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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Alexandre Ferraz Herbetta Peles braiadas: modos de ser Kalankó DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANTROPOLOGIA) São Paulo 2011

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Page 1: Peles braiadas - PUC-SP

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Alexandre Ferraz Herbetta

Peles braiadas: modos de ser Kalankó

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANTROPOLOGIA)

São Paulo

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Alexandre Ferraz Herbetta

Peles braiadas: modos de ser Kalankó

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANTROPOLOGIA)

Tese apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em

Ciências Sociais (Antropologia)

sob a orientação da Profa. Doutora

Lúcia Helena Vitalli Rangel.

São Paulo

2011

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BANCA EXAMINADORA

_________________________________

_________________________________

_________________________________

_________________________________

_________________________________

_________________________________

Page 4: Peles braiadas - PUC-SP

Agradecimentos

Este trabalho só pôde ser concluído graças à colaboração e à generosidade de diversas

pessoas, em diversos níveis e ocasiões.

Algumas delas, desde e para sempre.

À Maíra, pelo companheirismo e pelo intenso amor. Pelo tempo da luta e pelo futuro.

À minha mãe, meu pai e minha avó, pela nascença e pelo tempo dos antepassados.

Obrigado também aos diversos amigos e amigas. Antonio, Marceno, Paulete, Japa,

Serginho, Liliana, Max, Whittlesea, Tonoco, Elitza, Luisona, Karina, Olda…

À alguns interlocutores pontuais e fundamentais, desde antes do doutorado: Deise Lucy

Montardo e Rafael José de Menezes Bastos.

À outras pessoas, pela relacão estabelecida ao longo do doutorado.

Obrigado a Lucia Helena, minha orientadora. Sua cordial orientação guiou os rumos

deste trabalho. Sem nossas conversas não teria chegado até aqui. Obrigado também por

me apresentar generosamente o universo da complexidade.

Obrigado aos funcionários, colegas e professores do Programa de Estudos Pós-Graduados

em Ciências Sociais que me conduziram em tão apaixonante caminho. Á Dodi, Eliane e

outros.

À banca de qualificação, que com muita inteligência e disposição, mostrou-me o caminho

final. Ao Rodrigo Barbosa Ribeiro e ao Edgar de Assis Carvalho.

Page 5: Peles braiadas - PUC-SP

Obrigado ao André, músico e intelectual, pela assitência nas transcrições e por me ajudar

a entender a fascinante teoria musical Kalankó.

Obrigado ao John O’Brien pela revisão do abstract.

Aos amigos sertanejos. Siloé, Clóvis, grande e generoso camarada Zé Silva, Fal, Auta,

Jorge Vieira, Gilberto e tantos outros

Obrigado especialmente aos Kalankó.

Por me receberem como primo e com sorrisos. Sem isto nada teria acontecido.

Culezinha e Cida, Zé Magrinho, Tonho Preto, Paulo, Jardilina, Joana, Seu Pedro,

Henrique, Rodrigo, Val, Pelé, Pedrinho, Velhinho, Neco, Tia Maria, Antonio, Pedro, Seu

Zé, Abdias, Marcinha e a todos os outros.

Obrigado também à CAPES que deu parte essencial do suporte financeiro necessário à

aventura.

Page 6: Peles braiadas - PUC-SP

Nota sobre os símbolos usados.

A perspectiva central do estudo em questão é a estruturalista, tendo a obra de

Lévi-Strauss como guia. Neste sentido, muitos símbolos usados pelo autor e expressos

nos volumes da tetralogia “Mitológicas” (1964-1971) são usados. Eles têm como

objetivo explicar as relações estabelecidas ao longo do texto.

Apresento abaixo os principais símbolos utilizados para a facilitação do

entendimento.

: está para

:: assim como

/oposição

=identidade

U união, conjunção

// disjunção

f função

≡ homologia, correspondência

Nota sobre a grafia dos termos nativos.

Os Kalankó falam uma variante do português, que inclui uma série de termos e

expressões idiomáticas com conteúdo semântico bastante diverso daqueles que teriam no

“meu” português, além de uma fonética - o “sotaque” - bastante característica.

Levando isto em conta, as letras das músicas e os depoimentos Kalankó serão

transcritos neste trabalho da maneira mais próxima possível à pronúncia nativa, do ponto

de vista de minha percepção não treinada em lingüística. Nas músicas de praiá, um dos

gêneros musicais da comunidade, a grafia representará a sonoridade do canto.

Similarmente, os termos e expressões nativas, especialmente aqueles (as) que

possuem conteúdo semântico particular e relevante ao sistema de pensamento Kalankó

serão transcritos em itálico. Estes termos e expressões serão explicados ao longo do texto.

Page 7: Peles braiadas - PUC-SP

Nota sobre o uso das imagens.

O uso das fotografias nesta tese propõe-se a construir um diálogo entre texto e

imagem, no qual um complementa e agrega informação ao outro. Desta forma, as

imagens não servem para ilustrar, explicar, definir ou apresentar qualquer informação

presente no texto. Elas atuam como um texto paralelo em associação ao texto principal.

Por isso, escolheu-se usar uma imagem para cada capítulo. A imagem escolhida

não necessariamente tem uma relação direta com o capítulo ou com o texto subseqüente.

Ela está ali como contraponto, constituindo de forma não-linear uma análise abrangente

sobre os modos de ser Kalankó. Neste sentido, acima de tudo, elas representam estes

modos.

Page 8: Peles braiadas - PUC-SP

Sumário

Apresentação – afastamentos e aproximações 14

1. Adaptação – modos de perceber a violência 30

2. Tensões – dinâmicas entre estrutura e história 52

3. Invenções – formas de codificação do universo 78

4. Grande família – produzindo primos, recortando parentes 117

5. Variações – modos de circulação dos signos 145

6. Devires – relações entre pássaros e plantas 201

7. Circuito – redes de entrelaçamento no sertão nordestino 236

8. Riso Kalankó – formas de associação e diferenciação 272

Amarrações – sistemas de conservação e transformação no alto sertão 300

Referências 316

Anexo I – Lista da população Kalankó 330

Anexo II – CD- encarte 336

Fotografias

1. D. Joana – Tempo da Luta 14

2. D. Maria – Tempo dos Antepassados 30

3. Culé e sua cruz 52

4. Toré das crianças 78

5. Maracá vivo 117

6. Praiá do “camisa 10” 145

7. Encanto ou pássaro? 201

8. Caminho do terreiro (desenho) 236

9. Riso de Kalankó 272

10. Índio brasileiro e sertanejo 300

Mapas

1. Estado de Alagoas 31

2. Água Branca 39

Page 9: Peles braiadas - PUC-SP

3. Brejo dos Padres/PE 46

4. Grupos indígenas de Alagoas 244

Diagramas

1. Campo semântico – Índio nordestino 24-27

2. Abundância e escassez 33

3. Mistura 42

4. Famílias Severo e Higino 118

5. Família Higino 119

6. Cantadores e Dançadores 119

7. Primos 121

8. Família Severo 122

9. Vivo e não-vivo 209

10. Paisagem sonora 220

11. Concepção Kalankó do espaço 243

12. Matriz Cultural – Pankararu/PE 248

13. Relação dos povos indígenas do sertão com o Estado-nação 249

14. Relação entre os povos do alto sertão alagoano 251

15. Concepção de beleza 298

16. Relação entre céu e terra 307

Gráficos

1. Famílias de Água Branca e Kalankó 16

2. Sentidos para encantado 203

3. Espectrografia 222-233

Quadros

1. Níveis de atuação da energia encantada 129

2. Potência da energia em relação ao espaço 131

3. Sistema Vivo 134

4. Função da lógica de associação e recorte 140

5. Função de associação em movimento 255

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Resumo

Os Kalankó vivem no alto sertão alagoano, mais especificamente no município de

Água Branca/AL. Eles afirmam-se – publicamente – indígenas, desde o fim da década de

1990, sendo reconhecidos como tais pelo Estado brasileiro em 2003. A etnologia

indígena estuda e classifica este fenômeno como etnogênese, além de outros termos afins.

Estes estudos focam-se na relação social destas populações com o Estado-nacão e entre

elas.

Esta tese busca compreender o ponto de vista Kalankó sobre o que é ser uma

pessoa Kalankó.

Trata-se ainda de um estudo sobre o sistema simbólico nativo que tem como base

a música, a qual age como o pivô de um complexo ritual que liga o sistema

mitocosmológico a alguns outros domínios culturais, apontando para a existência de um

sistema de representações sociais acerca do mundo e do self.

Além disso, tenta-se entender como este sistema de representação é usado para se

estabelecer aproximações e distanciamentos estratégicos em relação às outras populações

da região e do Brasil.

Neste sentido, busca-se ainda compreender o que é uma identidade indígena, da

perspectiva indígena do processo. E, assim, o que é humano para as populações em

questão.

Para isso, o desenvolvimento do trabalho apoiou-se em uma série de oito viagens,

divididas assimetricamente entre os grupos indígenas do alto sertão alagoano, os

principais centros urbanos da região e principalmente a aldeia Kalankó.

Neste sentido, os objetivos da tese são os de realizar um aprofundamento nos

estudos sobre o conceito de cultura e de identidade, contribuindo ao campo de estudos da

antropologia. E, acima disso, reposicionar os Kalankó e os outros povos indígenas do

sertão nordestino no campo de estudos da etnologia indígena no Brasil, deixando-os

simetricamente ao lado de outras populações ameríndias e expandindo as possibilidades

de entendimento destas pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: PESSOA, ÍNDIO, IDENTIDADE, HUMANO

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Abstract

The Kalankó community lives in the hinterland of Alagoas, more specifically in

the municipality of Água Branca/AL. They have reinforced their indigenous identity –

publicly – since the end of the 1990s, receiving the official classification by the federal

government – as Indians - in 2003. The field of ethnology classifies this phenomenon as

ethnogenesis, among other related terms. These studies focus on the relationship between

these populations and the nation state.

This thesis aims to understand the Kalankó point of view as to what it means to be

a Kalankó person. It is also a study on the symbolic system that is based on native music

that acts as the pivot of a complex ritual that connects the mythology with some cultural

domains and points out a complex representation of reality.

In this sense, this thesis also attempts to understand how this representation is used to

establish similarities and differences of strategic importance to the other peoples of the

region and Brazil.

In addition, I seek to understand what is an indigenous identity from the

indigenous perspective. As a consequence, this provides insight into what is human.

This thesis is based on a series of eight trips to the region, divided asymmetrically among

indigenous groups in the same area, as well as major urban centers of the region, with the

main focus on Kalankó villages.

In this sense, one of the objectives of this thesis is to carry out studies on the

concept of culture and identity, contributing to the field of anthropology. And beyond

that, it tries to reposition Kalankó and other indigenous peoples of the northeastern

hinterlands among ethnology in Brazil, leaving them symmetrically among other

indigenous people, expanding the possibilities of the understanding of human

phenomenon.

KEY WORDS: PERSON, INDIAN, IDENTITY, HUMAN

Page 12: Peles braiadas - PUC-SP

A xilogravura é de Mestre Jerônimo, um renomado gravurista do sertão. Jerônimo

expressa como poucos os signos fundamentais para a elaboração e compreensão do

universo sertanejo nordestino, observável através da análise de um sistema de

representação comum à população de lá.

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Na imagem acima se pode perceber a flor como centro da representação. Ela

absorve a energia do sol e é circundada por uma série de pássaros. Dentre eles, há um que

se destaca, por seu tamanho avantajado e por servir de transporte a uma criança. Outra

criança se posiciona quase que de forma uterina no interior da flor. Outras crianças ainda

se colocam no colo de adultos posicionados em primeiro plano.

Do sol, posicionado no alto, desce uma espécie de energia que parece abranger e

alimentar os seres na terra.

Grosso modo, depreende-se destes elementos a abundância representada pelo

número de seres – flor, sol, pássaros e crianças - e o sofrimento presente na expressão das

pessoas.

ABUNDÂNCIA/SOFRIMENTO

Page 14: Peles braiadas - PUC-SP

14

Apresentação

Afastamentos e Aproximações

Há dez anos frequento a aldeia Kalankó. Neste período me interessei cada vez

mais pelos sujeitos em questão, suas ideias, condutas e emoções. Interessei-me também

por suas diferenças em relação a outras populações.

Sempre chamou-me a atenção a gentileza desta população, em oposição à suposta

brutalidade da caatinga alagoana. E, além disso, foi marcante uma aparente

homogeneidade cultural em relação à população do entorno.

As conversas regulares que mantive com boa parte dos Kalankó propiciaram um

rico material de análise e serão usadas ao longo do texto para apresentar o grupo.

Dona Joana, por exemplo, uma distinta senhora, me disse um dia que ouve o trupé

dos encantados quando eles estão próximos. Os encantados são entidades espirituais

ligadas aos antepassados que ainda em vida se transformaram em energia e, hoje,

intervêm na comunidade a fim de auxiliar os sujeitos.

Page 15: Peles braiadas - PUC-SP

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A afirmação acima aponta em primeiro lugar para uma transformação na aldeia

Kalankó, na maioria dos casos, ligada a um processo de cura. Esta transformação é

decorrente da presença do encanto. Em segundo lugar, ela marca uma possibilidade

bastante particular. Afinal, não é sempre que o código auditivo serve para a percepção e o

entendimento de um processo tão abstrato. E que, simultaneamente, está ligado a

intervenções importantes e concretas na aldeia.

Deste modo, a fala de Dona Joana aponta para um modo particular de ser

Kalankó. Em relação a isso, em muitas outras ocasiões os Kalankó se aproximam da ideia

de sertanejo1, classificação genérica das outras populações que vivem na região, na

maioria dos casos representando a população de baixa renda.

Nas conversas que tive com a população de Água Branca/AL, município ao qual

pertence à aldeia Kalankó, estas aproximações ficaram muito evidentes. Lá, muitas vezes,

meus interlocutores usavam expressões idiomáticas, gírias e termos com sentido

semelhante aos Kalankó, apontando para uma baixa contrastividade cultural entre ambos

(OLIVEIRA, 1998: 47-77).

Estas aproximações também aparecem claramente na etnologia produzida sobre o

sertão nordestino. Estes trabalhos buscam analisar os processos políticos associados à

formação dos grupos étnicos, o que se dá em relação aos mesmos e em relação ao estado

brasileiro. Eles têm como um de seus pilares esta homogeneidade cultural das

populações.

Além disso, o senso comum expresso por boa parte dos brasileiros, diz que ser

índio está ligado à aparência física e à prática de alguns costumes ―exóticos‖,

corroborando as ideias acima apresentadas. Note-se que ambas as populações – as

sertanejas locais e a índia Kalankó – são muito parecidas também fenotipicamente.

Desta forma, evidencia-se que os Kalankó possuem tanto aproximações quanto

afastamentos em relação às populações vizinhas e, por isso, transcendem a ideia de

1 Ao invés de sertanejo, pode-se usar também o termo caboclo. Muitas vezes, os dois termos possuem o

mesmo sentido. Algumas vezes, porém, caboclo é usado de forma pejorativa pela população do entorno

referindo-se aos indígenas – ver Maia Andrade (2008). Em outras oportunidades, caboclo é usado pelos

índios para referirem-se a si mesmos ou para falarem dos encantados. Nestas vezes, o termo possui sentido

positivo. O termo caboclo é normalmente usado nas etnogafias referindo-se aos indígenas. Para não haver

confusão, opta-se aqui pelo uso do termo sertanejo.

Page 16: Peles braiadas - PUC-SP

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identidade étnica. Neste sentido, ser índio é apenas um de seus atributos, enquanto

humanos e brasileiros, em um determinado espaço-tempo.

Para corroborar o exposto, uso dados de minha dissertação. Em Herbetta (2006)

identifiquei relações entre famílias indígenas e águabranquenses, estabelecendo relações

sociais concretas entre ambas. O estudo em questão tem como base uma pesquisa

comparativa que foi realizada em duas escolas de Água Branca. A primeira deu-se na

Escola Estadual Domingos Moeda. Lá, de um universo de 384 alunos, 249 possui

sobrenomes de famílias indígenas, ou 64,84% dos alunos pesquisados, o que aponta para

a relação acima expressa.

No Colégio Monsenhor Sebastião, o panorama é o mesmo. Dos 211 alunos

pesquisados, 139 alunos têm provável grau de parentesco com as famílias Kalankó, ou

65,87% do universo pesquisado.

O gráfico abaixo representa o fenômeno. Nele destacam-se alguns sobrenomes

muito comuns na região – entre os Kalankó e os águabranquenses.

SANTOS

SILVA

GOMES

CONCEIÇÃO

REIS

SANTOS SILVA

CONCEIÇÃO SANTOS

GOMES SANTOS

CONCEIÇÃO SANTOS

CONCEIÇÃO SILVA

GOMES SILVA

Este gráfico indica que, apesar de os nomes que identificam cada uma das

famílias serem comuns em praticamente todo território brasileiro, as relações entre elas –

indígena e sertaneja - são constantes nos diversos espaços da região. Isto fica claro pela

grande quantidade de similaridades, confirmando a tendência de homogeneidade cultural.

Em segundo lugar o gráfico comprova a intensa mistura dos sujeitos que vivem

lá. Isto aponta para o fato de que os Kalankó e os águabranquenses podem pertencer a

ambos os domínios, já que fazem parte, muitas vezes, de um mesmo sistema genealógico.

Page 17: Peles braiadas - PUC-SP

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Neste sentido, pode- se perceber a situação como uma complexa estrutura de ―seres

humanos, ligados uns aos outros por uma série ilimitada de relações sociais‖

(RADCLIFFE-BROWN, 1940: 2)1.

Tudo faz parecer, portanto, que no nordeste brasileiro a oposição entre índio e

não-índio tem valia fundamental tipicamente no plano jurídico-político, limitando o

direito à terra à maioria da população. Este cenário é constituído com base num processo

histórico violento de expropriação de terras e marginalização social.

Desta maneira, ao invés de classificá-los como índios e não-índios, poderíamos

desnaturalizar a classificação e pensar que os sujeitos lá têm tanto do indígena quanto do

sertanejo e do brasileiro. E ainda mais, que todos devirão índios (MENEZES BASTOS,

2002; HERBETTA, 2006).

Ainda no gráfico, evidencia-se uma ambiguidade, pois fica claro que tais

sujeitos, portadores dos mesmos sobrenomes, podem potencialmente pertencer a ambos

marcadores identitários simultaneamente. Eles podem se afirmar indígenas ou

sertanejos2, ao mesmo tempo.

O estudo de Leach (1996 [1964]) entre os Kachin reforça esta ideia. Para ele, ―o

conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma

sociedade com outra pressupõe, na verdade, que as sociedades [tratadas] existam durante

todo o tempo em equilíbrio estável‖ (: 67). Mas as sociedades reais não podem jamais

estar em equilíbrio.

O trabalho aqui apresentado tratará desta ambiguidade.

Desta maneira, para entender melhor a situação acima expressa, aprofundei-me

no estudo da noção de cultura e na particularidade da cultura Kalankó, entendendo-a

como um ―conjunto etnográfico que, do ponto de vista da pesquisa apresenta

afastamentos significativos em relação a outros‖ conjuntos (LÉVI-STRAUSS, 2008

[1958]: 320). Além disso, busquei as aproximações e diferenciações entre as populações

citadas, a fim de entender o que faz um sujeito Kalankó.

Page 18: Peles braiadas - PUC-SP

18

Tais relações emergiram no universo simbólico presente em toda a região do alto

sertão alagoano2. Este simbolismo pertence ao domínio do social, no qual emergem

elementos, signos, conceitos, relações e condutas responsáveis pela configuração deste

conjunto, ―já que a formulação psicológica não é mais do que uma tradução, no plano do

psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociológica‖ (LÉVI-STRAUSS,

2001 [1950]: 15). Há desta forma, uma subordinação do psicológico ao social.

Neste cenário, aproximei e distanciei os conjuntos populacionais, identificando os

elementos ou domínios que, do ponto de vista Kalankó, são usados neste jogo de

aproximação e diferenciação em relação às populações vizinhas.

Deste modo, ―o termo cultura é empregado para reunir um conjunto de

afastamentos significativos cujos limites, conforme prova a experiência, coincidem

aproximadamente‖ (LÉVI-STRAUSS, 2008 [1958]: 320).

Além disso, o alto sertão alagoano é entendido como um espaço de intensas e

contínuas relações socioculturais, onde o contato e intercâmbio acontecem em diversos

planos, desde o do parentesco, dos objetos, até o plano simbólico. As relações aqui

incluídas estando assentadas na existência de um vasto sistema de signos conectadas

através de transformações históricas e estruturais.

Leach (1996 [1964]) aponta para a situação acima explicitada. Para ele, ―é,

portanto, metodologicamente errôneo tratar como tipos independentes as diferentes

variedades de sistemas políticos que encontramos [... os quais...] deveriam ser

considerados claramente como parte de um sistema total mais amplo em contínua

mudança‖ (: 70).

O desenvolvimento desta tese se realizou em oito viagens, realizadas nos meses

de outubro-novembro de 2001, agosto-setembro de 2003, dezembro de 2003; março-

junho de 2005, fevereiro de 2007, julho de 2007, junho-julho de 2008 e junho-julho de

2009.

Estas viagens foram responsáveis pelo conhecimento da região, pela entrada e

inserção no grupo e pela coleta de informações e desenvolvimento do texto. Ao mesmo

tempo, realizei diversas visitas aos centros urbanos mais próximos, as quais foram

2 O foco da tese é o universo simbólico expresso em um sistema de representação particular. Ressalta-se,

porém, que as ambiguidades, aproximações e distanciamentos evidenciados ao longo do texto podem ser

observados em outros domínios culturais, como deixa claro a etnologia produzida na região.

Page 19: Peles braiadas - PUC-SP

19

importantes para investigar situações de encontro interétnico e conhecer a população da

região.

Além deste trabalho de campo, me apóio em uma extensa leitura da literatura

antropológica, com destaque para os trabalhos de cunho estruturalista, da etnologia

produzida no sertão nordestino; assim como em linhas de pesquisa da sociologia e

filosofia.

O conjunto de pequenas e regulares incursões ao campo foi fundamental para o

desenvolvimento do texto, já que me permitiu sempre um aprofundamento de temas

pertinentes à pesquisa e, em seguida, um distanciamento necessário à análise dos dados e

à produção do texto.

Estas aproximações e distanciamentos do campo fizeram com que eu trabalhasse

muito com a intuição, já que tive a liberdade e a disponibilidade de testar hipóteses e

relações ao longo do tempo, as quais puderam ser modificadas e/ou reexperimentadas em

outras incursões no campo.

A leitura de Serres (2001[1985]) foi importante para o uso de tal técnica. Para o

autor, o conhecimento, mesmo o científico, nunca foi e nunca será absolutamente linear e

exato, cabendo ao pesquisador ―navegar‖ junto dos outros sujeitos, construindo sua

experiência. Além disso, para ele a própria intuição não é ―qualquer coisa‖, mas está

ligada aos códigos pessoais de interpretação dos sujeitos envolvidos na relação.

A intuição, o acaso e as irregularidades emergiram, neste sentido, como

momentos/instrumentos importantes de análise e foram sendo apropriados pelo domínio

textual, fazendo surgir determinado entendimento do campo, que só ficava claro quando

os elementos e relações ali observadas estavam relacionados no texto.

O texto apareceu como o domínio do concreto, ou seja, o espaço onde uma série

de elementos e abstrações aparentemente dispersos e descontínuos assumia suas posições

no universo em questão e tornava-se material, como estrutura de análise. Lendo Mills

(2009) este método apareceu-me de forma mais clara, sendo constituinte da sociologia

proposta pelo autor.

Achard (1994) corrobora a ideia. Neste estudo, o autor mostra que o texto do

antropólogo assume sua materialidade justamente quando posto no papel, a escrita sendo,

então, elemento constituinte da antropologia. Isto ocorre porque o trabalho antropológico

Page 20: Peles braiadas - PUC-SP

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tem em si a particularidade de ser um sistema tradutor – da oralidade à escrita – que só se

legitima quando transforma o código oral, num outro, legitimado pela ciência e pelos

cientistas, a escrita.

Neste cenário, os estilos narrativos e o uso da linguagem adquiriram maior

importância, apontando para a subjetividade do processo de elaboração do conhecimento,

―sobretudo numa ciência em que o observador é da mesma natureza que seu objeto, o

observador é ele próprio uma parte da sua observação‖ (LÉVI-STRAUSS, 2001 [1950]:

24).

É no texto, então, que aparecem as múltiplas vozes – inclusive a minha – e

interesses – inclusive os meus –, legitimando a agência dos sujeitos em questão.

Ainda a partir do conjunto das viagens que foram se desenvolvendo, pude

vivenciar mais profundamente o mundo Kalankó, participar do seu dia-a-dia e estabelecer

relações mais próximas com os sujeitos da comunidade e com os outros grupos indígenas

ou não da região. Assim como ter contato com diversos outros suportes e códigos dos

signos relevantes às populações em questão. Isto inclui estadas na cidade de Água

Branca, as quais foram necessárias para a coleta e comparação de dados.

No campo, procurei trabalhar a partir de entrevistas abertas semidirigidas com os

interlocutores. Além de coletar as narrativas relativas à história do grupo Kalankó, aos

encantados e ao sistema de relações interétnicas. Trabalhei também com as transcrições e

exegeses musicais a fim de identificar as ideias relacionadas à música. Dei especial

atenção ao que considero o repertório musical Kalankó, constituído por aproximadamente

18 torés, 10 praiás, além de alguns serviços de chão. Os três repertórios referidos

constituem o sistema musical da comunidade e representam gêneros musicais específicos.

A música se mostrou fundamental para a constituição do grupo, estando

relacionada a todos os domínios culturais. Estas músicas foram analisadas tanto do ponto

de vista do texto quanto da forma.

A partir daí, através da observação participante e de anotações em diário de

campo, procurei apreender os modos de aproximação e distanciamento dos Kalankó em

relação às outras populações da região e, desta forma, o que configura o grupo em

questão.

Page 21: Peles braiadas - PUC-SP

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Neste processo, me aprofundei no estudo dos outros domínios culturais, como o

nascimento, a morte, o casamento entre outros, tentando entender os modos de ser e não

ser na região, os quais estão também relacionados ao domínio do desejo. Deseja-se ser

índio ou sertanejo. Ou ambos.

O tema do desejo, que entre os Kalankó se relaciona à emotividade, se tornou

importante, pois me parece ser mais relevante o gosto de ser Kalankó, do que qualquer

elucubração mais complexa ligada a concepções ou conceitos ditos científicos. Wacquant

(2002) corrobora a ideia quando afirma que as ciências humanas devem se esforçar para

capturar esta dimensão carnal da existência (: 11).

Para isso, não determinei alguns poucos interlocutores, mas tentei me relacionar

com o maior número de pessoas possíveis. Sejam cantadores destacados ou sujeitos

ordinários; dançadores respeitados ou senhoras interditas, Kalankó ou Koyupanká,

Geripankó ou Karuazu. Tampouco limitei as fontes, busquei relacionar o toré, o cordel,

os sons dos encantados e as expressões idiomáticas sertanejas, entre outras. As questões

de ordem sensorial ou emocional emergiram regularmente, incorporando novos

elementos às abordagens epistemológicas. As relações de amizade estabelecidas

propiciaram-me sentimentos comuns a este tipo de relacionamento, como alegria e

segurança, sensações boas para quem estava longe de casa há tanto tempo.

Além disso, participei do maior número de eventos possíveis, desde uma reunião

do PT – Partido dos Trabalhadores, em Água Branca e um churrasco dos professores do

município até os ritos Kalankó, Geripankó, Koyupanká e Karuazu.

Parti do princípio de que, muitas vezes, há um foco excessivo em determinado

tipo de interlocutor, evento e fonte. O androcentrismo, por exemplo, sendo bem marcante

em algumas antropologias. Nestes casos, há uma tendência, por exemplo, em se usar

informantes masculinos, o que deixa de lado as vozes femininas, e, consequentemente,

seus pontos de vista.

Além disso, há por vezes um foco muito específico em um tipo de ritual ou

expressão deixando de lado a complexidade do universo social.

Entre os Kalankó, as mulheres inclusive, se num primeiro momento mostraram-se

mais reticentes a conversas, especialmente com um pesquisador do sexo oposto, com o

tempo, puderam mostrar-se, em falas e ações, extremamente atuantes nas questões

Page 22: Peles braiadas - PUC-SP

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relevantes ao grupo. Elas foram essenciais, por exemplo, no processo de retomada, o qual

será claramente apresentado no capítulo 1.

Como os visitei em diferentes épocas do ano, acabei vivenciando as diversas

comunidades e as diversas hospitalidades delas. Estas hospitalidades impunham uma

série de reciprocidades, como por exemplo, as visitações, que se não fossem cumpridas,

poderiam gerar tensões.

Mais de uma vez e em diferentes lugares fui questionado por que não visitava

determinada família, se passava tanto tempo com outra ou por que tal pessoa passava

muito tempo comigo, se havia tantas outras coisas a se fazer na aldeia. Com certeza, não

consegui cumprir a vontade de todos os sujeitos do grupo e nem todas as cobranças de

visitação, mas com o tempo fui me sentindo à vontade para aparecer na casa de qualquer

um a qualquer hora, facilitando meu trabalho; pude também recusar outras visitações,

especialmente quando me sentia estafado pelo calor.

Além da visitação, foram-me exigidas outras contrapartidas. Para os Kalankó,

assim como para os outros povos indígenas do alto sertão alagoano, o trabalho do

pesquisador exige como retorno, duas atividades que são consideradas relevantes ao

índio.

A primeira delas é a de registrar uma cultura diferenciada. Na minha primeira

viagem me lembro que o pajé, num de seus ―discursos de liderança‖ (HERBETTA, 2006)

na oca de Lageiro do Couro (a aldeia principal dos Kalankó, localizada no município de

Água Branca|AL), deixou muito claro a todos, quem eu era e porque tinha viajado tantos

quilômetros para estar ali.

Na época, eu era estudante de História e fui apresentado publicamente como um

historiador responsável por registrar e consequentemente dar ―autenticidade‖ à história do

grupo. Meu trabalho era, portanto, o de ―inventar‖ a cultura e a história do grupo étnico

(WAGNER, 1981).

Para o referido autor, a ideia de cultura perpassa a relação entre o pesquisador e o

pesquisado em uma aparente e ilusória igualdade de condições, estabelecendo-se como

uma forma de objetificar o mundo. Se não sou o nativo, não sou também um mero

espectador. Sou parte destes mundos inventados e é minha inerência a um ponto de vista

que torna possível, ao mesmo tempo, a finitude de minha percepção e sua abertura ao

Page 23: Peles braiadas - PUC-SP

23

mundo total enquanto horizonte de toda percepção (MERLEAU-PONTY, 2006 [1945]:

408). Desta forma, todas as vezes que penso o sujeito Kalankó e o não-Kalankó, penso

em mim, penso por mim. Tomo tais pontos de vista em mim mesmo e situo-me atrás e

para além das diversas representações dos universos em questão (Idem: 498).

A segunda atividade do pesquisador é a divulgação. Os índios do alto sertão

alagoano acreditam que a pesquisa pode servir para dar visibilidade ao grupo étnico nos

meios acadêmicos e, como consequência, na opinião pública nacional – o que pode

contribuir para a legitimidade do grupo e a conquista de suas reivindicações.

Destarte, a viagem e, consequentemente, a pesquisa antropológica são vistas pelos

sujeitos, como uma arma de luta política, assumindo um papel semelhante àquelas

viagens realizadas pelos líderes indígenas, em busca de seus direitos. Neste momento, o

resultado das pesquisas assume seu viés político. E o pesquisador assume, então, seu

papel social junto às comunidades que pesquisa.

Neste cenário, meu interesse aqui é reposicionar os índios do sertão nordestino no

campo de estudos da etnologia indígena no Brasil. Para isso busco posicioná-los

simetricamente ao lado das outras populações ameríndias do continente, como as

amazônicas.

Desta forma, afasto-os moderadamente dos estudos sobre etnicidade. Nestes

estudos constitui-se um campo semântico próprio que delimita a percepção sobre tais

populações, representando uma territorialização, no sentido de Deleuze & Guattari (1992

(1991) já que posiciona tal população no mundo.

No campo semântico em questão, os estudos apontam sempre para o termo terra,

como razão do universo indígena. Isto ocorre em detrimento de outros temas, que são

considerados inapropriados à questão, ou seja, pertencem a outros campos semânticos.

Esta relação é evidenciada já nos primeiros estudos sobre a questão. As primeiras

análises etnológicas sobre os povos da região foram produzidas na década de 1930 e

foram responsáveis por trazer novamente os indígenas nordestinos à tona. Estas análises

foram essenciais aos primeiros processos de reconhecimento étnico, elegendo o ritual do

toré como sinal diacrítico de identificação indígena (POMPEU SOBRINHO, 1934;

DÂMASO, 1935; OLIVEIRA, 1938).

Page 24: Peles braiadas - PUC-SP

24

Neste cenário, ao termo terra, relacionam-se cultura, etnia e toré. O termo cultura

começou a se destacar nos textos produzidos sobre a questão, sendo relacionado ao termo

toré. O campo de entendimento destas populações alarga-se como exposto abaixo.

Neste conjunto, a questão étnica tem relação com a cultura popular que se

relaciona especialmente ao toré. Estas relações apontam para o território. Sendo assim, a

perspectiva dos estudos em cultura popular, relacionada ao estudo do folclore, passou a

ser o instrumento de apreensão e entendimento da população brasileira, produzindo

inúmeros trabalhos sobre os rituais praticados na região nordeste. Estas análises, porém,

entendiam a cultura destas comunidades como blocos estáticos e fragmentários, na qual

qualquer transformação ou incorporação cultural era vista como perda.

No mesmo período, alguns trabalhos etnológicos estudaram as poucas

comunidades que eram identificadas como indígenas, como os Pankararu, os Fulni-ô e os

Xukuru, todos de Pernambuco (PINTO, 1956; HOHENTHAL Jr, 1954, 1960). Estas

comunidades tornaram-se modelos para as outras e para o entendimento da questão

indígena. Além disso, o toré continua sendo entendido como marcador de identidade,

sendo considerada a dança mais praticada entre os chamados caboclos nordestinos.

Grünewald (1997), por exemplo, destaca o fato de que, na década de 40, o SPI, órgão

responsável pelo reconhecimento étnico dos povos indígenas, através da 4a Inspetoria

Regional, toma o toré Fulni-ô como paradigma e o impõe para reconhecimento dos outros

grupos indígenas no Nordeste.

É o momento em que os diversos povos indígenas estabelecem uma rede de

intercâmbio, visando a ―ensinar o toré‖ ou ―levantar aldeia‖, estendendo o número de

etnônimos. Desta forma, segundo Arruti (1999), as viagens realizadas pelas lideranças

TERRA

ETNIA

CULTURA

TORÉ

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25

indígenas para ensinar o toré a outros grupos indígenas é um ato político e coletivo de

invenção cultural e projeção do futuro, da mesma forma que é um ato místico de

retomada do passado. A partir dessa rede de relações, cada grupo indígena reelabora o

formato do toré e o toma para si como expressão de indianidade. O diagrama abaixo

representa a expansão do campo semântico em questão, relacionada ao aprofundamento

em novos temas e ao uso de outros termos.

Com a quantidade de etnias identificadas a partir do complexo do toré, a

perspectiva etnológica fortaleceu sua presença no sertão nordestino desenvolvendo

análises constantes e relevantes. Estes estudos tinham como base alguns conceitos como

identidade ou, posteriormente, etnicidade e territorialização.

O estudo da memória também apareceu e começou a ser problematizado, sendo

somado aos outros termos do conjunto ―campo semântico indígena sertanejo‖. É como se,

ser índio estivesse ligado a possuir determinada memória coletiva, que apontasse para o

toré e, assim, garantisse a territorialização.

Estes trabalhos são a base para o fortalecimento da abordagem que veio a ser

denominada como processo de etnogênese. Este processo demonstra o modo pelo qual os

sertanejos são reclassificados em índios a partir de alguns elementos culturais ―re-

TERRA

ETNIA

CULTURA

TORÉ

FULNI-Ô

PANKARARU

[…]

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26

aprendidos‖ (OLIVEIRA, 1993, 1995, 1999, 1999 a, 2000; ARRUTI, 1999; FOTI, 2000),

especialmente o complexo ritual do toré. A ideia de invenção é marcante neste campo.

Tal abordagem é extremante rica, constituindo análise aprofundada sobre a

realidade das populações em questão. Ela estabelece maior profundidade a um campo

semântico já estabelecido, estendendo o campo de entendimento, como exposto abaixo.

O diagrama acima demonstra como cada termo do campo semântico original se

desdobra em outro, estendendo o campo semântico em tela. Desta forma, evidencia-se

que se por um lado esta lógica torna a questão mais complexa, por outro reproduz a

mesma estrutura de interpretação.

Em seguida, pode-se perceber que a base da constituição deste campo semântico é

o da territorialização. Todos os outros termos são correlatos e a questão parece se

resolver nele mesmo.

Alguns outros termos destacam-se nestas novas abordagens e são incorporados ao

campo semântico em questão.

Esta lógica de entendimento da questão indígena no sertão nordestino aponta

também para o fato de que alguns trabalhos e termos posicionam-se na fronteira de tal

campo e ao desdobrarem seus termos originais, podem ser entendidos como elementos

iniciais de outro campo semântico, no qual os termos chave são diferentes, como exposto

abaixo, em negrito tais termos que podem significar a transformação.

TERRA : TERRITORIALIZAÇÃO

MEMÓRIA : CULTURA : INVENÇÃO: TORÉ

ETNICIDADE : ETNOGÊNESE

FULNI-Ô : PANKARARU : XUKURU : GERIPANKÓ [...]

PANKARARU

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27

O diagrama acima apresenta termos ligados mais ao plano da subjetivação e

pertencentes ao universo simbólico. Além disso, apontam para um aprofundamento do

entendimento da questão, localizado na análise do plano inconsciente dos sujeitos. Neste

caso, o sujeito é além e aquém do indígena. Ele é quem importa, ―é preciso fazer como

eles: observar o que é dado. Ora, ―o dado é o francês médio, é o melanésio desta ou

daquela ilha, e não a oração ou o privilégio em si‖ (MAUSS, 2001 [1950]: 193).

Ao mesmo tempo, não se nega o campo semântico anterior, já que há

aproximações e afastamentos, os termos, inclusive, podendo se repetir. Não se apaga a

importância do território e da relação com o Estado brasileiro nem se nega a importância

da etnicidade. Apenas, dá-se mais importância ao sujeito, agente do processo, buscando

seu ponto de vista sobre tudo isso.

Neste novo cenário, busquei o ponto de vista Kalankó sobre o ponto de vista

Kalankó (VIVIEROS DE CASTRO, 2002). Ou o que eles pensam ser um Kalankó.

D. Joana, na mesma ocasião supracitada, me disse que ouvir os encantados deixa-

a muito alegre e que, de certa forma, é esta alegria que a faz Kalankó.

Além de achar tal depoimento muito bonito e, de por isso, nunca mais esquecê-lo,

busquei explorar a relação dos termos usados: ENCANTADOS: SOM:ALEGRIA, para

entender melhor o que ela falava.

Desta forma identifiquei alguns temas relacionados a eles, que são: ENERGIA:

POTÊNCIA:EMOÇÃO, os quais me pareceram essenciais e ficam evidenciados na

equação abaixo.

{ENCANTADOS:ENERGIA} :: {SOM:POTÊNCIA} :: {ALEGRIA:EMOÇÃO}

TERRA : TERRITORIALIZAÇÃO : REPRESENTAÇÃO

MEMÓRIA : CULTURA : INVENÇÃO : TORÉ: EMOÇÃO

ETNICIDADE : ETNOGÊNESE : SIMBOLISMO

CONSCIENTE : INCONSCIENTE

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Outros Kalankó sempre me falaram que esta alegria é fundamental para a vida

deles, pois é vista em contraste com o mundo dado da tristeza, estabelecendo um

equilíbrio sutil no universo em questão. Estas narrativas corroboram a equação acima

apresentada.

Neste sentido, apenas busquei ao longo do trabalho compreender como a

TRISTEZA e a ALEGRIA são vividas por esta população que se tornou tão cara e

próxima a mim no curso da última década.

No capítulo 1, apresento o grupo e reflito sobre uma expressão comumente usada na

aldeia: peles braiadas. Ela tem relação direta com a experiência dos povos indígenas na

região e o modo como os Kalankó percebem a violência decorrente do contato com o

não-índio. No capítulo 2, aprofundo a apresentação inicial, discutindo dois processos

históricos de suma importância para o grupo. O primeiro diz respeito à catequese no

aldeamento forçado de Brejo dos Padres/PE, entendido como a origem Kalankó; o

segundo sendo o processo de democratização no Brasil, entendido como um tempo de

luta. Em ambos os casos, a conduta dos grupos apontam para uma estrutura baseada na

ideia de circuito, que será trabalhada no capítulo 7.

Em seguida (capítulos 3 e 4) identifico e discuto alguns temas e relações fundantes

da ideia de Kalankó. Busco este material em primeiro lugar na análise das letras de toré,

aproximando-as de narrativas míticas. A partir daí, apresento uma lógica evidenciada no

pensamento nativo. Esta que é baseada na ideia de associação e recorte.

No capítulo 5 analiso a música produzida na aldeia através das transcrições dos

cantos nativos. Observa-se aí como a música em questão é essencial para a constituição

das diversas relações do grupo e para a percepção de mundo das pessoas na aldeia.

Em seguida, no capítulo 6, aprofundo-me em uma relação importante para o sujeito

Kalankó – a estabelecida entre pessoas e encantados.

No capítulo 7, como dito, aprofundo a discussão sobre a noção de circuito,

norteadora de todo o trabalho. Nele, percebe-se que o sistema social presente no alto

sertão é bastante complexo, perpassando todos os domínios culturais nativos. E que ele

abrange todo e qualquer plano. Do intercâmbio de objetos à troca de ideias.

Em seguida, centro a análise em alguns destes domínios, buscando demonstrar

como os Kalankó apropriam-se da natureza, para estabelecer aproximações e

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29

distanciamentos relevantes em relação aos outros grupos e aos elementos relacionados ao

circuito.

No capítulo final, demonstro que, acima de tudo, ser Kalankó tem relação com a

convivência afetuosa construída na aldeia, o que, por sua vez, tem relação com modo

como sorriem.

Concluo, ainda, que não há só o Kalankó nem só o sertanejo ou só o brasileiro,

vistos isoladamente. A todo tempo tais conjuntos de população permanecem no limiar

destas possibilidades.

Esta tese pretende explorar essa afirmação do ponto de vista Kalankó.

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30

Capítulo 1

Adaptações – modos de perceber a violência

O tempo passou para os Kalankó. Eles vivem hoje em algumas comunidades

localizadas no alto sertão alagoano, oeste do estado de Alagoas e dividem-se em cerca de

70 famílias, o que perfaz um total de mais ou menos 390 indivíduos.

O alto sertão nordestino compreende a região do entorno da parte nordestina do Rio

São Francisco, mais especificamente a área que atravessa os estados da Bahia, Sergipe,

Alagoas e Pernambuco3. Esta região faz parte do semi-árido brasileiro, sendo um de seus

setores, ―apesar do lato de a região possuir uma extensão total da ordem de 700 mil

quilômetros quadrados – três vezes maior que o Estado de São Paulo –, é possível uma

rápida setorização dos diversos sertões que compõe o seu todo espacial‖ (AB‘SABER,

2006: 142). Neste setor há um regime de chuvas bastante limitado e altas temperaturas, o

que torna a vida da população difícil.

3 Segundo Aziz Ab‘ Saber (2006) é uma região alóctone, ou seja, ainda perene numa área subequatorial

semi-árida de sazonalidade hidroclimática e fitogeográfica.

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O solo é raso e pedregoso e a vegetação é dura e seca, conservando um pouco de

umidade em seu interior. A região possui ainda uma pequena rede de drenagem, os

mínimos rios existentes sendo em sua maioria sazonais. Nesta paisagem, o Rio São

Francisco é um oásis, pois irriga grandes áreas da caatinga, transformando suas margens

num solo fértil.

