do

ponto de vista histórico e a duras penas, os motivos centrais para o surgimento das primeiras

organizações dos trabalhadores e que se farão, sobremaneira presentes, ainda nos tempos

presentes. Neste particular, infere-se que a imensa maioria de experimentações envolvendo as

organizações representativas dos trabalhadores, bem como outros mecanismos organizativos,

como associações, sindicatos ou ligas de trabalhadores, ainda vivamente atuais, surgem, são

frutos e aperfeiçoamentos inequívocos das lutas e embates das classes trabalhadoras

contemporâneas à Revolução Industrial.

Este aspecto determinante irá se fazer por demais presente no histórico dos trabalhadores do

mundo e irá definir o surgimento de uma identidade própria para a classe trabalhadora.

Bresciani (2004, p. 22) afirma:

Nessa Londres da metade do século, com dois e meio milhões de habitantes, projetam-se com total nitidez a promiscuidade, a diversidade, a agressão, em suma, os vários perigos presentes na vida urbana. Para além do fascínio se faz sentir o medo. Na expressão de Shelley: “o inferno é uma cidade semelhante a Londres, uma cidade esfumaçada e populosa. Existe aí todo tipo de pessoas arruinadas e pouca diversão, ou melhor, nenhuma, e muito pouca justiça e menos ainda compaixão”. Os observadores contemporâneos são unânimes ao afirmar

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que o assustador contraste entre a opulência material e a degradação do homem fazia de Londres uma singularidade absoluta. Engels, em viagem pela Inglaterra na década de 1840, diz não conhecer nada mais imponente do que o espetáculo proporcionado pela subida do Tamisa em direção à Ponte de Londres. “O amontoado das casas, os estaleiros navais de ambos os lados, os inumeráveis navios alinhados ao longo das duas margens, estreitamente unidos uns aos outros, e que, no meio do rio, deixam apenas um estreito canal onde centenas de barcos a vapor se cruzam a toda velocidade, tudo isto é tão grandioso, tão enorme, que se fica atônito e estupefato com a grandeza da Inglaterra, mesmo antes de se pisar solo inglês” (A condição da classe trabalhadora na Inglaterra). O tom otimista desaparece em seguida, ao ser avaliado o custo social do crescimento econômico. Poucos dias de permanência na cidade bastam para que identifique “os efeitos devastadores da aglomeração urbana”. Percorrendo as ruas principais da metrópole, Engels se vê constrangido a abrir passagem através da multidão e das intermináveis filas de carruagens e carroças, constrangimento esse que aumenta quando ele chega aos bairros ruins e conclui que os londrinos se viam obrigados a sacrificar a melhor parcela de sua qualidade de homens na tarefa de atingir todos os milagres da civilização.

Chegando a termo, conclui-se que é o cenário da Revolução Industrial, seguido de seus

respectivos desafios, que obriga a criação, por parte da classe trabalhadora, de alternativas

sociais e econômicas em condições reais de produzir algum tipo de resposta aos enormes

dramas pelos quais passavam os trabalhadores de então. Dessa forma, pode-se citar o clássico

exemplo dos chamados quebradores de máquinas ou luddistas e que, a partir de formas

extremas, buscavam resistir ante ao avanço rigoroso e desumanizador do sistema produtivo

das fábricas.

A relevância destes aspectos acha-se menos nas ações objetivamente desenvolvidas e muito

mais na tomada de consciência dos indivíduos que, imersos em relações sociais e de trabalho

claramente injustas e degradantes levantam-se, desta vez como classe política em prol do

desencadeamento de movimentos que possam provocar algum tipo de reversão ante ao vivido.

Neste sentido, tem-se que, nos interessa sobremaneira, identificar os sentidos da própria

autonomia construída por estes indivíduos no processo de constituição do ato emancipatório.

Autonomia como expressão racional e relacional concreta advinda de homens e mulheres

imersos em relações que, em seus mínimos, negam suas humanidades.

Como afirmação do humano ante ao desumano e que marca as estruturas sociais e econômicas

predominantes e respectivas relações sociais. Assim, a autonomia é a própria elevação da

consciência humana, processada a partir da intensificação de fazeres coletivos, para níveis e

qualidades necessariamente superiores posto se tratar de um tipo específico de ruptura que o

indivíduo desenvolve com o seu mundo e as suas circunstâncias imediatas. O esforço é

converter e elevar a autonomia, posto que se trata de um processo de individuação, para o

amplo movimento de autogestão, esta, categoria eminentemente coletiva.

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Afirma Tragtenberg (1986: p. 09): A autogestão não é um objetivo da sociedade capitalista, seja na forma do capitalismo privado, seja na forma livre-concorrencial, monopolista ou estatal. Ela significa que o proletariado e os assalariados em geral gerem por si mesmos suas lutas, através das quais se conscientizam de que podem administrar a produção e criar formas novas de organização do trabalho. Em suma, que podem colocar em prática a “democracia operária”. O predomínio da autogestão nos campos econômicos, social e político manifesta-se sempre que os trabalhadores aparecem como sujeitos revolucionários. São os períodos de ascensão dos movimentos de massas que tomaram forma na Comuna de Paris de 1871, na Revolução Russa de 1917, na Guerra Civil Espanhola de 1936, nas rebeliões de 1918 na Hungria e na criação do sindicato Solidariedade (1978) na Polônia.

Sendo assim, a autonomia é um profundo e singular processo de humanização e que se opera

na subjetividade humana visando, finalmente, a superação da condição adversa, concreta e

material do real e que golpeia fundo o coletivo. No âmbito da economia solidária, economia

política por excelência, a idéia é pensar a autonomia como encontro ou reencontro dos grupos

sociais, afirmando e ratificando a própria importância formativa de situar concreta e

historicamente o coletivo no processo de produção prevalecente.

Todo esse movimento epistemológico e assumidamente militante a partir, sobretudo, da

perspectiva do trabalho livre e emancipado e, fundamentalmente, como imperativo estratégico

para a produção da vida individual ou coletiva a partir de outros matizes sociais, políticos e

econômicos.

De outro modo, não pode existir autonomia para a atomização do indivíduo, para o seu

fracionamento como ser político, isolamento ou sua conseqüente fragmentação como membro

de um grupo social dado. Em um movimento que o torna menor, sobretudo como força

política, a autonomia não pode acontecer. Porque não promove o individuo, tampouco o

desenvolvimento de caminhos pessoais.

De novo, a imbricação social e política a que está submetido o articulado indivíduo/coletivo é

de tal monta e importância que os conceitos ai relacionados, sobretudo as categorias políticas,

necessitam de serem atualizadas sob o viés da potencialização política ou, como se diz

contemporaneamente, do empoderamento social.

A autonomia, como fato político e como dimensão axial para a economia social, só se

processa na medida em que potencializa, sobretudo politicamente, o coletivo. Desta forma, as

iniciativas concebidas e levadas a cabo pelas classes trabalhadoras revelam importantes

dimensões deste segmento e que se pretende revelar em abordagens posteriores.

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Referencias BOOKCHIN, Murray; BOINO, Paul; ENCKELL, Marianne O bairro, a comuna, a cidade... Espaços Libertários! São Paulo: Editora Imaginário, 2003; HOBSBAWN, Eric J. Os trabalhadores: Estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000; RECH, Daniel. Cooperativas: Uma Alternativa de Organização Popular. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000; SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002; ___________ Economia Solidária. A Outra Economia. Antonio David Cattani (org.). Porto Alegre-RS: Veraz Editores. TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo: Editora Moderna Ltda., 1986.