Este setor faz parte ainda da área do polígono da seca, denominação político-

administrativa que delimita o território onde se dá o fenômeno da seca, o que a configura

como uma das regiões mais miseráveis do Brasil, ―sujeita a uma geografia humana tão

sofrida, comumente ignorada pelas elites insensíveis de nosso país‖ (: 143). O IDH-M –

Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios – de Água Branca, por exemplo,

deixa isso claro. De 1991 a 2000 este índice variou de 0,486 a 0,597, ambos apontando

para média e baixa qualidade de vida.

O mapa abaixo apresenta a região em questão e localiza os Kalankó no setor do

semiárido referente, além de posicioná-los em relação aos estados vizinhos e ao Brasil4.

4 Fonte: Atlas Geográfico Melhoramentos.

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A vida da comunidade se divide em dois grandes momentos ao longo do ano – o

inverno e o verão.

O inverno vai de abril a setembro e é vivido sob a marca da abundância. Neste

período, vive-se a partir de uma lavoura de subsistência baseada especialmente no feijão,

mas também no milho, mandioca e em algumas árvores frutíferas, como o cajueiro, a

acerola, o coqueiro e a goiabeira.

A lavoura de feijão, que abrange os meses de fevereiro a julho, ocupa boa parte da

população masculina adulta da aldeia. Os Kalankó, mesmo possuindo plantações

particulares, acabam trabalhando sempre em conjunto com algum parente. A produção do

feijão é realizada com base no sistema de arrendamento, no qual o índio usa a terra do

fazendeiro, mas divide o resultado final com o mesmo, assumindo todo o risco.

Os Kalankó contam ainda com uma cultura de algodão herbáceo comercializado

nos centros urbanos mais próximos e uma pequena criação de ovinos e caprinos.

No verão, que vai de outubro a fevereiro, a marca é a escassez. Neste período

algumas pessoas trabalham na lavoura de outros proprietários em troca de diárias

miseráveis, outros migram para o litoral, onde trabalham na lavoura de cana-de-açúcar de

grandes proprietários rurais e usineiros, a maioria políticos da região.

É também a época do umbuzeiro, árvore bastante comum na região e cujo fruto é

muito apreciado, puro ou com leite, quando então é chamado de umbuzada.

A carne de caça é bastante valorizada o ano inteiro e os animais caçados preferidos

são: o peba (espécie de tatu), a jiboia, uma espécie de lagarto e alguns pássaros, como a

rolinha. Outros, como o beija-flor, não é permitido caçar.

O mês de março é o mês das trovoadas e mede a passagem da escassez para a

abundância. É um mês de planejamento e trabalho, fundamental para a produção de

recursos necessários à vida da população ao longo do ano.

O diagrama abaixo apresenta grosso modo a percepção Kalankó do clima, a qual é

importante para o entendimento do universo cultural nativo.

Page 33: Peles braiadas - PUC-SP

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Alguns recursos são fundamentais na vida Kalankó: a água, o feijão, o milho, o

umbu, as forças e outros elementos da natureza, - como a energia encantada –, o dinheiro

e a terra.

Todos estes recursos são importantes e variam da abundância à escassez ao longo

do ano. Concomitantemente, são operadores de generosidade e resignação entre os

sujeitos do grupo.

Na abundância, eles costumam repartir o excesso e usar os recursos como o

dinheiro e o alimento de forma exagerada. Na falta, não veem problema em dividir o

pouco que resta resignadamente e no período intermediário – de planejamento – não se

abstêm em ajudar o aliado na busca dos recursos.

O grupo enfrenta, ainda, como diversas comunidades nordestinas, algumas doenças

temporárias e perigosas à saúde da população, em especial a das crianças. Em

determinados momentos, principalmente no caso do verão, a diarreia torna-se recorrente,

relacionando-se com a percepção da falta – falta de água que, no caso, pode ser fatal.

No inverno enfrenta a virose, apontando, desta vez, para a abundância de chuva,

vento e temperaturas baixas.

As doenças decorrentes destes dois momentos são: dor de barriga e de cabeça, febre

e dor no ―espinhaço‖ (quer dizer dor nas costas). A cura para estas doenças é feita de

preferência com remédio do mato e com a intervenção dos encantados, que acontece

através da música, presente nos ritos operados lá.

No alto sertão alagoano, especialmente depois da década de 1990, algumas

populações começaram a se afirmar indígenas com base numa percepção genealógica,

etnogenealogicamente constituída, que as relaciona ao aldeamento de Brejo dos

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Padres/PE, do século XIX e na prática e inserção num complexo músico-ritual, conhecido

como toré.

Entre os Kalankó, este complexo ritual é composto por três ritos que se

interrelacionam, possuindo diversas propriedades comuns (HERBETTA, 2006). Os três

têm como base a música e são: o toré, o praiá e o serviço de chão (Ibidem).

Todos os momentos rituais ocorrem pela noite, cabendo principalmente ao pajé ser

o líder e cantador principal deles, ou seja, aquele que guia o desenvolvimento do rito. Em

alguns casos, porém, o pajé pode passar a responsabilidade a algum outro sujeito de

destaque da comunidade. As mulheres podem participar do toré e do serviço de chão,

porém não do praiá. Neste, elas trabalham na preparação das comidas. A esposa do pajé é

a coordenadora da atividade, a culinária deste ritual é baseada na carne de carneiro ou de

bode, já que nele não se pode comer da de porco. As mulheres se responsabilizam

também pela preparação das pinturas corporais.

O toré é, geralmente, oferecido por um sujeito, como promessa a algum

encantado, como o toré que D. Joana oferece todo mês, há 40 anos, como promessa pela

cura de sua mãe. O ritual pode ser oferecido, ainda, em homenagem a alguma data

especial ou, como falam, só por brincadeira.

Trata-se de um rito de caráter coletivo e público que conta com a participação de

toda comunidade, além de não-índios. O rito pode ser realizado em diversos espaços.

Presenciei desde alguns feitos no interior de uma casa até alguns praticados fora da

aldeia. Nestas oportunidades assumem também um significado político externo, agindo

como sinal diacrítico de identificação.

Ele acontece constantemente, terças, quintas e, especialmente, sábados e se realiza a

partir da prática de alguns cantos e danças específicas, que cessam quando o cantador

emite um grito. O canto é baseado na estrutura ―pergunta-resposta‖, na qual o cantador

canta dois versos e os participantes respondem com outros dois – e algumas variações.

Em cada toré, sempre se deve cantar pelo menos três músicas. A dança baseia-se na

estrutura ―núcleo-periferia‖5, na qual os cantadores se colocam no centro da roda e os

5 A estrutura núcleo/periferia é recorrente em outras musicologias ameríndias. Menezes Bastos 1999

(1976) a identifica entre os xinguanos Kamayurá, onde no núcleo de uma performance musical localiza-se

o canto central, que se relaciona com uma atividade musical periférica, cuja música é de caráter

―comentacional‖ em relação ao núcleo.

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participantes na periferia. Ela é realizada sempre no sentido anti-horário, sendo feita em

solo ou parelha. Os passos são constituídos por pisadas, rodopios e voltas. No centro do

círculo, permanecem os cantadores e os melhores dançadores, este sendo considerado

espaço de maior poder.

Na periferia, há outros participantes, cujo canto tem caráter responsivo. Isto dá a

ideia de uma gradação de prestígio e senioridade entre o estar no núcleo ou na periferia

da formação músico-coreográfica, o que pode ser comparado à relação espaço

sagrado/centro e espaço profano/periferia, que Ribeiro (1992: 101) identificou entre os

Pankararu/PE.

Na parte final do rito, consome-se uma garapa, bebida feita a partir da mistura de

água com algum tipo de doce, como rapadura, mel ou mesmo açúcar. Antes do consumo,

encruza-se (quer dizer desenhar uma cruz) a garapa três vezes com o maracá e o campiô

(cachimbo).

O segundo tipo de ritual praticado entre os Kalankó é o praiá. Ele é realizado

apenas em algumas datas especiais: no Sábado de Aleluia, quando tem o nome de Ritual

do Umbu, já que é a época do umbu selvagem, e no dia 25 de julho (em comemoração ao

―ressurgimento‖). Além disso, ele é praticado quando os Kalankó são convidados para

participar da festa de grupos aliados.

O praiá só pode ser praticado em espaço indígena, nos diversos terreiros espalhados

pelo sertão nordestino. Antes de cada praiá, o grupo de dançadores reúne-se no interior

do poró, a casa sagrada, onde colocam as vestes e iniciam o rito a partir de cantos

baseados principalmente na gaita (instrumento musical) e no uso do campiô.

O canto do praiá é baseado em um jogo de sílabas e vogal, aparentemente sem

conteúdo semântico. A dança pode ser realizada de dois modos. O primeiro tipo de

formação é em linha ou cordão, no qual os dançadores dançam em fila, realizando alguns

movimentos específicos, mas sempre em roda e com sentido anti-horário. O que

caracteriza uma estrutura circular que abrange a totalidade do terreiro (desenhando

muitas vezes a forma de uma cruz).

Os dois dançadores mais importantes desta formação são: o primeiro da fila,

denominado cabeceira e o último, o derradeiro. O cabeceira deve entender o que o

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36

cantador está cantando e guiar a movimentação dos outros. O derradeiro deve fazer a

ronda e proteger a fila formada pelos dançadores. Os outros dançadores devem seguir o

movimento do cabeceira e manter o ritmo do cantador, realizando a marcação da música,

que se faz com o grito. Estes gritos são realizados nos quatro extremos do terreiro e se

ligados formam o desenho de uma cruz, como representado abaixo.

A cada duas ou três músicas, os dançadores fazem outro tipo de formação, a

parelha, na qual o canto se torna mais rápido e os dançadores realizam pequenas rodas

em casal, um homem e uma mulher, com movimentos de ida e volta em direção ao

cantador. Para Tonho Preto, o pajé, na parelha ―é que todo encanto tão ali presente

participando... ali o negócio tá quente, o negócio tá bom... abafado‖.

O ritual, que tem início às oito horas da noite do sábado prossegue até por volta do

meio-dia de domingo. No final do ritual, consome-se a garapa, que é colocada no centro

do terreiro.

O terceiro rito é o serviço de chão. Nele, busca-se a cura para alguma enfermidade

através de consulta direta aos encantados. O ritual tem como base um pano quadricular

colocado no chão, com um pouco de alho nas extremidades.

Na primeira etapa do rito, os indivíduos dão três voltas ao redor do pano, fumando o

campiô. Depois de aberto, o ritual prossegue com três rodadas de cantos, sendo que o

primeiro deve ser um canto específico ao ritual. Os outros podem ser músicas de outros

gêneros consideradas poderosas.

Page 37: Peles braiadas - PUC-SP

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O cantador e alguns auxiliares (só com o maracá) cantam algumas músicas. Após a

segunda ou terceira, o cantador recebe um (ou vários) encantado(s), que receita algum

remédio do mato, dá conselhos ou responde a consultas. Na parte final, consome-se a

garapa, que é servida a todos os presentes.

Para os Kalankó, os ritos servem especialmente para materializar uma força

encantada no terreiro. Isto acontece durante a performance ritual a partir da presença e

atuação dos encantados. Como exposto na apresentação, os encantados são entidades

relacionadas aos antepassados que, ainda em vida, se transformaram em energia, a qual

pode atuar na comunidade, fortalecendo o corpo dos sujeitos e solucionando alguns

problemas, como as doenças ou aconselhando. A força encantada é traduzida como fonte

de coragem e proteção, sentimentos que juntos geram, de acordo com o nativo, alegria,

sabedoria e saúde.

Este complexo ritual é fundamental também no processo de emergência étnica. A

questão indígena no alto sertão alagoano é marcada pelo tema das etnogêneses6. O

problema aí reside no fato de que as populações que se classificam como indígenas são

muito parecidas com as que se classificam de modo diverso – e inverso. Isto acontece

certamente por causa do longo, intenso e violento contato entre as populações, o que fez

com que se misturassem. O rito neste cenário serve como sinal da diferença.

Em julho de 1998, os Kalankó ―re-apareceram‖ para o município de Água Branca

cantando o toré no centro da cidade e, desta forma, afirmando uma identidade indígena.

Desde então, repetem este momento todos os anos. Em 25 de julho de 2001, apareceram

para a imprensa nacional, no jornal ―Tribuna de Alagoas‖. Nesta ocasião, eles cantaram o

toré numa apresentação em Gregório, uma de tantas comunidades Kalankó.

A foto abaixo é parte da capa do Jornal ―Tribuna de Alagoas‖, de 29 de julho de

2001, a qual apresenta o grupo, referindo-se ao evento acima citado.

6 Algumas comunidades começaram a se afirmar como indígenas a partir de reivindicações políticas pela

posse do território. Este processo teve início na década de 1930 e segue até hoje, ainda que muito

timidamente. Esta reafirmação foi legitimada pela posição do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), por

meio da figura de seu inspetor regional, Raimundo Dantas Carneiro que, acompanhando o etnólogo Carlos

Estevão Oliveira, reconheceu um dos rituais religiosos - o toré - como critério para reconhecimento étnico.

Por esse motivo, o toré tornou-se expressão obrigatória da indianidade nordestina.

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38

Desde o início evidencia-se, portanto, que os Kalankó buscam o reconhecimento

oficial. Em 2003, finalmente o conseguiram sendo classificados pelo Estado brasileiro,

como indígenas. Isto se deu através da FUNAI (Ofício n.110/2003), seguindo a

convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho – da qual o Brasil é

signatário.

Apesar disso, os Kalankó não possuem sua terra demarcada. Grande parte da terra

tradicional passou às mãos dos fazendeiros da região. Isto aconteceu através da venda,

resultado de pressão econômica do grande proprietário sobre o pequeno, como também a

partir do casamento e consequente presença do não-índio na aldeia.

O mapa abaixo representa a área de abrangência das diversas localidades Kalankó,

deixando claro suas distâncias, organizações e a distância dos centros urbanos mais

próximos7. Do ponto de vista indígena é a terra tradicional.

7 Município de Água Branca/AL – Fonte: Prefeitura Municipal de Água Branca.

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39

Para os Kalankó, este período de reivindicação política é chamado de Tempo da

Luta. Eles possuem uma concepção de tempo histórico linear baseado em alguns períodos

de tempo. Este período especificamente abrange o presente, iniciado a partir do processo

de ressurgimento do grupo e da afirmação de sua identidade indígena, em 1998.

O Tempo da Luta é entendido como um tempo de atuação política junto ao Estado

brasileiro. Neste período, o grupo sente-se mais forte na medida em que se reconhece e é

reconhecido como Kalankó. Isto a fim de terem acesso a seus direitos previstos na lei

brasileira, principalmente a terra.

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40

Segundo Tonho Preto, este é um período perigoso, já que ―a gente arrisca a vida

de liderança, das crianças, nossas esposas, o risco que corre uma liderança corre nossas

crianças‖. Mas para o pajé, este é um risco necessário e calculado. Segundo ele,

isso daí fortalece a luta né, é um fortalecimeto da luta... faz parte da

natureza, e um dever nosso, fortalece o espírito pra entra na luta forte,

não de corpo aberto... a gente luta com a natureza... a união que faz a

força... é muito importante a união dos povos indígenas... do exterior, de

todo canto, de mundo mesmo, os povos indígenas é minoria, e além de ser

minoria a organização não é bem adequada, se a gente tivesse uma

organização ampla

A fala acima caracteriza alguns princípios importantes do período em tela. Em

primeiro lugar, do ponto de vista nativo, eles não estão sozinhos. A luta se realiza com a

ajuda da natureza. Neste caso, eles se referem especialmente à energia encantada.

Em segundo lugar, percebe-se que esta energia tem acesso e influencia tanto o

corpo quanto o espírito, fortalecendo-os para a luta. Em seguida, percebe-se que para o

pajé a luta se relaciona a uma forma de organização que busca a associação entre vários

agentes, como a natureza e os outros grupos indígenas.

Por fim, o depoimento de Tonho aponta para a importância da aliança como forma

de fortalecimento da luta que aponta para a politização do movimento indígena. Do ponto

de vista do pajé, o aumento em quantidade nos apoios fortalece o processo de

reivindicação política do grupo. Ao mesmo tempo, o pajé reconhece os problemas de

organização interna aos povos indígenas, que não garantem a união entre eles. Desta

forma, ―o governo acha bom este tipo de coisa, encontra cada povo fraco... se a gente

fosse resolvendo os problemas... mas cada um quer puxar pro seu lado‖.

Evidencia-se assim que a luta política é em relação ao Estado que, se por um lado é

o responsável por garantir os direitos indígenas, por outro não toma as devidas

providências para isso.

O Tempo da Luta é entendido em oposição ao Tempo dos Antepassados. Para

Culezinha, o primeiro período da história Kalankó, denominado como Tempo dos

Page 41: Peles braiadas - PUC-SP

41

Antepassados, compreende o período no qual seus familiares tiveram que se misturar à

sociedade do entorno. Desta forma tiveram que esconder sua origem diferenciada.

Esse tempo abrange desde a chegada da primeira geração à região, na qual de

acordo com o pajé ―os mais velho não tinha mistura a que se encontra hoje‖ até a terceira

geração, que compreende os pais e tios dos principais cantadores e dançadores atuais.

Para os Kalankó, muitos dos problemas enfrentados hoje têm como causa este

período, percebido como a perda da pureza, ideia que se relaciona à concepção de

tradição. Isto ocorreu, segundo eles, porque os antepassados não tiveram a capacidade de

viver com base na cultura indígena.

Estabelece-se então uma relação na qual o Tempo da Luta se opõe ao Tempo dos

Antepassados e a mistura, expressa neste período, se relaciona à perda, como exposto na

equação abaixo.

TEMPODA LUTA / {TEMPO DOS ANTEPASSADOS: MISTURA:PERDA}

Os Kalankó e os outros grupos indígenas8 da região sabem que a questão da mistura

é essencial para a vida da população. Em uma conversa, Zezinho Koyupanká deixou

explícitos os sentidos da mistura para eles, corroborando com as ideias acima

apresentadas. Para ele, a população indígena – em sua totalidade – já vivia no Brasil antes

de os europeus chegarem. Eles estavam plantados. O problema foi a mistura decorrente

do encontro com o não-índio9.

Neste momento, Zezinho deixou implícito o desejo de que os índios sertanejos

valorizassem sua cultura, a qual ele chama de tradição.

No mesmo encontro, em seguida a Zezinho, o pajé Kalankó falou sobre a

importância desta tradição, dando a ela um sentido de pureza. Para o pajé, a tradição

representa o contato com a terra, o entendimento dos modos de lidar com ela e o

8 Desde então, são mais de 64 povos remanescentes (nacionalmente), com o nordeste somando hoje cerca

de 40 povos indígenas e mais de 170 mil índios. Este número representa a segunda maior população

indígena por região brasileira (CIMI, 2001: 163). 9 A noção de índio misturado, percebida do ponto de vista dos índios, comeca a ser tema importante das

etnografias produzidas no sertão nordestino. Para Glébson (2010) esta ideia deve ser entendida como parte

do sistema de produção do social (: 23). Ainda sobre o mesmo tema, destaco também Gow (2001), que

estuda os Piro da Amazônia peruana. Ele demonstra que a afirmação nativa de serem um povo misturado

aponta para uma noção da história do grupo próxima de um sistema em estado de transformação.

Page 42: Peles braiadas - PUC-SP

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conhecimento do universo vegetal. O pajé propôs ainda uma educação voltada para a

terra, como forma de atenuar os problemas advindos da mistura com o não-índio.

Paulo, o cacique, estava ao lado e também quis falar sobre a mistura. Para ele, não

era possível ignorar esta situação nem voltar atrás. O índio, ao menos o nordestino, já é

misturado e por isso deve saber lidar com o não-índio e sua tecnologia. Para Paulo, a

solução é fortalecer a tradição através da união e participação dos sujeitos no diálogo

com o Estado brasileiro. Mas não há mais volta, o índio deve aprender as tecnologias do

não-índio para poder negociar e participar ativamente da política brasileira.

De todos os depoimentos acima, depreende-se uma relação importante para a

comunidade. Para eles, a mistura traz um sentido pejorativo, que é entendido como causa

do sofrimento, como exposto abaixo.

MISTURA: SOFRIMENTO

A solução para esta relação é o fortalecimento da cultura tradicional, vista por eles

como pura. Tem-se então que,

{TRADIÇÃO:TERRA}::{TRADIÇÃO:PUREZA}::{TRADIÇÃO:EDUCAÇÃO}

Desta forma temos que a luta política Kalankó é baseada nas seguintes relações,

expostas no diagrama abaixo:

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Os Kalankó já conquistaram muita coisa no Tempo da Luta. Ainda não a terra. Esta

situação de tensão atingiu seu momento mais intenso em julho de 2008. Nesta época

participei de parte de um movimento denominado: Retomada da terra Kalankó. O

objetivo era o de se apropriar de uma fazenda entre Januária e Lageiro, no qual

tradicionalmente os Kalankó fazem suas roças de feijão.

Este acontecimento acabou por expressar a posição de diversas populações e

subjetividades nas relações de poder estabelecidas na região, o que fez com que se

tornasse um evento único. Seus desdobramentos trouxeram importantes sentidos para

pensarmos a questão indígena no Brasil e no sertão. E também para entendermos o

mundo Kalankó.

A decisão de retomar esta área foi fruto de muita conversa e de muitas reuniões do

conselho indígena, que debatiam sobre os riscos e consequências do ato, entendido por

radical. Era único, afinal.

Quando estava tudo pronto para a retomada, uma semana antes do ato, um grupo

derivado do M.S.T. – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – apropriou-se da

mesma área, levantando dúvidas e ameaças aos planos indígenas. O que era percebido

através da tensão. Cogitou-se cancelar o ato.

As mulheres da comunidade, porém, não aceitaram a situação e, indignadas com a

demora, conclamaram o resto da população a agir. Os líderes Kalankó resolveram fazer

algo imediatamente, afinal o tempo passando, nada mais aconteceria.

O grupo tomou a decisão de fazer a retomada de outra fazenda, esta de menor

extensão, mas também entendida como parte da terra tradicional, localizada ao lado de

Januária, a primeira das localidades Kalankó. Isto apontava para o início de um processo

de reconquista da terra tradicional.

Em 12 de junho a comunidade se reuniu no terreiro de Januária para fazer um toré.

Era sábado à noite. O toré de acordo com os Kalankó serviu como meio de obtenção de

uma energia vital, fundamental para a potencialização humana. Sem ela, a retomada não

aconteceria10

.

10 Este rito, neste caso, serviu como arte de territorializar. Segundo Deleuze&Guattari (1997 (1980): 115-

170), assim como os animais irracionais, os seres humanos utilizam-se esteticamente de formas,

movimentos e cores – da arte - com o objetivo de se posicionar no mundo. É o ritornelo, o qual estabelece

um ritmo de ação e reação, mas especialmente, de territorialiação.

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A ação de retomada aconteceu durante a madrugada de sábado para domingo. Na

manhã de domingo muitas famílias já estavam instaladas na área. A partir daí, a vida na

nova aldeia tornou-se intensa. Parentes de todas as outras localidades dirigiram-se para lá.

A lona, material usado inicialmente para a construção das habitações, deu lugar à palha,

material usado tradicionalmente. Esta foi doada pelos parentes Koyupanká,

intensificando a rede de trocas na caatinga alagoana.

Em seguida ao ato, a comunidade preparou-se para celebrar os 10 anos de

afirmação étnica e acertava os últimos preparativos para a realização do evento.

Neste ínterim, a tensão política aumentou, os líderes Kalankó foram chamados para

uma audiência com o juiz da comarca de Água Branca e com o (ex) proprietário da

fazenda.

Os Kalankó estavam sendo ameaçados. Algumas aparições noturnas estranhas,

algumas galinhas roubadas misteriosamente e pedras arremessadas no telhado das casas

apontavam para algum conflito. Tudo indicava que poderia haver um confronto iminente.

Eles estavam preocupados, inclusive, com minha segurança e com a de todos os

visitantes que estavam chegando para o evento.

Apesar do clima tenso, o (ex) proprietário acabou, ao menos, respeitando a atitude

da comunidade e a forma como a retomada estava sendo feita – sem o uso da lavoura dele

e sem degradações às benfeitorias. A comunidade se comprometeu também a lutar por

seus direitos.

Além disso, o cacique Kalankó, Paulo, junto com Zezinho Koyupanká, foi

convocado para uma reunião com o Ministério Público, em Maceió/AL, onde recebeu o

apoio desta instituição. Outros grupos ou instituições também manifestaram seu apoio à

retomada: o sindicato dos trabalhadores rurais, o CIMI – Conselho Indigenista

Missionário, pesquisadores, acadêmicos, jornalistas e moradores da cidade, indicando

que a retomada foi também um acontecimento que intensificou a discussão sobre a

questão indígena na região.

Uma circunstância local já chegara à capital do estado e o poder federal precisava

se manifestar. Cabia ao Estado tomar alguma posição. A opinião do Estado, neste caso, é

em parte expressa através da instituição responsável pela questão indígena no país. A

FUNAI – Fundação Nacional Do Índio –, instituição em questão, em nenhum dos

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momentos descritos acima reconheceu e apoiou a retomada Kalankó, desconsiderando-a

e ignorando-a como parte integrante e pontual de um processo mais amplo, de injustiça

social. Pior, ela justificou-se questionando a própria identificação étnica do grupo, apesar

de a mesma já existir desde 2003.

Mesmo sem o Estado/FUNAI, a Retomada já coberta de palha de ouricuri, foi o

palco do evento nos dias 27 e 28 de julho de 2008. O evento foi batizado como ―Encontro

dos Povos Indígenas do Alto Sertão Alagoano‖, contando com a participação de inúmeras

entidades e cidadãos de várias partes do país.

Este momento foi usado para conversas e debates sobre a questão indígena do

sertão nordestino entremeados de toré. O encontro era espaço de muita discussão, as

quais giravam em torno de procedimentos para a regularização de terras indígenas e a

história de luta do grupo. Discutiam-se os modos de luta política estabelecidos ali.

O cacique Paulo sempre discursava sobre a importância da presença dos povos

indígenas nos eventos dos parentes. Segundo Paulo, só assim se conquistava algo.

Até este momento, nem todos os povos possuíam representantes na reunião, o que

dava um ar de ansiedade aos líderes presentes. Os representantes foram chegando ao

longo dos dois dias de debates, contando-se no final com os povos indígenas Pankararu,

Katokin, Geripankó, Karuazu e, especialmente, os Koyupanká, indicando o

fortalecimento do movimento indígena e indigenista na região e a conscientização de

parte da sociedade sobre a questão.

Estas comunidades ressaltam sempre uma origem em comum e o uso de alguns

sistemas culturais semelhantes, como por exemplo, a música. Todas elas se dizem

descendentes do ex-aldeamento missionário de Brejo dos Padres/PE. Todos são desta

forma, descendentes de famílias que migraram, a partir do final do século XIX, pela

caatinga alagoana. A partir de então, mantiveram seus sitemas de permutas rituais, nos

diversos espaços em que chegaram, os quais mantêm a ideia de parentesco.

O mapa abaixo apresenta a disposição destes diversos grupos em relação uns aos

outros e em relação à matriz cultural Pankararu. Desta forma, exibindo o espaço

percorrido pelas referidas famílias e o espaço ocupado pelos referidos grupos11

.

11 Antigo Aldeamento de Brejo dos Padres/PE – Baseado no Mapa do ISA –Instituto SócioAmbiental,

2000.

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Com a presença maciça dos parentes, o encontro servia também como espaço de

intensificação de trocas e do fortalecimento do sentimento de pertencimento a algo além

de seu próprio grupo. O ritmo da festa, marcado sempre pelo toré e pelos discursos,

especialmente liderados pelos Kalankó, deixava claro que quem estava ali dançando e

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47

falando era um aliado na luta pela conquista de novos direitos e também em outros

assuntos.

Neste sentido, este evento pode ser entendido como uma performance cultural, já

que ocorreu num momento de interrupção da ordem social, ou seja, num momento de

liminaridade12

(TURNER 1974; 1992; 2005). Além disso, ele trouxe à tona

características próprias, como repetição e ritmo, marcados pelos momentos do toré,

intercalados aos momentos de debate sobre a questão indígena do alto sertão, assumindo

uma dinamicidade própria e marcante.

No momento da liminaridade13

o grupo em questão pôde refletir sobre si, sobre o

mundo e puderam se colocar publicamente numa posição de poder, relacionado à ideia de

autonomia, própria do Tempo da Luta e ligada à busca pelos direitos constitucionais,

especialmente a territorialização, como exposto na equação abaixo.

TEMPO DA LUTA: AUTONOMIA:TERRITORIALIZAÇÃO

Depreende-se daí que a retomada, mesmo que de uma parte pequena da terra

tradicional, reafirmou o sentido deste novo tempo. Tonho Preto corrobora esta ideia. Para

ele,

tem que respeita nossas gota de sangue de antepassado, que era

puro, um sangue só, [hoje tem] vários tipo de sangue, mas o nosso não

acabo... argumas gotas que tá envolvida tem que se respeitada porque

nós tem que honra... respeita o sofrimento, o masacre o sangue que foi

derramado nos antepassado, hoje nós tamo resgatando estas gotas de

12 O conceito de liminaridade de Turner baseia-se no conceito de margem de Arnold Van Gennep (1978).

Ao estudar os ritos, Van Gennep afirma que este possui três fases invariantes: separação, margem e

agregação. Ao que Van Gennep chamou de margem, Turner chamou de liminaridade.

13 Para Turner, o principal atributo da liminaridade é que ela esta se posiciona à margem da sociedade.

Nesta situação há uma ausência de status. Turner usou o termo ―liminar‖ para tratar de sociedades

tradicionais; no entanto, ao estudar as chamadas sociedades ―complexas‖ ele preferiu chamar esse

fenômeno de ―liminoide‖. A diferença entre fenômenos ―liminares‖ e ―liminoides‖ para Turner (1992) é

que o primeiro tende a ser coletivo. Além disso, o modelo liminar tem tendência a ser sagrado. O fenômeno

―liminoide‖, por sua vez, tem a tendência a ser leigo. Nele os indivíduos que participam da experiência são

conhecidos (atores sociais).

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sangue dos antepasado... com apoio da terra, nós recebe a poeira com

força... hoje tão fortalecendo a face da terra.

E, além disso, foi também um momento de reforçar e construir alianças. O evento

em questão deixou claro também que o processo de emergência étnica é acionado a partir

da posição que o grupo se encontra numa rede de sociabilidade entre os povos indígenas

da região e junto a outras instituições e organizações atuantes neste universo.

Para os Kalankó, foi um momento especial para o grupo, experimentado depois de

10 anos de luta e uma mensagem para o futuro, explicitando temas comuns à questão

indígena sertaneja como a tradição, o conflito, o poder e a mistura.

Todos esses temas estão inseridos no contexto mais amplo do drama social que os

Kalankó vivenciaram até o momento da retomada e vivem atualmente. Para Turner

(1987), ainda, há uma reciprocidade entre dramas sociais e suas performances, ou seja,

quanto mais se intensificam os conflitos vividos, mais performances são produzidas pelo

grupo.

Nestas performances evidenciam-se momentos de muita emotividade. D. Joana, por

exemplo, não cansava de falar que, apesar de ser chamada de louca por estar de novo

vivendo em um barraco de lona e palha, passando frio e calor, queria ficar. Os Kalankó

moram normalmente em habitações construídas através do modo tradicional do sertão

nordestino. As casas são feitas de taipa ou em alvenaria e contam com divisões internas

como nas zonas rurais brasileiras. Sendo assim, bem mais confortáveis que os barracos de

lona e palha.

D.Joana se dizia feliz por estar lutando por seus filhos e netos e tolerava o

sofrimento. Ouvi vários outros depoimentos com o mesmo sentido. Era como se fosse

proibido ou devesse ser evitado falar dos desconfortos e das dificuldades da vida ali.

Talvez não se sentisse isso.

Lembro-me também de Paulo tentando controlar o choro ao rememorar os 10 anos

de participação política do grupo Kalankó. Estas memórias estavam fortalecidas pelo

momento e remontavam há mais do que a última década. As narrativas decorerntes dela

geraram ainda outros momentos tocantes. Pude observar lágrimas nos semblantes de

vários participantes.

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Desta forma, a aldeia da retomada parecia estar em festa. Ainda por cima, debaixo

de chuva, vista como a marca da abundância na região.

Festa no alto sertão, contudo, tem o sentido de reflexão, a dinâmica do debate

privilegiando a participação de todos que davam seus depoimentos e eram convocados a

falar pelos líderes. Festa lá também aponta para provação e luta. Não é um momento

propriamente de alegria. A face dos participantes apontava para o orgulho que sentiam

por demonstrarem força e imporem um pouco seus desejos e, também, tensão, pelo que

poderia acontecer. Sorrisos só no toré.

O Estado também foi convidado para a festa, mas não quis participar, apontando

para uma prática ainda ligada a outros interesses e desvinculada do discurso da justiça

social e da própria Constituição. O Estado não quis celebrar a festa sertaneja, preferindo

se calar.

Tal silêncio se justifica do ponto de vista do Estado, a partir do fato que no alto

sertão alagoano, a maior parte do contingente populacional é classificada como sertaneja

não-indígena, eximindo o Estado, tão ―festeiro‖, mas lá, silencioso, de suas

responsabilidades sociais, principalmente de garantia da terra.

Festa indígena para Estado brasileiro aponta assim para a omissão. Posição cômoda

para um Estado que faz suas festas sem convidar os índios do Brasil.

Na tarde final do evento, Tonho Preto me chamou para uma conversa, no terraço da

única casa de alvenaria da retomada. Os outros participantes estavam animadamente

cantando e dançando o toré, que acontecia no terreiro ao lado. O clima era de animação,

as tensões dos dias anteriores tinham diminuído e o evento estava chegando ao final.

Nesta conversa ele me falou que seria importante transformar as imagens que eu

estava registrando num pequeno filme, pois isto registraria a história do Tempo da Luta e

poderia ajudar a divulgar os ideais Kalankó. Ele disse também que era muito importante

poder contar com pessoas de fora da aldeia nesta luta. Mas que, ao mesmo tempo, os

parentes é que eram essenciais. Tonho estava feliz por poder contar com integrantes das

diversas etnias aliadas e vê-los todos misturados ali no toré. Segundo ele, aquilo já era

uma grande conquista, pois ―tudo na caatinga é difícil‖ – pelo menos para o índio, ―que

tem a pele braiada‖.

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Não entendi de imediato a expressão. Segundo o pajé, a pele braiada é uma das

causas do sofrimento e provação vividos na caatinga alagoana. A ideia de braiada traz o

sentido da mistura, apontando para um valor negativo. Além disso, aponta para a mistura

entre índios e não-índios, ―a mistura é demais... não tivemo culpa de ter mais de 50 ou 80

ou 90% de mistura... não foi nóis que foi procura, os branco que forço... hoje tem o

africano, o galego, tem toda cor, mas mesmo assim tem que ser respeitado como

indígena, porque nosso antepassado era puro... misturo tudo‖.

Lembrei-me que outros sujeitos do grupo já haviam me falado algo similar. Ao

menos já haviam usado o termo braiado. Culezinha o usou para identificar alguns

animais na caatinga. Ele se referia aos cachorros misturados, ao qual chamamos vira-latas

e que não damos muita atenção. Neste enunciado, braiado traz também o sentido da

desqualificação14

.

Em outro momento seu Zé me explicou que tomava muito cuidado com a água. A

água, recurso vital para a vida no alto sertão, já não é um grade problema para a maioria

da população Kalankó. Quase todos têm uma cisterna ao lado de sua casa e há um

encanamento ligando a água do município para Lageiro do Couro e para Januária. Estes

encanamentos não funcionam sempre, mas complementam o acesso ao recurso, trazendo

água do Rio São Francisco.

Seu Zé se referia ao problema da água braiada, apontando para a mistura da água do

Rio São Francsico e da chuva, depositada na cisterna.

Segundo ele, esta água misturada é ruim e pode causar doença. O sentido de

braiada agora se relacionando ao sentido do podre.

Temos então na aldeia que,

{BRAIADO:MISTURA:DESQUALIFICAÇÃO:PODRE} /

{TRADIÇÃO:CULTURA:TERRA:PURO}

14 O sentido da desqualificação é vivido pelas diversas populações indígenas há muito tempo. A própria

miscigenação, intensificada com a política pombalina no século XVIII, foi utilizada para desqualificar o

indígena como tal, o que significava mais liberação de terras. Vários aldeamentos em Pernambuco e em

todo o Brasil foram extintos sob esta alegação (CUNHA, 1986:114). Ao indígena ―des-desterritorializado‖,

restou migrar, hábito já conhecido das populações nativas. Eles se incorporaram, então, aos municípios

vizinhos, escondendo sua origem e suas práticas tradicionais como forma de resistência, mas mantiveram

alguns sistemas culturais tradicionais mais preservados, através de um processo de re-elaboração e

adaptação

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Depreende-se daí que Tonho Preto ao usar a expressão peles braiadas se referia ao

sentido do podre, como expõe a equação acima. Desta forma, evidencia-se que os

Kalankó percebem a violência a que são submetidos na caatinga alagoana, a partir da

ideia da mistura que se aproxima do podre, em oposição ao puro, da tradição. Eles devem

superar a noção de podre para poder existir.

Conforme Merleau-Ponty (2006 [1945]), o mundo é o meio natural e o campo de

todos os pensamentos e de todas as percepções explícitas: é no mundo que o homem se

conhece ―porque somos do começo ao fim relação ao mundo‖ (: 10). Para o filósofo, toda

sensação é espacial e, assim, constitutiva de um meio de experiência; quer dizer, para ele

o espaço é uma superfície de contato que possibilita a configuração das maneiras

particulares de ser no espaço.

Neste cenário, no qual a diferença do PODRE e a aproximação da PUREZA são

fundamentais para a possibilidade de existência de sujeitos Kalankó, os índios do sertão

estão discutindo e se organizando para a luta, que ali aponta para o sentido de apenas

SER.

Tonho Preto não pede muito para sua existência, para ele ―a posição da gente é pela

paz, se a gente pudé beneficia a pessoa com o bem, a gente beneficia... a nossa religião

não é pra faze o mal, é pra faze o bem, a paz, o sossego, paz na vida de cada um... todos

nós pertence a um pai só e uma mãe‖.

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Capítulo 2

Tensões – dinâmicas entre estrutura e história na

formação de condutas indígenas

Em ambos os períodos de tempo evidenciados no capítulo anterior – Tempo dos

Antepassados e Tempo da Luta –, pertencentes a uma noção específica de história do

grupo Kalankó, pode-se depreender processos importantes para a constituição dos

Kalankó enquanto grupo étnico. Isto porque tais processos apontam para uma relação

essencial entre a história em comentário e algumas características que pertencem ao plano

sincrônico.

Neste sentido, é importante ressaltar que mais importante do que estabelecer uma

relação teleológica entre passado e presente, vale pensar na relação entre estrutura e

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53

evento, na qual a transformação cultural é um modo de reprodução de signos que podem

adquirir novos valores operacionais (SAHLINS, 1994: 174)15

.

Isto representa perfeitamente o jogo que a cultura faz articulando e rearranjando

elementos da sincronia e da diacronia (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]). Esta relação pode

ser percebida no plano concreto do sujeito e sua vida social (LÉVI-STRAUSS, 2001

[1950]: 18).

Entre os Kalankó o estudo da relação entre estrutura e evento pode ser bastante

esclarecedor para o entendimento do universo cultural em questão. Um momento

marcante que evidencia tal relação é o processo de aldeamento missionário forçado e a

consequente catequização e migração pela caatinga alagoana.

Do ponto de vista deles, o grupo étnico tem origem neste processo, classificado

como a nascença. Isto acontece apesar de saberem que o grupo em questão nem existia

neste período.

O aldeamento em questão foi a forma mais comum usada pelo governo central de

controle das populações nativas até o fim do século XIX. Os missionários16

, que haviam

iniciado seus trabalhos na região litorânea, partiram para o sertão, nas denominadas

missões rurais.

Os primeiros a chegar à região do Rio São Francisco foram os capuchinhos

franceses. Especialmente no século XVIII, o estado português intensificou o processo de

aldeamento, agrupando uma série de grupos diferentes num mesmo espaço, a fim da

liberação de suas terras e da catequização de seu espírito.

Nestes aldeamentos, os indígenas passaram por um amplo processo de

transformação, através do contato (muitas vezes violento) com outros grupos indígenas,

missionários, negros incorporados e com a sociedade do entorno. O que acabou levando à

construção de um horizonte cultural parecido no sertão nordestino (POMPA, 2002: 364).

15 Sahlins (1994) ressalta também a relevância de uma análise sobre o sistema de diferenças e oposições

entre diversos grupos sociais. Este tipo de análise parece ser relevante para a realidade do alto sertão

alagoano e é foco desta tese.

16 Os jesuítas, que no resto do território tinham a preferência da coroa, no sertão do São Francisco foram

preteridos pelos carmelitas, oratorianos, franciscanos, beneditinos e capuchinhos, que exerceram o papel de

capelães militares, sempre ligados ao poder do estado.

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54

Segundo Amoroso (2001), algumas ideias permearam este processo. Em primeiro

lugar, a premissa de que os índios não detinham capacidade intelectual para o

aprendizado de valores exteriores à suas culturas originais; em segundo, a constatação de

que os índios eram irredutíveis, ou seja, não mudariam e, por último, a avaliação de que o

estágio de selvageria em que se encontravam não permitia o aprendizado, no máximo a

imitação.

Com base nas ideias acima colocadas, todo o processo de tradução de conceitos

missionários para o entendimento nativo, era baseado nos próprios códigos autóctones. E

vice-versa. Nesta perspectiva, ―a tolerância para alguns costumes tapuia, que não fossem

uma ofensa aberta a Deus, tornou-se uma estratégia corriqueira – pelo menos em alguns

casos – para manter os índios nas aldeias e proceder à prática da catequese (: 75).

Além disso, os capuchinhos adotaram estratégias que visavam à produção de uma

contiguidade entre as aldeias insulares da região (MAIA ANDRADE, 2008), tornando a

presença de não-indígenas normal (GIRALDIN, 2002). Isto acabou produzindo formas de

convivência novas e estimulou transformações culturais.

Esta técnica era especialmente importante para a elaboração de um universo cultural

particular, pois estabelecia uma extensa rede de intercâmbio, composta por indígenas de

diversas etnias, negros e brasileiros de ascendência européia, que passaram a conviver no

mesmo espaço.

Com o fim dos aldeamentos missionários no século XIX, tais espaços passaram a se

chamar vilas de índios, depois missões volantes e depois se tornaram pequenas cidades,

as quais contavam com um universo cultural diretamente relacionado à intensa

miscigenação decorrente do contato entre os agentes envolvidos.

O cristianismo foi violentamente imposto ao longo de todo este período. Isto se

dava, por exemplo, através da criação de centros missionários e de espetáculos litúrgicos

dominicais, assistidos por missionários, índios de várias aldeias e outras populações, a

fim de impressionar os nativos e persuadi-los da superioridade cristã.

Mas também se dava através de castigos corporais. De modo geral, os aldeamentos

capuchinhos seguiram o modelo jesuítico, o castigo sendo uma prática corriqueira nas

aldeias (: 382).

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55

Tratava-se assim especialmente de um projeto de conversão à religião católica, pois

o "diretor dos índios" deveria "esmerar-se em que lhes sejam explicadas as máximas da

Religião Católica, e ensinada a Doutrina Cristã" (CARNEIRO DA CUNHA, 1992: 193).

Neste cenário, a pedagogia missionária incluía a criação de oficinas de artes

mecânicas, pregava o estímulo à agricultura, o treinamento militar e o alistamento em

companhias especiais, como as de navegação (AMOROSO, 2001), apontando para o

domínio dos costumes como plano privilegiado, no qual podemos enxergar este processo

de conversão.

Pompa (2002) corrobora esta ideia. Para ela, se nos deslocarmos do plano da

cosmologia ao das práticas teremos uma visão mais complexa e rica do encontro entre

índios e missionários e do horizonte cultural da região (: 355). A questão não era tanto

doutrinária, mas de costumes (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 192).

Alguns símbolos comuns aos sistemas culturais referenciados tornaram-se comuns

ao universo cultural homogêneo que se formava. Estes ainda hoje podem ser destacados.

No universo Kalankó, por exemplo, e mais além, entre os sertanejos, a cruz, é um signo

fundamental. Ela intermedeia alguns processos essenciais para o mito, para o rito e para o

cotidiano e pode ser tanto o resultado de apropriação, como também de uma estética

nativa, formatada antes do encontro com o não índio. Ela já era referenciada pelos

capuchinhos no século XVII e XVIII17

.

Sendo um elemento anterior ou não ao processo de catequização, a cruz certamente

assumiu um valor operacional distinto ao longo de tal processo, o que está relacionado ao

valor do cristianismo na catequese e sua imposição.

Atualmente, a cruz é um elemento bastante comum de ser visto na aldeia Kalankó.

Ora ela é produzida através do movimento das mãos, quando acordam e na hora que vão

dormir, ora é vista na porta de entrada das casas, recortada em papel. Os símbolos

presentes nos panos dos praiás também a representam. E, além disso, ela é uma das

formas mais pintadas no corpo.

No domínio do rito, a cruz é uma representação coreográfica, responsável pela

abertura do ritual. Do ponto de vista Kalankó, o terreiro deve se transformar em mato,

17 Martin de Nantes, por exemplo, falando de Lucé entre os Kariri, referiu-se a uma enorme cruz gravada

em uma pedra (POMPA. 2002).

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espaço onde os encantados podem atuar. E esta transformação acontece a partir da

formação coreográfica em forma de cruz, que os praiás realizam por toda a extensão do

terreiro. É o que eles chamam de encruzamento.

Além da cruz, o cristianismo determinou o contato com alguns valores morais.

Estes valores são, desde então, responsáveis pela elaboração de condutas na aldeia e na

região, apontando para uma lógica cristã com caráter popular.

Para o entendimento desta moralidade cristã, o estudo de Nietzsche (2008 (1895))

parece-me essencial. Ele aponta como poucos as diferenças fundamentais entre o plano

do discurso, desvendando o projeto retórico desta religião e o da prática. E, além disso,

indica as consequências sociais e culturais da formatação proposta pelo catolicismo,

estabelecendo uma perspectiva política radical sobre a questão.

A tolerância, por exemplo, é um valor bastante cultuado entre os povos sertanejos,

inclusive entre os Kalankó. O sujeito lá sempre deve estar apto a tolerar o sofrimento, por

exemplo. O sofrimento sendo identificado a algo dado por Deus, e por isso, devendo ser

aceito e vivenciado. A tolerância aparenta ser herança do catolicismo que afirma que o

sujeito deve suportar o mundo na terra, para conquistar a paz no céu, após a morte.

Neste sentido, este e alguns outros sentimentos, como a compaixão, representam o

oposto dos afetos que empoderam o sujeito (: 35), sendo contrários à vida, entendida

como potência e próximos da prática do niilismo18

. Esta relação aponta para ações que se

relacionam à passividade, como a resignação. Desta forma, evidencia-se a relação da

catequese com a passividade, como exposto abaixo.

{COMPAIXÃO:RESIGNAÇÃO:PASSIVIDADE} / POTÊNCIA

Neste cenário, o paralelo que pode ser estabelecido é com o animal doméstico ou de

rebanho. Metáfora perfeitamente adaptada aos termos usados na religião católica, por

exemplo, evidenciados na expressão ―rebanho de Deus‖ (: 33). Ou ainda, no salmo 23 ―O

senhor é meu pastor, nada me faltará‖. A idia de pastor relacionando-se a uma conduta

passiva, a qual cnfere ao pastor a resposnabilidade peas ações. Além disso, relacionar o

18 Alguns sentimentos, valores e condutas valorizadas entre os Kalankó serão mais bem trabalhados no

capítulo 8.

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sujeito-índio a um animal selvagem é o mesmo que posicioná-lo semanticamente

próximo da natureza, apontando para a necessidade da domesticação – oposto, portanto,

do sujeito civilizado, próximo do europeu.

O aldeamento missionário e a catequese assumiram, assim, mais do que uma função

educadora, uma função domesticadora, como apontado abaixo.

CATEQUESE:REBANHO = DOMESTICAÇÃO

O pecado neste sistema é um operador da domesticação, sendo relacionado aos

hábitos do selvagem e marcado a partir da culpa. E a punição é usada como forma de

evitar os pecados.

Sendo assim, o uso do flagelo pelos padres era valorizado e servia como forma de

controle aos desvios de conduta. No mesmo sentido, deu-se enorme importância aos

elementos penitenciais, como a confissão19

. Desta maneira, a culpa e o perdão constituem

ordens morais na aldeia Kalankó e são entendidas de forma inversa e simétrica.

Os antepassados, por exemplo, são culpados por transformarem alguns costumes

tradicionais a partir de uma negociação cultural, na qual participavam como parte mais

fraca das relações de poder econômico-político estabelecido no alto sertão alagoano. O

pecado é, desta forma, relacionado também à ideia de peles braiadas, tratada no capítulo

1. Ao mesmo tempo, eles são perdoados. O perdão relaciona-se à resignação.

A ambiguidade decorrente dos sentimentos acima relacionados marca uma tensão

social constante no universo Kalankó.

CULPA / PERDÃO -> TENSÃO

Para a superação desta tensão, o sujeito deve se apoiar na fé. Note-se que a fé se

localiza no mundo interior, pois ela só existe na consciência. O próprio cristianismo é

vivido no interior do ser. A fé nega a vida exterior, apontando para o sujeito passivo, em

oposição ao desejo, que pertence ao sujeito ativo, como exposto abaixo.

19 Esta era o sacramento mais valorizado e a semana santa, o maior entre os ritos.

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DESEJO/FÉ :: ATIVO/PASSIVO

Depreende-se das relações acima expostas que a catequese se aproximou mais de

uma reguladora das relações sociais, incentivando a passividade, do que de um processo

de apropriação de novos conceitos. O padre assumiu a função do xamã e disputou a

autoridade com o sacerdote nativo.

Em segundo lugar, que a estratégia indígena foi a da apropriação de certos símbolos

e costumes cristãos, ao mesmo tempo em que se marcava uma irredutibilidade estrutural

a outros costumes, apontando para uma reconfiguração de condutas.

Neste cenário, tomando-se como base os Kalankó, o nascimento é praticado

conforme o costume do não índio. Normalmente, os Kalankó, por exemplo, aproveitam

alguma viagem que fazem para Água Branca para batizar seus filhos na Igreja matriz.

Porém, quando a criança nasce apresentam-na também no terreiro, num ritual de praiá.

O casamento é no mesmo costume do branco, segundo o pajé, ―é, porque a gente,

tempos anterior, a gente era as pessoa muito massacrada, nos tempos de nossos

antepassados, e a gente acompanho uma certa parte no costume do branco, né... tenho

uma filha que puxo um branco aqui pra aldeia mesmo não tendo tanto apoio... é uma

passagem errada que acontece de puxa um branco pra dentro da aldeia porque ao passar

do tempo pode dar problema‖.

A morte também é entendida a partir destas relações. O sepultamento, segundo

Tonho Preto, é realizado na cidade já que ―se a gente fizesse, chegasse a fazê um

sepultamento de qualquer pessoa... nóis tinha que arretirá, levá pro cemitério do branco,

ia sê tirado na marra, ia forçá nóis tirá, aí não tinha como a gente construir dentro da

nossa cultura que é uma das coisas que é muito importante... antepassado implantado

dentro da própria área‖20

.

As falas nativas acima caracterizam algo muito comum no Temo dos Antepassados:

a perseguição. Tanto a polícia do município, os grande latifundiários, como a população

local classificavam alguns hábitos praticados por eles como Xangô (do mesmo modo

20 O termo implantado dá a idéia de que o morto não é enterrado, mas plantado. Esta situação indica uma

simbologia vegetal que é bastante marcante nos grupos da região e será mais bem trabalhada no capítulo 6.

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como faziam com alguns hábitos de populações afro-brasileiras). Por isso, os Kalankó

foram duramente reprimidos neste período.

Além disso, evidencia-se a elaboração de uma religião híbrida21

. O cristianismo não

é vivido nesta região como em outros espaços brasileiros. Ele, com diferenças aqui e ali,

aponta para um tipo de religião popular, comum no norte e nordeste brasileiros22

.

Isto fica claro nos discursos enunciados na aldeia Kalankó. A fala abaixo corrobora

a ideia.

Consideremo os encanto como ser humano, apesar de não te acesso de

comê feijão junto, mas a gente não considera como homem morto não...

como ser da natureza... Nóis tem o nosso pai Tupã que a gente considera

como um protetor e significado do mesmo Cristo, [...] Deus é um só [...] a

gente aqui se considera como católico [...] agora a gente tem nossa mãe

Tamãin [...]

A fala acima evidencia que para os Kalankó Deus está acima de tudo. Tupã e a mãe

Tamãin, elementos de religiões indígenas, são como Cristo e vêm logo abaixo. A base do

mundo espiritual compreende ainda a crença nos encantados, os antepassados que se

transformaram em entes espirituais, quando ainda eram vivos, e, portanto, não morreram,

tornando-se parte da natureza. Estas relações apontam para um intenso hibridismo

religioso, baseado em várias matrizes culturais.

Se por um lado destacam-se elementos do catolicismo – apostólico romano – e a fé

em Deus e Jesus Cristo, além de outras entidades denominadas santos, de outro,

21 Apesar da complexidade expressa nelas, a religião sempre foi deixada de lado na etnologia produzida no

sertão nordestino. Isto ocorre talvez pelo fato de que a visão sobre estes grupos ainda reduza à questão à

afirmação de que são apenas entidades políticas, no sentido de suas relações com o Estado e de que não

possuem diferentes sistemas culturais. Isto acontece em oposição à etnologia que se faz na Amazônia, por

exemplo, ligada a mito-cosmologia e a intricados sistemas de parentesco. Neste sentido, a etnologia

produzida no sertão nordestino traz ainda o sentido da ausência. E assim, de certa forma, reproduz a

ideologia presente nos aldeamentos, a qual afirma a pobreza intelectual do indígena. Se é possível observar

que o processo missionário, ou seja, a estrutura político-ideológica do dominador, se atualiza nos costumes

da vida indígena Kalankó, então não é de se estranhar que os estudos acadêmicos também reproduzam essa

concepção.

22 Para um aprofundamento no campo de atuação das religiões em questão, ver PRANDI (2004). Neste

estudo, traça-se um panorama etnográfico da crença nos encantados, presente em algumas religiões

brasileiras das regiões norte e nordeste.

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destacam-se elementos de um sistema de caboclos encantados que se dividem a partir do

tamanho do repertório musical de cada23

.

Tal religião parece, assim, se aproximar bastante da descrição do catimbó feita por

Bastide (2004) que é praticado mais em ambientes urbanos, mas que tem ascendência

declaradamente indígena.

O catimbó também conta com grupos de caboclos, divididos hierarquicamente e

acessados pela música, que lhes dá o poder da cura. A diferença sendo que o catimbó se

resume ao que chamo serviço de chão entre os Kalankó (HERBETTA, 2006). Estes

possuem um sistema religioso mais amplo, conectado ao praiá e ao toré, cada qual

contando com um nível de intervenção encantada.

Além deste sistema encantado, que tem como suporte um catolicismo popular, os

Kalankó afirmam ter fé no pai Tupã, que é comparado a Cristo e na mãe Tamain,

apontando para uma mistura com outras religiões indígenas, muito provavelmente

presentes no aldeamento de Brejo dos Padres/PE. Estes termos pertencem a matrizes

diversas, mas são similarmente posicionados. A equação abaixo apresenta estes

elementos que são hierarquicamente bem posicionados em seus respectivos sistemas

culturais.

TUPÃ:TAMAIN:CRISTO:ENCANTADOS

Este catolicismo popular e indígena produz até hoje o conjunto de condutas e

percepções sobre o mundo, no sentido do habitus de Bourdie (2003) e geram valores

operacionais entre a população do grupo. Neste cenário, o cristianismo parece estar

posicionado como figura de fundo, imposta no processo missionário, através da qual os

sujeitos elaboravam suas vidas cotidianas e, a partir daí, entendiam o mundo. As condutas

supracitadas são então criadas em relação a esta figura de fundo, o que faz com que

muitos elementos do cristianismo tenham sido apropriados e sejam ainda importantes no

universo cultural de tais populações.

23 A música é particular em relação a um encanto. Cada um deles possuem um número específico de

cantos, o máximo sendo 25 (HERBETTA, 2006).

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Neste universo, mais do que uma imposição cosmológica, a catequese foi uma

regulação de relações sociais, de condutas e valores, os quais emergem não de forma

fragmentada, mas como um bloco de elementos (LÉVI-STRAUSS, 2008 [1958]: 261-

298).

Esse bloco de elementos se articula por sua vez a alguns significados e passa a

constituir um capital religioso compartilhado entre os grupos indígenas ou não da região.

Neste capital religioso, entre as populações indígenas, destaca-se o sentido de tradição,

representando o que tem relação com a nascença e, ao mesmo tempo, se opondo à

mistura posterior.

Neste universo, quem possui o mesmo capital religioso diz-se parente e formam

grupos aliados. Isto acontece entre os Kalankó, os Koyupanká, os Katokin, os Geripankó

e os Karuazu, os quais se entendem herdeiros dos Pankararu de Brejo dos Padres – o

antigo aldeamento.

Além disso, as outras populações que se aproximam deste capital religioso, são

também agregadas a uma ideia de grande família e a uma relação de aliança, a qual será

analisada no capítulo 4.

Estas relações acabam por privilegiar ainda mais o trânsito entre os diversos

universos culturais em contato, os quais não são irredutíveis, ao contrário, possuem

ampla margem de troca.

Desta maneira o exterior tem um sentido ambíguo. De um lado, é responsável pela

formatação do grupo. Isto a partir de uma extensa rede social, estabelecida desde pelo

menos a imposição do aldeamento missionário. Por outro lado, o exterior passa a ser

evitado, representando a mistura. Esta aponta para a expressão peles braiadas e é

evidenciada quando se reconhecem como grupo. Ao mesmo tempo, o exterior ainda é

valorizado. Isto quando se pensa na noção de grande família. A equação abaixo busca

deixar isto mais claro.

{TRADIÇÃO= ÍNDIO+EXTERIOR (+)} /{MISTURA=EXTERIOR(-) + NÃO-

ÍNDIO} :: {GRANDE FAMÍLIA= TRADIÇÃO+MISTURA}

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Depreende-se da análise apresentada que há um circuito estabelecido, responsável

por arranjar os elementos que dinamicamente se reelaboram, atualizando o mundo nativo.

E que a noção de grande família busca resolver a tensão decorrente dos sentidos –

positivo e negativo – conferidos a relação com o exterior. Neste sentido, este circuito é

histórico, porque produz e é produzido no período da catequese, classificado como

nascença do grupo. Isto no plano diacrônico. E é estrutural, pois está aquém e além deste

período, sendo responsável pela dinâmica social anterior e posterior.

Em segundo lugar, fica evidente que a catequese privilegiou o estabelecimento

deste circuito indígena, apontando para o fato de que sincronia e diacronia constituem

planos em constante contato.

Outro processo histórico que é entendido pelos Kalankó como fundamental à

existência do grupo e corrobora as ideias anteriormente trabalhadas é o chamado Tempo

da Luta, que acontece no processo de democratização no Brasil.

Este processo está em andamento e se relaciona à instauração de um sistema que

respeita o caráter pluriétnico24

da sociedade brasileira (COELHO DOS SANTOS, 1989).

Nele, pode-se dizer que tanto as políticas indígenas quanto as indigenistas se fortalecem,

produzindo novas condutas nas populações em questão.

O termo democracia– mesmo representando muitos e diversos elementos – entrou

de vez no vocabulário do brasileiro e muitos de seus contingentes populacionais

aprenderam a usá-lo a seu favor. Neste sentido, se a elite governante ligada ao grande

capital sempre tentou apropriar-se do termo a fim de representar os outros, em prol de

benefícios próprios, muitos grupos passaram a efetuar sua luta no plano político-jurídico.

Este processo culminou com a consolidação da constituição de 1988, que trouxe

importantes conquistas para a população indígena do país.

De acordo com Coelho dos Santos (1989), a conquista de alguns direitos previstos

inclusive em lei é fruto de uma intensa luta de reivindicação deles, estabelecida desde

sempre, mas mais ligada ao processo judicial-democrático com origem na década de

1980.

24 De acordo com o censo 2010 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os povos

indígenas representam cerca de 1,0% da população brasileira. Ao mesmo tempo, representam o caráter

multifacetado de nosso país.

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Fica evidente que tais grupos, entre eles os Kalankó, tiveram que se adaptar a este

sistema político-adminstrativo e, graças a isso, tiveram contato com diversas outras

organizações e instituições. Ressalte-se que isto se deu graças às diversas articulações e

ao estabelecimento de relações estratégicas junto ao plano político nacional, chegando-se

a contar até com um representante indígena na constituinte, Mário Juruna25

.

Ao mesmo tempo, muitas das leis não se tornaram prática do governo brasileiro,

especialmente quando se referem à territorialização. Esta situação aponta para um estado

de tipo napoleônico, o qual reforça relações assimétricas, eliminado a diferença entre os

sujeitos e colocando-se bem distante de nossa realidade pluriétnica e multissocial26

.

A ambiguidade decorrente do Estado napoleônico e das conquistas democráticas

gera uma tensão política aparentemente de difícil solução, pois se de um lado ―o índio é

irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre com o cigano ou com o judeu‖

(RIBEIRO, 2006 [1995]: 131)27

, de outro o Estado-nação marca sua relaçNao com o

índio a partir da noção de tutela, eliminando a autonomia dos sujeitos e dos grupos.

A equação abaixo apresenta os termos da relação que gera a tensão.

TUTELA / AUTONOMIA=TENSÃO

Depreende-se dela que em primeiro lugar há uma manutenção de uma relação

marcante que já fora a base do processo de catequese. Nele, buscava-se produzir a

passividade do sujeito, através do cristianismo. Neste mesmo sentido, o objetivo da

política indigenista é o da integração, que mascara a eliminação da diferença a partir da

ideia de tutela28

, relacionada a ideia de passividade.

25 Se não podemos comparar os tempos atuais à República do ―Café-com-Leite‖, ao Estado Novo e à

Ditadura Militar, nos quais a elite política e econômica, de forma autoritária, intensificou o processo de

marginalização das minorias étnicas, o acesso destas populações a alguns direitos, há pouco entrou

realmente na pauta do poder executivo brasileiro.

26 Um exemplo é a constituição espanhola. A autonomia marcando nela a diferença.

27 Esta afirmação de Ribeiro é a conclusão de um estudo realizado para a UNESCO – United Nations

Educational Scientific and Cultural Organization -, o qual tinha como premissa apresentar o Brasil como

um país assimilacionista. O que não foi possível, como fica obviamente marcado na afirmação.

28 Muitos exemplos corroboram esta ideia. O SPI – Serviço de Proteção ao Índio e Localização de

Trabalhadores Rurais - em 1910, a ação do general Rondon, baseado nas ideias positivistas e a FUNAI –

Fundação Nacional do Índio - criada em 1967, exclusivamente para tratar da questão indígena, apenas

ilustram a ideia de que a única solução encontrada era a integração do índio à nação.

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Além disso, a tutela é a atualização do pecado, que ainda existe e opera uma série

de relações e sentidos sociais. De certa forma, sente-se culpa por ser diferente. A

diferença sendo a medida da autonomia29

.

Sendo assim, o binômio PECADO-TUTELA sempre serviu como norte da relação

do estado com os povos indígenas. Isto em oposição ao binômio DIFERENÇA-

AUTONOMIA, presente no desejo dos sujeitos do grupo indígena em questão e

fortalecido ao longo do processo de etnogênese, como exposto abaixo.

PECADO:TUTELA / DIFERENÇA:AUTONOMIA

Do ponto de vista Kalankó o processo de fortalecimento da autonomia teve início

em 1998, quando realizaram uma apresentação pública com o objetivo de transmitir a

mensagem de que eram índios e de que buscariam seus direitos legais.

O primeiro local de apresentação foi em Lajeiro do Couro, uma das comunidades da

aldeia. Este evento realizou-se a partir do contato com uma rede social estabelecida com

outras aldeias indígenas, na qual se destaca a relação com os Geripankó, que já eram

reconhecidos oficialmente como indígenas e os incentivaram a lutar por seus direitos,

especialmente à posse da terra.

O uso de apresentações públicas por grupos étnicos nordestinos é comumente

observado no processo de reconhecimento étnico destas comunidades30

. Nestas

apresentações reitera-se a mensagem da etnicidade, que aponta para o caráter indígena

destas populações.

29 Tal relação começou a se fortalecer na década de 1970, que foi especialmente fecunda na reorganização

indígena e indigenista. A reunião de Barbados, no Caribe, em 1971, estipulou princípios de autonomia

fundamentais para se pensar a atuação das populações ameríndias. Segundo tal reunião, a libertação dos

povos, ―ou vem por elas mesmas, ou não é libertação‖ (ver anexo II). Estimulados por diversos grupos os

povos indígenas começaram a organizar movimentos políticos que expressavam a estas reivindicações e

contribuíram para colocar a questão indígena no âmbito das discussões nacionais A criação da União das

Nações Indígenas nos 1980 foi outro exemplo. Desta forma tais lideranças começam a estabelecer um

caminho e um espaço em Brasília o que culmina com a eleição de um deles para deputado federal,

recolocando o índio novamente numa posição de liderança.

30 Isto ocorre desde pelo menos a década de 1930, intensificando-se a partir de 1980. para um maior

aprofundamento, ver (POMPEU SOBRINHO, 1934; DÂMASO, 1935; PINTO, 1956; HOHENTHAL Jr,

1954, 1960; OLIVEIRA, 1993, 1995, 1999, 1999a, 2000; ARRUTI, 1999; FOTI, 2000; OLIVEIRA, 1938;

NEVES, 2005; VALLE, 2004; MOTA, 2004; GRUNEWALD, 2004; PEREIRA, 2004; RIBEIRO, 1992;

OLIVEIRA JUNIOR, 1998).

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Na ocasião, entre os Kalankó, em primeiro lugar houve uma reunião da comunidade

embaixo dos imbuzeiros – árvores fundamentais para a vida da população. Isto por serem

fonte de vitaminas, água e por serem elemento tradicional do universo simbólico em

questão.

Tal reunião tinha o objetivo de comunicar a todos que o grupo passaria a reivindicar

um reconhecimento étnico indígena, graças à origem marcada em Brejo dos Padres/PE e

a prática de um complexo músico-ritual, baseado no toré (HERBETTA, 2006).

Além disso, o fato de a comunicação desta nova situação se dar através da fala dos

líderes, o pajé Tonho Preto e o cacique Paulo, é de suma importância para o evento, já

que marca oficialmente a aliança estabelecida entre os presentes e estabelece

publicamente a indianidade do grupo em questão31

.

Posteriormente, no dia 25 de julho do mesmo ano, dando prosseguimento ao

processo de apresentação pública, realizou-se outra exibição oficial, na qual o grupo se

mostrou para a sociedade do entorno e agora, simbolicamente, para o Brasil. Esta data

tornou-se uma das mais celebradas e, a partir de então, é comemorada todo ano.

Nesta apresentação estavam presentes o presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Água Branca, o padre da paróquia, Rosevaldo, alguns grupos de jovens da

igreja católica, alguns movimentos sociais e políticos da região, a imprensa, missionários

do CIMI e a representação de todos os povos indígenas do sertão, além dos Xucuru-

Kariri de Palmeira dos Índios/AL – configurando o conjunto das alianças iniciais

conquistadas para o fortalecimento do processo de reconhecimento étnico.

Este tipo de reunião evidencia a importância da associação entre os povos indígenas

e diversos outros agentes sociais. Do ponto de vista Kalankó esta associação indica o

fortalecimento do movimento indígena.

Ainda nesta apresentação, todos os grupos indígenas presentes realizaram um toré e

fizeram dançar seus praiás, demarcando o campo semântico estabelecido, o da questão

indígena nordestina. Além disso, cada povo presente produziu um depoimento de apoio à

causa Kalankó.

31 Este valor conferido à voz será mais bem trabalhado no capítulo 6 e está marcantemente presente no

valor dado à música (ver HERBETTA, 2006).

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A festa novamente marcou o sentido indígena, organizando seu discurso a partir do

plano geral do ser índio ao específico do ser Kalankó. Desta forma, ficou muito marcada

para todos os presentes a característica inerente à população em questão. Além disso, a

fala novamente marcou as alianças e as situações fundamentais para o início do processo

de reconhecimento étnico.

O CIMI – Conselho Indigenista Missionário – teve uma participação destacada na

apresentação em questão, tratando especialmente dos direitos indígenas presentes na

Constituição de 1988. Além disso, a partir deste momento, o CIMI passou a apoiar o

processo de organização e fortalecimento da identidade étnica do grupo, através do que

chamam de assessoria. Esta tem como objetivo estimular a organização e a autonomia

dos povos em questão32

. O termo assessoria aponta para a importância da instituição e

também para a autonomia dos agentes envolvidos no processo.

Nestas assessorias, o CIMI sempre ressalta a importância das organizações

tradicionais e políticas dos indígenas e a constante politização dos movimentos indígenas.

Quando possível, o CIMI participa com algum auxílio material, visando à participação

dos líderes nos diversos espaços de participação democrática da sociedade brasileira. No

caso Kalankó, isto significa participar em reuniões no município de Água Branca, em

alguma outra aldeia, em Maceió ou em Brasília.

Neste sentido, esta instituição em especial, braço da Igreja Católica e consequência

do Concílio Vaticano, atua especificamente para alargar a rede social dos grupos

indígenas, associando tais povos com diversas outras esferas e espaços de poder político

presentes no país.

Desta forma, intencionalmente ou não, o CIMI acaba por explorar e incentivar um

elemento da estrutura social destas populações, a formação em circuito, intensificando a

rede de sociabilidade destes povos indígenas.

A partir daí, os Kalankó passaram a participar dos encontros de formação dos

povos do sertão, da APOINME (Articulação dos povos Indígenas do Nordeste, Minas

Gerais e Espírito Santo – antes Comissão Leste e Nordeste) e dos rituais de outros grupos

32 O CIMI atua em uma área grande no sertão nordestino. Esta presença gera alianças, mas também

conflitos.

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indígenas presentes no sertão, como os Geripancó e os Pankararu. Estes encontros são

denominados internacionais.

Este tipo de participação faz parte e colabora para o processo de afirmação étnica de

outras comunidades indígenas e no processo de associação à causa indígena nacional. É

comum vê-los em discussões em Maceió, em outras cidades alagoanas, em Pernambuco

ou mesmo em Brasília. E, além disso, estas participações geram viagens que são

responsáveis pelo alargamento da rede social entre os povos indígenas, de alianças com

outras entidades e instituições e ainda pela formação e destaque das principais lideranças

indígenas da região.

Desta forma, a participação dos Kalankó em outros espaços de relação política

aponta para o fato de que se participa do sistema democrático brasileiro.

Ao longo do tempo, a formatação política deste conjunto inicial de alianças foi se

modificando a partir da lógica de associação e recorte do grupo, que será estudada no

capítulo 4. Em 2000, por exemplo, por volta de 11 famílias descendentes dos Severo

retiraram-se para o Assentamento Salgadinho, localizado ainda na caatinga alagoana.

Isto aconteceu a partir de desavenças internas, quando Tonho Severo, antigo

cacique Kalankó e pertencente à família Severo, foi acusado pelo grupo de se beneficiar

financeiramente da condição de liderança. Tonho foi, então, expulso e toda a

descendência dos Severo o acompanhou.

Para os Kalankó, diante deste processo histórico absolutamente relevante para a

população ameríndia brasileira, eles reelaboraram sua forma de arregimentação de

líderes, a partir de então baseada no voto direto, mas que leva também em consideração

critérios genealógicos e referentes ao prestígio no domínio cerimonial.

Este processo histórico e o consequente contato com diversos outros agentes sociais

trouxeram também outras mudanças de condutas entre os Kalankó.

Neste cenário, a figura do cacique33

assumiu grande destaque na aldeia, já que ele é

entendido como o responsável por liderar a luta do grupo pela conquista de seus direitos.

33 O tipo de cacique em tela é similar àquele presente em Clastres (2004 [1980]). Ele é um líder que não

impõe, mas conquista sua autoridade através de prestígio, que no caso tem a ver com a adoção de um estilo

de vida valorizado. Neste sentido, a retórica torna-se importante. O cacique é um grande orador. Para

Clastres, ―compete-lhe assumir a vontade da sociedade de mostrar-se como uma totalidade una, isto é,

assumir o esforço concertado, deliberado, da comunidade, com vistas em afirmar sua especificidade, sua

autonomia, sua independência em relação às outras comunidades. Em outras palavras, o líder primitivo é

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68

Desta maneira, Paulo tem o papel de levar as reivindicações da comunidade para fora,

representando-a junto ao Estado e à sociedade nacional.

Ele é uma figura fundamental no Tempo da Luta, já que conjuga os diversos

espaços de representação indígena, o que significa organizar reuniões internas e

representar seu povo em espaços de interlocução externos, cada vez mais presentes e

importantes no mundo globalizado. Ele, portanto, deve saber lidar com novas

tecnologias como o celular, o computador, o avião e a escrita, apontando para outra

postura perante o mundo.

Paulo centra suas falas nas conquistas da comunidade como o posto de saúde, o

dentista, o centro de cultura e todas as obras de infraestrutura, indicando que o próprio

grupo está em elaboração. Ele afirma sempre como ―coloca a cara‖ para conseguir tudo

isso, o que pode ser perigoso, referindo-se a algumas ameaças sofridas.

Paulo cuida desta forma da formação de um corpo político voltado para fora da

aldeia e reclama constantemente que está sozinho na comunidade, não podendo, por isso,

dividir responsabilidades, cobrando sempre uma participação maior dos sujeitos do

grupo.

Desta forma, para ele, o líder deve possuir algumas características importantes,

relacionadas ao que ele chama ―trabalho duro‖. Esta expressão está ligada a algumas

condutas a que ele teve que se adaptar. Sempre que há necessidade de sua presença, por

exemplo, ele deve estar presente, mesmo que isto represente estar longe da família e de

seu povo.

Para Paulo, a generosidade é outra característica marcante no líder, pois ele deve

colocar sua vida pessoal em segundo plano, sempre privilegiando as conquistas do grupo.

Além disso, a honestidade é essencial para o cacique, ele não pode agir em benefício

próprio. Critica também a abundância de bens materiais, conduta de alguns índios,

indicando que o asceticismo ou a falta destes bens são fundamentais para o modelo de

chefia político preferido na aldeia, e também para o modelo do sujeito Kalankó.

Numa reunião do conselho da saúde, em julho de 2009, por exemplo, Paulo contou

diversos casos de tentativa de corrupção aos líderes indígenas e como eles devem ser

principalmente o homem que fala em nome da sociedade Quando circunstâncias e acontecimentos a

colocam em relação com os outros‖ (: 103).

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sempre fortes para resistir a elas. Na mesma ocasião, ele usou diversas vezes a expressão

―fazer política‖ se referindo às condutas acima identificadas e, especialmente, à

capacidade de produzir alianças. Assim, ―fazer política‖ é agregar o maior número de

apoios e associações possível.

Esta experiência no mundo fez com que desenvolvesse um amplo conhecimento

sobre o tema em questão. Ele sabe muito bem conversar sobre política do grupo, da

região ou do país e tem uma posição muito bem marcada, mostrando-se bastante

inteligente para articular alianças e cobrar a conduta dos outros na hora que acha justo.

O cacique atua, porém, sempre em relação ao pajé34

. A associação entre ambos é

fundamental na concepção política da aldeia. Deve haver um equilíbrio constante entre

eles. Neste sentido, Tonho Preto, o pajé, fica responsável por manter o grupo

internamente coeso. Ele lida com as condutas internas do grupo, liderando os rituais,

incentivando os valores tradicionais e mediando conflitos. Além de fiscalizar o

cumprimento das obrigações dos sujeitos, ligadas especialmente ao cuidado com o corpo

para a prática do complexo músico-ritual.

Para ele, estas obrigações são fundamentais e ele se coloca como modelo de

comportamento, devendo, portanto, saber lidar com tecnologias tradicionais, como as

ervas do mato, a terra e os seres da natureza.

A equação abaixo apresenta a situação de complementaridade política na aldeia

Kalankó.

CACIQUE = ESCRITA:ALIANÇA:EXTERIOR u

PAJÉ = ORALIDADE:TRADIçÃO:INTERIOR

A necessidade das duas funções que atuam em complementaridade aponta para o

fato de que a organização destes grupos é mais forte a partir do processo de etnogênese.

E, em segundo lugar, para complexificação da realidade, que agora demanda mais formas

de atuação política.

34 Nos textos clássicos da etnologia indígena do sertão nordestino fala-se muito no pajé, como líder do

grupo e regulador das relações – inclusive como rival dos missionários (POMPA, 2002). A partir do

processo de reconhecimento étnico presente no período da democratização brasileira é o cacique que

aparece com mais destaque.

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70

Neste sentido, a capacidade diplomática decorrente da relação de

complementaridade acima exposta indica uma abertura dialógica ao exterior e se coloca

como elemento estrutural à elaboração do grupo étnico.

Isto fica evidente, como foi demonstrado acima, tanto no período colonial quanto

no período da democratização brasileira. No primeiro, os chefes indígenas, que eram

também grandes xamãs, não se furtaram à tarefa de buscar alianças e acordos e de aceitar

a negociação com o outro. No último, o grupo dividiu de forma mais fragmentada os

papéis de liderança política – entre o pajé e o cacique. Estes são complementares e

simétricos.

Na mesma ocasião em que Paulo discursou, Tonho Preto falou sobre o poder da

oralidade e o poder da escrita, agregando valores à falada capacidade diplomática e aos

modos de se fazer política na aldeia.

Nestas falas, ele estava delimitando uma série de princípios importantes para os

sujeitos Kalankó, que devem confiar na oralidade do parente, mas que devem se unir,

formando um corpo político para fora, baseado no registro escrito. A equação abaixo

procura deixar mais clara a concepção de diplomacia, fundamental para a política do

grupo.

DIPLOMACIA:POLÍTICA = ORALIDADE+ESCRITA

Evidencia-se que a oralidade relaciona-se aos sujeitos do grupo e a escrita aos não-

índios. Ambas apontam para uma capacidade bastante valorizada, a diplomacia, que tem

o sentido de ―fazer política‖, como fala Paulo.

Note-se também que se tem uma noção própria para escrita, a qual é relacionada ao

universo não-índio e serve como meio de registro da palavra, que neste espaço, pode ser

relacionada à dúvida.

Depreende-se do exposto que a política entre os Kalankó está diretamente

relacionada a uma concepção de equilíbrio e complementaridade entre o exterior e o

interior. E que a capacidade diplomática é fundamental para a manutenção deste

equilíbrio. Externamente, agregando-se aliados e internamente resolvendo-se conflitos.

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Além disso, percebe-se que o modelo dos dois líderes apresentados acaba sendo o

modelo dos outros sujeitos e que isto gera novas condutas e cobranças. Da mesma forma,

formatam-se dois modelos de comportamento – um voltado para o EXTERIOR, pautado

na busca de aliança e no domínio de novas tecnologias, como a escrita e espaços, como a

nação. Outro, voltado para o INTERIOR, baseado na concepção de oralidade e de

território.

Neste cenário, podemos pensar que a ESCRITA se relaciona à ideia de NAÇÃO e a

ORALIDADE à ideia de TERRITÓRIO. E que estes espaços e temas devem ser bem

conjugados pelos sujeitos do grupo, como representado abaixo.

EXTERIOR:ESCRITA:NaçÃO :: INTERIOR:ORALIDADE:TERRITÓRIO

Num sábado, em julho de 2009, houve outra reunião política importante. Nela,

tratou-se da questão da territorialização. Este evento contou com a participação do CIMI

e nele, pôde-se perceber que a questão da terra está relacionada com a equação acima

apresentada, sendo o maior objetivo da população.

Além disso, o pajé falou da parentagem, referindo-se ao conjunto de todos os

primos, recortados a partir da ideia de parente, noção que será analisada no próximo

capítulo. Ele pedia insistentemente a presença deles, apontando novamente para a ideia

de união. Em seguida, Tonho Preto tratou da ―farmácia do índio‖, se referindo às ervas

medicinais e também ao território. O assunto seguinte foi a educação, que para ele deve

ser voltada ao estudo da terra e ao conhecimento do mato.

A fala de Tonho Preto novamente apontou para condutas internas e delimitam

temas importantes para todos. Estes temas podem ser ordenados em dois pares que se

entrelaçam constantemente, TERRA:MATO, os quais se articulam com

EDUCAÇÃO:SAÚDE, formando as relações:

CACIQUE:TERRA:EDUCAÇÃO :: PAJÉ:MATO:SAÚDE

Percebe-se assim que a lógica política se mantém no plano dos temas. Mantém-se o

equilíbrio complementar das funções, nos termos analisados. Além disso, apesar da

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complexidade e importância dos assuntos tratados, a participação da comunidade neste

encontro foi pequena, logo sentida pelos líderes que toda hora chamavam a atenção para

o fato de que o papel deles – líderes – é o de representar a comunidade e não apenas

decidir por ela.

Em todos os encontros citados e em outros fica evidente a referência a algumas

condutas valorizadas na aldeia Kalankó. Todos estes eventos são denominados encontros

políticos. Neles, os principais líderes discursam e dialogam com a comunidade, buscando

opiniões e representações sobre as questões mais urgentes ao grupo. Alguns tipos de

encontro apontam para a importância dos mesmos na aldeia.

O primeiro tipo de encontro é chamado de Conselho Tribal, sua jurisdição sendo o

relacionamento externo da comunidade. O segundo se chama Conselho Local e diz

respeito à resolução dos conflitos internos. Existe um terceiro conselho que se reúne

desde 1999, chamado de Conselho da Saúde, que trata de assuntos relacionados à

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde. O quarto conselho é o Conselho das Crianças,

cujas atividades são realizadas objetivando a inserção das crianças no entendimento de

mundo Kalankó. O conselho organiza a ―Festa das Crianças‖ todo mês, no terreiro ritual

de Lageiro do Couro. Nesta festa realiza-se um toré, somente com a participação das

crianças. As crianças que participam do rito, sempre são levadas para apresentações fora

da aldeia.

Tais encontros deixam claro que a diplomacia e a política são muito bem feitas na

aldeia e que a união dos sujeitos representa a força do grupo. Desta forma, sempre se

estabelece uma negociação em busca de novas alianças. Estas alianças também são

limitadas e dependem dos valores envolvidos nas relações35

.

Neste plano, os encontros indígenas são operadores de alianças entre os povos e,

consequentemente, agem como intercâmbio de ideias, práticas e princípios. Além disso,

servem como tentativas de compensação, estabelecendo tentativas de reconciliação entre

os sujeitos em disputa, no caso, a população indígena e o Estado nacional e alguns

poderes municipais, eliminando a tensão acima explicitada (TURNER, 1974; 1987).

35 Esta postura se assemelha à posição de algumas lideranças indígenas do período colonial em relação ao

governo colonial. As cartas de Felipe Camarão e a posição dos índios no sistema de alianças atestam a

igualdade política colonial e se referem à política de alianças (POMPA, 2002). O que demonstra a grande

habilidade diplomática.

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Da análise dos dois processos históricos em tela desvela-se uma série de

propriedades comuns que apontam para a existência de uma estrutura no plano sincrônico

responsável pela elaboração dos grupos em questão.

Em primeiro lugar, evidencia-se a posição do Estado em relação aos indígenas.

Este sempre age com base na eliminação da autonomia daqueles, que buscam uma

postura autônoma, afirmando sua diferença.

ESTADO/DIFERENÇA

Em segundo lugar, evidencia-se uma formação em circuito, baseada nas relações

entre os sujeitos, evidenciada em ambos os períodos analisados. E também, na

capacidade diplomática explicitada neles, apontando para uma abertura ao exterior.

EXTERIOR +

A relação com o exterior é base de uma constante. Estes grupos buscam a

associação com o outro, mas estabelecem limites claros, recortando a ideia de grupo. O

circuito tem com base esta abertura e é responsável por arranjar os sujeitos e grupos da

região em comentário, os quais dinamicamente se reelaboram, atualizando seus formatos

e condutas.

Neste sentido, este circuito é histórico, porque produz e é produzido pelos períodos

analisados. E é estrutural, pois está aquém e além deles, sendo responsável pela dinâmica

social anterior e posterior. Ele na verdade se utiliza de elementos diacrônicos para

reproduzir a sincronia, mesmo que de forma diferente. Pode-se dizer, então, que esta

forma de circuito é epigenética, pois mantém as características estruturais apesar das

transformações históricas.

Em seguida, depreende-se que a tensão social sempre está relacionada com a

relação entre a sincronia e a diacronia e tem como base uma relação de termos

inversamente simétricos, como evidenciado abaixo.

{TUTELA / AUTONOMIA=TENSÃO}::{CULPA / PERDÃO = TENSÃO}

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Neste cenário, a culpa aponta para a tutela, talvez relacionando os termos à

passividade. E o perdão aponta para a autonomia, marcando a atividade. Do ponto de

vista Kalankó, esta última relação é a base do Tempo da Luta, no qual eles perdoam os

erros dos antepassados e buscam a diferença, que representa a autonomia.

A música é o tema do capítulo 5, mas serve aqui como evidência dos aspectos

analisados, indicando que o jogo entre a sincronia e a diacronia, produtor de uma tensão

social, é responsável pela atualização de uma totalidade. Nela, além disso, fica evidente

um jogo de afirmação e negação dos momentos supracitados.

Segundo Menezes Bastos (1999 [1976]), um dos atributos da música ameríndia é

sua posição de destaque na cadeia intersemiótica do ritual – atuando como tradutora.

A estrutura musical do toré, por exemplo, é baseada na forma A-B-A. Nesta

estrutura, a parte A aponta para a apropriação de modos de cantos eclesiásticos,

representando a imposição decorrente do contato com os missionários. A parte B

evidencia maior liberdade musical, apontando para momentos de resistência na formação

do ser Kalankó, representando a diferença e a busca pela autonomia. O toré é desta forma

a expressão, representação e produção das relações acima estudadas, destacadas abaixo.

IMPOSIÇÃO/RESISTÊNCIA

PASSIVIDADE/ATIVIDADE

ANTEPASSADOS/LUTA

SUBORDINAÇÃO/LIBERDADE

Neste sentido, o toré aponta também para a tensão decorrente do uso de termos

simetricamente inversos.

No canto ―Papagaio Amarelo‖, por exemplo, aparecem figuras rítmicas típicas do

Brasil. A nota de partida é grave, ou seja, parte-se do plano superior do registro vocal

representado na partitura e percorre-se o caminho descendente. A linha melódica, porém,

oscila nos três planos. Na parte A, o material melódico aponta para uma reminiscência do

modo eclesiástico em 5º, conforme evidenciado abaixo. A sílaba tônica está presente no

tempo fraco e a fraca no tempo forte.

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Pode-se perceber na parte A acima uma certa tradição portuguesa. Isto porque o

gestual aproxima-se de cantos de louvor e lamentações. Percebe-se, contudo, que é um

gestual alterado, certamente reelaborado.

A estrutura preponderante é a ABA. O A indicando similaridades com o modo

ocidentalizado e o B, presente mais no coro, expressando maior liberdade musical.

No segundo A, volta-se para o início. Essa volta é bem marcada. Especialmente na

parte A, percebe-se uma reminiscência do modo mixolídio, próprio de festas e aleluias.

Tal modo é presente em gêneros da música popular da região, como o baião, por

exemplo. Ele aponta para cantos que representam a alegria.

No parte A do canto Acoã percebe-se um interessante salto de 4º na abertura,

depois escorrega-se uma terça, o que perfaz uma armação bastante sofisticada, cheia de

portamentos.

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Observam-se também cadências melódicas, de herança português-europeia. É

interessante observar como homens e mulheres atuam diferentemente. Nunca é em

uníssono. Os homens em 5º e as mulheres em 4º em relação ao cantador.

Esta estrutura musical aponta para uma reminiscência do canto gregoriano, que se

mistura a cantos populares, como evidenciado abaixo.

Na parte B, pode-se observar uma estrutura distante dos modos ocidentais. Além

disso, distantes de estruturas rígidas e fechadas, como aponta a melodia abaixo.

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Em seguida, volta-se novamente a A. Esta volta busca trazer todos o material

apresentado na abertura do canto.

Da análise das partituras musicais de alguns torés, percebe-se que a tensão

melódica está sempre presente. Ela é decorrente da relação entre as partes A e B.

Além disso, observa-se que a tensão é valorizada sendo usada para a produção dos

cantos em questão. Neste sentido, ―the fact is that there is no opposition between

constrant and liberty, and that, on the contrary, they support each other – since all liberty

attempts to overturn or overcome a constraint and every constraint has cracks or points or

least resistance that invite liberty to pass through‖ (LÉVI-STRAUSS, 1992 [1983]: xvi).

Trata-se então de uma falsa oposição esta que se baseia na relação entre sincronia

e diacronia e a partir daí em uma série de outras oposições. Estas relações, na realidade,

produzem as atualizações do universo Kalankó.

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Capítulo 3

Invenções – formas de codificação do universo

Um de meus assuntos prediletos nas conversas que tive com praticamente todos os

Kalankó é o toré. Este tema foi se tornando cada vez mais marcante e interessante ao

longo do trabalho de campo. Isto porque todos os entrevistados declararam de uma forma

muito veemente que o toré é um espaço muito especial. Eles falaram: ―nascemo no

toré‖... ―é uma cultura que a gente já nascemo‖... ―dançando o toré me entendi de gente‖.

As declarações acima são muito comuns de se ouvir na aldeia Kalankó. Em todas

as vezes que estive lá, alguém me falou algo do gênero. Todas as afirmações apóiam-se

no verbo nascer ou entender para referirem-se a este ritual complexo e popular entre os

índios do sertão alagoano.

Desta forma, todas elas apontam para o fato de que os sujeitos em questão só

entendem-se como gente – ou nascem como seres-humanos – na prática deste rito, no

qual se tem contato com princípios, ideias e condutas importantes para o ser Kalankó.

Neste sentido, o toré é um lugar importante para o sujeito se identificar, se reconhecer e

sentir-se inserido no universo cultural em questão. Este capítulo buscará identificar os

principais termos e relações presentes no texto do toré, essenciais para a noção da pessoa

Kalankó. Todos estes temas serão trabalhados nos capítulos seguintes.

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Além do exposto, para os Kalankó, o toré é a música que se canta desde o Tempo

dos Antepassados e a que se pratica no dia a dia. O toré é cantado de preferência no rito,

porém é comum observar como eles o cantam também em diversos momentos cotidianos,

desde em um jogo de dominó até na hora de ninar um filho, como faz costumeiramente

Zé Magrinho, deitado na rede de sua sala, em Lageiro do Couro.

Apesar da importância que o toré representa para o universo social das

comunidades da região, a etnologia indígena produzida lá ainda carece de melhores

interpretações acerca deste rito. Na maioria dos casos, o toré é tratado apenas como

marcador diacrítico ou espaço do sagrado, perspectivas relacionadas aos estudos de

etnicidade36

(POMPEU SOBRINHO, 1934; DÂMASO, 1935; OLIVEIRA, 1938;

OLIVEIRA, 1993, 1995, 1999, 1999a, 2000; ARRUTI, 1999; FOTI, 2000; NEVES,

2005; VALLE, 2004; MOTA, 2004), como apontado na apresentação da tese.

Se estes estudos são bastante relevantes para o entendimento da fundamentação

política dos grupos em relação a outros grupos e ao Estado-nação, então alguns outros

estudos identificam no toré um ritual polissêmico. Apesar disso, porém, estes ainda

deixam de lado este universo repleto de elementos simbólicos (GRUNEWALD, 2004;

PEREIRA, 2004; RIBEIRO, 1992; OLIVEIRA JUNIOR, 1998). Daí meu esforço em

tentar avançar este debate.

Em Herbetta (2006) descrevi detalhadamente as características principais do rito

entre os Kalankó, destacando seus elementos constituintes, a percepção das pessoas

acerca do mesmo e sua relação com a teoria nativa de música. O que me interessa agora é

o conjunto de discursos e representações que perpassam o evento musical, ou melhor, o

resíduo mitológico que pode ser percebido nele.

De acordo com Teixeira Pinto (1997), que trabalhou com os Arara, o ritual é em

si um espaço privilegiado de expressão dos princípios de organização cosmológica do

36 A grande maioria dos estudos em referência segue Barth (1969). Neste estudo entende-se grupo étnico

como um tipo organizacional em constante interação com outros. As análises no campo da etnicidade

tiveram seu grande desenvolvimento na década de 1960 e seu ápice com Barth (1969) que partiu de uma

perspectiva interacionista. Ele procurou deconstruir o conceito de aculturação, que previa o fim das ditas

minorias étnicas, a partir de uma concepção estática de cultura, na qual o isolamento era parte fundamental

para a manutenção cultural e o contato o elemento desagregador. No Brasil, a obra de Roberto Cardoso de

Oliveira, pode ser classificada como aparentada à de Barth. Um trabalho entre tantos outros, que evidencia

isso é a dissertação que Cardoso de Oliveira orientou, no Museu Nacional, intitulada, “Índios Camponeses:

Os Potiguara da Baía da Traição” (AMORIM, 1971).

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grupo, possibilitando o contato com o universo cultural de cada grupo. Assim, se os mitos

não são apenas espelhos da sociedade (DURKHEIN, 1989 [1912]), então eles têm nos

rituais espaços privilegiados de expressão simbólica.

Neste sentido, as letras pertencentes aos cantos do toré, expressos no rito de mesmo

nome, podem ser objeto de análise deste universo que se aproxima potencialmente de

algumas narrativas míticas, afinal tais letras ―stemming from a collective tradition as well

as to works by a single author‖ (LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]: 626).

Além disso, é no toré que emergem alguns temas centrais para os Kalankó, os quais

são essenciais na operacionalização do socius nativo e constituem a estrutura de

entendimento de mundo Kalankó. Sendo assim, ―myth subordinates structure to a

meaning, of which it becomes the immediate expression‖ (: 650).

Melatti (1978) analisou histórias populares contadas na região do Rio Uruçá, na

Amazônia brasileira, corroborando as ideias acima expostas. A partir deste estudo ele

estabeleceu princípios e estruturas em narrativas antes desvalorizadas nos estudos

etnológicos. Desta forma, ele aproximou contos populares às narrativas míticas, obtendo

resultados interessantes.

Cardoso de Oliveira (1991) também deu atenção a este tipo de história, apontando

para a relevância simbólica. Para ele, os Krahô, pensam a narrativa popular de João e

Maria, por exemplo, de forma absolutamente específica37

. Ou seja, apesar de ser uma

história comum no folclore brasileiro, cada grupo se apropria, recombina e a reiventa a

partir de seus códigos culturais.

Segundo o autor, embora afirme-se que a versão da história se caracterize pela

ausência de contribuição indígena, ―o que nos chamou atenção no texto foi exatamente a

articulação original de problemas indígenas com temas ocidentais, através da qual os

Krahó procuram pensar a sua experiência‖ (: 37).

37 Cardoso de Oliveira (1991) postulou que o conto deve ser dividido em duas partes. Na primeira, a ação

acontece no âmbito da sociedade Krahô. Na segunda, o rapaz vai se integrando no mundo dos brancos. Ele

notou também que há dois irmãos que crescem ao longo da narrativa e a irmã começa a afastar-se do irmão.

Ele interpreta essa hostilidade da irmã como um modo de evitar o incesto a que estavam sendo conduzidos.

Neste sentido, há uma relação direta com a realidade na aldeia. Lá, nessa idade, o rapaz deixaria de passar a

noite dentro da casa materna, indo dormir ao relento, no pátio central. Por fim, o autor compara a situação

do velho cego - personagem central de sua análise - com a de alguém em processo de tornar-se xamã, uma

vez que é um sujeito que possui uma deficiência física e, por isso vive isolado dos demais moradores da

aldeia. Da mesma forma como o processo normalmente se dá na aldeia.

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Nos estudos acima citados, a narrativa de origem popular, deslocada à princípio,

de qualquer conteúdo indígena, apresenta um código de entendimento de mundo nativo,

da mesma forma como ocorre com os mitos. Outros autores como Wagley e Galvão

(1961) fizeram a mesma relação, obtendo resultados relevantes. Murphy (1958) também

deu importância a algumas destas histórias.

Pode-se depreender destes estudos que, em primeiro lugar ―narrativas com caráter

de contos numa sociedade, são mitos para outra e inversamente... [e que] os contos são

mitos em miniatura‖ (LÉVI-STRAUSS, 1987 [1973]: 134-136)38

.

Em segundo lugar que a codificação mitológica pode estar presente em diversos

tipos de narrativa e expressão. Inclusive no toré. Inspirado nestas associações

estabelecidas desenvolverei neste capítulo um estudo sobre a relação entre o toré e o

mito.

Neste cenário, a relação entre mito e toré vai ao encontro da hipótese de Lévi-

Strauss de que nas formas musicais são reproduzidas, inconscientemente, estruturas

míticas (LÉVI-STRAUSS, 1985 (1978): 67-77). Neste sentido, o mesmo autor realizou

interessante análise da ópera de Wagner, a tetralogia Der Ring Nibelungen, aproximando-

a de uma narrativa mítica (LÉVI-STRAUSS, 1992 [1983]: 235-239).

Para Lévi-Strauss, no mínimo,

mythology exists in two clearly different modalities. Sometimes it is

explicit and consists of stories which, because of their dimensions and

internal organization, rank as works in their own right. Sometimes, on the

contrary, the mythic text is fragmentary, and is made up, as it were, only

of notes or sketches; instead of the fragments being brought together in

the light of some guiding principle, each remains linked to a particular

phase of the ritual, on with it serves as a gloss, and it is only recited in

connection with the performance of ritual acts… in both cases, we are

dealing with mythic representations (LÉVI-STRAUSS, 1990[1971]: 669).

38 Esta relação entre mitos e contos populares é muito clara em Lévi-Strauss (1995 {1991}: 179-190). Para

o autor, ―the indians was quick to grasp the resemblances between their narratives and the european ones,

and they incorporated many incidents into their own traditions‖ (: 180).

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Desta forma, as letras do toré podem ser entendidas como versões representativas

de um discurso maior, relacionado à mitocosmologia e expresso no rito em referência.

Com isso, a estrutura do toré possui elementos relevantes para o entendimento do

universo simbólico em questão e, além disso, é entendido como uma forma de

codificação da realidade social. Aprofundarei e desenvolverei esta afirmação mais

adiante.

Estes elementos simbólicos, que eram desprezados por alguns autores clássicos

(TYLOR, 1920), começaram a aparecer como algo interessante e relevante a partir do

surrealismo e dos desdobramentos da etnologia sul-americana, tornando-se responsáveis

pelo desenvolvimento de uma linha de pensamento importante na antropologia. Neste

cenário, a cosmologia passou a ser o espaço preferido de análise desta dimensão

simbólica e muitos autores debruçaram-se sobre a questão.

A obra de Malinowski (1978) trouxe grandes mudanças para o estudo cosmológico.

Ele é o primeiro a fazer uma associação entre mito e ritual e entre tradição sagrada e

normas da estrutura social. Malinowski dá atenção ao cotidiano dos nativos que narram

os mitos, chegando mesmo a apresentar uma classificação das narrativas dos próprios

trobriandeses. (MALINOWSKI, 1978). Para o autor, o mito é uma justificativa do rito.

Algumas outras abordagens tenderam para a fenomenologia. Segundo Merleau-

Ponty (2006 [1945]: 393) o mito é uma projeção da existência, uma expressão da

condição humana e não uma explicação do mundo. A cosmologia teria valor como

referência temporal, mas acima de tudo, conceitual39

.

Para Lévi-Strauss, "a relação entre o mito com o real é indiscutível, mas não sob a

forma de uma representação. Ela é de natureza dialética e as instituições descritas nos

mitos podem ser o inverso das instituições reais" (LÉVI-STRAUSS, 1970: 39). Para o

autor, o mito não serve para justificar o rito e tão pouco como base epistemológica.

39 Estes estudos sobre mitos apontaram para algumas perspectivas diferentes. Uma delas buscava a partir

de uma visão hermenêutica, algum sentido implícito ao mito. Outra perspectiva recorrente buscava, na

cosmologia, a organização social dos grupos, partindo de pressupostos durkheinianos, pelos quais se

entendia que os mitos eram espelhos da sociedade. Outra ainda apontava para uma interpretação religiosa.

Esta perspectiva que era bastante forte na Alemanha e nos Estados Unidos, teve Rivers (na Inglaterra),

como um de seus autores principais. Assim, entendia-se o mito como um relato sagrado equivalente a um

repositório verídico do passado (Viveiros de Castro, 2002). Outras linhas de pensamento, ainda, indicavam

abordagens psicanalíticas ou pscicologistas, procurando símbolos ou arquétipos da mentalidade humana.

Uma destas abordagens acreditava que os mitos constituiriam tentativas de explicar os fenômenos naturais.

Assim, alguns autores entendiam que a lua era o principal motivo dos mitos (EHRENREICH, 1906).

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O grande marco no estudo mitocosmológico foi o trabalho de Lévi-Strauss (1964-

1971). Esta obra, baseada no estruturalismo, marca uma quebra em tudo o que se falava

sobre cosmologia ameríndia até então. Nela, a partir de um mito bororo, encadeia-se um

grande número de mitos, do noroeste da América do Norte à Terra do Fogo argentina e

propõe-se algo radical. Os mitos não teriam sentido implícito, mas possuiriam uma

estrutura de cognição.

Esta estrutura expressa às categorias do concreto, que servem para se pensar a

dimensão social, além de estabelecerem relações com outros domínios culturais, como o

corpo, os adereços, a música, entre tantos outros. Há então uma forte ligação do real com

o imaginário e simbólico. Deste modo, o mito é uma forma de codificação e expressão do

inconsciente que, por sua vez, é elaborado com base em estruturas universais e

inconscientes do pensamento humano. A questão não é tanto como os homens devem

pensar nos mitos, mas como estes pensam os homens, mesmo à sua revelia (LÉVI-

STRAUSS, 2004 [1967]).

Neste cenário, não há versões autênticas ou originais de um mito, já que ―properly

speaking, there is never an original: every myth is by its very nature a translation and

drives from another myth belonging to a neighboring‖ (LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]:

644). Evidencia-se que os mitos deslocam-se de grupo a grupo ao longo de um território a

partir de uma série de transformações que podem ser baseadas em inversões, contradições

e simetrias. Neste cenário uma versão de um mito completa a outra e a análise deve levar

em conta todas elas, que constituem sistemas detentores de uma mensagem.

Além disso, não há versões boas ou ruins ―at any rate, it is not the annalist‘s

business to decide the issue in the light of criteria foreign to object he is studying: it

would be better to say that the myths criticize and select themselves, opening up, through

the confused mass of the corpus, certain paths which would not have been the same‖

(Ibid: 632).

Diante do exposto, alguns autores concordam com Lévi-Strauss em alguns aspectos.

Leach (1996 [1964]) reforça a ideia acima colocada ao reconhecer que ―não existe uma

versão autêntica de tradição kachin com a qual todos os Kachin concordariam; existem

apenas algumas histórias que dizem respeito mais ou menos ao mesmo conjunto de

personagens mitológicas e que fazem uso dos mesmos tipos de simbolismo estrutural [...],

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mas que diferem entre si em pormenores fundamentais de acordo com aquele que narra o

conto‖ (Ibid: 309).

Ele, porém, assim como outros autores, não se aprofunda na dimensão simbólica do

mito. O que acontece, talvez por achá-lo cheio de ―contradições e incongruências‖ (:

308). Estas, ao mesmo tempo, ele considera fundamentais, já que ―onde existem versões

rivais da mesma história, nenhuma versão é mais correta do que outra‖ (Ibidem).

Neste sentido, a perspectiva ainda é a de que o mito apenas é a justificativa da

estrutura social presente no rito, desta forma ―validando status‖ individuais (Ibidem).

Neste sentido, mito e rito são, então, contíguos e expressam uma linguagem de

argumentação num sistema de relações de poder.

Não é isto o que pensa Lévi-Strauss. De acordo com o autor, os mitos,

especialmente, mas também a música e a linguagem são dimensões codificadas e

representativas da experiência humana e, por isso, podem revelar chaves de entendimento

dela, que pode ser mais bem entendida em sua estruturação.

Para se apreender tais estruturas, buscam-se similaridades na linguística. Se existem

unidades linguísticas que podem ser isoladas a partir dos enunciados emitidos em uma

língua — fonemas e morfemas — o mito se compõe de unidades mais abrangentes, a que

Lévi-Strauss deu o nome de "mitemas" (LÉVI-STRAUSS, 1985 [1967]). Para explicar o

que são mitemas, faz-se uma analogia com uma partitura musical, onde o que importa são

as diversas relações estabelecidas entre os elementos e a leitura deve ser realizada a partir

da totalidade da partitura e não da sua ordem linear, estabelecendo uma relação de

similaridade, já que ―como sucede numa partitura musical, é impossível compreender um

mito como uma sequência contínua‖ (LÉVI-STRAUSS, 1985 [1978]: 67).

Neste cenário, mito e música seriam formas derivadas da linguagem, que é formada

pelos sons do fonema que geram palavras e, então, frases, constituindo um sentido. A

linguagem estando relacionada ao som e ao sentido. Enquanto na música não há a

palavra, o foco é o som e o sentido é deixado de lado. No mito a relação é inversa: não há

o som, o foco é a palavra, constituindo sentido (Ibid: 65-78). Em todos os casos falta um

nível.

Depreende-se da análise de Lévi-Strauss, brevemente exposta, que os mitos são um

espaço privilegiado de expressão simbólica, uma forma de raciocínio humano

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inconsciente. E que apesar de ser expresso pela linguagem, se depreende do discurso

humano e constitui um sistema de codificação das relações sociais estruturantes do dia-a-

dia.

Com base na obra em questão, cria-se um imenso campo de estudos e

possibilidades, transformando-se a antropologia produzida até então. O estruturalismo

levistraussiano ―reveals, behind phenomena, a unity and coherence that could not be

brought out by a simple description of the facts‖ (LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]: 687).

Isto acaba por elaborar uma etnologia renovada e fonte para toda a antropologia

produzida em outros continentes40

.

Melatti (1978), por exemplo, estudou várias versões de um mesmo mito Marubo.

A partir daí, ele percebeu homologias entre eles e outros domínios culturais. Basso (1985,

1987), examinou as narrativas míticas dos Calapalo, do alto Xingu levando em

consideração a maneira de contá-los. No caso particular dos Calapalo, analisou-se quem

conta, quando e em que situações; a modulação da voz; as repetições das frases, as

semelhanças e variações; a reação dos ouvintes; a atenção às onomatopéias e a

predominância da reprodução dos diálogos.

Da mesma forma, a relação entre mito e história é recorrente na etnologia brasileira.

Nestes casos os mitos não devem ser tomados como reflexo da sociedade, mas como

parte dela. Ele gera o fato histórico, pois age como agente e produto da mesma. Assim, o

mito é agente histórico na medida em que entendemos que pode ser alterado e continua

gerando ação social e transformando a realidade.

O mito pode, então, ser entendido como anti-história, e neste sentido ele congela o

tempo. Como pseudo-história, é interessante o artigo de Calávia Sáez (2000) no qual ele

analisou a pretensa representação histórica da figura de um inca nas narrativas míticas

40 Graças ao impacto dos estudos mitológicos, já temos publicado no país uma boa bibliografia sobre o

tema. Vale destacar a tradução dos três primeiros volumes da tetralogia ―Mitológicas‖ de Lévi-Strauss

(1964-1971). Além deles, o trabalho de Schaden (1959) e Cardoso de Oliveira (1970). Das obras que têm

um caráter mais geral vale lembrar o volume Estórias e Lendas dos Índios, com introdução de Baldus

(1960). Algumas outras focam regiões específicas como as coletâneas de Villas Boas (1970) e algumas

outras publicadas por Mindlin (1993, 1997, 1999). Alguns dos trabalhos são também produzidos pelos

próprios indígenas – como, por exemplo, Kumu e Kenhíri (1980); Diakuru (1996) e Ianhere (1999). A

maior parte dos trabalhos, porém, são encontrados em monografias, dissertações e teses produzidas nos

Departamentos de Antropologia ou em diversos artigos especializados.

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dos grupos Pano, evidenciando que mais do que o inca histórico, sua representação tem

mais a ver com a estrutura cognitiva e social dos grupos.

O mito pode ser entendido também como uma meta-história ou um invólucro para

um conteúdo histórico. Fausto (2002: 69-90) trabalhou com várias versões de um mito

Parakanã, para entender como um evento histórico, o contato com o branco, promoveu a

transformação e a variação de um mesmo mito. E, além disso, como este processo se dá

na dimensão narrativa41

da expressão social, inaugurando às vezes outras formas de

gêneros orais42

.

Gonçalves (1993) estabeleceu relações entre os mitos e o sistema de nominação

Pirahã, sendo na lógica de nominação que os nativos constroem um discurso sobre a

sociedade. É a partir da relação entre a onomástica e a cosmologia que o autor tentou

entender a estrutura social do grupo, apreendendo como este sistema simbólico de nomes

age na elaboração de uma cosmologia particular e vice-versa.

Todas as relações acima expostas, que envolvem os mitos e outros domínios

culturais, podem ser observadas no toré. De forma similar, o toré é um repositório de

nomes ou termos fundamentais ao entendimento do mundo nativo. Os nomes presentes

no universo em questão são os nomes usados entre os Kalankó. O toré é também espaço

de uma emotividade importante para os sujeitos da região.

Além disso, expressa a dimensão do contato histórico. Isto porque alguns dos

cantos são criados a partir do momento em que afirmam uma identidade indígena e

marcam determinados eventos importantes para este processo. Desta maneira, evidencia-

se um rico universo de relações e motivos para o grupo, estruturando a vida social dos

sujeitos em questão. Isto por seu rico conteúdo simbólico que pode servir de matéria-

41 É no sentido oposto, ou seja, considerando a interpretação do narrador que Calávia Sáez (2002: 8)

analisa a variação de um mesmo mito entre três grupos de língua Pano. Ele confere um valor de agência ou

autoria para o narrador – isto mesmo quando ser autor é considerado ofensa, como entre os Yaminawá. E

assim estabelece correlações entre os três grupos através dos mitos, ou dos mitos através dos sujeitos (Ibid:

28).

42 Outras análises tentam também compreender como o contato histórico com o ocidental, influencia a

cosmologia nativa. Severi (2000: 121-155) trabalha sobre a cosmologia Kuna e suas representações do

elemento branco. Neste caso, apesar de ser evidente que essas representações estão ligadas à memória dos

conflitos históricos. Fica evidente que os mitos agem dialogicamente com os eventos históricos e são

conseqüentemente transformados por estes. Assim, como em muitas outras sociedades ameríndias, a

tradição cosmológica Kuna escolheu a dimensão simbólica para representar suas crises sociais e traumas

coletivos – no caso, o violento encontro entre brancos e índios.

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prima para a estruturação e análise da sociedade e suas relações com os outros domínios

da vida Kalankó.

Muitos torés, inclusive, apontam para o perspectivismo43

, já que há uma mudança

de perspectiva entre cantadores e entidades sobre humanas. Nestes cantos canta-se a

partir do ponto de vista do encantado. Segundo os Kalankó, estes cantos são ainda

considerados fortes e, por isso, são usados em ritos de cura.

Assim, no cenário da etnologia do sertão nordestino, o toré relaciona-se a todos os

temas particulares sul-americanos, como a onomástica, o dualismo, o perspectivismo e o

contato cultural. Todos estes temas são construídos a partir dos estudos baseados numa

perspectiva localizada na dimensão simbólica, constituída nos sistemas cosmológicos

ameríndios.

Desta forma, tento aqui realizar de forma limitada uma análise dos cantos de toré

Kalankó. A partir das premissas do estruturalismo, busco o entendimento de relações e

temas centrais para a elaboração dos modos de ser Kalankó em análise. Além disso, os

temas aqui evidenciados serão trabalhados ao longo da tese corroborando a análise em

questão.

A análise do toré em tela permite a construção de vários grupos de cantos que

articulam seus códigos e suas relações de maneira particular, diferente dos outros grupos.

Ao mesmo tempo alguns temas perpassam todos os grupos, formando subgrupos.

O repertório aqui analisado levou em consideração 18 torés (nomeados como T1,

T2...), os quais configuram o que considero o repertório Kalankó, expresso nos ritos e no

dia-a-dia. Isto não significa que em algumas ocasiões não surja outro canto e que tal

repertório seja estático.

O primeiro grupo de torés identificado estabelece uma relação a partir

principalmente da dimensão espacial, na qual o alto significa poder e o baixo –

43 O perspectivismo tem como uma de suas bases o trabalho de Descola (1988). Para ele os Achuar da

Amazônia estabelecem relações sociais com seres da natureza, a qual é palco de interação social e

organização cognitiva. O dualismo ocidental entre cultura e natureza cai por terra e a natureza passa de

objeto inanimado a agente social. Tal perspectiva se desenvolve com Lima (1996) e a partir de

desdobramentos dos estudos de dualismo no continente, produzidos por Viveiros de Castro (2002). Em seu

trabalho, Lima constrói uma análise da sociedade Juruna baseada no sistema sociocosmológico nativo e

questiona a visão antropológica da separação entre natureza e cultura. Deste modo, tanto índios quanto

alguns animais constituem sujeitos sociais, elaborando um mundo com multi-perspectivas. Se um Juruna

enxerga o porco do mato como tal, o inverso também pode ser verdadeiro.

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representado pela terra – significa sofrimento ou fraqueza. Além disso, a dimensão

temporal aparece reforçando a ideia de tempo ideal.

Neste grupo, o paladar é o código que gera transformação, indicando a

comensalidade como posição marcante do universo simbólico do grupo. Isto aponta para

alguns momentos especiais da comunidade, por exemplo, quando se divide a garapa,

após a parte central do toré, a festa da umbuzada na semana santa ou os churrascos

cotidianos44

.

O ponto de vista predominante dos cantos deste grupo é o do índio que fala sobre o

encanto, muitas vezes representado por um pássaro. Neste universo, quem tem a

capacidade de voar está relacionado ao alto ou à ideia de poder. Esta relação explica a

razão da existência de alguns encantados relacionados a pássaros como o beija-flor, a

andorinha ou o vivinho.

Este último pássaro é presente em quase toda a América do Sul e vive aos pares ou

em pequenos grupos, apontando para a dança do toré ou o praiá de parelha.

Estas relações podem ser observadas em T1,

T1

Urubu de Serra Negra

de velho caiu as penas

de come mangaba verde

na baixa da jurema.

Ole le coã

na baixa de jurema

olele coã

na baixa da jurema

ole le coã

44 Apesar das relações diretas aqui citadas entre o mito e a vida cotidiana, entende-se que a relação entre

ambos os domínios é de ordem dialética. Ela é, desta forma, constituída por diversas outras operações

(LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]).

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A análise do canto acima deixa claro que a relação marcante é entre o céu e a terra.

Nele, o urubu representa o alto, já que é um pássaro que voa alto. A jurema se localiza

em uma região classificada como baixa. O próprio termo, na geografia, aponta para algo

similar a um vale de altitude baixa.

A jurema pertencente ao domínio natural e coloca-se em oposição à mangaba, que

parece estar num plano intermediário, nem na terra nem no alto.

O código sensível que fica evidenciado é o paladar. O urubu que vem do alto comeu

mangaba verde. O ato de comer aqui implica então uma transformação, que tem como

resultado o cair das penas, diminuindo a potência do animal.

Neste verso, comer está, então, relacionado ao estrato de baixo. O verde apontando

para um alimento consumido antes de seu ponto ideal de maturação. A equação abaixo

expõe as relações citadas.

{URUBU:ALTO:PODER} :: {COMER:MANGABA:VERDE (jovem)}

:: {JUREMA:BAIXO:JUREMA}

Cada canto na aldeia Kalankó pertence a um encanto. No caso, o dono de T1 é

mestre Andorinha, apontando novamente para a figura de um pássaro. Além disso, comer

é um ato humano, localizado no plano de baixo. Quem come no caso são os índios, que

vivem na terra, local de fraqueza.

Neste grupo de torés evidencia-se a importância da manutenção da distância longa,

entre o céu e a terra. Isto indica que o mundo Kalankó possui pelo menos dois patamares,

um alto e outro baixo.

Existe uma variação deste canto (T2). Nela, mudam-se os termos, mas a mensagem

continua a mesma,

T2

Papagaio verde-amarelo

foi come mangaba veia

batam palmas, digam vivas

os caboclo tá na terra

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eu agora me lembrei

foi come

papagaio amarelo

foi come mangaba veia

Aqui a relação marcante, mais uma vez, é a estabelecida entre o céu e a terra, ou

seja, entre o alto e o baixo. A dimensão marcada é a espacial e a distância longa é

mantida. Outra relação que aparece é a do pássaro, no alto e o caboclo na terra. O caboclo

no caso pode ser o índio ou o encanto.

O paladar novamente intermedeia as relações e os termos do toré. Além disso, o

papagaio aponta para uma relação com o encantado. Este, após comer mangaba, aparece

na terra, no plano de baixo, junto aos índios. O ato de comer pode estar novamente

enfraquecendo o encantado ou igualando-o ao índio.

O termo velha, ligado à mangaba, fruta característica da região e pertencente ao

domínio da natureza, aponta para um alimento consumido após seu período ideal de

maturação. Novamente fora do período de tempo ideal. Desta forma, temos que,

{PAPAGAIO:ALTO:PODER}::{COMER:MANGABA:VELHA} ::

{JUREMA:BAIXO:JUREMA}

Ainda em T2, o código acústico é um meio de fazer barulho, saudando com sentido

positivo os caboclos que desceram na terra. Isto estabelece uma conjunção entre ambos –

índios e encantados. Se o paladar gera uma perda, pois leva do plano de cima ao de baixo

ou ainda faz perder as penas, então o som aparece como meio de conjugar os seres que

estão no plano de baixo, como exposto abaixo.

PALADAR –

ACÚSTICO +

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Além disso, o toré acima (T2), posto junto ao primeiro, forma um subgrupo já que

ambos possuem o mesmo motivo. Eles apontam para uma concepção de tempo que é

expressa na maturação do alimento, que não pode ser consumido nem antes nem depois

do período ideal. Nestes casos, a mudança de estrato (do superior para o inferior) ou a

perda das penas estão relacionadas a um erro de tempo.

Em T3 marca-se novamente a mesma relação entre o alto e o baixo,

T3

Eu subi lá no alto do tempo

só pra vê a fundura do mar

canta home canta mulé

e a sereia canta no mar

canta home canta mulé

e a sereia canta no mar

Neste toré, o alto está ligado à visão e ao espaço distante, já que se sobe para ver de

cima; enquanto o baixo está ligado ao código acústico, relacionado à ação de cantar e a

distância pequena. A equação abaixo apresenta as relações entre os termos.

ALTO:VISÃO:DISTÂNCIA LONGA :: BAIXO:SOM:DISTÂNCIA PEQUENA

Ainda em T3, evidencia-se uma conjunção entre um homem, uma mulher e uma

entidade sobre humana – a sereia do mar. A sereia está ligada ao elemento água, que no

universo caboclo tem o sentido da abundância, que cura e gera poder. O homem e a

mulher parecem estar no mesmo plano, apontando para uma mesma posição hierárquica.

Como em T2, o som exerce a função de conjugação que age no plano horizontal.

Em T4, a ideia de abundância é reforçada,

T4

No céu, na lua cheia

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na terra nasce uma flor

(Cantador)

no espaço, quero andorinha

Para ser meu protetor

(Participantes)

lê o há hei lê o há há

lê o hei lê o há há

(Complemento)

A flor está posicionada na terra, ou seja, no plano de baixo. Desta forma ela se

aproxima da ideia de índio, posicionado no mesmo plano. Além disso, ela representa o

índio, que só pode nascer e atuar na terra, de preferência com a proteção de um encanto.

O encanto novamente é posicionado no alto, no espaço. Note-se ainda que o canto

articula elementos dispostos em oposição numa dimensão espacial, como expresso

abaixo,

CÉU:LUA CHEIA / TERRA:FLOR

Ainda em T4, pode-se destacar o sentido de abundância, que está relacionado ao

termo: cheia, que por sua vez está ligado ao termo lua – localizada no alto. Neste sentido,

a flor indica a necessidade da luz – da lua cheia. Em outras palavras, a flor necessita da

abundância que está presente no alto. Na aldeia Kalankó, a abundância é vista como

poder, que se posiciona sempre no plano de cima.

Este primeiro grupo deixa claro que existem dois estratos no universo Kalankó – o

de cima e o de baixo. Se os pássaros que são relacionados ao de cima, representam o

encanto, as flores, que pertencem ao de baixo representam os índios. Os índios, além

disso, dependem da força dos encantos, relacionada à ideia de abundância para viverem

no plano de baixo, visto como enfraquecido.

Neste universo, comer transforma, estando ligado à perda. E o som tem a função de

conjugar espaços e seres.

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É interessante notar ainda como no sistema do toré cada canto pode ser

transformado em outro a partir da permutação de alguns elementos e termos. Este

processo funciona especificamente através da rearticulação das células de cada um deles.

Estas células são compostas por pares de frases que são trocados entre os cantos de um

mesmo repertório. Desta forma, dão origem a outras estruturas, as quais representam

novos cantos. Este novo canto mantém a mesma mensagem, mas usa uma armação

diversa. Em T5, T6 e T7 podemos perceber isso.

T5 – Versão 1

Urubu de serra negra caiu as pena,

de come mangaba verde (cantador)

lá na baixa da jurema

ole olé côa (participantes)

lá na baixa da jurema

ole olé côa (participantes)

Que pode ser cantado como,

T6 – Versão 2

Olé olé côa

gavião fez o ninho,

lá na baixa da jurema,

olé olé côa.

Ou, numa versão 3 – T7

Em cima daquela serra,

tem um terreiro de preá (cantador);

Canta homem, canta mulher,

e os índios que chegam lá (participantes).

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lá na baixa da jurema,

olé olé côa.

Note-se que nos três cantos há a apropriação e repetição de uma célula repetida

sempre pelo coro. No caso aqui tratado ―lá na baixa da jurema; ole olé côa

(participantes)‖. Desta forma, evidencia-se que são as três variações que têm como base

um só canto. Todos eles deixam ainda explícitas as relações anteriormente estabelecidas,

representadas pelos termos

ALTO/BAIXO

MANGABA/JUREMA

COMER/CANTAR

Além disso, pode se ler a equação acima de ponto de vista sintagmático e

paradigmático. Ou seja, da mesma forma que o alto se relaciona ao baixo, a mangaba à

jurema e o comer ao cantar, horizontalmente, o alto pode ser lido junto à mangaba e ao

comer. Assim, comer mangaba no alto equivale a cantar a jurema embaixo –

verticalmente. Temos então que,

COMER MANGABA NO ALTO :: CANTAR A JUREMA EMBAIXO

No grupo 2 fica evidente o ponto de vista dos encantos, que são representados como

pássaros ou caboclos. Além disso, os cantos deste grupo reforçam a ideia do poder do

encantado.

O canto abaixo (T8), por exemplo, além das relações acima citadas, evidencia a

ideia de caminho ou trajetória. Nele, a mensagem é de que é necessário percorrer um

trajeto. Neste sentido o canto aponta para a ideia do caminho, assim como evidenciado

em outros estudos. Em Lévi-Strauss (2008 (1958): 205), por exemplo, o texto da música

usada em um ritual de cura indica um trajeto a ser percorrido – pela doente e pelo xamã.

A noção do caminho também é marcante para os Kalankó e pode ser observado em

diversos momentos. Nos ritos, por exemplo, a ideia de espacialidade é muito clara. Deve-

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se sempre percorrer o espaço ritual, desenhando-se alguma figura, a partir de formações

coreográficas, que podem ser em forma circular ou na de uma cruz.

Estas formações completam o espaço, abundantemente, da mesma forma que tais

desenhos são os mesmos presentes nas pinturas corporais e nos adereços dos dançadores

de praiá, completando o corpo do sujeito.

A própria percepção da história do grupo é marcada pelo trajeto. Deve-se passar

pelos diversos períodos históricos até a conquista do tempo futuro, devir do índio, quando

o sertão será dos povos nativos.

Em T8 esta noção fica muito clara,

T8

O caminho dessa aldeia

o caminho dessa aldeia

eu mandei foi ladrilhar

com ouro e prata fina

para os índio pode anda

ha o ha ha

he o he a ha

O ponto de vista é o do encanto que tem agência e intencionalidade, indicado pelo

verbo mandar. Este verbo denota poder e aponta para uma relação hierárquica entre o

encantado e o índio.

O termo fino indica que os elementos usados para a produção do caminho são

valorizados, constituindo um caminho refinado, apontando para o sentido da proteção –

do encanto em relação ao índio. Esta ideia é fundamental para os Kalankó.

O verbo andar aponta para o tato como forma de percorrer este caminho,

estabelecido através do contato da sola do pé com o chão. Na aldeia a ação de andar é

responsável pelo preenchimento dos espaços. Desta forma, o tato parece ser um sentido

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intermediário entre a visão e a audição. Segundo o pajé, o tato é importante durante o

rito, onde a visão não é tão importante.

Além disso, pode-se depreender daí a mesma relação de tempo ideal e preciso

observada em T1 e T2.

T8 parece pertencer a um subgrupo mais antigo, pois todos os cantos que trazem o

ponto de vista do encanto e tratam do caminho como tema central vêm de outros espaços

mais tradicionais nos circuitos de troca das aldeias indígenas do alto sertão nordestino,

como Brejo dos Padres/PE. Alguns, inclusive, possuindo registros desde a Missão de

Pesquisas Folclóricas de 1938, patrocinada pelo Departamento de Cultura do Estado de

São Paulo.

Além disso, estes cantos que trazem o ponto de vista do encanto são considerados

de mais poder, o que significa dizer que pertencem à tradição do índio, constituindo a

relação poder/tradição, de suma importância para os Kalankó, como foi visto no capítulo

1. Nestes cantos, geralmente a ideia do trabalho se relaciona à relação anteriormente

citada.

Se o trabalho pode ser usado para a construção de um caminho a ser percorrido

como evidenciado em T8, a ideia de trabalho, na aldeia, é também relacionada à feitura

de qualquer tarefa, que pode ter relação com o mundo encantado ou não.

O próprio rito é denominado trabalho e o objetivo do trabalho é a conquista de

alguma graça, vista como retribuição do trabalho. A graça é dada por alguém localizado

ao longe e no alto, Deus ou os encantos, e, por isso, é relacionada ao poder.

Em T9, por exemplo, a ideia do trabalho aparece de forma indireta, o encanto

pedindo a abertura de uma casa para poder entrar e atuar,

T9

Abre-te porta janela,

Que é por ela que eu quero entrar

Eu quero é visita

A mesa do ajucá

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Neste toré o encanto pede a abertura de um caminho e aponta para a presença

dele – encanto – no plano de baixo, representado pela mesa de ajucá. O ponto de vista

presente é o do encanto, apontando para agência e intencionalidade. Este canto,

especificamente, é considerado pesado45

, talvez pelo tema, mas também por ter sido

criado em Brejo dos Padres/PE, pelos Pankararu.

Em T10, abaixo, a ideia do caminho e do trabalho (de forma direta) é, novamente,

marcante.

T10

Minha aldeia tem caboclo

e ele vem para trabalhar

vocês disse que são caboclo

e agora que eu quero ver

O caboclo neste caso é o encantado que deve percorrer o caminho até a aldeia,

mantendo-se a boa distância entre os estratos superior e inferior. O encantado tem o

objetivo de trabalhar, ou seja, produzir alguma transformação na aldeia, que pode ser

uma cura ou um aconselhamento. O trabalho e a atuação do encanto tendo relação direta

com a ideia de energia encantada.

Se o som aponta para a conjunção (T2, T3 e T8), em T10 a visão aponta para a

dúvida ou a disjunção. O fato de se dizer que é encantado – relacionado ao código

auditivo não é o bastante. Deve-se ver o poder do encantado. Isto estabelece uma relação

importante neste grupo de torés:

SOM +

VISÃO -

Quem vem de longe traz a ideia do poder. Deste modo, a distância é concebida

como poder. Já o estar perto traz desconfiança. Temos assim que,

45 O termo pesado entre os Kalankó tem o sentido de forte e poderoso (ver HERBETTA, 2006).

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PODER:LONGE :: FRAQUEZA:PERTO

Além disso, evidencia-se que o trabalho aparece como ação marcante neste

universo. É através do trabalho do encanto que os índios podem conquistar algo.

O grupo 2 deixa claro, então, a ideia do caminho a ser percorrido. Esta ideia se

relaciona a noção do trabalho. Trabalhar de certa forma é percorrer este caminho que

leva o encanto à aldeia e vice-versa. Essa relação acaba sendo fundamental para a

conquista da energia encantada.

Além disso, é marcante que o que vem de longe é poderoso, em oposição ao

próximo, que é fraco. Percebe-se também que o som, entre os índios, serve para conjugar,

enquanto a visão aparece como um sentido dos encantos.

No grupo 3 os cantos apontam para o estabelecimento de tempos e modos de se

adquirir o poder proveniente dos encantados – a energia encantada. Neste cenário, o

tempo é relacionado à velocidade rápida e o modo é relacionado à conquista de aliados.

Novamente evidenciam-se as relações entre alto e baixo e entre o céu e a terra

que aparecem corroborando as ideias expressas nos grupos 1 e 2. Alguns cantos (T11, por

exemplo) ressaltam a velocidade ou o andamento rápido como intensidade de poder e o

pisar no chão como expressão deste poder. Só quem estabelece um tempo rápido na terra

é que tem força para viver. O pisar neste sentido aparece como conjunção entre o céu e a

terra, sendo essencial para o contato com a energia encantada.

A forma do toré e o uso de repetições com andamento rápido ao longo da

execução do canto indicam a concepção de tempo. Nesta concepção a velocidade é

fundamental. Ainda neste grupo o tato é o código sensível responsável pela conjunção

dos espaços.

Em T11 podemos ver como o tempo é idealmente visto a partir de um andamento

rápido,

T11

Pisa ligeiro

pisa ligeiro

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quem não pode com a formiga

não agarra o formigueiro

Neste toré fica claro que se deve pisar ligeiro. O andamento da execução do canto

também deve ser rápido, sendo acelerado ao longo da execução. Isto aponta para a

aquisição de mais poder, referente à energia encantada.

A formiga representa o perigo e, segundo Tonho Preto, quem não pode com o

perigo não o desafia. Só pode superar o perigo quem ―pisa ligeiro‖. Isto confirma a

relação entre velocidade e poder.

O tato (como em T8) novamente aparece como instrumento do poder. Pisar e

agarrar são ações relacionadas ao universo encantado e à referida energia. Se pisar

estabelece uma conjunção entre o céu e a terra, então agarrar tem o sentido de lidar com

algo perigoso. Segundo o pajé, o sujeito deve estar preparado e ter a capacidade para

lidar com a energia. Caso contrário, este processo se torna perigoso.

No canto acima, o perigo está ligado à dor, que pode ser sentida por quem pega no

formigueiro e desafia a formiga. A formiga sendo um inseto que se localiza subsolo.

Entre os Koyupanká o canto é o mesmo, substituindo-se o verbo agarrar por

assanhar – o que não altera nem a mensagem nem a armação do canto.

O mato e a ação de agarrar aparecem também como motivo central em T12 abaixo,

T12

O caboclo tá no mato

tá apanhando murici

bota a corda no caboclo

na aldeia do ouricori

O mato aparece aqui como lugar especial – de poder. Ele se coloca, então, numa

posição intermediária entre o céu e a terra. O mato, segundo o pajé, é o local onde os

encantos podem atuar na terra, ou seja, o terreiro.

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O motivo central do canto é o de prender o caboclo, ou seja, ligar o encantado a

uma aldeia e assim controlar a energia encantada decorrente dele. A corda indica a ação

de controlar que se relaciona a ação de apanhar.

Ambas apontam para o ato de coletar – na primeira, murici, na segunda encantado.

Uma no sentido figurado – quando diz respeito ao encantado, outra no sentido próprio,

quando diz respeito ao murici. As duas relacionando-se ao poder, já que se localizam no

alto. O murici é uma fruta típica da região e se localiza no alto da árvore. Ambos os

termos estabelecem uma relação entre:

ENCANTADO:MURICI

Esta relação não apareceu concretamente na análise de outros dados entre os

Kalankó, mas deve ser observada entre os povos indígenas do sertão alagoano. Entre os

Koyupanká, por exemplo, presenciei um ritual de praiá específico ao murici, o que

corrobora a ideia acima citada.

Em T13, a ideia de abundância (como em T4) aparece novamente relacionada ao

domínio da natureza. Se em T4 a abundância era representada pela lua cheia, aqui ela é

relacionada à chuva. O código climático constitui um tema central deste toré apresentado

abaixo.

T13

Abeia em tempo de chuva

só trabalha no agreste

Trabalha abeia miúda

na aldeia do agreste

Nele, o trabalho já referido se relaciona à chuva, que traz a ideia da abundância. A

abundância, como já colocado, tem relação com a energia encantada, entendida na aldeia

como pertencente ao domínio da natureza. O uso do termo que se refere ao animal,

abelha, não deixa claro se se refere ao encanto ou ao índio. Se a chuva aponta para a

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abundância, a abelha é miúda, que significa pequena, apontando para o plano inferior ou

os próprios índios.

Muitas das relações apresentadas até o momento ficam claras em T14, que pode ser

classificado em qualquer um dos grupos. Nele, destacam-se a relação alto/baixo e

encanto/pássaro. Além disso, marca-se a concepção de tempo, observada na acelerada

execução do canto. Mas fundamentalmente, relaciona-se o pisar – ou o tato – com os

índios.

T14

Caboclo de pena

penero penero penero

Caboco de pena não pisa no chão

peneira no ar

que nem gavião

caboco de pena não pisa no chão

penera no ar que nem gavião

Em primeiro lugar evidencia-se que o tempo novamente é relacionado ao pisar no

chão. Note-se que o andamento do canto é acelerado no momento de se cantar a segunda

frase: penero, penero, penero, apontando novamente para uma temporalidade específica.

Neste contexto, o ato de pisar no chão representa uma ação do índio, não do

encanto. E a ação de peneirar relaciona-se ao alto. Quem pisa no chão é índio, quem

peneira no ar, é o encanto, que pode agora ser representado pelo caboclo e pelo pássaro,

ao mesmo tempo. Isto acontece através da figura do caboclo de pena.

A repetição é um elemento importante neste canto, que se desenvolve a partir da

repetição constante de suas células. Deve-se destacar que o ponto de vista é o do encanto,

que está falando sobre seu próprio universo, provavelmente sobre si mesmo.

Neste grupo fica clara a marcação do tempo, que deve ser rápida. A velocidade se

relacionando à potência da energia encantada. Além disso, aparece de novo a ideia da

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abundância, relacionada ao domínio da natureza. Percebe-se também que o tato é

representado como um código pertencente aos humanos, em oposição aos encantados.

Destaca-se ainda um novo elemento, a abelha. Ela é posicionada ainda de forma obscura,

mas vai se mostrar importante no sistema de pensamento em análise.

No grupo 4 pode-se evidenciar o ponto de vista do índio. Nestes cantos o índio

geralmente faz algum trabalho relacionado às ervas medicinais, as quais conseguem

coletar no mato. Além disso, parece-me que estes cantos são mais recentes. Muitos,

inclusive, são originais da própria aldeia Kalankó.

Neste grupo há um reforço da ideia de ―nós‖ em oposição à ideia de ―eu‖. Neste

sentido, a comunidade aparece fortalecida quando está unida. Em T15, estas relações

aparecem claramente.

T15

Somos índios brasileiros

da bandeira nacional(cantador)

viemos por nossos direitos

no governo federal(participantes)

O interessante aqui é notar que a composição do toré traz uma questão nova para

tais populações, indicando que foi criado recentemente. O novo motivo é a luta pelos

direitos políticos do grupo no período da democratização brasileira, ou do ponto de vista

Kalankó, no Tempo da Luta.

A armação dos termos em questão aponta para uma busca de conjunção entre o

local e o nacional e não mais entre o alto e o baixo. Além disso, a relação entre o distante,

ligado ao nacional e o perto, ligado à aldeia, permanece importante. O espaço nacional

sendo o do poder, em oposição à aldeia.

Tais termos não se colocam no mesmo plano, mas espacialmente distantes. Note-se

que no caso acima tratado, a perspectiva é a horizontal, na relação entre a aldeia e o

governo, em oposição a uma perspectiva vertical, presente na relação alto e baixo.

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Em T15 relaciona-se ainda o conjunto da população – nós – ao Estado-nação,

buscando a conjunção entre os termos índio e Estado. Novamente os termos, como

vimos, evidenciam um caminho entre dois espaços. Os índios devem elaborar um trajeto

entre eles.

Em T16 podemos perceber como a ideia da união tem relação com a constituição de

um grupo forte.

T16

Vamô minha gente,

uma noite não é nada

(2 X)

ô, quem chego foi Kalankó

(Cantador)

No romper da madrugada (participantes)

Vamo vê se nóis acaba(Cantador)

O resto da empeleitada (participantes)

Lê lê lê eio há há

Há há he Eio a há há

(Complemento)

O termo empeleitada indica a ação de passar uma noite inteira cantando e

dançando, o que por sua vez aponta para a coesão do grupo.

Este toré tem origem Koyupanká e é cantado entre os Kalankó substituindo-se o

etnônimo enunciado no canto. Ele pertence ao grupo que expressa como motivo principal

a luta pela territorialização.

Neste grupo fica marcante que se busca a conjunção entre o local e o nacional. E,

em segundo lugar, ressalta o poder da união dos sujeitos do grupo para a conjunção entre

os dois espaços.

Tais relações aparecem constantemente na equação abaixo.

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{ÍNDIO:LOCAL} :: {DIREITOS:FEDERAL}

A questão da trajetória também é evidenciada. Eles sempre devem, espacialmente,

percorrer um trajeto. O verbo vir marca esta afirmação.

Neste caso eles foram até a sede de um poder importante para a questão indígena, a

FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Note-se que o distante traz a noção de poder, este

sendo posicionado em relação ao Estado brasileiro.

A ideia da união entre os sujeitos do grupo presente em T15 e T16 é marcada em

outros torés, como em T17, o qual poderia ser classificado em um subgrupo, tratando das

relações de parentesco.

T17

Eu vou ver mamãe daruanda

eu vou ver mamãe daruanda

eu vou ver mamãe daruanda

Eu vou ver ohh

mamãe daruanda

Este subgrupo está bastante incompleto, inexistindo outros exemplos de

comparação de parentesco nos cantos Kalankó. No toré acima, a relação explícita é com a

mãe e a visão aparece como o sentido que liga o sujeito a ela. Talvez esta relação aponte

para um sentido matrilinear, apenas indicado pelos Kalankó quando relaciona o poder dos

cantadores e dançadores atuais à descendência de uma mulher, Santina.

Note-se que a relação com a mãe é no sentido figurado, já que a mãe daruanda é

uma entidade encantada, apontando para o valor dos encantados e da mãe em tal

sociedade. A figura feminina aponta ainda para uma relação de respeito e poder, assim

como a personagem da sereia.

Tal relação estabelecida indica que os Kalankó valorizam a aliança, o que pode ser

comprovado na análise do parentesco do grupo. Além disso, este toré aponta para o

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Tempo Futuro, explícito no uso do tempo verbal futuro do presente, o qual indica uma

ação futura.

Este grupo 4 deixa claro, portanto, a ideia da constituição do grupo, expressa do

ponto de vista dos próprios indígenas. Neste sentido, a união do grupo representa o poder.

Se não há mais a relação alto e baixo, no plano vertical, há a relação entre distante e

perto, no plano horizontal. O primeiro sendo representado pelo nível federal e o segundo

pelo local – como já mencionado.

Depreende-se das análises realizadas até o momento que há torés que expressam

claramente o ponto de vista do encanto (T9) e torés que expressam diretamente o ponto

de vista do índio (T10, T11, T12, T15, T16, T17). No grupo 5, abaixo, evidencia-se um

diálogo entre o índio e o encantado.

O grupo 5 é constituído por torés que expressam os dois pontos de vista

separadamente e por torés que o expressam juntos, constituindo um diálogo (T18). Este

grupo marca o mato como espaço especial na aldeia, no plano terrestre e o mel como

elemento importante do sistema de pensamento Kalankó.

Em T18 estas relações são apresentadas de forma mais clara.

T18

Caboclo da mata

que é que tá fazendo ai

eu estou cortando pau e eu estou tirando mel

corto pau e tiro mel

o caboco canindé

corto pau e tiro mel

o caboco canindé

Como já visto, o mato é o espaço de poder na terra, o lugar do encanto. No canto

acima o trabalho realiza-se na mata e é baseado na coleta de elementos da natureza que,

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como já visto, aponta para a abundância. Além disso, o tato aparece como elemento de

conjunção com o poder encantado.

O diálogo acima expresso no canto trata do mel, alimento bastante valorizado entre

os Kalankó. O mel, na análise de Lévi-Strauss (1964-1971), está sempre no limite entre o

veneno e a sedução, sendo assim um elemento contraditório e, por isso, operador de

enormes transformações. Neste sentido, estaríamos ―diante de frutos selvagens que a

natureza oferece ao homem sob a forma de pequenas obras de arte, sedutoras como

contas para fazer colares, mas que ―podem ser venenosas‖, segundo os botânicos‖ (LÉVI-

STRAUSS, 2006 [1968]: 57).

Entre os Kalankó, o mel ocupa uma posição interessante no sistema de pensamento

indígena. Segundo Tonho Preto há uma oposição entre sal e mel. O primeiro

representando a comida do não-índio e o processo violento de sua imposição. O segundo

representando a tradição do índio e seu poder. Da mesma forma, para o pajé, o açúcar se

posiciona junto ao sal, diferente de outros alimentos, como exposto abaixo.

MEL:MATO / SAL:AÇÚCAR

Para Tonho, os alimentos constituem duas ordens que atuam em oposição. Uma

representa o poder, ligado à tradição do índio e a outra os alimentos exógenos, impostos

pelo não-índio. Desta forma, temos que o uso de tal ordem de alimentos enfraquece o

índio. A relação expressa pelo pajé é apresentada abaixo.

MEL:MATO:PODER / SAL:AÇÚCAR:ENFRAQUECIMENTO

Diante disso, o pajé afirma que

tem a posição do umbu... aquele suco representa ali é um resgate do

alimento dos antepassado... antigo há 500 anos atrás... na época que

vâmo dize assim que eles não tinha relação com comida de sal... esses tipo

de comida... era só na posição do mato... então eles tinham... acho que

você observo... ela [a garapa] foi adoçada com mel... não foi com

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açúcar... então ali eles... os antepassados antigo que vão dize... nessa

época viviam nativo mesmo na selva.

Evidencia-se assim que o mel assume uma posição especial na fala de Tonho, junto

o umbu, destacando sua posição na culinária e no pensamento nativo. Tonho diz que

eles tinham uma posição do mel... de ajunta ao mel as flor, as árvore, a

flor do umbu, a flor do caju, o cajueiro... muitas e muitas árvores então...

o que ele fazia pegava a flor de muitas árvore... colocava num vasilhame

feito de, hoje na língua portuguesa a gente conhece como um cocho...

esses tipo de coisa, um vasilhame ali eles ajuntava diversas flor e

colocava naquele vasilhame ai colocava o mel e deixava curti ali muito

tempo depois que aquela flor curtia com aquele mel ali ele servia com

alimento... depois que a civilização tomou conta essas mesmas pessoas

que faziam essa posição de ritual nessas época esse pessoal.

A afirmação acima é muito rica em se tratando da posição do mel no sistema de

pensamento Kalankó. Nele, o mel é o alimento mais valorizado. Além disso, o mel é

expresso como um aglutinador, pois conjuga diferentes outras espécies vegetais. Isto fica

evidente quando é colocado numa vasilha com outros elementos, como apresentado

abaixo.

{MEL FLOR:FLOR DE CAJU:FLOR DE UMBU [...]}

Das espécies citadas, a grande maioria é constituída por flores. Ora, a flor no

universo Kalankó representa o próprio índio, como já demonstrado. Desta forma, o mel

serve para unir os sujeitos do grupo. Depreende-se desta relação que o mel é um

potencializador de associações dentre os elementos citados46

. Um conjugador de relações.

Enquanto os outros elementos servem para separar. Além disso, da mistura em questão –

do mel com as flores – emerge outra substância. No sentido próprio, o alimento, no

figurado, o próprio grupo.

46 A importância das associações e, portanto, do mel, para os Kalankó, será mais bem trabalhada no

capítulo 4.

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Tem-se então que o mel é o potencializador do próprio grupo étnico e por isso é

bastante valorizado na aldeia. Não é por acaso que no rito considerado mais importante

entre os Kalankó – o rito do Umbu –, na semana santa, faz-se a garapa do mel selvagem47

.

E que todos os participantes são chamados a beber da vasilha da garapa.

Neste sentido o mel representa os Kalankó, como marca a equação abaixo.

MEL:KALANKÓ

Da análise sobre o repertório Kalankó de torés, podemos depreender uma série de

temas, valores, disposições e relações relevantes para o entendimento de mundo e pessoa

do grupo Kalankó.

Estas relações lembram a concepção de Viveiros de Castro (2002), para quem, o

mito é a explicação do que se faz no ritual e nunca uma simples repetição. Se o mito é

palavra, o ritual pertence ao domínio do fazer (: 70-71). Nele, encontramos diálogos e

inversões de papéis entre protagonista, narrador, combates verbais, tempos verbais e

inclusive, diferenças entre o eu reflexivo da cultura e o ele impessoal da natureza.

Conclui-se que o universo Kalankó tem dois estratos base, o alto e o baixo,

representados pelo céu e pela terra. Neste cenário, o índio deve realizar o trabalho para a

conjunção de ambos e o contato com o mundo encantado.

Para que isso aconteça usa-se especialmente o som, que aparece como operador da

conjunção – tanto dos espaços quanto das pessoas. Quando a conjunção é com os

encantados tem-se uma relação no sentido vertical e a dimensão marcante é a espacial.

Quando a relação de associação é com o homem, a relação é horizontal e a dimensão

temporal prepondera.

Pode-se representar tal estrutura no seguinte esquema, baseado nos termos e

relações evidenciados nos diversos torés,

ALTO – céu: espaço: tempo: pássaros: visão: longe: lua cheia: preá: mato

47 Note-se que Grunewald, 2004, em comunicação pessoal, já havia notado a posição especial do mel no

sistema de pensamento ameríndio, relacionando-o aos encantados. No estudo em questão, o autor refere-se

especialmente aos Atikum-PE.

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BAIXO – terra: índio: flor: jurema: som: perto: espacial: fundura do mar: trabalho:

terreiro

Além disso, é interessante notar que quando o toré se refere ao ponto de vista do

índio, a dimensão marcante é a temporal, apontando para uma concepção de tempo que é

sempre precisa e ideal. Nestes casos usa-se um termo que se refere ao espaço próximo

para corroborar a relação.

Quando o ponto de vista é o do encanto ocorre o inverso. Aparece uma marcação

espacial e um termo ligado ao tempo. Com relação ao espaço, evidencia-se a presença de

dois tipos especiais. O primeiro, o mato, aparece representando o lugar de atuação do

encanto que coleta produtos da natureza, o segundo é o terreiro, apontando para o índio

que trabalha para a conjunção dos espaços. Os dois, em suma, representando o mesmo

espaço especial de materialização da energia encantada.

Neste cenário, quando a perspectiva vertical é marcada, o alto aparece relacionado

ao código da visão, e o baixo relacionando-se à audição. Entre os dois estratos citados,

evidencia-se um intermediário, no qual identifico os seguintes elementos:

INTERMEDIÁRIO – mangaba: murici: abelha: mel: mato: tato/paladar

Tais elementos posicionam-se no plano do concreto exatamente numa altura

intermediária entre um e outro. Os dois primeiros são frutos característicos da região, o

terceiro e o quarto representam produtor e produto de uma realidade especial, sendo

bastante valorizados, inclusive na esfera do ritual. . Note-se que o mel para os Kalankó é

vegetal, pois se relaciona com a flor e, consequentemente, com os índios. Todos eles se

localizam na parte de cima das árvores, local intermediário entre o céu e a terra. O mato

e o tato marcam um espaço especial que intermedeia o contato entre índios e encantados.

Os encantos que atuam no mato estão normalmente relacionados a termos que

representam pássaros. Isto acontece em oposição ao fato de que na terra, os índios são

representados por termos que lembram o universo vegetal.

A estrutura aqui evidenciada aponta para um mundo no qual os encantos são vistos

e relacionados aos pássaros, os índios relacionando-se à flora, referenciado pelos termos

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flor e jurema, O mundo intermediário é indicado pelo paladar, especialmente relacionado

a produtos que se localizam no intermédio dos outros dois estratos, especialmente o mel

que representa a própria possibilidade de existência do grupo.

Neste caso, se a comensalidade como exposto (T1 e T2) aponta para a

transformação, então comer o mel indica a formação dos Kalankó. O mel se opondo à

mangaba de T1 e T2. O primeiro elemento com um sentido de transformaçnao positivo e

o segundo, negativo, como exposto abaixo.

MEL +

MANGABA-

Tal concepção fica clara em alguns outros momentos, como por exemplo, quando o

cacique Zezinho Koyupanká afirmou veementemente numa reunião na oca central da

retomada sua concepção da origem do mundo. Para ele não há dúvida que os índios já

estavam aqui há tempos imemoriais – muito antes de qualquer europeu. O índio, para ele,

brota da terra.

Neste cenário, podemos pensar também na relação do grupo indígena com o

governo federal. A mensagem aqui codificada posiciona o nível federal junto ao mato,

local de poder e o nível local, junto ao terreiro, local de trabalho. Isto é observado no

grupo de torés que se referem à afirmação étnica, já que a dimensão federal sempre é

colocada a uma boa distância da local, apontando para o federal junto ao espaço e o local

junto a terra. Além disso, os cantos evidenciam que se deve percorrer um caminho para

conjugar ambos os espaços. O que se dá através do trabalho e do som. Estas relações são

evidenciadas abaixo.

MATO:ESPAÇO:FEDERAL ::

TERREIRO:TERRA:LOCAL

Depreendem-se da análise dos torés uma leitura sintagmática e outra paradigmática.

Cada toré está relacionado ao outro e a si mesmo formando um meta grupo dos torés que

aponta para um sistema de transformação, no qual estão presentes os termos e relações

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111

mais relevantes para os sujeitos da comunidade. O universo cosmológico, portanto,

mostra-se como um mundo de constante interação e diálogo, que codifica motivos e

relações fundamentais da prática cotidiana indígena48

.

Para que não restem dúvidas sobre as possibilidades de análise do toré como

resíduo de narrativas míticas, detentores de rico material simbólico, pode-se comparar a

análise acima apresentada a algumas narrativas registradas na região do sertão nordestino,

no século XVIII, por missionários capuchinhos49

.

Estas narrativas referem-se aos Cariri, os quais representam um dos etnônimos mais

comentados quando se trata de povos indígenas sertanejos do período colonial (POMPA,

2002). Isto acontece porque a maior parte do contingente populacional indígena da época

era classificada de forma genérica ou ainda mais comumente, a partir de alguma outra

classificação ainda mais abrangente, como tapuias.

O registro destas narrativas era realizado principalmente pelos viajantes e

missionários, que nos proporcionaram uma boa quantidade de fontes sobre o tema em

questão. A quantidade de textos sobre tais populações aponta um horizonte cultural até

certo ponto homogêneo, o que, se esconde as diferenças específicas entre as diversas

etnias, marca também alguns temas essenciais para o entendimento dos povos indígenas

da região. Ao mesmo tempo, representa um conteúdo simbólico tapuia50

.

A narrativa abaixo era contada entre os Cariri e foi coletada pelo capuchinho

Bernard de Nantes no século XVIII (POMPA, 2002). Ela, da mesma forma que apresenta

elementos essenciais para a população da área, representa também já o resultado do

intenso e violento contato entre os indígenas e os missionários,

48 Hoje, começamos a perceber que temas como virtualidade, simbolismo e agência da natureza, presentes

na cosmopráxis nativa, estão bem mais próximos do que entendemos como ciência do que pensávamos.

49 Segundo Sahlins (1994), porém, deve-se evitar toda justaposição entre etnografia e historiografia. Para

isso, deve se dar ênfase no uso de narrativas que expressam valores nativos e evitar boa parte dos arquivos

coloniais, que por mais ricos que possam ser, pouco apresentam sobre o que os sujeitos em análise

realmente disseram. No caso aqui tratado, se os temas são recorrentes, fica a dúvida se podemos estabelecer

tal tipo de relação entre momentos tão distantes no tempo, regiões díspares e se podemos identificá-los a

uma possível estrutura.

50 O trabalho de POMPA (2002) aprofunda-se sobre a questão, questionando algumas ―verdades‖

etnológicas estabelecidas até então, a partir de uma releitura das fontes, tanto no que se refere ao universo

tupi-guarani, quanto ao tapuia.

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112

Eles dizem que seu Deus Badzé (assim chama sua divindade) morava no

céu e um dia desceu na terra para visitá-los, como prova de sua afeição.

Eles, de sua parte, receberam-no com gentileza e trataram logo de fazer

uma festa, por isso foram à caça, pequenos e adultos, mataram uma

grande quantidade de javalis e outra caça e voltaram lá pelas cinco

horas, com muita caça. Depois de assada, ofereceram o primeiro prato a

seu deus Badzé, que não gostou e depois de ter se queixado com eles, os

deixou e voltou rapidamente ao céu levando, para castigá-los todos os

javalis da mata. Apesar de tristes eles não deixaram de comer sua caça.

Alguns dias depois, apurados pela fome, voltaram à caça, mas não

acharam nada, resolveram então subir ao céu por uma árvore muito alta.

Entraram no céu por um buraco e começaram a caçar, tanto que em

pouco tempo ficaram providos de caça. Contentes por sua boa sorte

tentaram descer pelo mesmo caminho, com medo de ser surpreendidos a

roubar. Mas seu deus Badzé tomando conhecimento de sua ousadia,

mandou as formigas tirarem a terra de baixo da árvore, que desta

maneira, caiu. Os caçadores privados de sua escada resolveram amarrar

seus cintos uns aos outros para deslizarem até a terra, pedindo ao

primeiro que, chegando na terra, os avisasse, sacudindo a corda feita de

cintos. Ele prometeu, mas vendo que a corda era curta demais, a sacudiu

para pedir que alongassem. Eles, pensando que ele tivesse chegado ao

chão, começaram a deslizar, um atrás do outro, tão precipitadamente que

a corda quebrou por causa do peso e eles caíram todos na terra, com uma

queda tão forte que quebraram braços, mãos e pés. E por isso, dizem, que

temos braços, mãos e pés com tantas dobras e articulações.

Na narrativa acima podemos perceber que o tema da abundância é relevante. A

abundância está relacionada ao desejo de se obter uma boa quantidade de caça,

representada pela grande quantidade de javalis. Em oposição, a terra se transforma no

lugar da escassez, se contrapondo ao céu e marcando a relação céu/terra e a distância

espacial como operadora desta relação. Neste cenário, o céu e a terra se posicionam a

uma distância considerável, que deve ser percorrida com muito cuidado e atenção. Além

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113

disso, evidencia-se que a relação entre deus e os humanos se dá a partir do

descontentamento do primeiro, o qual retira a abundância de caça da terra e a reposiciona

no céu. O poder é representado no plano superior.

Só há um caminho para a entrada no céu, representado por um buraco. Para

realizarem o caminho de volta, os humanos buscam alianças entre si. Estas alianças são

produzidas a partir da formação de um cordão elaborado através da associação dos seres

com o uso de cintos. Tal ação representa a busca pela aliança entre todos, apontando para

uma concepção de parentesco ainda presente na região.

Esta ideia da aliança ainda pode servir como analogia a alguns momentos rituais.

No momento do praiá, por exemplo, os indígenas mascarados buscam representar esta

espécie de cordão associativo, através da coreografia que busca sempre representar uma

linha ou cordão que se movimenta pela extensão total do terreiro. O termo linha designa

também uma das possibilidades de nomeação dos gêneros musicais presentes na

comunidade Kalankó (HERBETTA, 2006).

A questão a ser resolvida na narrativa acima é a manutenção desta associação entre

os humanos. Isto não acontece por causa do engano de um ou mais índios que se

confundem, através de uma falha de comunicação, que se dá do primeiro índio em

relação aos outros.

Outras narrativas como esta, pertencentes à mesma região, eram contadas no

mesmo período. A história abaixo também sobre os Cariri acaba por corroborar alguns

aspectos centrais destacados na narrativa acima. Tal narrativa é contada por outro

capuchinho, Martin de Nantes, no século XVIII (POMPA, 2002).

Eles me contaram várias vezes que o grande deus do céu, que eles

chamam Touppart tinha mandado para a terra um grande amigo para

morar com eles, e que vivia como eles (…) Chamavam-no o grande pai:

recorriam a ele em todas as aflições, a que ele sempre dava remédio. Um

dia tiveram desejo de comer porco selvagem, ou os javalis desses lugares

(…) pediram a seu grande pai que o prometeu. Saíram todos de sua casa e

foram, como de costume para as tarefas de todos os dias, deixando apenas

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114

os filhos menores com este grande pai. Ele os chamou a todos, um por um

(…). Vieram todos, depois, passando a mão pela cabeça, ele os

transformou em pequenos javalis e os despediu. Quando seus pais

regressaram, por volta do meio dia, não encontrando nenhum de seus

filhos, recearam que o grande pai tivesse feito alguma coisa com eles.

Mas não ousaram perguntar-lhe onde estavam seus filhos, pois que muito

o respeitavam, e temiam. Então, ele lhe disse “vocês queriam javalis…

vão a caça e os encontrareis. Foram à caça, mas fez subir ao céu todos

esses javalis, galgando a grande árvore que encontraram no caminho, e o

grande pai subiu com eles. Os índios perceberam que os javalis haviam

subido ao céu pela árvore que havia encontrado. Foram atrás deles, mas

demoraram muito na perseguição. Desde que chegaram, encontraram

muitos javalis, correram atrás deles e mataram muitos. No entanto o

velho, encontrando-os no céu na perseguição dos javalis, encomendou

logo às formigas que abatessem a grande árvore em que eles haviam

subido. As formigas se puseram logo em ação (…) Os sapos se reuniram

para deter a formiga, cercando a árvore com seus braços. As formigas,

para que saíssem, picaram-lhe rudemente as costas e eles abandonaram a

árvore, pela dor das picadas (…) derrubaram a árvore, de sorte que

cariris, concluída a caca, quiseram descer do céu pela mesma árvore em

que haviam subido, mas a encontraram derrubada. Ficaram espantados e

temerosos, atiraram diversas flechas na árvore com o intento de a

levantar de novo. Ela fazia também esforços neste sentido e chegou a

levantar-se um pouco, mas de novo caia no solo. Resolveram então

prenderem-se uns aos outros pela cintura, para fazer um acorda que lhes

permitisse descer, mas a corda era curta. Caíram uns depois dos outros e

quebraram os ossos na queda. Daí, dizem eles, e que temos os dedos das

mãos e dos pés partidos em tantos lugares e dobramos o corpo pelas

fraturas que nossos pais sofreram na queda. Enfim, regressaram a suas

casas arrebentadas. Cheios de caça, fizeram um grande banquete a custa

de seus filhos, transformados em javalis. Em seguida rogaram ao grande

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115

pai para que voltasse, mas ele não só quis atender e lhes deu o fumo como

compensação. Eles o denominam Badzé.

Além das relações alto/baixo e do trajeto evidenciados em ambas as narrativas,

nesta segunda narrativa um anfíbio se destaca. Ele é relacionado à água e à terra ao

mesmo tempo e busca colaborar com os indígenas. Mas as formigas são implacáveis e

não permitem esta aliança.

O engano humano agora é causado pelo próprio Deus, que transforma crianças em

animais desejados. Note-se que são estes seres que representam a abundância. No caso

aqui tratado crianças transformadas em animais, ou seja, algo entre os domínios da

natureza e da cultura.

A narrativa é novamente sobre a relação dos seres humanos com Deus, posicionado

no plano superior. O fumo representa uma forma de contiguidade entre eles. Além disso,

o cordão que deveria unir os índios novamente não funciona, apesar de ter sido escolhido

para se percorrer o trajeto entre o céu e a terra.

Neste cenário, ambas as narrativas demonstram o grande contato dos capuchinhos

com os povos indígenas da região. No plano estrutural, além dos elementos já citados,

como a abundância e a escassez, marca-se a árvore como meio de mediação entre a terra

e o céu. A terra representando um plano inferior, no qual vivem os índios e o céu

representando um plano superior, onde vive um deus.

Desta forma, evidencia-se que o universo vegetal aparece com destaque, através da

figura da árvore. E, além disso, percebe-se que as formigas, ou seja, animais que vivem

abaixo da terra, são referenciados como seres perigosos que, a serviço do alto, indicando

aliança, podem prejudicar os humanos. Estes têm dificuldades em produzir suas alianças,

seja com Deus ou entre eles mesmos.

Todas estas narrativas deixam no ar um conteúdo simbólico muitas vezes negado,

nas populações que se identificam como indígenas na região. Elas também nos permitem

pensar em uma estrutura que aponta para um universo cultural pan-sertanejo51

, o qual vai

além do tempo e do espaço, pois relaciona diferentes séculos e territórios.

51 Note-se que estou baseando-me em narrativas míticas encontradas entre as populações da região e

pertencentes a outro tempo, e não especificamente entre os Kalankó, que nem existiam enquanto grupo

étnico.

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116

Neste sentido, os elementos e relações destacados aproximam-se bastante da análise

estrutural realizada com os cantos de toré, os quais desvelam um plano estrutural bastante

similar.

Se por um lado alguns temas e relações são similares entre ambos os suportes, como

os estratos e o poder; outros não aparecem em um ou outro e são expressos de forma

diversa, como a árvore que aparece como meio de ligar os espaços nas narrativas, mas

representa o próprio índio nos torés. Desta forma, é importante notar que ―os termos

nunca têm significação intrínseca; sua significação é de posição: por um lado função da

história e do contexto cultural e, por outro, da estrutura do sistema em que são chamados

a figurar‖ (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]: 71).

Estas diferenças deixam claro ainda que a relação estabelecida na comparação não é

de simples reflexo ou repetição, mas de contraste. Os cantos Kalankó estão em relação

dialética à situação dos Cariri. Somente assim, podemos comparar ambas as estruturas e

pensar nas especificidades históricas das populações em questão.

Depreende-se da comparação acima uma estrutura inconsciente de pensamento que

codifica temas e relações essenciais aos sujeitos que lá vivem. Desta forma, ―uma

sociedade que define seus segmentos em função do alto e do baixo, do céu e da terra, do

dia e da noite pode englobar na mesma estrutura de oposição modos de ser sociais ou

morais: conciliação e agressão, paz e guerra, justiça e política, bem e mal, ordem e

desordem‖ (Ibid: 193).

Estabelece-se uma associação, portanto, entre tais relações do plano simbólico e as

condutas dos sujeitos na aldeia, as quais podem ser observadas através da lógica de

associação e recorte estabelecida lá, conforma demonstra o próximo capítulo. Outros

temas destacados aqui serão aprofundados nos capítulos subsequentes.

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117

Capítulo 4

Grande família: produzindo primos e recortando

parentes

Neste capítulo busco evidenciar uma lógica presente no pensamento Kalankó. Este

modo de pensar busca associar alguns elementos e, ao mesmo tempo, recortar outros,

elaborando conjuntos de temas e relações, os quais foram identificados nos capítulos

anteriores. Desta forma, os Kalankó constroem desde seu sistema de parentesco até a

relação com os encantados.

Sempre que fui à aldeia Kalankó fui muito bem recebido. A hospitalidade é uma

marca da população em questão. Eles fazem questão de tratar bem o ―estrangeiro‖,

marcando, porém, as posições sociais dos sujeitos. Certas áreas do conhecimento e do

espaço ficam então interditadas a mim e a qualquer outra pessoa de fora.

Desta forma, não pude, por exemplo, participar de um rito muito interessante que

aconteceu em julho de 2009. Neste momento, quase que particular, Tonho Preto, Paulo e

Zezinho Koyupanká passaram a noite cantando no interior do poró – a casa sagrada, onde

se guardam as vestes de praiá. Eles me disseram que fizeram isso em celebração à

colheita do milho.

Tal ocasião foi considerada intensa – por eles – porque potencializaram a

capacidade de três grandes cantadores do alto sertão, a partir da associação entre eles,

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118

fazendo do evento algo poderoso, com mais energia encantada. Ao mesmo tempo, a

interdição não se aplicou só a mim. As mulheres não puderam – e não podem – entrar no

poró. Quem consumiu alguma bebida alcoólica também não.

O recorte, relacionado à associação, é essencial já que ―as lógicas prático-teóricas

que regem a vida das sociedades chamadas primitivas são movidas pela exigência de

cortes diferenciais... [e] tanto no plano especulativo quanto no plano prático, o que

importa é a evidência dos cortes, muito mais do que seu conteúdo‖ (LÉVI-STRAUSS,

1989 [1962]: 91).

Estas duas operações – de associação e recorte – são fundamentais para o

entendimento do mundo Kalankó.

O próprio grupo étnico é medido a partir desta relação. A abrangência do grupo é

estabelecida a partir da associação entre diversas famílias que possuem graus

genealógicos próximos, ligados a famílias que migraram ao longo do século XX de Brejo

dos Padres/PE (a). O diagrama abaixo apresenta os dois primeiros casais que chegaram à

região de Januária e que constituem a geração I.

Além disso, o critério (b) de pertencimento ao grupo passa pela prática de um

sistema músico-ritual, baseado no toré (HERBETTA, 2006). Neste sentido, os

descendentes da família de Santina, considerada entre os Kalankó a grande cantadora de

antigamente (geração II), são os principais líderes da comunidade. E o local onde ela

morava, Januária, é considerado o espaço original dos Kalankó. Note-se que já há aí um

recorte no interior do grupo, definindo capacidades, ligadas ao domínio do rito. O

diagrama abaixo posiciona Santina e sua linhagem em relação aos Higino que foram

morar em Santa Cruz do Deserto/AL.

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Nas gerações III, IV e V pode-se ver claramente que os descendentes de Santina são

hoje os mais renomados cantadores e, portanto, líderes políticos da aldeia. Isto fica claro

no diagrama abaixo.

Nele, pode-se perceber que em todas as outras gerações, os cantadores e

dançadores, em sua maioria, são ligados à descendência de Santina. O que pode até

apontar, se for trabalhado em futuros estudos, um caráter matrilinear na comunidade52

.

Para se chegar à medida do grupo, além da família de Santina e de suas aliadas que

possuem relações genealógicas com a geração I, efetua-se outro recorte, excluindo as

demais famílias do grupo, que não se enquadram nos critérios (a) e (b). Este conjunto faz

parte de uma lista que fica em posse do cacique Paulo. A equação abaixo deixa explícita

esta medida.

52 Em outros estudos sobre populações indígenas do sertão nordestino aparecem a figura de uma mulher

idosa como portadora do conhecimento tradicional e musical. Este conhecimento geralmente a posiciona de

forma destacada na comunidade e a apresenta como próxima do universo encantado (ver NASCIMENTO,

1994).

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120

KALANKÓ = {ASSOCIAÇÃO (a x b) + RECORTE}

O conjunto Kalankó pode variar ao longo do tempo. Isto se dá com base em

conflitos internos e novas alianças. Ambos os casos estão relacionados diretamente a

afastamentos ou aproximações em relação aos critérios acima citados.

Além disso, várias vezes ouvi na aldeia o termo parente, às vezes se referindo ao

conjunto de índios do sertão nordestino, às vezes aos índios do Brasil. Ambas as

declarações apontam para uma rede extensa que no entender Kalankó são importantes

para o Tempo da Luta.

A própria ideia de parente, quando referida aos índios do sertão, é estabelecida pela

somatória das equações (acima) pertencentes a cada povo indígena do sertão nordestino,

como evidenciado abaixo.

PARENTE [Kalankó] + [Geripankó] + [Koyupanká] + [Katokin] + [Karuazu] +

{...}

Em segundo lugar a equação se estende a todos os povos indígenas do Brasil.

Há, porém, outra variável a ser considerada. Os Kalankó classificam como primos

aqueles que se aproximam do grupo, mas não podem fazer parte dele, como os vizinhos,

parentes distantes, visitantes e até antropólogos.

Esta classificação pode ser usada também no interior do parentesco genealógico,

contudo é mais comumente falada quando se refere ao ―estrangeiro‖. Os primos são

assim o resíduo aliado da tendência de associação e recorte presente entre os Kalankó.

Isto fica claro, abaixo.

KALANKÓ = {ASSOCIAÇÃO (a x b) / RECORTE :: PRIMOS}

A partir de minha quinta estada na comunidade, passei a ser chamado de primo, ao

menos pelos mais próximos, como Culezinha e Zé Magrinho. Tal classificação

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expressava intimidade e me posicionava de forma próxima a todos na aldeia. Ela também

intensificava a formação de amizades e de afetos positivos.

Tudo isto facilitou meu trabalho, já que aumentou consideravelmente meus

informantes, que de certa maneira pertenciam à minha família. Mas, acima de tudo, fez

com que me sentisse muito bem, deixando-me mais à vontade neste outro universo

cultural distante do meu.

Questionei Culezinha, então, sobre minha nova família. Se eu era seu primo, quem

mais fazia parte de minha família?

Em primeiro lugar, Culezinha me disse que toda a sua família, por parte de parente

era meu primo. Os diagramas abaixo buscam demonstrar a extensão desta família. O

primeiro apresenta novamente quem, na geração IV, V e VI é parente em 1º grau de

Culezinha.

Abaixo, agregam-se os Higino de Santa Cruz do Deserto, que são também meus

primos,

E, além disso, os Severo, destituídos da aldeia, que vivem no Assentamento

Salgadinho. Estes são também meus novos primos.

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Esta relação familiar se estende quase que indefinidamente, à potência máxima. Ela

opera sempre com base nos sujeitos que se relacionam com o parentesco de Culezinha e

de outros que me classificaram como primos. O recorte sendo feito na geração superior e

inferior a ego.

Por fim, pertencer a esta família possibilitou-me avançar um pouco mais nas áreas

interditadas, como em alguns rituais de cura, por exemplo, ou ver algumas sementes, a

representação material do encanto, interditada a muitas pessoas. Além disso, possibilitou-

me estar presente em certos momentos de tensão política. Note-se que, mesmo

pertencendo a tal família, outros locais e eventos permaneceram interditados. Um primo,

neste caso, indicando alguém mais próximo, mas ainda não dentro do recorte do grupo.

Além da ideia de primo e parente, ou junto dela, sempre ouvi a expressão grande

família53

. Esta expressão apareceu especialmente quando conversava sobre o parentesco

Kalankó. Lá, diz-se quando alguma pergunta ou afirmação se refere a algum vizinho,

―aqui, é tudo uma família‖. Esta expressão representa a soma dos parentes e dos primos,

genealogicamente constituídos ou não, constituindo o conjunto de possíveis aliados do

grupo (HERBETTA, 2006).

Outros termos como padrinho/madrinha, apesar de serem frequentemente

mencionados parecem não funcionar como relevantes operadores sociais. Estes, apenas

marcam a aliança e a linhagem predominante. O local da residência, neste caso, também

não parece tão importante, uma vez que a lógica da associação e do recorte opera para

além do espaço.

53 A noção da grande família começa ser observada em outras etnografias do sertão nordestino. Glebson

(2010) observa uma noção similar entre os Potiguara. Para o autor, há uma ―gestão pela máquina de

produzir parentes e alianças com foco na valorização de uniões com o exterior‖ (: 21).

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Neste cenário, é importante a participação de todos – a grande família – em uma

série de reuniões coletivas de diferentes tipos. A participação nestes eventos é uma

importante medida do grau de intimidade e pertença à comunidade. Nelas, podem-se

atribuir classificações variadas. Os exemplos são muitos.

Desde que a televisão chegou a Lageiro do Couro, por exemplo, ela se transformou

em um meio de reunião importante e intenso. A novela, especialmente as da Rede

Record, são sempre assistidas e acompanhadas por boa parte da população. Isto acontece

no horário noturno, após o trabalho e reúne tanto a população masculina quanto a

feminina, tanto os adultos quanto as crianças, tanto os parentes quanto os primos.

As brincadeiras cotidianas, como a sinuca ou o dominó são também espaços de

reunião e confraternização.

O futebol que acontece todo final de tarde em Lageiro do Couro é um destes

eventos de participação coletiva. Por volta das cinco horas da tarde, a maioria da

população masculina da região – índios e não-índios – reúne-se no campo da aldeia e

jogam futebol até o escurecer.

Este esporte é vivido intensamente, os Kalankó, inclusive, contribuem com a

organização e participam de campeonatos por toda caatinga alagoana, o que torna

possível a criação de um canal importante de relações sociais com não-índios.

Além da atividade física em si, o esporte gera animadas conversas sobre os times

profissionais e os campeonatos. Desta forma, a conversa sobre o assunto a qualquer hora

do dia intensifica afetos.

Neste cenário, a exibição de jogos de futebol pela televisão tornou-se, da mesma

forma, um evento coletivo. Pelo menos todo final de semana a população masculina se

reúne, especialmente na casa de Culezinha, para assistir a algum jogo de futebol. Os

jogos preferidos são aqueles do Flamengo, Corinthians e Palmeiras, já que todos se

dividem principalmente entre estes times.

Estes eventos são muito animados e mais valorizados quando acompanhados por

carne, coca-cola e cachaça. Apesar da animação, nunca observei uma briga, todos

parecem saber lidar com as vitórias e as derrotas de seus times. A brincadeira é o tipo de

conduta preponderante nestes momentos e é responsável pela intensificação da

intimidade entre os participantes.

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124

Do mesmo modo, pode-se observar que a política da aldeia também se faz nestas

horas, que servem como espaço para conversas sobre o cotidiano, situações do dia-a-dia,

organizações de outros eventos e alianças. Ao mesmo tempo, é possível observar o

tratamento dispensado aos líderes da comunidade que sempre têm direito a um assento

especial – já que a maior parte fica deitada ou sentada no chão. A hierarquia também se

revela quando as lideranças podem se servir de comes e bebes antes dos outros.

Tal ―setting‖ de confraternização, formado por carne e bebida, é bastante valorizado

em outros momentos, mesmo naqueles sem futebol. Se o futebol é um evento

predominantemente masculino, estas outras situações contam com a intensa participação

das mulheres.

Deste modo, sempre que possível, ou seja, quando há dinheiro para a compra dos

recursos, os Kalankó têm especial apreço pelo que chamamos de churrasco. Este pode ser

realizado com carne de boi, frango, porco, bode ou de caça. Nestas ocasiões há também

muita música.

Sobre a música, parece haver grande apreciação por parte de todos. A todo o

momento pode-se ouvir uma rádio em volume altíssimo. O som pode vir de qualquer uma

das casas da aldeia, tornando-se, desta forma, parte de uma escuta coletiva.

O toré é geralmente visto como o gênero musical preferido da comunidade, mas ele

é produzido normalmente em momentos rituais e nunca reproduzido nas rádios. Nos

outros eventos festivos, de caráter público, mas não ritual, observa-se o gosto por outras

musicalidades, como o forró, arrocha e o brega.

Isto pode ser percebido em outras comunidades indígenas no Brasil. Segundo Mello

(2005), os jovens Wauja ouvem muita música sertaneja, eletrônica, lambadão mato-

grossense e romântica. Isto é, porém, alvo de críticas dos mais velhos da comunidade,

que não incentivam estes outros gostos.

Segundo a autora, apesar deste apego dos jovens às músicas produzidas fora do

território indígena, há um ―núcleo duro‖ da musicalidade Wauja que não se deixa

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125

transformar. Diferentemente do caso Guarani, que chega a criar experiências musicais

híbridas (COELHO, 2003)54

.

Entre os Kalankó, não há problema em ouvir a música de outros territórios. Ao

contrário, estima-se muito tal musicalidade. Ao mesmo tempo, a música Kalankó é

valorizada e os dois repertórios aparentemente não se misturam.

Vários gêneros musicais são populares no alto sertão alagoano. Entre eles, pode-se

destacar o forró, o arrocha, o côco de embolada, o reisado, o brega e a música

internacional – todas elas denominações nativas.

Entre os Kalankó alguns destes gêneros são especialmente populares e usados em

momentos regulares de entretenimento e lazer. O brega é muito apreciado. O motivo

apontado é que se trata de um gênero de música lenta e por isso serve para brincar, ou

apenas ―para curtir‖ como me disse Culezinha. Outro motivo para a popularidade do

brega é que as músicas são baseadas em temas relacionados à vida Kalankó, apontando

para perdas e dificuldades cotidianas.

Outro gênero apreciado é o forró arrocha. Este gênero musical possui um

andamento bastante acelerado e tem sempre motivos eróticos, expressos na ambiguidade

das letras de duplo sentido. Estas fazem especial sucesso entre a população masculina.

Este tipo de música pode ser denominado entre eles como piseira e é considerado mais

forte, intenso, próprio para dançar. Segundo meu primo, pode-se inclusive, relacioná-la à

pisada do toré.

Esta relação é evidenciada entre outras coisas na repetição, elemento muito

valorizado neste gênero musical, observada tanto na estrutura melódica quanto nas letras,

que se repetem ao longo da execução da peça. Esta característica aponta para a reiteração,

elemento importante do pensamento musical Kalankó, e que será mais bem analisado no

capítulo 8.

O forró arrocha não tem relação com o mundo encantado, no entanto por possuir

características importantes do pensamento musical Kalankó aponta para afetos já

constituídos na comunidade.

54 Nestas comunidades há uma dicotomia entre música indígena e música não-indígena. A primeira

representando a cultura, ancestralidade e tradição. Sendo por isso muito valorizada. A segunda se

aproximando da esfera do puro entretenimento (MELLO, 2005).

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Destarte, o forró arrocha se relaciona ao brega. Isto acontece por formarem uma

oposição, lento / rápido, que se relaciona à oposição sofrimento / alegria, constituindo a

equação:

LENTO:SOFRIMENTO :: RÁPIDO:ALEGRIA

Tais relações são muito presentes no pensamento Kalankó. A rapidez indica a

intensidade da alegria que parece transcender temporariamente o sofrimento de ser

Kalankó.

Assim, neste cenário musical, alguns grupos musicais ou cantores solos se

destacam. Zé Armando, classificado como brega, por exemplo, se destaca por seus

temas. Ele possui, de acordo com D. Jardilina, a puxada rápida e a agitação necessária à

apreciação Kalankó. A banda Djavu, mais conhecida entre eles, como banda ―Beija flor‖,

apontando para um encanto poderoso, é considerada uma banda que faz dançar. Ela é

classificada como arrasta ou piseira.

Parece que os outros gêneros musicais apreciados na aldeia são relacionados às

mesmas categorias acima estabelecidas. O cantor Eduardo Costa, por exemplo, é

classificado no gênero internacional, que é considerado mais tranquilo, ―para curtir‖, e

por isso se relaciona ao brega. Gino e Geno são classificados como estando entre o

internacional e o sertanejo, por isso são ―tranquilos‖, mais próximos do brega. Outra

derivação musical é representada por Tyrone Brandão, classificado por eles como

romântico-brega.

A respeito da percepção musical Kalankó em tela pode-se depreender alguns

aspectos do pensamento nativo. Em primeiro lugar, estes eventos musicais são

valorizados e constituem espaços importantes para a produção de primos, a lógica da

associação e recorte sendo marcante.

Em segundo lugar, ao relacionar brega e toré, arrocha e praiá, piseira e alegria,

Djavu e Beija-flor, dentre outras relações acima evidenciadas, os sujeitos estão

expressando um sistema de referência, baseado em homologias que não concebem ―um

fosso entre os diversos níveis de classificação, ele[s] o representam como etapas ou

momentos de uma transição contínua‖ (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]: 158, grifo meu)

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127

Em terceiro lugar pode-se aventar a hipótese de que este modelo de associação e

recorte, baseado na produção de homologias é um operador presente no universo

simbólico Kalankó.

No decorrer do trabalho de campo, esta lógica ficou mais clara nas diversas vezes

em que Tonho Preto ou Paulo me falavam de uma ciência do índio – ou da ciência

Kalankó. Esta expressão é muito comum de se ouvir em conversa com estes dois líderes

citados. Ela é usada quando o assunto diz respeito ao universo músico religioso e indica

que a profundidade da pergunta impede a resposta, tornando alguns temas, tabus.

Isto funciona criando uma ideia de segredo do índio que, se por um lado marca o

sentido diacrítico das identidades em jogo na relação de pesquisa, por outro guarda um

método de conhecimento e operação importantes para a vida da população. Segundo

Paulo, ―isso aí tem a vê e eu nem poderia... é coisa do pajé... em forma da religião deles...

se você me desculpa, depende, tem coisa da sua natividade, e origem indígena não sei se

vou, não sei se posso chega até esse momento, tem coisa que não podemos contar as

pessoas, com todo o respeito‖.

Obviamente, tais temas e recusas me chamaram a atenção e me fizeram pensar nas

relações e processos próprios deste saber. Esse mistério me levou a tomar tal universo

como tema fundamental para o entendimento do mundo Kalankó e seus diversos sistemas

culturais.

Depreende-se da expressão em tela que enquanto o termo ciência denota uma forma

de conhecimento – de saber – o termo indígena, disposto ao lado, afirma o caráter

identitário da técnica. Esta técnica poderia ser chamada de ciência cabocla ou ciência do

sertanejo55

, aproximando-a dos sujeitos da região, por exemplo, que antevêem a chuva no

sertão. Além disso, de certa forma, a expressão é usada quando a conversa toca no

assunto dos encantados e da energia encantada.

Com base em observações de campo, pude perceber que a expressão é usada não só

comigo, mas entre os povos indígenas. Isto acontece quando o assunto se refere à

55 É bastante comum na região do sertão, a presença de sujeitos que conseguem elaborar um discurso de

referência sobre a presença ou não de chuvas no próximo período de plantações. Tais chuvas podem ser

abundantes ou fracas e regulam a qualidade do próximo ano para o sertanejo. Tais sujeitos baseiam-se na

associação de alguns elementos e seus discursos são levados muito à sério nas comunidades em questão,

determinando condutas e ações para o bom andamento das atividades econômicas e a sobrevivências das

populações. Tais associações giram em torno da associação de alguns elementos do reino animal e vegetal

que quando relacionados determinam o discurso do sujeito.

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128

potência da energia encantada. Em suma, o termo ciência é usado como sinônimo de

encantado ou energia.

Sendo assim a ciência do índio tem relação com uma forma de manipulação de um

recurso fundamental à vida na região – a energia encantada. Ela está ligada também à

ideia de técnica de transformação, já que a energia encantada tem o poder de transformar

a vida na aldeia.

Como já explicado, a energia encantada é um recurso que provém dos encantados

– ou seja, os antepassados, que ainda em vida se transformaram em entes protetores da

comunidade e que agora vivem no espaço visitando as aldeias indígenas. Como os

encantados e a referida energia pertencem ao domínio da natureza pode se pensar que a

ciência indígena não busca transformar a natureza. Em oposição, ela tenta modificar a

sociedade, pertencente ao domínio da cultura56

.

Assim, a ciência Kalankó é gestão de energia vital, a partir de uma técnica precisa

de administração de recursos, já que para cada momento e para cada espaço tem-se um

tipo específico de processo.

A energia encantada tem três níveis de atuação na comunidade. O primeiro

acontece no toré, quando a partir do canto, os encantos estão apenas em constante

observação do evento. Segundo Culezinha, ―eles tão lá observando, né, entendendo o que

a gente ta fazendo‖.

O segundo momento acontece no praiá, quando a energia encantada chega ao

terreiro e é dividida entre todos os dançadores. De acordo com o pajé ―o encanto faz a

visita e dá força ao moço pra aguenta a caloria‖. A caloria se refere ao potencial da

energia encantada presente no corpo do dançador. Segundo Tonho Preto, se o sujeito não

estiver preparado é perigoso.

56 Isto em oposição ao sentido de ciência comum na sociedade ocidental de caráter europeu. Este ainda

traz o sentido de lógica, verdade e especialização e estabelece um método que tem a pretensão de ser

preciso e explicativo. Tal ciência, entendida segundo o modelo das ciências naturais, constituiria o melhor

instrumento para o desenvolvimento da vida humana. Esta ciência newtoniana, porém, age no sentido de

generalizar e objetificar os temas da pesquisa, impondo uma visão determinista, e, portanto, condenando-os

a serem absolutamente analisáveis no laboratório. (PINGUELLI-ROSA, 2006). De acordo com Lévi-

Strauss, esta noção de ciência, para nosso mundo, é como o mito da civilização, ou o discurso que nós

fazemos sobre nós mesmos.

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129

O terceiro momento se dá no serviço de chão. Aí é quando a energia encantada

atua de forma direta no cantador e o encanto fala para os presentes através do corpo do

sujeito. Segundo Paulo, não há possessão, o que para ele está ligado a outras práticas

religiosas, mas atuação da energia.

Esquematizo abaixo esta escala de níveis de atuação.

- +

Toré Praiá Serviço de Chão

Para os Kalankó, a energia encantada é traduzida como fonte de coragem e

proteção, sentimentos que juntos geram, de acordo com o nativo, emoção e saúde. Ela é,

desta forma, vital para a comunidade, pois garante a vida na aldeia.

Esta técnica de materialização da energia encantada é produzida numa

experiência denominada trabalho. Ele é realizado através dos cantos indígenas, os quais

são comunicados pelos próprios encantados, para alguns sujeitos da comunidade – os

cientistas da região. Eles são chamados de cantadores.

Além disso, de posse desta técnica musical para materialização de uma energia,

tais sujeitos destacam-se inclusive politicamente. Todos têm participação destacada nos

conselhos indígenas e são os representantes dos Kalankó nos encontros fora da aldeia.

Desta forma, esta energia provém de uma relação dos cientistas indígenas com

entidades vivas57

, que possuem agência, apontando para uma técnica que possui como

característica marcante a indeterminabilidade, já que depende da subjetivação de uma

entidade sobrenatural. Ainda por se tratar de uma relação entre sujeitos, a ideia de ciência

para os Kalankó tem ênfase na subjetividade e, consequentemente, nas emoções.

Por isso, tal processo é irreversível, já que a energia produzida num determinado

evento, com base numa associação de relações entre sujeitos58

nunca vai ser a mesma de

57 Segundo Maturana (1995), conhecemos ao compartilhar o mundo com outros seres e é nossa trajetória

que nos faz construir o conhecimento do nosso mundo. Neste sentido, os Kalankó manipulam o mundo

natural compartilhando momentos baseados em relações entre sujeitos – relações do tipo índio-índio, índio-

natureza e índio-encanto e conjugando dois espaços - a terra e o espaço.

58 A ideia de encantado como pessoa – com agência – é bem descrita entre os Tumbalalá por Maia

Andrade (2008). Segundo o pajé Kalankó, entretanto, os encantados ―não é um ser humano de carne

humana, pra nóis anda se chocando‖.

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130

outro evento. As constantes participações do pajé Koyupanká nos ritos Kalankó, por

exemplo, geram um potencial de energia único, que nunca seria atingido sem esta

associação.

Segundo seu Edmilson, inclusive, há uma relação de contiguidade na própria ideia

de encanto. Ele associa os três encantados com que trabalha: Carro Branco, Umbuzinho,

e Mestre Jardim, a um só poder, ―a uma só força‖. Para ele, é como se fossem o mesmo.

Nas palavras de seu Edmilson, ―esses três que eu trabalho é... eles são um encanto... o

trabalho deles é um só‖.

Neste cenário, os encantados também atuam em associação. Sempre que há a

associação entre dois encantos, o poder da energia encantada é maior – diz-se pesado na

comunidade. Os exemplos são muitos. Se Cinta Vermelha e Carro Branco, por exemplo,

ambos donos de batalhão, de acordo com a classificação de tipologia militar presente na

aldeia (HERBETTA, 2006), estiverem associados num experimento, a energia será mais

pesada. Outras associações entre encantados e caboclos também são respeitadas.

Como cada encanto pertence a um índio, o método musical para a energia

encantada deve, de preferência, associar dois cientistas indígenas, que em relação

conseguem sempre mais poder.

O padrão associativo aparece também em outra etapa do trabalho. Segundo Tonho

Preto, a energia encantada se materializa em alguns espaços que são entendidos como

mato. O mato é relacionado à natureza e de acordo com Tonho Preto é o espaço que os

encantados podem atuar, representando também a cultura tradicional indígena, como

exposto no capítulo 1.

Segundo o pajé a terra é o lugar do índio e o espaço é o local dos encantos. A

ciência serve para associar estes dois espaços, liberando o trajeto entre eles. Para Paulo,

para que isto aconteça os dançadores devem encruzar o terreiro, formando o desenho da

cruz, em uma formação coreográfica específica, transformando a terra em mato. Por isso,

conforme o cacique, o canto Kalankó é o ritmo da cruz.

Este processo de encruzamento e materialização da energia encantada só pode ser

realizado em alguns locais especiais. Normalmente acontece no terreiro, quando se trata

do toré e do praiá. Quando o processo é realizado no serviço de chão, o ritual é feito na

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131

sala da casa de algum índio, em cima de um pano retangular. Todos os ritos são

realizados no período noturno e podem durar toda a madrugada.

Pode-se assim estabelecer uma relação interessante entre as dimensões do espaço

em que a energia se materializa e os ritos.

Teríamos então um continuum que varia do serviço de chão (espaço menor) ao

paiá (espaço maior), o toré posicionando-se a meio caminho. Cruzando os dois continua,

o seguinte quadro pode ser levantado, como hipótese, sobre a relação entre a potência da

energia e as dimensões do espaço ritual.

Espaço Físico Potência da energia

Toré + - -

Praiá + + -

Serviço de Chão - +

O quadro acima indica uma inversão entre as duas ordens – a do espaço e a da

energia. Neste cenário, o menor espaço dá margem à maior energia e vice-versa. Isto se

relaciona ainda à ideia amplamente difundida na América indígena de que há uma

quantidade finita de energia cósmica que deve ser administrada (VIVEIROS DE

CASTRO, 2002: 173).

Nos espaços em questão, todos os objetos envolvidos no processo da produção e

administração da energia encantada também devem atuar associados. Sem esta

associação o trabalho não se concretiza.

Além disso, cada um deles, quando associado e envolvido no sistema ritual é

denominado vivo. Desta forma, estes elementos vivos também apontam para a agência e a

intencionalidade.

Este sistema vivo constitui um sistema classificatório e de correspondências,

construindo um ―sistema de classificações conscientes, complexos e coerentes‖ (LÉVI-

STRAUSS, 1989 [1962]: 58). Tais elementos são entendidos na aldeia como pertencentes

à tradição do índio. Isto estabelece a relação, tradição: vivo, tão importante na aldeia.

Page 132: Peles braiadas - PUC-SP

132

Para serem classificados como vivos ainda, estes elementos devem receber o sinal

da cruz. A cruz neste sistema funciona como uma chave que permite ou não a passagem

da energia encantada. Os elementos classificados como não-vivos não são reconhecidos

como tradicionais e, portanto, não têm efeito nos rituais.

Os elementos vivos muitas vezes são associados à natureza, como o mel, as ervas

medicinais, as frutas, as raspas de árvores, os encantados e o corpo.

O primeiro elemento deste sistema é a madeira de uma árvore: a jurema59

. Ela é

comum na área, é considerada viva e com sua madeira faz-se o cachimbo, além de se

preparar banhos medicinais.

O uso da jurema como material de fabricação de objetos rituais entre os Kalankó

aponta para uma forma de participação específica no amplo Complexo Ritual da Jurema,

já bastante trabalhado na literatura sobre a região do alto sertão nordestino (REESINK,

2000; MOTA & ALBUQUERQUE, 2002). O Complexo da Jurema, ainda segundo Mota

e Barros (1990), é uma evidência da mistura afro-indígena que existe no território

brasileiro e compreende não só o uso do elemento chamado jurema, mas todo grupo de

representações e concepções que existem em volta dela, a partir dos quais se elabora uma

identidade indígena (MOTA, 2002).

Outros elementos que integram este universo provêm da cultura material. Entre os

mais importantes está o cachimbo ou campiô (também chamado de cruzepé, poi ou

coaqui). O campiô pode ser feito da madeira da jurema, quando é considerado vivo, ou a

partir do barro queimado (não-vivo).

Ele é usado para a defumação dos outros elementos e deve ser fumado

cotidianamente (para isso, desenha-se uma cruz na testa de quem for usá-lo). O fumo é

misturado, principalmente, com a imburana de cheiro e com o alecrim. Estes objetos

agem, também, como símbolos materiais da identidade indígena, colaborando para a sua

diferenciação do não-índio e a construção de sua imagem (AMORIM, 2010). Além disso,

serve para encruzar o corpo, o terreiro ou a garapa. Isto ocorre de forma homóloga aos

pés que encruzam o terreiro nas formações coreográficas específicas, apontando para a

relação cachimbo: pé, ou junto à parte de baixo do corpo.

59 Os Kalankó, porém, não a usam em bebidas, como acontece com outros povos da região. Ajucá, que

aponta para o ritual de cura Kalankó, é outra denominação para a jurema.

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133

Para a produção destes itens vivos, utilizam-se os materiais encontrados no meio

ambiente, como sementes, madeiras, bambus, cascas do côco, o meiru, uma planta nativa

e o carcará, outra – difícil de ser achada atualmente. Usa-se, também, o osso de gado,

além de materiais industrializados, como é o caso do colar que observei no pajé Tonho

Preto, feito a partir de fragmentos de peça de dominó.

A ordem dos elementos vivos segue com o chocalho, que serve para dar a

dinâmica musical do rito e encruzar os outros elementos. O chocalho é considerado vivo

porque trabalha direto com o encantado e é fundamental para a prática musical. O

chocalho por sua forma e importância, aponta para uma relação com a parte superior do

corpo, a cabeça. A gaita, outro instrumento musical, é considerada não-viva.

Outro elemento de grande importância do universo em descrição é a veste de

praiá. Ela é produzida entre os Kalankó desde o começo da década de 1980, quando

Tonho Preto viveu em Tacaratu, próximo a Brejo dos Padres/PE, onde aprendeu a

confeccioná-la. Ela é feita com a palha de coqueiro (caroá) e é considerada viva, sendo

marcante na prática ritual e na construção da imagem da comunidade. A veste é composta

pela máscara, cinta, chapéu e saia e deve ser refeita ano a ano, mas, por causa da falta de

caroá, a matéria prima, os Kalankó fazem-na de dois em dois anos.

O chapéu é da pena do peru, ave bastante encontrada na aldeia. As penas são

importantes, também, para a fabricação do cocar, no qual se usa a pena da galinha

(guiné). A máscara é feita da mesma palha da veste. E a cinta, que é um pano retangular

colocado nas costas do dançador no momento do ritual do praiá, é fabricada pela esposa

do pajé. Ela é confeccionada com o algodão produzido na região e traz algumas

representações gráficas ligadas aos encantados (na maioria das vezes, relacionada à

cruz).

Os Kalankó detêm ainda, um grande conhecimento sobre as propriedades

medicinais de outros elementos naturais, entre os quais, a imburana de cheiro, usada

como aditivo ao tabaco, servindo tanto como remédio para dor de barriga e tosse, quanto

para banho de limpeza. Usam também a raiz do alecrim de vaqueiro e a semente da

melancia, como remédios contra a febre e a vassourinha de botão, contra dor de barriga.

Outros elementos são, ainda, utilizados para banho medicinal e remédio do mato: flor da

catingueira, andu branco, a raiz do poi, cabeça de frade, maracujá de estrada e ameixeira.

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Estes elementos denominados vivos e usados no sistema ritual, só funcionam, de

acordo com os Kalankó, se dispostos em sistema, ou seja, se estão associados. Se não,

não participam do processo de produção e manipulação da energia encantada. Segundo

Tonho Preto, ―ele não vai dividi sua, vamô dize a suas força ou seus saberes pra cada um

distribui, uma distribuição de parceria, cada causo, ele não vai fica ali só com sua energia

física, só ... principalmente que faz aquela conjuntura pra convoca as experiência da

natureza‖.

O quadro abaixo explicita os elementos que são associados no circuito

responsável por materializar a energia encantada. Assim temos,

O diagrama acima explicita a rede de associações necessárias para a concretização

da energia vital da comunidade. Isto aponta para o fato de que a ciência Kalankó busca

(re) ligar diversos objetos de ordens distintas, sendo, portanto, contrária à fragmentação.

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135

De acordo com Morin (2007 [2004]), o conhecimento, inclusive o científico,

caracterizou-se a partir da modernidade pela especialização e, consequentemente, pela

fragmentação. Ambas responsáveis pela alienação do sujeito e pela crise planetária em

que vivemos.

Desta maneira, ―as classificações indígenas não são apenas metódicas e baseadas

num saber teórico solidamente constituído, elas também podem ser comparadas, de um

ponto de vista formal, com aquelas que a zoologia e a botânica continuam a usar‖ (LÉVI-

STRAUSS, 1989 [1962]: 60), apresentando minúcia e precisão.

Neste sentido podem-se observar diversas associações e recortes entre vários

domínios – da natureza à cultura. Por exemplo, pode-se associar um encanto a outro

elemento vivo, ―porque no caso do umbu, ele tem o homem que faz parte da umbuzada...

é o Cinta Vermelha... é o dono da umbuzada‖, como me disse Tonho Preto em 2003. Isto

ocorre similarmente à associação que se faz entre o encantado Beija-flor e o arroz doce,

como me disse Paulo em outra ocasião.

Desta forma, temos uma associação entre duas ordens distintas – a dos

encantados e a da culinária. Este padrão pode ser percebido de forma indefinida no

pensamento indígena. Ao mesmo tempo em que se define uma relação que pode ser

binária, terciária ou em relação a outros elementos, recorta-se estes do conjunto total.

Temos assim que,

Cinta Vermelha : Beija –flor : , Mestre Jardim : Juazeiro Verde : Umbuzinho :

Muderno : Capiazinho : Mestre Andorinha : Capitão Dandaduré : Carro Branco : Juazeiro

Verde : Lambuzinho : Sereno : Mestre Gavião : Jaburitiba : Capitão Fernando : Mestre

Lavandeira : Mestre Serra Branca : seu Antonio : Manoel Bravo {...}

::

Umbuzada : arroz doce : carne : mel selvagem {...}

Page 136: Peles braiadas - PUC-SP

136

Da mesma forma, Zé Magrinho me disse uma vez que alguns outros encantados

se relacionam à carne de algum animal ou ao pássaro selvagem. Além de relacionarem-se

também a formas geométricas, como a linha, o círculo e a cruz. Culezinha já havia me

dito que Cinta-Vermelha possui duas linhas brancas como simbologia.

Nenhum dos dois soube explicitar mais relações concretas, mas deixaram clara a

existência de tais ordens de elementos. Temos, assim, mais duas ordens,

Carneiro : peru : pássaro do mato {...}

::

Cruz : círculo : linha : retângulo {...}

Os remédios do mato, como são chamados, também podem ser associados aos

encantados. Cada qual sugerindo o uso de uma ou mais ervas específicas. Para

Nascimento (2004), por exemplo, os Kiriri relacionam o conhecimento etnobotânico aos

encantados, ―o conhecimento etnobotânico (sendo) mais profundo, e com toda

probabilidade, anterior à introdução do próprio toré‖ (:52), permitindo ao povo em

questão reelaborar sua memória musical com base na associação com as plantas. Desta

forma, agregamos mais uma ordem de elementos ao sistema de pensamento Kalankó.

imburana de cheiro : raiz do alecrim de vaqueiro : semente da melancia:

vassourinha de botão : flor da catingueira : andu branco ; a raiz do poi : cabeça de frade :

maracujá de estrada: ameixeira : {...}

Na mesma direção, eu já havia notado que há uma ordem hierárquica de tipo

militar presente no entendimento do universo encantado. Tal tipologia foi apropriada,

muito provavelmente, no violento processo de aldeamento forçado a que tais populações

foram submetidas. Sendo assim, os encantados mais poderosos são os donos de batalhão,

seguidos pelos comandantes, capitães, mestres e caboclos

Page 137: Peles braiadas - PUC-SP

137

Esta ordem determina o grau de poder de cada um deles, o que é representado

pelo número de cantos e sua atuação no domínio do rito. (HERBETTA, 2006).

Desta forma, as relações entre os encantados em comentário estão assentadas

também na contínua reprodução e elaboração de um repertório musical, já que o poder de

cada encanto e a quantidade de energia encantada são expressos pelo número de cantos

de cada entidade. O mais poderoso – segundo Tonho Preto, mestre Andorinha, que é o

―rei do toré‖ – possui 25 cantos. Os outros, normalmente, possuem uma linha para toré e

outra para toante (Idem, 2006).

Têm-se, então, mais duas ordens de elementos, representadas pela tipologia

militar e pelo tipo de canto.

Dono de batalhão : comandante : capitão : mestre : caboclo {...}

::

Toré : praiá : serviço de chão {...}

D. Joana, certa vez, estabeleceu uma relação entre a ordem dos encantados e a

dos tempos vividos pelos Kalankó. Assim, a Sereia do Mar, por exemplo, é associada ao

Tempo dos Antepassados, não tendo mais tanta atuação. Cinta-Vermelha, Carro Branco,

Sereno e Capitão Fernando, segundo seu Edmilson, sendo os mais atuantes no Tempo da

Luta. Temos então,

Tempo dos Antepassados : Tempo da Luta : Tempo Futuro {...}

Além disso, cada encanto deve ser associado a um sujeito, considerado dono do

encanto por possuir a semente ou ter a autorização para trabalhar com ele. Cada um

podendo ainda ter mais de um sujeito em cada aldeia. Abaixo a ordem dos sujeitos

considerados capazes de trabalhar com um encanto.

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138

Culezinha : Edmilson : Tonho Preto : Paulo : D.Jardilina : Antonio : Edmilson :

Pedro : Pelé {...}

Cada encanto também pode se relacionar com o local de origem dele. Até o

momento, ao menos entre os Kalankó, a aldeia de Brejo dos Padres/PE, é o local mais

marcante.

Pankararu : Kalankó : Geripankó : Karuazu : Koyupanká : Katokin {...}

O sistema de pensamento nativo atua, portanto, com base em uma lógica de

associação e recorte entre diversas ordens homólogas. Abaixo apresento o sistema

completo e suas diversas ordens associadas, sendo ―peculiar ao pensamento mítico, assim

como ao bricolagem no plano prático, a elaboração de conjuntos, estruturados não

diretamente com outros conjuntos estruturados, mas utilizando resíduos e fragmentos de

fatos‖ (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]: 37).

Este sistema pode ainda – em teoria – se estender indefinidamente. Note-se que se

o foco nas associações apresentadas foi junto à ordem dos encantados, poderia ter sido

com qualquer outra. Desta forma, estabelecendo-se associações entre a culinária e o

sujeito ou entre a aldeia e o tempo, por exemplo.

Cinta vermelha : Beija –flor : , Mestre Jardim : Juazeiro Verde : Umbuzinho :

Muderno : Capiazinho : Mestre Andorinha : Capitão Dandaduré : Carro Branco : Juazeiro

Verde : Lambuzinho : Sereno : Mestre Gavião : Jaburitiba : Capitão Fernando : Mestre

Lavandeira : Mestre Serra Branca : seu Antonio : Manoel Bravo {...}

::

Umbuzada : arroz doce : carne : mel selvagem {...}

::

Carneiro : peru : pássaro do mato {...}

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139

::

imburana de cheiro : raiz do alecrim de vaqueiro : semente da melancia:

vassourinha de botão : flor da catingueira : andu branco ; a raiz do poi : cabeça de frade :

maracujá de estrada: ameixeira : {...}

::

Cruz : círculo : linha : retângulo{...}

::

Dono de batalhão : capitão : mestre :caboclo {...}

::

Toré : praiá : serviço de chão {...}

::

Tempo dos Antepassados : tempo da luta : tempo futuro {...}

::

Culezinha : Edmilson : Tonho Preto : Paulo : D.Jardilina : Antonio : Edmilson :

Pedro : Pelé {...}

{...}

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140

Tal sistema indica em primeiro lugar que o pensamento Kalankó possui uma

grande e complexa ambição simbólica. Em seguida, deixa claro que esta ambição

simbólica está localizada no plano do concreto, já que utiliza elementos heteróclitos da

vida cotidiana indígena. Isto aponta para ―o fato da ligação [ser] mais essencial que a

natureza destas ligações (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]: 82, grifo meu).

Na análise da ciência Kalankó, fica claro também que ―as sociedades que

chamamos primitivas não concebem que possa existir um fosso entre os diversos níveis

de classificação, elas o representam como etapas ou momentos de uma transição

contínua‖ (Ibid: 158). Este universo sendo fortemente marcado pela criatividade.

O caráter associativo da ciência indígena passa, portanto, por diversas ordens,

estabelecendo uma função chave para a ciência do índio, ―a partir daí elabora-se uma

complexa gramática por meio de um sistema de correspondências com domínios mais

concretos ou mais abstratos, mas no interior dos quais o esquema inicial, agindo como

catalisador, desencadeia a vitalização de outros esquemas binários, ternários, quaternários

ou de ordem numérica mais elevada‖ (Ibid: 164).

O recorte é realizado a partir dos esquemas delimitados. Podendo-se, portanto,

estabelecer relações entre quantos elementos se quiser e entre quaisquer ordens

estabelecidas.

Assim, a função abaixo representa – no pensamento indígena – os termos

essenciais para a realização da experiência/trabalho.

Esta função chave estabelece um metacircuito de associação e recorte que se

relaciona à manipulação de energia encantada e abrange todas as aldeias do sertão

nordestino, operando através de termos que possuem sua ―sistematização no plano dos

dados sensíveis‖ (Ibid: 25). Neste sentido este saber indígena estabelece a consiliência60

,

60 Isto em oposição à resiliência da ciência newtoniana, que separa e fragmenta os sujeitos e os

conhecimentos.

objetos:índios:aldeias:encantos:cantos:energia:natureza

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141

ou seja, o entrelaçamento entre diversos domínios culturais ou ordens, já que ―esta

exigência de ordem constitui a base do pensamento primitivo, mas unicamente pelo fato

de que constitui a base de todo pensamento‖ (Ibidem).

Além disso, deve-se destacar que para os Kalankó todos os elementos envolvidos

no sistema da energia encantada, tornam-se vivos e que, ao produzir elementos vivos,

constituem-se elementos híbridos, que não pertencem nem à ordem natural nem à

cultural. Isto por ―não deixar escapar nenhum ser, objeto ou aspecto, a fim de lhe

assegurar um lugar no interior de uma classe (Ibidem)61

.

Desta forma, ao produzir energia encantada os Kalankó produzem vida e se

produzem vida, produzem de certa forma novos sujeitos e novos pontos de vista.

A questão do ponto de vista tem sido cada vez mais debatida e aprofundada na

literatura etnológica. O trabalho de Viveiros de Castro (2002) mostra muito bem como na

cosmovisão indígena, com foco nas etnografias amazônicas, há um grande jogo de

perspectivas. Dependendo de onde está o ponto de vista, enxerga-se um universo

diferente ou coloca-se no universo de uma forma distinta.

Neste cenário, a humanidade é sempre o ponto de vista preponderante e, a partir

dela, os corpos variam de forma. Um humano, do seu ponto de vista – humano – enxerga

o porco do mato como tal, mas o porco do mato, do seu ponto de vista – humano –

enxerga o humano como uma presa62

.

Entre os Kalankó, quem participa do trabalho que materializa a energia

encantada no terreiro é vivo e deve, portanto, ter agência, intencionalidade e ponto de

vista63

.

Nestes casos, este sujeito pode ser um campiô, um canto ou, principalmente, um

encanto. Este último pode inclusive assumir a perspectiva do índio, estabelecendo-se na

terra e tendo o poder de transformação, que pode curar, aconselhar ou matar.

61 É o que acontece com os elementos da falsa modernidade, analisada por Latour (1994). O autor

evidencia um continuum que vai da natureza à cultura. Se os elementos da modernidade estão quase sempre

posicionados no espectro central do continuum, o sentido que se dá a eles está sempre em um ou outro

pólo, apontando para a modernidade falsamente ligada ao pólo cultural que controlaria a natureza. 62 O encontro mais perigoso neste universo é com o jaguar, que quer convencer o humano de que o ponto

de vista humano está com ele e que o humano não possui tal humanidade (VIVEIROS DE CASTRO,

2002).

63 A questão do ponto de vista e das perspectivas no universo Kalankó é aqui apenas apresentada, devendo

a mesma, ser mais bem trabalhada em outros estudos, pois parece apontar para certa relevância no universo

em questão.

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Tal mudança de perspectiva é clara em alguns torés, como por exemplo,

Abre-te porta janela

que é por ela, eu quero entrar X2

eu vou avisita

a mesa do ájuca X2

As duas células deste toré são repetidas intermitentemente, estabelecendo um

continuum de ponto e contraponto, num movimento de subida e descida do tom. A

perspectiva do cantador é a do encantado, que pede uma passagem para poder assumir a

perspectiva do sujeito e interferir na terra – lugar do índio. O que fica claro quando se

usam os verbos abrir e entrar, referindo-se a uma casa ou a um corpo.

Desta forma, quem canta assume a perspectiva do encanto, estabelecendo tal

entidade na terra e assumindo poderes especiais. Em certos momentos o corpo do

cantador pode assumir a energia encantada e o encanto fala pelo cantador.

O ponto de vista e a agência de um sujeito estão, portanto, diretamente

relacionados ao acolhimento da energia encantada. O termo acolher na comunidade

aponta para a ação de aceitar, respeitar e se abrir para algum elemento exterior. A

subjetividade encantada assumindo então o corpo do sujeito índio.

Lá, ainda, para que tais elementos permaneçam vivos, eles devem ter um

tratamento especial. O mundo Kalankó é cheio de obrigações e responsabilidades.

Existem vários tipos de obrigações, que são ligadas ao encruzamento e a defumação do

elemento.

O maracá, por exemplo, encruza-se de dois em dois dias. A veste de praiá, todo

dia. A semente encantada, que representa materialmente o próprio encanto, também deve

ser zelada. O corpo é outro espaço para obrigações como será trabalhado no capítulo 6.

Tonho Preto me disse que deve sempre, ao acordar, fazer o sinal da cruz. Este

sinal deve ser repetido quando for para cama, dormir. Ele deve, também, fumar o campiô

diariamente e encruzá-lo duas vezes ao dia.

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143

O ciclo anual, também tem suas obrigações. O Ritual do Umbu, no sábado de

aleluia, é uma obrigação, diferente do rito de 25 de julho, realizado em celebração ao dia

que ―reapareceram‖ para a sociedade. Este ainda não virou tradição e por isso é

classificado como não-vivo.

Há, portanto, uma série de obrigações que configuram um processo de

transformação dos objetos e corpos, que só assim conseguem acolher a energia

encantada.

Deste sistema de pensamento pode-se concluir que o poder de transformação, para

os Kalankó, está localizado no plano da ciência indígena, que é fortemente marcada pela

criatividade. Além disso, o processo de preparação dos corpos é fundamental para a

realização da experiência.

Neste processo, criam-se imagens que transcendem a condição local e posicionam

os sujeitos do grupo numa situação ideal.

A ciência Kalankó é, portanto, poética, mostrando ―que o saber teórico não é

incompatível com o sentimento, que o conhecimento pode ser objetivo e subjetivo ao

mesmo tempo, enfim que as relações concretas entre o homem e os seres vivos colorem

às vezes com matizes afetivos‖ (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]: 54).

Para os Kalankó, os recursos e os elementos são finitos e só uma ação ligada à

lógica de associação e recorte é realmente capaz de transformar a vida na região. Isto

ocorre porque o ―universo instrumental é fechado, a regra de seu jogo é arranjar-se com

os ―meios-limite‖, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante

heteróclitos‖ (Ibid: 33).

A solução na aldeia é, então, dar vida a estes objetos. Seu Edmilson me contou em

uma de nossas conversas em 2005 que a semente de Santina fugiu, implicando ao objeto

agência e intencionalidade. Segundo ele, ―aquela semente que ela tinha fugiu... é...

quando tava perto de Deus leva... aí a semente fugiu... aí a semente fugiu‖.

A puxada64

representa o balanço do maracá – vivo –, a partir da pulsação

intermitente do instrumento. Este procedimento determina o andamento do canto e dá a

dinâmica da vida na aldeia. Seja na produção de primos e parentes, seja na elaboração de

64 Note-se que a valorização da puxada como elemento da música nativa e do maracá, para além da

performance musical, também aparece nos estudos de Pereira (2004) sobre os Kapinawá/PE.

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esquemas simbólicos. Quanto mais rápido o andamento da puxada, maior a intensidade

da vida.

A vida na aldeia Kalankó segue a puxada do maracá. Vivo.

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145

Capítulo 5

Variações – modos de circulação dos signos

Desde a primeira vez em que estive entre os Kalankó, participei de diversos

momentos musicais na comunidade. Todos eles ficaram marcados na minha memória e

guiaram meu olhar nas outras vezes que fui à aldeia (HERBETTA, 2006). Isto não

aconteceu por acaso. A música é um domínio essencial e marcante para todos os grupos

indígenas do sertão nordestino65

. Ela, de certa forma, faz com que os termos e relações

evidenciados ao longo da tese – classificados como relevantes ao sistema de

representação em análise – circulem por entre os sujeito, grupos e espaços.

Esta música criada, permutada e reproduzida nas diversas aldeias da região tem

ainda relação direta com o que aconteceu no aldeamento missionário de Brejo dos

Padres/PE, no século XIX. Desde lá, ela era identificada pelos missionários como

elemento principal na negociação cultural com os indígenas, agindo como tradutora e

65 Note-se que o termo música, entre os Kalankó, serve para designar o que é produzido pelo não-índio.

Os termos Kalankó equivalentes são canto, toante ou linha, apontando para o que é produzido pelo índio

(HERBETTA, 2006).

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146

dando novo sentido aos dois universos simbólicos distintos – dos missionários e dos

indígenas (POMPA, 2002). Desta forma, ela está relacionada à nascença do grupo,

identificada no capítulo 2.

A partir da década de 1930, a mesma música tornou-se um dos sinais de

diferenciação étnica eleitos pelo estado brasileiro como indicador de indianidade, o que

fica claro, por exemplo, no trabalho de Dâmaso (1935), que mostra como o toré foi

fundamental nos processos de territorialização da região. Neste sentido, a música foi

essencial para o Tempo dos Antepassados e para o Tempo da Luta, evidenciados no

capítulo 1.

Nestes processos, o toré foi constantemente utilizado como forma de

comunicação e diferenciação com relação à sociedade nacional, produzindo significados

sociais específicos e servindo como base de determinados processos sociais. No caso aqui

tratado, dos processos de etnogênese.

Nas palavras de Shepherd (1991), a música pode alterar o ―status quo‖ social,

constituindo um meio de expressão e comunicação que liga diretamente o sujeito ao

grupo social e à sociedade inclusiva. Se a música ocidental permite ao sujeito sentir a sua

ocidentalidade, tanto quanto conhecê-la, então a música indígena permite ao índio sentir

sua indianidade, tanto quanto compreendê-la.

Ao mesmo tempo esta música tem um papel importante como elemento

constituidor das relações sociais e políticas entre os grupos indígenas sertanejos. Estes

grupos trocam músicas para fortalecer alianças, como por exemplo, quando os Kalankó

incorporaram novas famílias, de Santa Cruz do Deserto/AL, por, entre outras coisas,

conhecerem um determinado repertório musical.

Isto ocorreu em 2002, quando seu Francisco, descendente da família Higino e

morador do município citado procurou o pajé Tonho Preto negociando a inserção de

algumas famílias no grupo Kalankó – todas descendentes dos Higino. Seu pedido foi

prontamente aceito com base na linha de descendência e no conhecimento do toré,

aumentando o escopo da grande família, analisada no capítulo 4.

Trocar músicas, por outro lado, pode também dividir determinados grupos, como

ocorreu com os Kambiwá/PE, que em 1998 passaram por um processo de

segmentação que teve como base de argumentação o embate entre dois repertórios

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musicais específicos, cada qual representando um grupo. Isto gerou o surgimento dos

Pipipã/PE, mais identificados com um tipo de música presente nos rituais do praiá

(BARBOSA, 2003).

Diante da importância da música, brevemente exposta, sempre conversei muito

com alguns interlocutores mais próximos sobre o tema em questão, buscando

compreender a musicalidade Kalankó e seus diversos nexos.

Culezinha, em uma ocasião, me disse que há três modos diferentes de cantar uma

mesma base, chamada de a idioma (HERBETTA, 2006). Esta afirmação é bastante rica,

pois trás alguns elementos importantes para a compreensão da música para ele.

Em primeiro lugar, Culezinha estava se referindo aos três gêneros musicais

presentes na aldeia – o toré, o praiá e o serviço de chão. Em segundo lugar, ele destacou

o caráter interrelacional dos três gêneros, dando uma ideia de sistema musical. Em

seguida, ele nomeou este sistema, a idioma. Neste sentido, ele dá o valor de linguagem à

música.

O termo idioma aponta para o fato de que o conjunto dos gêneros musicais

nativos representa para eles uma linguagem e, portanto, uma forma de comunicação. O

artigo definido na frente do nome implica a importância da linguagem – a linguagem,

sendo assim o modo de comunicação mais importante inter e intraaldeia.

Desta forma, a expressão a idioma é usada, muitas vezes, como sinônimo de a

língua materna. Esta última, segundo os Kalankó, apenas presente entre os Fulni-ô. Sendo

assim, me parece que o artigo ―a‖ de a idioma é apropriado diretamente do artigo ―a‖ de a

língua materna, apontando concretamente para o sentido do termo. Se os Kalankó sentem

não possuir a língua materna, fortalecem-se como sujeitos, reafirmando a idioma. Esta se

relacionando com a ideia de tradição, tão cara às pessoas na aldeia em questão, conforme

evidenciado no capítulo 1.

Além disso, supre-se a falta da língua materna, elemento muito valorizado quando

se pensa na percepção do que é ser índio no Brasil.

Tonho Preto me disse em outra ocasião que outros povos indígenas sertanejos

possuem gêneros musicais afins, como os Tremembé/CE, os Kiriri/BA, os Tuxá/BA e os

Pankararé/BA. Segundo o pajé isto significa que eles têm idiomas paralelos, que se

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constituem por pequenas diferenças na música e na dança. Tais idiomas podem ser

entendidos como dialetos que possibilitam a comunicação na região.

Em Herbetta (2006) trabalhei sobre esta teoria nativa de música66

. Neste estudo

tentei apreender a constituição desta idioma, a partir de uma perspectiva interrelacional

aos outros gêneros voco-sonoros da comunidade e à performance musical presente no

rito. Isto do ponto de vista Kalankó. A natureza da performance ritual entre esses índios é

musical, daí o relevante conceito de ritual musical, com a música constituindo a chave da

performance, desencadeando-a (BASSO, 1985; 1987).

Além disso, busquei perceber a importância dela nas diversas relações

estabelecidas pelos Kalankó. Entre os sujeitos do grupo; entre os grupos indígenas da

região; em relação aos grupos indígenas do Brasil; entre os Kalankó e a população

sertaneja e entre o grupo e o Estado brasileiro.

No presente texto busco entender a importância da idioma para os sujeitos do

grupo, a partir das homologias existentes entre a forma musical e alguns temas centrais

para o entendimento de mundo nativo, evidenciados ao longo da tese, o que aponta para o

caráter tradutor da música em questão, conforme demonstrarei ao longo do capítulo.

Este caráter é evidenciado em outras áreas, bem diferentes e afastadas umas das

outras. Menezes Bastos (1999 [1976]), o observa entre os xinguanos Kamayurá. Smith

(1977) na Amazônia peruana, entre os Amuesha. Segundo este ultimo autor, a música

atua como o centro integrador dos discursos, sendo o lugar centrípeto para onde

convergem os discursos visuais, olfativos e de outros canais. A partir daí, esse lugar passa

a ser centrífugo, recompondo a diversidade discursiva ritual.

Neste sentido, o caso Kalankó estabelece a música como um sistema pivot que

intermedeia, no rito, os universos das artes verbais (mito, poesia) em relação àqueles das

66 Neste trabalho, procurei descrever a teoria musical Kalankó. Uma teoria musical, de acordo com

Menezes Bastos (1999 [1976]), compreende um sistema de identificação, nomenclatura e classificação dos

elementos que constituem um universo musical. Trabalhei de acordo com o campo de estudos da

etnomusicologia, baseando-me em algumas obras surgidas em fins da década de 1970. Estas obras

trouxeram uma nova postura para a disciplina, identificada com a busca da explicitação do ponto de vista

nativo (MENEZES BASTOS (1999[1976]); ZEMP, 1978). O primeiro produziu, ainda, um modelo de

etnografia da música a partir de um suporte teórico-metodológico inovador, o qual influenciou todo o

desenvolvimento do campo de estudos da etnomusicologia (SEEGER, 1987).

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expressões plástico-visuais (grafismo, pintura corporal e outras) e coreológicas (dança

teatro) (HERBETTA, 2006)67

.

Uso como ferramenta para esta análise a transcrição68

musical de um repertório

relevante de cantos Kalankó. Este repertório não corresponde à totalidade dos cantos

registrados ao longo do trabalho de campo, mas representa uma amostra importante tanto

em termos qualitativos quanto quantitativos.

Qualitativos, pois os cantos analisados são os mais reproduzidos na comunidade,

apontando para características constituintes da musicalidade nativa. Quantitativo, pois

abrange cerca de 90% dos torés cantados na aldeia; muitos dos mais relevantes serviços

de chão e os praiás cantados por Tonho Preto, considerados especialmente poderosos,

pois o pajé é considerado o melhor cantador.

O objetivo desta análise69

não é encerrar o assunto, a partir de um estudo extenso

sobre as partituras, como se elas dissessem tudo sobre a musicalidade Kalankó, mas, sim,

apontar algumas características marcantes da música em tela, as quais se relacionam a

alguns outros domínios culturais trabalhados ao longo do texto. Considera-se que ―as

transcrições nunca devem ser um fim em si mesmas, mas sim uma ferramenta para

levantar questões‖ (SEEGER, 1987: 102).

67 Segundo Menezes Bastos (1999 [1976]) o caso Kamayurá é similar. Neste caso, a música é um sistema

pivot que intermedeia, no rito, os universos das artes verbais (mito, poesia) em relação àqueles das

expressões plástico-visuais (grafismo, pintura corporal e outras) e coreológicas (dança, teatro). Os trabalhos

de Basso (1985, 1987), sobre os xinguanos de língua Caribe, Kalapálo, corroboram os dois já citados. De

acordo com a autora, a natureza da performance ritual entre esses índios é musical, daí o conceito de ritual

musical. As investigações de Gebhart-Sayer (1986), sobre os Shipibo-Conibo, desenvolvem o papel da

música como tradutora. Neste caso, há uma relação de tradução entre a música e os desenhos visuais. As

canções são a tradução sonora de motivos pictóricos.

68 Segue-se aqui um modelo de análise próprio, baseado aqui e ali em Schoenberg (1967). Apesar disso,

reconhece-se outro modelo de análise de transcrições musicais, elaborado por Menezes Bastos (1999

[1976]) e Piedade (2004). Apenas como comparação, neste outro modelo busca-se economizar espaço,

utilizando-se transcrições reduzidas, que pretendem portar as informações principais, essencialidade que só

pode ser encontrada através das pistas abertas pelo discurso musical nativo. Neste sentido, este modelo

toma o motivo como unidade mínima do estrato sintático (LIDOV, 1975). Segundo a análise de Piedade, a

ideia de motivo, na sua minimalidade, não pressupõe uma economia de movimentação melódica, como é o

caso na teoria tradicional (SCHOENBERG, 1967), mas é dada pela sua colocação na estrutura da música e

pelo seu desenvolvimento no interior da peça. Não sigo o modelo em questão por falta de capacidade e

tempo.

69 As transcrições apresentadas aqui fazem parte de um conjunto maior transcrito pelo músico e

compositor André Ribeiro. Este repertório é parte ainda de um estudo maior ainda em desenvolvimento.

Por isso, a análise decorrente deles trata ainda de alguns apontamentos. Neste sentido, tais pontos serão

mais bem aprofundados no futuro. Eles são assim pistas de uma complexa teoria musical Kalankó.

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TORÉ

O toré é um gênero chave neste sistema musical. A voz é o elemento fundamental

e a pisada o complementar (HERBETTA, 2006). Um bom cantador de toré é aquele que

puxa a roda70

por muito tempo e conhece um bom repertório de cantos. Estes são

baseados numa estrutura ―pergunta-resposta‖, na qual o cantador canta dois versos e os

participantes respondem com mais dois, além de algumas variações. O canto termina com

um grito, denominado isturro71

. Ele é emitido pelo cantador e depois repetido pelos

participantes72

.

Quando se analisa a música do toré, através da transcrição, é marcante a

aproximação dela com a tradição europeia, especialmente apropriada através do contato

com os missionários. Isto pode ser facilmente percebido em seu gestual, que se aproxima

dos cantos de louvor e de lamentação. Este processo ocorre obviamente de forma

aproximada, a partir de um processo de apropriação e reelaboração.

Algumas características observadas nos cantos apontam para isso. A sílaba tônica,

por exemplo, está sempre no tempo fraco e, além disso, o canto sempre finaliza embaixo.

Estas relações podem ser vistas no canto abaixo, ―Olha aquela mata‖. Este toré foi

registrado no rito de mesmo nome realizado no terreiro de Lageiro do Couro, em julho de

2003. O cantador é Culezinha e o canto se estende por aproximadamente 12 minutos.

70 A expressão puxar a roda aponta para a ação de cantar e dar a dinâmica ao rito do toré. Para um

aprofundamento no sistema terminológico Kalankó, ver Herbetta (2006).

71 O isturro é o grito que o cantador e/ou os dançadores emitem no meio de uma execução musical e serve

para marcar momentos importantes da peça. Quando é um só, o isturro marca o fim e o começo de uma

peça, seja ela de qualquer gênero. O cantador só para de cantar quando ouvir este grito. Neste caso, o

isturro é aquilo que Menezes Bastos (1999 [1976]) chama de vinheta, espécie de afixo marcador de início e

começo de peça ou seqüência de peças musicais. O isturro pode marcar também o momento do cantador

aumentar a voz, o que acontece no praiá, quando os dançadores emitem três gritos.

72 A terceira marca da música na região, identificada por (MENEZES BASTOS, 1999 [1976]) – a

estrutura núcleo-periferia – caracteriza os tipos de relação existente entre os sujeitos e grupos de

executantes formadores dos conjuntos musical-coreográficos. Esta característica não é puramente musical,

sendo ligada à dança. A estrutura núcleo-periferia constitui-se da relação – em sucessão e/ou

simultaneidade – entre o núcleo e a periferia. O primeiro é ocupado por um ou uma solista e seus ajudantes

e aprendizes, o segundo pelos demais executants (Idem).

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O pulso é binário, sendo fundado no gesto vocal, composto essencialmente por

ataque e desinência. O fraseado melódico se desenvolve a partir de intervalos de quarta e

quintas justas. O coro ainda não responde, esperando Culezinha repetir as duas primeiras

frases.

O canto segue através da repetição das frases acima apresentadas, o coro

repetindo a segunda parte da frase. Em seguida, o cantador apresenta outra frase e o coro

segue repetindo a segunda parte. Desta vez a letra é composta por sílabas sem um

aparente conteúdo semântico. Esta forma é típica do canto de praiá. O toré segue com

esta fórmula até o final, terminando com base na mesma estrutura. Observa-se maior uso

de sustenidos.

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No canto abaixo, ―Abre-te porta e janela‖ observam-se reminiscências da

linguagem tonal. Ele parece um puzzle, no qual se misturam motivos clássicos e

populares. Desta forma, sendo cheio de cromatismo e ornamentação.

Cada escala executa um jogo melódico bem articulado com o texto, constituindo

uma estrutura bem trabalhada de modo a formar sonoridades que lembram o modo lócrio

(modo eclesiástico). O arpejo é diferente do normal.

Além disso, o eixo sonoro parece brincar por sobre o centro tonal.

A estrutura, em sua divisão, segue uma lógica binária do tipo A-B com repetição

do A, sendo que no segundo A, a preocupação consiste em voltar ao começo. O cantador

atua no tetracorde superior e a resposta do coro acontece no tetracorde de baixo.

Este canto me foi apresentado por D. Jardilina em uma conversa que tivemos em

sua casa em Lageiro do Couro, em 2005. D. Jardilina me disse que se trata de um toré,

mas que pode ser usado no serviço de chão, por se tratar de um canto pesado

(HERBETTA, 2006).

Esta classificação tem relação com o fato de que é um toré criado em Brejo dos

Padres/PE, percebida como matriz cultural dos povos indígenas da região. E que já existe

lá há muito tempo. Ele foi, por exemplo, registrado pela Missão de Pesquisas Folclóricas

de 1938.

Eu só observei o uso deste canto entre os Kalankó em serviços de chão, nunca

sendo usado em torés.

O canto aqui transcrito não foi coletado, portanto, em uma performance própria

do rito, mas foi cantado apenas pela cantadora citada. O canto tendo a duração de

aproximadamente 3 minutos.

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A primeira frase do canto – como pode ser notado – aponta para dois movimentos

ascendentes, apontando para característica importante da direcionalidade dos cantos de

toré. Isto pode ser observado na tríade tonal em SOL maior e na fórmula cadencial,

características da frase.

Na segunda frase pode-se notar uma troca no eixo modal em torno do SI, o que

aponta para uma reminiscência do modo lócrio. Desta forma na primeira semifrase há

uma oscilação – ora ascendente ora descendente em torno de um centro tonal. O contorno

melódico sendo pequeno.

Além disso, a oscilação permanece e a frase termina em direção ascendente. Isto

ocorre a partir de um movimento em tríade tonal de FÁ#diminuto.

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Este movimento ascendente e descendente é confirmado nas frases seguintes que

continuam apontando para reminiscências do modo de SI lócrio, evidenciando novamente

uma direcionalidade particular, presente nos cantos de toré. É interessante notar a

pequena variação intervalar, o que forma linhas regulares, representadas por trajetos

lineares.

As frases mantêm-se ao longo do canto localizadas em um plano baixo da

partitura, o que representa a extensão vocal predominante deste toré.

As linhas melódicas continuam baixando até o final do canto.

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No canto ―Acõa fez o ninho‘ – abaixo – é interessante notar a abertura em quarta,

que depois escorrega para uma terça revelando a sonoridade de uma tríade maior.

Este toré foi registrado no rito de mesmo nome executado em Lageiro do Couro,

na casa de Pedrinho, num sábado de 2007. A participação da população foi considerável,

o evento contou com praticamente todo mundo que vive nesta localidade.

Este toré foi cantado por Tonho Preto e se estendeu por aproximadamente 8

minutos. A repetição é a base da extensão do canto. Nele, na terceira frase organiza-se

um motivo que vai ser repetido até o final.

Nota-se uma diferença no canto de mulheres e homens, que cantam

respectivamente em quinta e quarta abaixo em relação ao cantador. Mas nunca em

uníssono, o que constitui um contraponto homofônico.

A primeira frase é repetida duas vezes pelo cantador. Em seguida a frase é

composta num plano inferior – em relação à primeira – constituindo a resposta do coro.

A célula rítmica e melódica mantém-se em descendente.

Nota-se também a presença de interpolação, que opera no sentido de uma

colagem no meio de uma linha melódica.

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Em seguida, organiza-se uma frase – como se fosse um refrão – que vai ser

repetida exaustivamente. Esta repetição não é absolutamente semelhante, mas varia

especialmente na interpolação.

A interpolação é marcante, apontando para uma marca da música nativa. O

modelo Kalankó quanto a acentuação ritmica é sempre binário, salvo algumas exceções

de subdivisões ternárias.

É interessante notar que desta forma tais cantos apontam para reminiscências do

canto gregoriano. Mistura-se a ele, assim como a modos populares.

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No canto abaixo, ―Urubu de Serra Negra‖, observa-se que as terminações são

marcadas por intervalos de terça menor descendente, estrutura comumente presente em

cantos populares e marca do toré.

Neste caso, o ritmo aponta para um caráter rítmico africano presente no samba

(Ca3), apontando para influências afro-brasileiras.

O tom do canto vai sendo transposto cada vez mais, o que acontece em conjunto,

ou seja, sempre respeitando o tetracorde.

Este toré foi registrado na Retomada em 2009 e foi cantado por Paulo. Este rito se

estendeu até por volta das 03h00min e o canto em questão teve a duração de

aproximadamente 10 minutos. Este evento contou com participação considerável dos

Kalankó, inclusive, com pessoas de outras localidades. Para os Kalankó, estes eventos

que ocorrem na Retomada devem especialmente contar com a participação intensa da

comunidade. Esta conduta é bastante valorizada, pois para eles, representa a posse da

terra e a união do grupo.

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Na primeira frase acima apresentada percebe-se uma reminiscência – do início –

da escala maior (ou modo Jônio) de FÁ e um movimento em terça menor descendente.

Procedimentos comuns aos cantos de toré. O coro ainda pouco se manifesta, apenas

marcando sua presença.

Na segunda frase – acima – a sonoridade da escala (ou modo Jônio) se mantém.

Assim como a cadência melódica – ascendente e descendente. Usa-se o plano

intermediário da partitura, apontando para a extensão vocal do canto.

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Na terceira frase, forma-se a semifrase que vai ser repetida até o final do canto.

Nesta repetição, o canto é transposto para cima.

Até a finalização do canto que aponta para reminiscências da sonoridade do modo

jônio de SOL.

Este padrão de formulação de uma frase, que vai ser o motivo repetido em diante

é muito comum no toré. No canto ―Mamãe Daruanda‖, abaixo, permeado de terças

menores e maiores, pode-se observar claramente o padrão. Este canto foi registrado no

evento da Retomada acima referido. O cantador é Tonho Preto.

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Na segunda frase, organiza-se um motivo que será repetido ao longo do canto,

constituindo o corpo do mesmo.

Neste canto, o motivo surge na segunda frase. Ele emerge do coro e é repetido até

o final do canto. Sempre em relação ao cantador.

A rítmica brasileira também aparece em outros cantos. Desta forma, pode se

pensar numa influência européia no plano melódico e uma africana no plano rítmico.

Mesmo ainda que de forma bem distante da origem.

No canto ―Papagaio amarelo‖, abaixo, parte-se de uma nota grave.

O pulso é binário e a voz masculina. Quem canta é Paulo. Este toré se realizou em

Lageiro do Couro, no terreiro, em 2003. A participação da população foi grande,

contando-se com pessoas de Januária, Gregório e Gangorra. A duração do canto é de

aproximadamente 15 minutos.

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Na primeira frase nota-se a presença do início da escala maior (ou modo Jônio) de

FÁ. A melodia oscila entre ascendente e descendente, indicando novamente uma

direcionlidade marcante nos cantos de toré.

A frase começa no plano inferior da partitura e termina no plano superior,

organizando um caminho entre os dois pontos eqüidistantes do registro vocal.

Na segunda frase – abaixo – a linha melódica também oscila, mas ela começa

num plano superior e termina em um plano abaixo. A letra parece misturar células que

podem ser cantadas em torés diferentes.

A primeira parte da frase centrando-se no canto do papagaio e a segunda passando

a falar do canto que louva a presença dos caboclos na terra – trechos que podem ser

observados em cantos diferentes. Este procedimento – como falado no capítulo 3 – é

comum de se observar na aldeia e dá origem a uma série nova de cantos.

A estrutura da frase melódica se mantém e a letra tende ao improviso. Neste caso

a letra se apóia no sentido do exagero e de algumas condutas valorizadas na aldeia. Como

será trabalhado no capítulo 8, o exagero é evitado no plano das relações sociais, podendo

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causar perdas ou o desequilíbrio, mas, em oposição, é bastante valorizado no plano

simbólico.

O canto termina com a repetição da frase abaixo, sendo cantada pelo cantador e a

outra, repetida pelo coro.

Esses modos de articular dois cantos diferentes, a partir da interpolação ou colagem

(como já mencionado), podem ser observados no canto ―Tava na pedra fina‖. Nele, isto

acontece pelo reaproveitamento de material melódico, como se pode ver abaixo. Este

procedimento ocorre na segunda parte da frase. Este toré foi cantado por Culezinha, na

casa de D. Joana, em Gangorra. A participação da população foi moderada.

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Outro procedimento usado, o arpejo, é observado no canto ―Vaqueirinho vaqueja o

boi‖. O canto abaixo foi registrado no toré de Januária, em maio de 2005. O cantador é

Edmilson e o canto se estende por aproximadamente 8 minutos. Normalmente quem

canta este toré é seu Edmilson.

Outro procedimento comum ao toré é a transposição. Ele aparece, por exemplo,

no canto ―Lá no alto da serra‖, que tem resolução modal jesuítica. O canto é blocado em

quintas. Nele, os homens e as mulheres cantam sobrepostos criando um falso bordão. O

canto é polifônico – em quintas paralelas, como evidenciado abaixo. O registro foi

realizado em Lageiro do Couro, no centro cultural, em 2007. O cantador é Paulo.

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A transposição é evidenciada novamente no canto abaixo, no qual há transposição –

sobe uma terça.

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Outro procedimento que aproxima os torés de formas católicas é o responsório. Ele

aparece no canto ―Minha aldeia tem caboclo‖, a partir de um excesso de arpejos, já

evidenciado em outros cantos. Responde-se em quinta. Aparecem também alguns

intervalos melódicos novos. O canto abaixo foi registrado em um evento já mencionado,

no centro cultural de Lageiro do Couro, em 2007. O cantador é Paulo.

No canto ―Pisa ligeiro‖. O modo é menor. A estrutura motívica é de frase e

resposta, estrutura marcante do toré. As duas formam o modo menor. Há uma

sobreposição em terças, especialmente no que se refere à voz das mulheres. Este registro

foi realizado em um toré em Lagiero do Couro, em 2003. O canto teve duração de

aproximadamente 7 minutos.

No canto ―Caboclo da Mata‖ há dissonâncias, de forma similar ao que acontece

em ―Abre-te porta‖. Pode-se perceber uma unidade rítmica após o intervalo de oito

tempos. E a cada quatro tempos, tem-se uma pausa. Este registro aconteceu em um toré

na Januária, cantado por Tonho Preto, em 2003. O canto se estendeu por 15 minutos.

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Observa-se o procedimento do empilhamento de quinta, formando uma estrutura

antagônica. Este padrão melódico aponta para mais liberdade. Neste sentido, a forma

indica uma composição que intercala influências européias e indígenas, estabelecendo a

estrutura europeu/índio/europeu.

Há, além disso, outras características marcantes neste toré, como jogadas rítmicas,

acentos fora de lugar, gestos modificados e terminações preservadas, como se pode ver

abaixo.

Depreende-se da análise das partituras do toré que as escalas modais e seus

diversos usos são a matéria prima a ser conjugada na composição da forma musical em

questão. O canto tem um caráter responsorial e binário. Ele se estrutura sobre a relação

entre o cantador e o coro. Ambos usam o mesmo material melódico – na mesma

disposição, O cantador canta uma frase e o coro repete a mesma frase ou fragmentos dela.

Este procedimento aponta para algo comum no gênero – a interpolação. Ela é um

recurso bastente utilizado, ou seja, o cantador ou o coro costuma se apropriar de

fragmentos de uma frase, usando-os em outra frase, o que constitui uma espécie de

colagem.

Ainda com relação ao material melódico, a terça normalmente aparece em posições

estratégicas, ela liga as frases – podendo também ser o ponto de saída.

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Notam-se também alguns procedimentos à composição melódica, como a

profusão de arpejos, a ornamentação, as jogadas rítmicas entre cantador e coro, e também

entre homens e mulheres.

Esta grande quantidade de procedimentos melódicos demonstra que a riqueza

deste gênero está em sua criatividade. O que pode ser evidenciado no uso dos diversos

modos que constituem o canto.

Quando se analisa a música do toré através da transcrição, pode-se marcar a

influência de algumas tradições musicais. Em primeiro lugar, a tradição portuguesa é

fortemente presente em seu gestual, que se aproxima do canto de louvor e das

lamentações, estando próximos da prática ocidental. Este tema foi apontado em outros

estudos sobre a música ameríndia no sertão nordestino. Segundo Albuquerque (2004:

222), os missionários, ao longo do processo de catequização, usaram a música religiosa

europeia, modificada, como elemento de atração e catequese. Ela se tornou, então, base

do processo de criação musical indígena.

Por outro lado percebe-se a presença marcante da tradição afro, especialmente no

que se refere ao ritmo. E, além disso, nota-se a influência ameríndia na estrutura

pergunta-resposta e no caráter mais livre de algumas frases.

PRAIÁ

O canto do praiá é baseado no jogo de sílabas e vogal, sem um aparente conteúdo

semântico, como por exemplo, ae eia heio eio, emitidos por um cantador (HERBETTA,

2006). Se o toré aponta para a miscigenação, o que fica claro a partir de seus fragmentos

melódicos articulados, que possuem uma unidade a partir das reminiscências dos modos

eclesiásticos, igualmente fragmentados, o praiá tem como padrão começar com base na

terça menor, de forma cadencial.

Os ritmos são binários – em alguns casos ternários. Note-se que a subdivisão dos

gestos vocais em motivos binários aponta para uma ritmicidade, igualmente constituída

sobre o dois. O pajé é o maior cantador de praiá entre os Kalankó, podendo ser

substituído em algumas situações por Paulo. A voz de ambos possui grande

complexidade.

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Enquanto no toré os semitons aparecem no contorno melódico, no praiá o

semitom é de uso interno – para fazer movimentação melódica.

A composição é sempre binária. Tal característica pode ser observada em diversos

elementos da música Kalankó, desde nos gestos vocais, nos motivos e frases até na

organização rítmica.

A forma padrão: ABA é constituída por A-mensagem; B-reiteração; A‘-volta para

a estrutura padrão. Neste sentido a volta é uma reiteração da mensagem. Esta reiteração

vem do gesto melódico. Além disso, há sempre respeito à proporção de dois ou quatro

tons. No momento B, a extensão vocal é mais alta, joga-se a voz para cima, o que é

representado pela localização da linha melódica no plano superior da partitura. Todo

movimento é para voltar ao A.

O término do canto às vezes acontece no A às vezes no B.

Destaca-se que a pausa acontece sempre no momento exato. Nem antes nem

depois, o que aponta para a concepção de tempo presente na estrutura dos cantos de toré

já analisada. Esta concepção reforça a ideia de tempo ideal, evidenciada no capítulo 3.

Além disso, exalta-se a noção de espaço, que é preenchido por uma série de

procedimentos, como a ornamentação, o arpejo e a repetição.

A variação mais usada no praiá é a transposição. Os cantos subindo de tom

gradualmente.

A análise abaixo é baseada em doze cantos de praiá registrados em ordem de

apresentação no Ritual do Umbu da semana santa de 2005. Todos cantados por Tonho

Preto – com excesão de P4, cantado por Antonio, pajé Koyupanká. Este ritual foi

realizado no terreiro de Januária e durou do sábado, por volta das 20h00min ao domingo

por volta das 14h00min.

O repertório aqui apresentado não abrange todos os cantos, o que seria

extremamente rico, mas não foi possível por causa da complexidade dos procedimentos

necessários e da falta de um planejamento prévio para tal estudo.

A seqüencialidade é fundamental ao rito. Se não foi possível nesta ocasião

registrar todos os cantos de praiá do mesmo ritual em sua ordem, fica a lacuna para

futuros estudos da música em questão.

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169

A importância da seqüencialidade73

aponta para uma característica marcante da

música na América do Sul. Segundo Menezes Bastos (1999 [1976]), ela marca a

organização musical dos rituais no plano intercancional, constituído pela articulação entre

as respectivas canções (peças instrumentais ou voco-instrumentais) componentes74

.

Os cantos são nomeados aqui P1, P2, P3... Eles representam alguns momentos

marcantes do rito. Todos os cantos têm em média 5 minutos.

P1 representa o primeiro canto, apresentado na noite de sábado, logo após a

entrada dos dançadores mascarados. Neste momento eles estão começando a encruzar o

terreiro, o que significa abri-lo para a energia encantada.

A frase inicial acima é composta de duas semifrases nas quais a melodia oscila em

cadências ascendentes e descendentes, apontando novamente, para certa direcionalidade

característica da música Kalankó. A linha melódica se localiza no plano intermediário da

partitura. Nota-se também o grande uso de sustenido.

73 Segundo Basso (1985) os repertórios musicais Kalápalo organizam-se em sequências de cânticos. Esta

noção foi estudada também em outros grupos, como os Aruaque Kulina do Acre, os Tucano Yepamasa do

Alto Rio Negro, os Aruaque xinguanos Wauja, os Guarani do sul e do centro-oeste brasileiros, os Caribe

Arara do Pará e outros (MENEZES BASTOS, 1996).

74 No caso Kamayurá (MENEZES BASTOS, 1999 [1976]), a sequencialidade assume uma elaboração

extremamente sofisticada.

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170

O padrão apresentado já na primeira frase se repete em seguida, como pode ser

visto acima. As linhas melódicas se desenvolvem no plano intermediário e oscilam em

movimentos ascendentes e descendentes. Ambas as semifrases iniciam mais ao alto e se

movimentam para baixo.

Em seguida – abaixo –, a frase tem início mais ao alto, marcando um movimento

de transposição. Ela mantém o caráter descendente. O coro no caso é representado pelos

dançadores que apenas gritam marcando alguns momentos do canto. Nestes momentos a

intensidade da voz do cantador é mais forte.

Abaixo, a intensidade vocal diminui assim como os cantadores se distanciam no

espaço do terreiro e não marcam a canção. Isto constitui uma oposição na ordem da

intensidade vocal, a qual varia entre muito intensa (+) e pouco intensa (-).

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Esse padrão se repete até o final da canção.

P2 representa ainda o início do rito. Neste canto há uma indicação de que a parte

B, da forma ABA, é de reiteração da mensagem de A.

O procedimento padrão é pegar o material melódico de A e transpô-lo. Sempre

com respeito à estrutura. Isto ocorre de forma assimétrica. Na parte B o tom vai subindo

respeitando graus de escala. Note-se que as reiterações nunca são repetições literais.

Sempre há um A‘ ou B‘.

Observa-se também a presença freqüente de saltos intervalares de 5º diminuta

como procedimento comum aos cantos de praiá. Isto acontece no caso aqui tratado a

partir de dois saltos intervalares sucessivos de terça menor na mesma direção. Este

movimento é similar ao observado no canto de toré ―Abre-te porta‖. No caso aqui

apresentado, constrói-se a melodia em cima do tritono.

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A estrutura é binária.

Em P2, pode-se também perceber outro procedimento bastante usado no praiá, o

uso da terça menor como emenda ou terminação nas frases, que em essência, resume o

caráter binário das concepções melódicas fundadas no gesto vocal da prática musical

Kalankó, como pode ser visto abaixo.

Além do exposto, é importante observar a transposição, que acontece também em

outros cantos. Ela compõe um movimento sempre ascendente. Aqui ele tem início na

segunda semifrase, abaixo. O canto inteiro segue subindo.

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Nos momentos marcados abaixo (B, C) segue o processo de transposição, o qual é

uma reiteração em relação à mensagem de A.

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Em P3 observa-se uma subdivisão rítmica ternária. Este canto continua sendo

apresentado pelo pajé e aconteceu já no final da primeira noite, por volta das 02h00min.

Note-se que intensidade vocal é baixa.

A interpolação aparece como um procedimento comum à estrutura do canto.

Note-se ainda que a interpolação aponta para uma colagem, procedimento comum na

estrutura musical em tela – como já comentado.

P4 marca a forma padrão do praiá. Ela é baseada em A como refrão e B como

reiteração melódica de A.

Este canto foi apresentado na parte final do primeiro dia de rito, no sábado de

aleluia, e é cantado por Antonio, o pajé Koyupanká. Esta situação indica que cantadores

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175

de outras etnias podem dominar a idioma Kalankó e participar de seus ritos. Note-se que,

para isso, deve-se sempre pertencer a noção de parente.

Neste praiá, observam-se outros procedimentos comuns ao gênero, como as

tríades diminutas, as cadências de terça e o uso de semitom no interior da frase. Isto

indica que o pajé Koyupanká tem grande domínio da musicalidade em tela.

O momento acima representa o que os Kalankó chamam de parelha. Aí, o

cantador interrompe a linha melódica e os participantes compõem uma nota repetida em

andamento rápido.

O canto segue a forma ABA até o final. Ele dura aproximadamente 7 minutos.

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A transposição como variação fica mais clara em P7 – similar a P5. A

transposição se dá na parte A, principalmente. Há também uma intercalação entre uma

frase (a) e um motivo curto (b) descendente de duas notas – sendo bem pontilhado. Este

canto – abaixo – foi apresentado no início do domingo.

Neste canto, pode se observar a manutenção de cadencia de terça, a qual constitui

um procedimento padrão dos praiás.

P8, de pulso ternário, evidencia transposição. A subida se dá passo a passo. Sobe-

se o tom de forma assimétrica, estabelecendo um caminho ascendente em direção ao

plano superior da partitura.

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Esta variação pode ser comparada a alguns momentos analisados na estrutura dos

cantos de toré, evidenciados no capítulo 3, nas quais se busca conjugar o espaço – plano

superior –, à terra, plano inferior.

Além disso, em P8, da mesma forma que em P2, a mensagem é reiterada em B. A

estrutura é próxima do modo maior.

Este canto foi apresentado ainda na parte inicial do domingo e foi cantado por

Tonho Preto. Neste momento, os dançadores realizavam movimentos coreográficos

circulares, no sentido anti-horário, usando a totalidade do terreiro.

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P 12 – abaixo – cantado por Tonho Preto no final do rito, domingo, no momento

de fechamento do terreiro, aponta para o fato de que a nota central sempre tende a

repousar no tom inicial. Desta forma, se o canto começa em terça menor, então deve

assim terminar, constituindo modos polares. Não há um centro especificamente. Esta

forma é similar ao canto gregoriano. Sempre o tom inicial é mais importante que o final.

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Além disso, pode-se perceber que a dinâmica acontece a partir de contração e

expansão, sistematizadas em três estágios – expansão, contração, expansão. Os semitons

em sequência apontam para cromatismo interno, como evidenciado abaixo.

Depreendem-se da análise das partituras do praiá algumas marcas da musicalidade

em tela.

O praiá apresenta uma estrutura melódica mais rica e consistente do que o toré.

Normalmente os cantos se iniciam com a terça menor, apontando para um efeito

cadencial. É também típico do praiá a binariedado do gesto vocal.

Observam-se ainda variações de planos no registro vocal. Desta forma, explora-se a

extensão do registro vocal, constituindo melodias sensuais. Apesar da divisão acima

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realizada entre partes ABA, possível, o praiá tende a apresentar algo mais próximo de um

passeio melódico, através de gestos diferenciados, sobre a nota central. Isto acontece pela

falta de contraste no material melódico.

As interpolações também são comuns.

Os ritmos variam de binário para ternário, especialmente o primeiro.

Diferentemente do toré, no qual os semitons aparecem como contorno melódico, no

praiá eles são parte estruturante do canto. Os semitons, neste sentido, dão a dinâmica

melódica, como evidencia P1.

Destaca-se como variação, o processo de transposição, que pode ser observado

em todos os cantos. Nele, a linha melódica é transposta em conjunto.

SERVIÇO DE CHÃO

O serviço de chão pode ser cantado a partir de sílabas aparentemente sem

conteúdo semântico – como o praiá; e também a partir de letras cantadas em português –

como o toré (HERBETTA, 2006). Ele pode ser cantado por homens e mulheres. Na

aldeia Kalankó, entre as mulheres, D. Jardilina se destaca. Entre os homens, seu

Edmilson e Tonho Preto são especialmente reconhecidos.

Os cantos possuem alta curvatura e diversos planos melódicos, o que dá um

colorido especial à estrutura.

As frases são sempre emendadas – ascendente ou descendente – ligadas ao gesto

vocal.

A lógica é binária – há sempre um ataque e desprendimento sobre um intervalo de

terça. O que acontece não só nos motivos micro, mas na estrutura das frases. Os

cantos de serviço de chão aqui apresentados foram registrados no rito de mesmo nome

realizado na casa de D. Jardilina em 2007. Este rito era dedicado à cura de Seu Zé, um

dos anciãos da comunidade. Segundo os Kalankó, o problema era de ―desarranjo mental‖.

O ritual se estendeu por quase toda madrugada.

Os cantos analisados não representam a totalidade do evento, mas servem como

amostra representativa da musicalidade de tal gênero musical. Eles estão nomeados de

SC1 á SC9 e são dispostos em ordem, do início do rito ao final.

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Em SC1, percebe-se a mesma lógica binária anteriormente tratada. Há sempre um

ataque e uma distenção. Este procedimento já havia ficado claro no praiá e é comumente

usado no serviço de chão.

Ao mesmo tempo a estrutura aproxima-se da católica – na frase um, a melodia

parece uma ladainha barroca.

Além disso, pode-se observar um portamento de terça menor e um portamento de

quarta justa.

Na segunda frase o canto compõe-se de terças menores intercalados, como se

pode observar. Observa-se boa quantidade de sustenidos.

Em seguida, na mesma frase, observa-se o uso de três planos sonoros e cadência.

A linha melódica se colocando em descendência.

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Este uso do espaço é importante de ser notado. Ele aparece nos três gêneros

musicais da comunidade, talvez de forma mais clara no serviço de chão. Isto aponta para

uma percepção espacial da música, sendo presente também em outros domínios culturais,

como apontado no capítulo 3.

O padrão se repete ao longo deste canto. A melodia abrange o plano inferior da

partitura e se movimenta em linha descendente.

Na parte final do canto, a melodia em primeiro lugar se movimenta para cima e no

final termina embaixo, como as frases acima apresentadas.

Em SC3, cantado ainda na primeira parte do rito – antes da presença dos

encantados – o pajé canta compondo uma frase melódica em modo menor SOL. O tema

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neste momento se assemelha a tradição católica. Usa-se estritamente o plano superior do

registro vocal do cantador, representado na partitura.

O canto segue usando o plano superior da partitura, intercalando na letra o tema

do caminho e sílabas aparentemente sem um conteúdo semântico. A frase é repleta de

sustenidos.

O excesso de sustenidos é mantido ao longo de todo o canto, o que se pode

observar na frase 11 abaixo.

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O canto segue através da cadência melódica de terça menor. Desta forma, repete-

se a frase até o fim.

As cadências podem variar de segunda maior para terça maior, como evidenciado

abaixo.

Na parte final do canto usa-se o plano inferior do registro vocal do cantador, em

oposição à parte anterior. Se em outros trechos deste canto, evidencia-se influência

católica; na parte inferior, o canto compõe-se de sílabas sem conteúdo semântico

aparente. Esta forma de cantar, característica do serviço de chão (e do praiá), é

semelhante à de outros grupos indígenas das TBAS – Terras baixas da América do Sul –,

como a dos Xavante, estudados por Aytay (1985), em cujo canto é bastante comum o uso

de ―sílabas‖ aparentemente sem conteúdo lingüístico semântico (: 73-76).

O canto segue com a repetição desta frase e finaliza num movimento descendente,

localizado na parte inferior da partitura.

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Em SC5 percebe-se a presença de terças alternadas, intercaladas a ruídos (com

voz). Estas vozes que surgem no meio do canto localizam-se no plano intermediário da

partitura e, em determinadas ocasiões, são provenientes dos encantados. O pulso é

binário e a intensidade vocal é alta.

SC5 foi apresentado no meio do rito e é cantado por Edmilson. O canto tem por

volta de 13 minutos.

Na frase sete destaca-se uma transição para um plano sonoro mais alto, assim

como os movimentos do toré e do praiá.

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Em SC6, cantado na parte central do rito, pode-se destacar na composição o uso

das terças.

O canto se desenvolve a partir de um pulso binário e uma intensidade alta de voz.

O andamento é acelerado e a repetição da mesma frase dá à tônica do canto. Note-se que

em cada frase apenas a última sílaba é permutada. Apenas na frase seis a permutação

acontece na primeira sílaba.

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Em SC8, cantado já depois da chegada dos encantados, percebe-se a mesma

dinâmica de repetição e diferenciação. A mudança de sílaba aponta para um caráter

cíclico. A última sílaba nunca é exatamente igual. A marca deste canto é o ditongo: yo. O

canto começa no plano médio da partitura e se direciona para baixo, como o padrão

encontrado na maioria dos outros cantos.

Em seguida a melodia vai para o plano mais baixo encontrado neste canto e se

mantém lá.

Em SC9, igualmente posterior à presença dos encantados, o caráter repetitivo fica

claro. Este canto desenvolve-se com base no ritmo ternário. Sua dinâmica novamente tem

como base o uso de sílabas aparentemente sem um conteúdo semântico e depois passa

para o uso do português. O tom vai subindo e descendo, compondo linhas melódicas que

oscilam ao longo do canto, como exposto abaixo.

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Depreendem-se da análise das partituras musicais do serviço de chão alguns

elementos marcantes e constitutivos deste gênero musical Kalankó, as quais apontam

para a prática muiscal nativa.

O serviço de chão é marcantemente rítmico, o que é evidenciado na forte presença

da sincopa. O tempo forte costuma acontecer na pausa e na sincopa. A unidade básica

sendo uma célula binária. A pisada marca o tempo forte, na consoante (HeY). A

suspensão posiciona-se junto à vogal no tempo fraco (o). O hey, por exemplo, só não está

no tempo forte quando há movimento sincopado. Observa-se também permutação das

céulas ritmicas.

Evidencia-se novamente uma intensa movimentação sobre o material melódico –

como no praiá. A diferença é que a estrutura é sobre um conjunto de notas reduzidas.

Neste sentido, o serviço de chão é também lírico, por sua curvatura melódica ser mais

alta e por possuir diversos planos melódicos, o que dá um colorido ao canto.

Ressalte-se também, a presença de cadência melódica em tercas.

A repetição é uma marca do gênero.

Além disso, a perspectiva espacial da musicalidade em que questão é bastante

marcante. A característica a ser destacada é o uso intercalado dos diversos planos do

registro vocal do cantador, representados na partitura – superior; intermediário; inferior –,

os quais apontam para a administração da extensão vocal.

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A IDIOMA

Tomando os três gêneros como um sistema, assim como fez Culezinha (no início

do capítulo), pode-se realizar comparações importantes para o entendimento da

musicalidade Kalankó. E a partir dela, perceber homologias em relação ao pensamento e

entendimento Kalankó do mundo.

Neste sentido, em primeiro lugar, pode-se perceber que o serviço de chão e o

praiá são mais próximos musicalmente, compondo frases e motivos melódicos

semelhantes. Ambos não possuem contrastes bem marcados, não sendo tão evidente a

divisão entre as partes AB, apontadas. Eles, desta forma, são constituídos por

movimentos acima e abaixo da nota central. O praiá é o mais rígido, pois sua estrutura

rítmica e melódica é mais precisa e fechada.

De modo geral, os praiás caracterizam-se por enfocar a combinatória entre

motivos que tendem a resultar em frases repetidas com pequenas variações.

No toré, pode-se observar considerável empréstimo de outras práticas musicais,

como, por exemplo, dos missionários. Ele – toré – sendo quase configurado por

apropriação ou reminiscências de modos eclesiásticos de uso da igreja católica. Note-se

que o uso destes modos não se dá pela cópia, mas pela apropriação e reelaboração. Além

disso, no toré observa-se mais contraste, sendo que na parte B, evidencia-se um

distanciamneto das reminiscências dos modos eclesiásticos.

Este tema dos empréstimos e permutações entre música ameríndia e missionária é

polêmico. Para Baptista Siqueira (1951: 81-87), por exemplo, não se pode afirmar que

houve apropriação dos modos católicos pela música ameríndia. Segudo o autor, as

similaridades entre algumas características – como o uso das terças e a ausência do

sétimo grau da escala, entre outras – não são suficientes para a referida afirmação. Para

Siqueira, outras movimentações, como o caráter descendente do canto sertanejo em

oposição ao ascendente do modo mixolídio (: 82) dentre outras características não

permitem o estabelecimento da relação em questão.

A análise dos cantos Kalankó, entretanto, vão de encontro a afirmação de Siqueira

– acima. Parece-me que, com base na análise em questão, houve um intenso processo de

permutação musical entre missionários – jesuítas ou não – e populações indígenas. E que

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deste contato, emergiram outros horizontes culturais (POMPA, 2002), dentro dos quais,

novos formatos musicais75

.

Nos formatos Kalankó, alguns procedimentos são comuns a todos os gêneros,

como a cadência melódica em terceira; a ornamentação e o cromatismo, a interpolação e

o uso de sustenidos.

Desta forma, os cantos Kalankó apresentam normalmente uma estrutura melódica

binária, onde os gestos vocais determinam motivos melódicos cuja distância intervalar

curta, em raras ocasiões, excede um intervalo melódico de quinta justa.

Há sempre um ataque e um relaxamento. O que acontece não só nos motivos

micro, mas na estrutura das frases. Sendo assim, o uso da voz nos cantos Kalankó – e a

subseqüente produção de gestos vocais – segue o movimento natural de contração e

expansão. A voz constituindo o elemento central da música em tela (HERBETTA, 2006).

Neste sentido, os cantadores subdividem os registros vocais em três planos,

empregando motivos melódicos binários intercalados com pequenos saltos e cadências.

A princípio os três planos refletem apenas um uso vocal estendido a partir de um

centro de repouso, ou em termos vocais os registros médios da voz, que varia em cada

cantador.

No exemplo abaixo se observa esse movimento da voz entre registros vocais,

partindo de um centro de repouso.

75 Ressalte-se que a análise de Siqueira (1951) funda a discussão e fundamneta a música nordestina, sendo

extremamente relevante para o campo de estudos em questão. Para o autor, a música sertaneja nordestina

constitui ―uma estética nova‖ que é admirável (: 85).

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Nota-se no primeiro compasso do canto ―Olha aquela mata‖ uma distribuição em

dois planos (médio e alto). No segundo compasso uma distribuição em três planos (alto,

médio e baixo) na frase ―o caboclo vem de lá‖, como evidenciado abaixo.

Olha a...

Em geral a transição entre os registros e a mudança de planos vocais (alto, médio

e baixo) ocorre por meio de pequenas cadências melódicas de terça menor descendente e,

menos freqüente, por intervalo de segunda maior e quinta justa. Isto fica claro abaixo.

Como se pode notar no exemplo acima, a frase ―Tava na pedra fina o rei do índio

mandou chamá‖ é pontuada por duas cadências melódicas em intervalo de terça menor: a

primeira sobre a primeira sílaba da palavra ―fina‖, e a segunda sobre a palavra ―chamá‖.

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Outro exemplo de transição entre planos vocais por cadências melódicas de terça

menor pode-se observar no toré ―Eu vou ver mamãe daruanda‖ – abaixo.

Note-se que a frase ―eu vou ver mamãe daruanda‖ é cadenciada por uma terça

menor descendente como no canto ―Vaqueirinho vaqueja‖, abaixo.

Há ainda alguns exemplos em que os planos são ligados por intercalações entre

gestos melódicos em intervalo de terça menor como em SC5, abaixo.

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Note-se que o uso de intercalações é bastante comum na musicalidade nativa. E o

uso estratégico do intervalo de terça é uma marca estrutural da música Kalankó. Ela pode

ser evidenciada nos três gêneros musicais apresentados. Pode-se dizer também que os

gestos vocais são pensados de forma binária, segundo um modelo de contração seguida

de uma expansão.

O caráter binário e o intenso uso de intervalos em terça – evidenciados até aqui – já

foram notados em outras análises musicais realizadas em grupos indígenas do sertão

nordestino. Pereira (2004), por exemplo, observou tais características em um estudo com

a música Kapinawá/PE.

Os gestos vocais nos cantos Kalankó apresentam-se, invariavelmente, como

motivos binários (ou par de notas em um registro) que operam livremente ligando-se a

outros pares e/ou criando movimentos de suspensões e cadencias melódicas, apontando

para outra marca da estrutura musical nativa e estabelecendo uma dinâmica musical

própria à sonoridade presente na aldeia Kalankó.

É também característica desses motivos binários, uma acentuação na primeira

nota (contração do gesto) seguido de um leve acento na segunda nota (distensão).

Deste modo a energia inicial do gesto é, usualmente, dissipada no segundo som.

No exemplo a seguir (P1) o uso da combinação silábica ―Hey o‖, ―Hey a‖, ―Hey an‖,

―Hey han‖; configuram essa relação energética.

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É possível observar esse modelo de contração e distensão não apenas nas

formações silábicas e rítmicas, mas também na extensão e estrutura do fraseado musical

como em P7, abaixo.

A própria configuração melódica é derivada dos motivos binários e, usualmente,

vem organizada sob uma matriz modal, isto é, sobre um eixo escalar prévio.

Grosso modo, as escalas sobre as quais eles se organizam e se movimentam são

apropriações e reminiscências dos modos eclesiásticos (Jônio, Dórico, Frígio, Lídio,

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Mixolídio, Eólio e Lócrio). Este fenêmoneo tem relação com a experiência do

aldeamento missioneario, como observado no capítulo 2.

Os motivos assim combinados formam frases melódicas que se apropriam das

relações de tensão que o próprio modo empregado oferece.

Abaixo um exemplo de emprego do modo Jônio de Fá.

Abaixo exemplo do modo mixolídio de Si.

Os principais modos encontrados na prática musical dos Kalankó são: Jônio,

Dórico, Frígio e Mixolído. Note-se que alguns modos eclesiásticos predominaram no

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sertão, como o mixolídio, marcantes nas festas e aleluias. Este modo considerado alegre é

ainda presente em gêneros musicais populares como o baião, por exemplo.

Quanto à rítmica, os cantos Kalankó se utilizam, normalmente, de fórmulas binárias

(em algumas ocasiões encontram-se movimentos ritmos ternários simples ou compostos –

especialmente no praiá)76

. Neste cenário, é freqüente a combinação de colcheia pontuada

seguida de semicolcheia, assim como, a célula sincopada – semicolcheia-colcheia-

semicolcheia – como evidenciado abaixo.

Contudo essa duas células rítmicas pontudas são, invariavelmente, agregadas a

uma subdivisão binária simples.

76 Note-se que a fórmula ternária composta não é característica da cultura brasileira. Elas são comuns nas

danças renascentistas de salão européias. Aparecem, porém, em P3, P8 e SC9.

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Em alguns casos ainda se encontram ritmos ternários simples e compostos como

em P3 a seguir.

Ressalte-se que a sincopa no praiá e no toré é só uma variação rítmica, não

possuindo um caráter estrutural. Entretanto, a sincopa pode ser uma característica da

estrutura do serviço de chão.

Assim, percebe-se claramente que a lógica binária é uma marca da estrutura musical

Kalankó. Ela aponta, entretanto, muitas vezes para uma concepção ternária da música,

como fica explícito em alguns praiás de ritmo ternário ou mesmo na concepção da

idioma, que tem base em três gêneros musicais. Esta característica binária que opera em

relação a elementos ternários é também evidenciado em outros domínios culturais e será

mais bem trabalhado na parte final da tese.

Em relação à direcionalidade das frases, os cantos de toré elaboram um

triângulo, que é baseado em um movimento ascendente inicial e um descendente final.

Ambos longos, em contraste aos outros gêneros musicais Kalankó. Isto porque tanto o

praiá quanto o serviço de chão são constituídos pela mesma movimentação –

ascendente/descendente – mas possuem movimentos menores.

O andamento dos cantos varia entre os gêneros referidos. O andamento mais rápido

aponta para o caráter rítmico do canto, mais presente no serviço de chão. O andamento

mais lento, indica um caráter melódico, evidenciado no praiá. Entre os dois pólos –

rápido e lento – evidencia-se um andamento moderado, mais característico do toré.

Segundo os Kalankó, o serviço de chão é o gênero mais pesado e que, portanto, lida

com mais energia encantada. Sendo assim, pode-se pensar em uma relação da rapidez –

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no plano temporal – com a energia referida. Esta relação pôde ser apontada na análise dos

cantos de toré, no capítulo 3, e marca novamente a concepção de tempo preciso ou ideal

presente no pensamento Kalankó.

Além disso, tomando o conjunto dos gêneros musicais como sistema, pode-se

destacar outras três características da musicalidade Kalankó, as quais podem ser

observadas e relacionadas a outros domínios culturais.

Em primeiro lugar, a característica (A) que chama a atenção nos três gêneros

musicais é a transposição. No toré e no serviço de chão as transposições aparecem

claramente. Nestes cantos, estendem-se mais as sílabas, ornamentando mais a frase. O

praiá também corrobora a ideia, compondo sequências regulares de transposição, esta

sendo uma de suas marcas.

Este careater pode apontar para a estrutura encontrada nas letras do toré,

estudadas no capítulo 3, que divide o universo em três estratos, sendo o plano superior,

onde se localiza o poder e o inferior – à terra – onde se localiza o sofrimento. Os

Kalankó se esforçando – trabalhando – para conjugar ambos os espaços e, assim, manter

contato com a energia encantada.

Desta forma, os cantos apontam para o caminho – no plano espacial – a ser

percorrido. Neste sentido, a música – agora no plano da estrutura musical – evidencia

uma aproximação com a análise de Lévi-Strauss sobre alguns rituais (musicais) de cura e

a eficácia simbólica deles (2008 [1958]: 201-220). Nestes ritos, a música descreve e

aponta um caminho a ser seguido ou já percorrido, tanto nos planos orgânico quanto

espacial e social.

Em segundo lugar, outra característica marcante da musicalidade em questão (B)

é o uso de três planos de extensão vocal que são representados na partitura nos planos:

superior; intermediário e inferior. Neste sentido os cantos – sempre – estabelecem

novamente uma relação espacial. Esta característica (B) corrobora o exposto acima,

quando o foco estava em (A).

Nos torés as três camadas são mais harmonizadas, como evidencia ―Pedra Fina‖–

com terminações em cima, no meio e embaixo. No serviço de chão, às vezes, observa-se

apenas o uso de dois planos do registro vocal, como evidencia o SC10. O praiá é mais

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restrito, demora para mudar de plano vocal. Geralmente apenas os dançadores respondem

no plano mais alto.

Em seguida, pode-se destacar (C) que aponta para a variação como marca do

processo de composição de peças musicais na região. No repertório acima analisado,

destacam-se procedimentos como os de reiteração, transposição, ornamentação e,

especialmente, repetição. As transformações resultantes desses procedimentos guardam

as características essenciais do material melódico do canto. Segundo Menezes Bastos

(1999 [1976]), Piedade (2004) e Mello (2005) o processo de variação é base da

composição musical em nível intracancional entre os povos indígenas xinguanos77

,

apontando para uma marca da musicalidade da região. Parece haver algo similar no alto

sertão alagoano.

Na música em tela, estas variações estabelecem a dinâmica e o significado do

canto e do rito. Neste sentido, a variação dá a dinâmica da performance afastando-a do

marasmo. No caso aqui tratado, dando a dinâmica musical. E gerando emoções relevantes

ao sujeito Kalankó.

Para os Kalankó, tal procedimento mostra-se essencial, pois aponta para o

preenchimento da totalidade espacial. Assim, as ornamentações completam e estendem o

espaço usado, assim como as reiterações estendem o canto. Esta relação pode ser

observada na estrutura das letras do toré, que marcam a importância do preenchimento do

espaço (capítulo 3). Assim como, pode ser observada nos ritos, nos quais os cantadores e

dançadores preenchem o terreiro em sua totalidade a partir de formações coreográficas

(capítulo 7). Ressalte-se que em relação ao preenchimento do espaço, os cantos Kalankó

apresentam também uma preocupação com o tempo preciso, já referido.

Além disso, a característica (C) da análise em questão, marca a repetição como a

variação mais usada. Este procedimento é percebido em todos os gêneros musicais e

parece ser bastante valorizado, pois aponta para uma tendência comum na aldeia.

Entre os Kalankó, a repetição está relacionada com a ideia de abundância.

77 Mello (2005) demonstra, por exemplo, como parte dos repertórios masculino e feminino Wauja, os das

chamadas ―flautas sagradas‖ e os do ritual feminino do Amurikumã, são variantes entre si. É como se as

mulheres cantassem transposições vocais das músicas das flautas em foco; os homens, por outro lado,

executando à flauta as músicas femininas vocais. Neste sentido, o processo de variação perpassa os gêneros

musicais e ―sexuais‖.

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200

Este tema será mais bem trabalhado no capítulo 8, mas pode-se pensar que a

variação que aponta para a repetição, é em primeiro lugar, importante para se elaborar a

ideia da abundância que opera em oposição à percepção da escassez, presente entre os

sujeitos em questão, como evidenciado no capítulo 1.

Em segundo lugar, a repetição opera formalmente como uma forma de se alargar

um caminho com o objetivo de se conjugar o céu à terra, e assim, conquistar o poder

encantado. É como se os Kalankó quisessem chegar ao céu através da música.

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201

Capítulo 6

Devires – relações entre pássaros e plantas

Se os dois capítulos anteriores discorreram sobre lógicas e modos de elaboração,

codificação e movimentação dos signos, termos e relações identificadas no sistema de

pensamento Kalankó – a lógica da associação/recorte e a música –, então este tratará de

uma das relações essenciais aos Kalankó, estabelecida entre os sujeitos e os encantados.

Como já foi visto ao longo do texto, muitas vezes os sujeitos ali se referem ao

universo religioso em questão para representarem a si mesmos – um em relação ao outro.

Isto significa dizer que os Kalankó são como pensam que são em relação ao mundo dos

encantos. Um não existe sem o outro. Este capítulo busca discutir esta relação, a partir

dos termos usados para representar cada um dos agentes envolvidos nela, assim como a

função do código acústico nesta relação.

Sempre que fui à aldeia tive muito prazer em conversar com seu Edmilson. Ele é

muito gentil e generoso. Nossas conversas foram muito relevantes para o entendimento

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do universo cultural Kalankó, já que Edmilson pertence à descendência de Santina, sendo

um cantador renomado na região.

Não sei se por acaso ou não, mas foi comum sobrarmos – eu e ele – à noite na oca

central de Lageiro do Couro. Isto acontecia porque os outros sujeitos iam comer, tomar

banho, assistir televisão ou dormir. Eu e seu Edmilson ficávamos até mais tarde, jogando

conversa fora e contemplando a noite no sertão.

Nestes momentos privilegiados, graças à intensificação de meus sintomas como

antropólogo, insistia no tema do universo encantado. Neste sentido, não podia ter

interlocutor melhor, já que ele é um dos mais renomados conhecedores do universo

cultural da região.

Do conjunto de nossas conversas, algumas imagens se destacaram e serão usadas

no decorrer do capítulo para o entendimento da relação entre índios e encantados. Em

janeiro de 2003, por exemplo, seu Edmilson me afirmou que os encantados eram como o

ar. Desta forma, ele criou uma metáfora na qual os encantos – como o ar – são leves, mas

essenciais e, portanto, poderosos.

Retomei a mesma conversa, dois anos depois. Nesta ocasião seu Edmilson

reafirmou o que tinha me dito sobre a relação encanto:ar e criou uma nova imagem. Os

encantados eram como o vento. Desta forma, eles poderiam circular – pelo ar – por todas

as aldeias indígenas da região, apontando para a ideia de movimento. Poderiam estar em

qualquer lugar a qualquer momento. Ambos, ar e vento apontam para significados

similares, mas ainda para substantivos abstratos, não tangíveis.

Em outra oportunidade, D. Jardilina usou uma imagem com sentido similar para

representar os encantos. Ela disse que eles eram como o som, relacionando o canto ao

encanto.

No universo cultural Kalankó, se por um lado os encantados são realmente seres

intangíveis, abstratos e intocáveis, por outro eles são absolutamente materiais, o que fica

evidente quando a energia encantada está presente e pode promover transformações

tangíveis na aldeia.

Em outra noite, já perto do amanhecer, seu Edmilson me explicou que os encantos

são também – sem eliminar as imagens anteriores – pássaros. E que, portanto, eles têm

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uma forma concreta de atuação na caatinga alagoana. Voam por entre as aldeias, mas

podem pousar, fazer seu ninho e ter uma relação mais direta com esta ou aquela aldeia.

Neste cenário, os encantos-pássaros quando têm uma relação mais direta com uma

aldeia são representados por uma pedra, de preferência, mas também por algum outro

objeto pertencente ao domínio da natureza, como um pedaço de madeira.

Depreende-se das conversas mencionadas um sistema de transformação no qual os

encantados variam de posição, mas não de valor. Eles podem ser identificados da posição

mais abstrata, representada pelo o ar, até a mais concreta, representada pela pedra. Note-

se que eles aparecem comumente numa posição intermediária, a do pássaro. O valor é

sempre o mesmo, relacionado ao poder.

Desta forma temos,

AR VENTO SOM PÁSSARO PEDRA

No sistema acima descrito o encantado pode ser representado em cada uma das

posições delimitadas, as quais variam de lugar, mas não de valor. Ao mesmo tempo, estas

posições variam também com relação à abrangência. Os encantados podem possuir da

maior abrangência, representada pelo ar, que pode estar em todo lugar à menor

abrangência, representada pela pedra, localizada num local específico.

Tonho Preto corrobora o sistema descrito. Para ele, os encantados são – ou ocupam

– todas as posições ao mesmo tempo, não havendo diferença entre uma e outra. Segundo

ele, o importante é o fato de que todas as posições pertencem ao domínio da natureza,

apontando para a ideia de que o universo encantado faz parte dela. O valor deles sendo

sempre o mesmo. E o som sendo posicionado mais próximo da natureza.

A posição no sistema não altera o valor do encanto, mas entre a população Kalankó,

na grande maioria das vezes, os encantados são relacionados à posição intermediária no

sistema apresentado, a do pássaro. Além disso, é desta forma, como o beija-flor, o

andorinha, o acoã ou o papagaio amarelo – pássaros característicos da caatinga – que o

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encanto é representado como personagem central nas letras dos cantos do toré, como

evidenciado no capítulo 3.

A ideia dos pássaros é também atualizada no domínio do rito. A imagem

apresentada no início do capítulo representa um praiá, ou seja, um dos dançadores

mascarados que fazem parte do ritual de mesmo nome (HERBETTA, 2006). Esta

imagem aponta para a ideia de um pássaro, já que alguns elementos que se destacam nela,

como o uso das penas de peru, deixam claro que está aí representado um personagem

relacionado ao universo das aves. Além disso, as penas das aves são bastante utilizadas,

sendo matéria-prima de cocares marcantes visualmente.

Segundo Lévi-Strauss (1989 [1962]), os pássaros pertencem a um conjunto de

espécies muito valorizado no pensamento humano. Isso se dá pelo fato de pertencerem à

outra ordem, diversa da dos humanos, mas sociável. E, ainda mais, por pertencerem a

uma ordem que pode voar, algo que os humanos não podem fazer, mas valorizam. Para o

autor,

pela estrutura anatômica, pela fisiologia e pelo gênero de vida, elas (as

aves) estão situadas mais longe dos homens... as aves são cobertas de

penas, são aladas, ovíparas e, também fisicamente, separam-se da

sociedade humana pelo elemento no qual têm o privilégio de se moverem.

Por isso, formam uma comunidade independente da nossa, mas que, em

razão dessa independência, aparece-nos como uma outra sociedade,

homóloga àquela em que vivemos: a ave é apaixonada pela liberdade, ela

constrói para si uma morada onde vive em família e alimenta seus

filhotes, muitas vezes mantém relações sociais com os outros membros de

uma espécie e se comunica com eles por meios acústicos que evocam uma

linguagem articulada. Por conseguinte, todas as condições estão

objetivamente reunidas para que concebamos o mundo das aves como

uma sociedade humana metafórica. (: 229)

A descrição acima expõe de forma bastante detalhada a posição das aves nos

sistemas de pensamento elaborados pelo mundo. Entre os Kalankó, pode-se observar algo

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205

similar. Vários dos elementos supracitados são comumente evidenciados tanto nas

narrativas quanto nos ritos.

Em segundo lugar, pode-se relacionar a posição das aves/encantos ao plano do

alto, espaço percebido como mais poderoso, conforme indicado no capítulo 3. O respeito

à autoridade do encanto está diretamente relacionado à percepção de que uma espécie de

energia vital provém deste plano.

Em relação a isso, os Kalankó ao se referirem a si próprios – sujeitos – percebem-

se no plano de baixo, na terra, distante em relação ao universo das aves. Neste sentido,

eles elaboram uma série de correlações com a ordem das plantas, ou seja, pertencente ao

universo vegetal78

.

A própria narrativa criada para localizar o grupo no universo indígena da região é

baseada em metáforas de caráter filogenético. Estas metáforas configuram um sistema

genealógico de figuração filogenética vegetal, que envolve de um lado os Troncos

Velhos, representados pelos antigos aldeamentos missionários e do outro as Pontas de

Rama, as ―novas‖ comunidades. Com relação aos Kalankó, a história que se conta é a de

que por volta de cem anos atrás, entre o fim do século XIX e início do XX, cinco pontas

de ramas de um único tronco velho migraram para o alto sertão alagoano. O tronco velho

sendo o aldeamento de Brejo dos Padres/PE.

Além disso, alguns outros domínios culturais como a morte, apresentam

correlações diretas com o universo vegetal. Segundo Tonho Preto, não é possível se fazer

o sepultamento na aldeia, ―já que se a gente fizesse, chegasse a fazê um sepultamento de

qualquer pessoa... nóis tinha que arretirá, levá pro cemitério do branco, ia sê tirado na

marra, ia forçá nóis tirá, aí não tinha como a gente construir dentro da nossa cultura que é

uma das coisas que é muito importante... antepassado implantado dentro da própria área”.

O termo implantado refere-se à ideia de que o morto não é enterrado, mas

plantado. Este fenômeno remete a outras etnografias do sertão nordestino, como, por

exemplo, entre os Xukuru/PE (NEVES, 2005), onde o cacique Xicão Xukuru, que foi

78 A relação entre o universo vegetal e o modelo de pessoa pode ser observada em outros locais. Os

Pueblo, por exemplo (LÉVI-STRAUSS, 2008 (1958): 238) entendem a vida humana a partir do modelo do

universo vegetal, ou seja, há uma emergência para fora da terra. Pelo menos aí, uma possível explicacão

para a relação referida é a importância da agricultura para a vida da população. Parece-me que a relação é

similar entre os Kalankó. Muitos dos ritos – epecialmente os de praiá – são dedicados e relacionados à

produtos derivados da agricultura.

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assassinado, não foi enterrado, mas plantado na aldeia para que se transformasse em

planta. Esta associação do enterramento funerário com a plantação vegetal evoca também

procedimentos similares de grupos indígenas não nordestinos, como por exemplo, os

Kamayurá (MENEZES BASTOS, 1989), mostrando-se tema relevante e interessante nas

etnografias em questão.

A ideia de plantar o corpo do sujeito aponta para a importância do corpo e sua

relação com o domínio vegetal. Outras ideias corroboram esta relação. O uso das ervas do

mato, por exemplo, muitas vezes é baseado na ingestão ou aplicação de parte da árvore

no corpo do índio, indicando uma relação homóloga entre os dois termos: árvore:corpo.

A raspa da árvore e, portanto, do corpo dela é um tipo de procedimento bastante utilizado

como remédio do mato para a cura de algumas doenças. Desta forma, a contiguidade

entre os corpos – vegetais e humanos – busca a ordenação do segundo.

Neste cenário, o corpo é muito importante para os Kalankó79

. Em todas as viagens

que fiz à aldeia sempre tive problemas iniciais de adaptação. Estes problemas estavam

ligados às sensações corpóreas, já que normalmente a temperatura estava extremamente

alta. Lembro especialmente do janeiro de 2008, quando cheguei à aldeia num dos

transportes populares de Água Branca, uma picape D-20, com alguns bancos de madeira

na caçamba. Só consegui vaga na picape do meio-dia.

A viagem até Lageiro do Couro dura cerca de 50 minutos, saindo de Água

Branca e a condução estava lotada. Decidi ir na capota, imitando alguns dos sertanejos

corajosos que conheci. Lá em cima, viaja-se também com uma infinidade de mercadorias

e alimentos que são levados às diversas comunidades rurais da região.

Naquele momento o sol estava intenso e passei a viagem inteira recebendo-o

diretamente na cabeça. Quando cheguei à aldeia, lembro-me que além das saudações

cordiais e costumeiras, o pajé e o cacique, os primeiros que encontrei, notaram assustados

79 Além do trabalho de Serres (2004 [1999]; 2001 [1985]; 2003 [2001]; 2008 [2004]), o corpo vem

ganhando cada vez mais espaço na literatura antropológica. Isto desde a clássica análise de Mauss, na qual

é estabelecida a relação essencial entre a sociedade e o corpo. A partir daí, o corpo pode ser entendido nas

ciências sociais como espaço de identificação, suporte para escrita e representação da sociedade. E, além

disso, como objeto comestível, produtor da sociedade e, até mesmo lugar da perspectiva sobre o mundo. Na

própria etnologia indígena, o estudo sobre a produção e consumo dos diversos corpos passou a ter grande

destaque. Carlos Fausto (2002), por exemplo, trata da questão relacionando-a a grupos tupi canibais. Este

aspecto foi bastante desenvolvido em Viveiros de Castro (2002).

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que eu estava muito vermelho. Num misto de brincadeira e preocupação, eles me

disseram que aquilo era perigoso e que meu corpo não estava acostumado a tanto sol.

Concordei de imediato, pois me lembrei de quando o pajé me contou que aquele

sol de janeiro é para poucos e que as crianças que nasciam na aldeia passavam por um

processo de adaptação ao terreiro. Tal processo refere-se ao fato de que antes dos três

anos de idade a criança participa de um toré realizado na parte da manhã de um dia

quente. Isto para, como diz o pajé, ―se acostumar à poeira‖.

Eles imediatamente pararam o que estavam fazendo e, de acordo com a

hospitalidade da aldeia, me deram água e uma cadeira para sentar – na sombra. Eles

sabiam o que estavam fazendo. Ainda resisti bem naquele dia indo dormir na rede da oca

central da aldeia. No dia seguinte, porém, quando acordei não conseguia me mexer,

estava completamente indisposto e me sentia tão quente quanto o sol da viagem do dia

anterior. Estava com uma forte insolação.

Passei os dois dias seguintes na mesma rede, na sombra da oca, sendo cuidado pela

família de Culezinha, que tinha viajado para trabalhar numa plantação de cana-de-açúcar,

na zona da mata. Eles me traziam água de coco e sucos de acerola e limão, muito

apreciados ali e me diziam que aquilo iria melhorar meu corpo e minhas sensações. Isto

porque, segundo as crianças, meu corpo ―precisava de mais energia‖.

Como tive muito tempo para pensar, lembrei-me que para D. Joana, a distinta

senhora que citei na apresentação da tese, energia tinha relação com o mundo encantado,

co mo universo sonoro e também com a potência do corpo. Concomitantemente, lembrei

que praticamente em todos os momentos na aldeia, os Kalankó têm alguma regra para o

corpo. Estas regras podem ser diretas ou indiretas, e abrangem desde algo que o corpo vai

ingerir, no sistema culinário ou com relação aos remédios do mato até os banhos que se

deve tomar.

A obrigação do índio é tomar nove banhos cheirosos antes do ritual, três por dia (na

terça, na quinta e no sábado). O banho cheiroso é composto por maracujá de estrada

(mato), catinga de cheiro (mato), imburana de cheiro (árvore grande), junco (batata de

planta) caroá (batata de planta nativa) e dente de alho. Elementos presentes nos três

estratos do universo vegetal – subterrâneo, caule e copa da árvore.

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O conjunto destas regras obrigatórias aponta para a ideia de limpeza. Segundo

Tonho Preto a ideia de limpeza está relacionada com o que é vivo, categoria evidenciada

no capítulo anterior. Neste sentido, o que é vivo é limpo, o não vivo apontando para a

sujeira.

Seu Zé corrobora a ideia. Segundo ele, o universo encantado é o mais limpo de

todos, já que os encantos ―veve na limpeza… os encantos só querem limpeza, se sujar

pronto, as forças também… é pra zelar‖. Seu Zé aponta para um sistema que se baseia

num continnum explicitado abaixo.

{VIVO:LIMPO:ÍNDIO} / {NÃO-VIVO:SUJO:NÃO-ÌNDIO}

Neste universo, a bebida alcoólica é sempre citada quando se fala da saúde e do

corpo. A bebida pode inclusive matar.

Esta relação ficou evidente quando encontrei Abdias em dezembro de 2010, no

Brás, em São Paulo. Ele, mais Pelé e Velhinho estavam voltando para a aldeia depois de

uma temporada trabalhando no esgoto de Campinas, região metropolitana do Estado de

São Paulo.

O encontro foi bastante emocionante, pois não nos víamos há tempos e passamos a

tarde num pequeno bar do bairro colocando a conversa em dia. A parte mais marcante,

porém, foi quando Abdias me comunicou e descreveu a morte de dois Kalankó que eu

conhecia, as quais ocorreram no período referido. Ele não conseguiu conter as lágrimas e

estabeleceu como causa de ambas as mortes o uso pontual da cachaça. Nas palavras de

Abdias, após usar cachaça, o corpo de ambos começou a inchar, sem nenhuma outra

explicação aparente. Este inchaço não cessou, até levá-los à morte.

A ideia de inchar o corpo até estourar é comum no imaginário nativo, estando

presente em algumas narrativas fantásticas, como será trabalhado no capítulo 8. Nelas a

abundância é levada à sua radicalidade, representando a falta de controle, que aponta para

as ideias de exagero, perigo e morte.

Para Abdias, faltou zelo do sujeito ao beber.

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Os Kalankó usam o termo zelo para se referir ao conjunto das práticas diárias a que

o corpo deve ser submetido. De acordo com o cacique Paulo, quando o zelo é grande, ele

é fino. O termo fino indica quando o cuidado deve ser maior e mais intenso, apontando

para o fato de que se deve tomar especial cuidado com o corpo, com o universo

encantado e com aquilo que pertence à tradição, estabelecendo as relações presentes no

diagrama abaixo.

Para seu Zé, porém, hoje em dia ―quem quer isso?… tá difícil… no tempo que o

pessoal sabia que tinha Deus… era outro… Deus do céu… tâmo sem regulamento… hoje

Deus não vale mais pro pessoal da terra‖.

Depreende-se daí um conjunto de regras que deve ser seguido. Além disso, marca-

se novamente a relação espacial entre o céu e a terra, na qual o poder representado por

Deus localiza-se no plano de cima. Percebe-se também que há regras que mediam o

sujeito a Deus, apontando para uma relação corporal. Este regime, chamado regulamento,

não é mais seguido como deveria, apontando para os novos hábitos advindos do período

da democratização brasileira, como o acesso à energia elétrica e à televisão.

A limpeza está também relacionada à ideia do ascetismo e da resistência à dor. Isto

acontece através da falta de relações sexuais, já mencionada, ou do excesso de dor

presente no domínio do ritual e da vida, de maneira geral. Uma vez num ritual

Koyupanká observei que em determinado momento os dançadores usam a folha do

cansanção, uma espécie de arbusto que tem propriedades tóxicas, as quais causam

queimaduras, no corpo, se auto-flagelando. Louvam-se os mais feridos, portanto, os que

sentiram mais dor.

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Além disso, o ritual é o domínio da resistência – declaradamente. Devem-se

suportar horas de exercícios físicos, realizados em condições difíceis de tempo e

temperatura. Segundo os Kalankó, não é fácil ficar embaixo da veste do praiá por tanto

tempo, realizando movimentos coreográficos pertinentes ao momento do ritual.

O próprio termo flagelo ou provação é comumente utilizado nos discursos da

prática corporal. Deste modo, o corpo Kalankó deve se relacionar com a dor e suportá-la.

Assim como para Serres (2004 [1999]), sentir dor é ser no mundo (: 42), para os Kalankó,

a dor é parte essencial da existência, ela ―atrofia o corpo e enobrece o conhecimento – a

sensação guia a vida e a experiência‖ (: 41).

Neste sentido, valoriza-se chegar ao limite da fadiga. Se virtualmente o corpo pode

tudo e transborda potencialidades, é ―no ardor muscular, quase sem fôlego, nos limites da

fadiga‖ (2001 [1985]: 324) que o corpo adquire consciência.

O corpo Kalankó busca este estado da fadiga seja no domínio do rito ou do

trabalho. Não é por acaso que o termo trabalho é usado para denominar os ritos, que se

estendem até a fadiga corporal. É ali na fadiga corporal que o sujeito sente-se Kalankó e

fica feliz pelo cansaço. Missão cumprida.

A memória e o esquecimento estão intimamente ligados à fadiga muscular. O corpo

controla o esquecimento e só ―fica à vontade sob certa obscuridade‖ (SERRES (2004

[1999]: 42). Algumas vezes, em conversas informais, sobretudo, após o exercício físico

no rito, foi normal constatar que os Kalankó não se lembravam de fatos corriqueiros,

lembrados normalmente em outros momentos, de relaxamento muscular. Isto ocorre

porque ―o corpo é o suporte da intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo,

da invenção‖ (: 36), estabelecendo uma relação importante para o pensamento Kalankó,

exposta abaixo.

FADIGA : ESQUECIMENTO

Algumas situações comuns corroboram a relação acima estabelecida. Após um

toré realizado em julho de 2009, por exemplo, o cacique Paulo não se lembrava de

nenhum dos cantos utilizados – por ele mesmo. Isto me chamou a atenção, pois se trata

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de um grande conhecedor da teoria musical Kalankó, dominando inclusive os cantos de

outros cantadores.

Lembrei-me que D. Joana já tinha me falado a respeito, apontando para a mesma

relação corpo:memória. Segundo ela, o esquecimento é consequência de não estar se

sentindo bem. Quando está com corpo fraco – nas palavras dela – também não se lembra

dos cantos que canta normalmente.

A expressão corpo fraco é comumente usada entre os Kalankó. Ela se relaciona à

falta de energia do corpo e constitui uma situação aparentemente perigosa. Esta situação

que é relacionada à escassez, muitas vezes é responsável também por uma aproximação

com o universo encantado e uma consequente energização corporal. Nestes casos, é

interessante como a escassez, no caso de energia, pode gerar a abundância. Isto talvez

aponte para a sazonalidade da região, marca também do pensamento nativo e indicada no

capítulo 1.

A própria Santina, reconhecidamente matriz do conhecimento de mediação com a

energia encantada na aldeia, só obteve seus poderes depois de adoecer gravemente e,

portanto, passar – corporalmente – por um processo de descobrimento, desafio e

fortalecimento.

Seu Zé narrou esta situação. Ele disse que num certo período da vida, ela só

adoecia e, por isso, foi para Juazeiro do Norte, no Ceará, centro da religiosidade popular

ligada ao catolicismo da região. Santina queria encontrar o padre Cícero e tinha como

objetivo lhe pedir algum remédio que a curasse. O padre receitou-lhe um medicamento e

recomendou três dias de tratamento intenso.

Quando voltou para a aldeia, ela estava curada e poderosa. Isto significa dizer que

possuía contato direto com os encantados e sabia usar a energia encantada. Podia, por

exemplo, ver onde estava a melhor caça e onde estava o melhor remédio do mato, além

de dominar o sistema de cantos. Desta forma ela aperfeiçoava ao menos dois dos seus

sentidos – a visão e a audição.

Observei o mesmo processo com Marcinha, irmã de Tonho, um dos líderes

comunitários da aldeia. Da mesma forma que Santina, ela ficava constantemente doente,

apontando para um desequilíbrio corporal. Esta doença era comumente percebida pela

população a partir de um desarranjo mental. Dizia-se sempre que ela estava com a

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―cabeça confusa‖ e com o ―corpo fraco‖. Ambas as designações atuam como sinônimos.

Ter o corpo fraco é o mesmo que ter um desarranjo mental.

Por essa razão, Marcinha foi internada no hospital de Água Branca. Nesta

situação ela começou a estabelecer uma relação mais próxima ao mundo dos encantados,

tendo a capacidade de se comunicar com eles. Dizia-se, então, que ela estava recebendo

um encanto ou um caboclo. No caso, esta entidade não era considerada como das mais

fortes – isto no sistema hierárquico dos encantados (HERBETTA, 2006) –, mas,

estreitava o laço dela com tal universo. E, além disso, evidenciava sua capacidade de

audição, já que se ela não via coisas, ouvia.

Os exemplos usados apontam para uma relação entre uma possível fraqueza

corporal e um desequilíbrio mental, indicando que o problema tem origem na cabeça.

Além disso, evidenciam que este desequilíbrio pode ter como desfecho um contato mais

próximo com a energia encantada e uma consequente reorganização mental. Todos os

sujeitos que passaram por esta situação perceberam um fortalecimento do corpo, que

pode ver e ouvir além do universo normalmente percebido80

.

Depreende-se dos fatos citados que a cabeça tem uma posição especial na

percepção corporal dos Kalankó81

. O domínio da música corrobora o exposto, já que só

quem tem a cabeça boa compõe. Os cantos são ideias que emergem da cabeça. Os

maiores compositores, como Culezinha, sendo chamados de cabeça boa. Em oposição,

quem não compõe é classificado como cabeça fraca.

Desta forma, a parte de cima do corpo parece ser mais valorizada, relacionando-se a

ideia de poder. Ao mesmo tempo, os filhos que se relacionam com a parte de baixo do

corpo estão ligados a fraqueza. Eles podem até morrer.

Neste cenário, os cantos que saem da boca, porém, podem curar, evitando a morte

precoce.

Percebe-se até o momento que o corpo Kalankó deve ser pensado e cuidado para

que tenha certas capacidades que se relacionam ao domínio do rito e à experiência

80 O corpo é imaginado em todos os sentidos possíveis. O social não se deposita sobre o corpo como sobre

um suporte inerte, mas o constitui. 81 Isto aponta também para o fato de que a adesão ao ritual aparece como local da eficácia e reordenação

da capacidade cognitiva do sujeito, de maneira que só se obtém o bem-estar físico pela adesão a ele

(BATISTA: 2004).

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cotidiana. E que estas capacidades são produzidas a partir da imensa variedade de

possibilidades corporais na aldeia Kalankó.

Estas possibilidades são evidenciadas nas diversas posturas criadas ali.

É interessante notar como o corpo Kalankó costuma estar sempre na postura ereta,

seja na hora da dança do toré ou do praiá seja no trabalho com o gado. Talvez isto seja

uma maneira de se colocar perante o mundo, de cabeça erguida.

Outras posturas corporais, decorrentes da ereta, são também comumente

observadas, valorizadas e essenciais para o entendimento de mundo nativo.

A postura denominada pisada é uma delas. Esta postura determina uma relação

direta do corpo com a terra e consiste em bater com a sola de um dos pés no solo de

forma dura, firme e consistente. Isto enquanto o outro pé marca uma espécie de tempo

fraco, em oposição ao forte da pisada, conferindo o equilíbrio ao corpo.

A pisada é vista principalmente no domínio do rito, sendo inclusive tema de

expressões usadas entre os indígenas da região. Estas expressões delimitam quem

realmente tem excelência ou não no rito. Desta forma, ser chamado de pisada forte é um

grande elogio e significa o domínio das habilidades necessárias à participação no ritual.

A pisada é praticada desde criança, quando ela é colocada no terreiro para provar a

areia do solo da caatinga e a temperatura alta, estabelecendo a relação entre o sujeito e o

meio ambiente. Tal interação – corpo:terra – acontece intuitivamente, sendo um processo

de refletir sobre si mesmo82

. Esta relação é paralela à evidenciada entre o céu e a terra,

no capítulo 3, essencial para o universo nativo.

A pisada estabelece então uma relação de contiguidade entre o sujeito e a terra

através de um ponto localizado no corpo – a sola do pé. Isto constitui um processo de

contato com o inconsciente, no sentido de Serres (2001 [1985]; 2004 [1999]), no qual o

inconsciente é o próprio corpo, pois ―o corpo faz e sabe fazer, às vezes sem compreender

porque faz assim‖ (: 73).

Neste processo, o sujeito Kalankó se apropria do mundo – do seu ponto de vista

sobre o mundo – através da sola de seu pé, que cria um encantamento inconsciente entre

o sujeito e o ambiente.

82 Neste sentido, Serres 2004 [1999]concorda novamente com Merleau-Ponty (2006 [1945]) e o conceito

de corpo sentiente, responsável pela elaboração da consciência.

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214

Além disso, a pisada serve como elemento de diferenciação entre os corpos. Isto

acontece mesmo entre os Kalankó, cujo modo de pisar o chão, como já dito, determina a

excelência no rito, configurando determinada posição social. Assim, literalmente, quem

pisa bem, tem destaque no domínio político.

Da mesma forma, entre os outros povos indígenas da região, usa-se a pisada como

critério de diferenciação étnica. Os Kalankó pisam diferente dos Karuazu que pisam

diferente dos Xukuru e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, pisa-se de forma similar

de acordo com o grau de proximidade e afinidade entre os grupos. Neste cenário, a

pisada Kalankó é parecida com a dos Koyupanká, podendo se estabelecer esta

proximidade entre os domínios do corpo e do parentesco. Pisa-se em família.

Além da postura ereta, da qual decorre a pisada, pode-se observar ainda certa

tensão nas posturas corporais, especialmente no que se relaciona ao domínio do ritual. Os

corpos estão sempre rijos e os movimentos são baseados em ações abruptas com corte e

mudança rápida de movimento. Não há relaxamento.

Se para o sujeito Kalankó o trabalho salva, o relaxamento é observado em algumas

atividades informais do cotidiano. Isto fica evidente, por exemplo, em uma postura

baseada no corpo deitado no chão.

Neste momento, estende-se a superfície do corpo, dos pés até a cintura, no chão –

de forma relaxada e eleva-se entre 45º e 90º a parte de cima do corpo, apoiada nos

cotovelos, mantendo alguma atenção ao mundo. Nestes instantes, o corpo e os

movimentos são mais lentos e relaxados. Esta postura é usada quando se contempla algo,

seja um jogo de futebol, a novela da noite ou um rito de praiá. Os ritos de praiá são

contemplativos para a maior parte da população, exceção feita aos participantes diretos,

dançadores e cantadores.

Entre a tensão da postura ereta e o relaxamento da contemplação, observa-se a

postura da reza, as mãos juntas por sobre o corpo. Se ela mantém a seriedade da ereta, ela

articula-se também ao relaxamento, sendo comumente observada em momentos de

conversa, seja com o grupo, seja entre duas pessoas.

Estes momentos evidenciam que a proximidade entre os corpos e o toque são

posturas valorizadas, constituindo sinais de proximidade e aliança. As mãos entrelaçadas

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215

no toré apontam para esta associação. Em relação ao momento, quando estão dispostas

para trás do corpo representam a obediência.

O movimento de curvar-se é comum no praiá onde, muitas vezes, o sujeito curva-se

em direção ao cantador, apontando para uma relação hierárquica. Esta relação é baseada

numa tentativa de associação entre duas ordens assimétricas e pode ser notada em outros

domínios, como ficou evidenciado no capítulo 4.

Além disso, em determinados momentos algumas das posturas citadas são levadas

de um ambiente a outro. A mulher andando com um balde na cabeça, cena bastante

comum de se ver na caatinga alagoana, por exemplo, aponta para a postura ereta, com

tronco e cabeça voltados para frente presentes no rito.

O andar abrupto e desequilibrado, típico da dança do praiá, também pode ser visto

no domínio do cotidiano. Du, filho do pajé, utiliza a mesma postura do praiá na pecuária,

apontando para a postura ereta, a pisada na frente e o grito longo com final abrupto:

―ooooop‖, para se marcar algo.

Estas posturas se subdividem entre os três rituais. Na dança do praiá, por exemplo,

a postura é mais agressiva, intensa e rápida, sendo sempre tensa. Os movimentos são

precisos e o erro não é admitido. No toré, o corpo muitas vezes está mais relaxado. O riso

é decorrência deste sentimento. Note-se como a postura no toré é diferente entre os

cantadores do centro da roda e os dançadores da periferia. Quanto mais se está no centro

do rito, mais tenso parece estar o corpo. No serviço de chão, o corpo varia do

relaxamento presente em algumas rodas de toré à tensão absoluta, quando se recebe o

encanto.

Cada repertório, portanto, pode ser visto em um domínio específico, sendo que

todos eles são intercambiáveis. O conjunto de todos aponta para a apropriação Kalankó

do ambiente e do mundo. Cada postura faz parte de um nicho, através do qual o corpo

interage num momento específico com o mundo e o elabora, assim como os objetos e o

conhecimento (SERRES, 2004 [1999]: 36).

Sendo assim, o corpo se conecta ao mundo, o que se dá pelas diversas relações

estabelecidas – entre o sujeito e outros sujeitos, entre ego e os objetos, entre ego e o meio

ambiente (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 445-447). O mundo emerge através de certa

atitude corporal.

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216

Neste universo, o corpo transborda de informações programáticas, que se

transformam em procedurais e simbólicas, constituindo uma relação arbitrária entre

informação e corpo (SERRES, 2001 [1985]: 99). Desta forma, o corpo inventa o mundo,

a partir de seu ponto de vista (Ibid: 384).

Esta atitude aponta para esquemas corporais integrados (SERRES, 2004 [1999]:

99), alguns representando movimentos de animais (ACSELRAD, VILAR, SANDRONI,

2004). Dentre o repertório apresentado aparecem tanto animais terrestres quanto aéreos,

mas nunca animais que possuem algum tipo de relação com o mundo subterrâneo. O

mundo subterrâneo é visto como o lugar da ameaça. Assim, a abelha, o boi, o cachorro e

o urubu podem ser representados, mas não o tatu.

Este mundo de representações simbólicas fica evidente na diversidade das posturas e

―gestos aparentemente insignificantes, transmitidos de geração em geração e protegidos

pela sua própria insignificância‖ (MAUSS, 2001 [1950]: 13). E, além disso, nas emoções

decorrentes da posição do corpo no mundo.

Nestes casos, o som que vem do espaço – das aves – gera uma profunda emoção no

sujeito83

, seduzindo o corpo.

A análise das letras de toré, no capítulo 3, já evidenciou o papel destacado do som

neste universo cultural. O código acústico sendo sempre marcante. A análise das formas

musicais do toré realizada no capítulo 5 corroborará esta ideia, apontando para a

importância da música. As conversas rememoradas no início deste capítulo também

indicam a mesma relação, relacionando o universo encantado com o som.

Evidencia-se assim que o som tem uma posição privilegiada no sistema integrado

dos sentidos, já que ―ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos

e vulneráveis... estão sempre abertos... captam todos os sons do horizonte acústico, em

todas as direções‖ (SCHAFER, 1991: 67). Além disso, o ato de ouvir ―mobiliza quase

todas as ares do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os

subsistemas neurais‖ (LEVITIN, 2010: 15)

Em janeiro de 2008 fui para a aldeia preocupado em entender a percepção que os

sujeitos têm em relação aos sons a que são expostos – sendo eles produtores ou não. E

83 Lévi-Strauss 2004 (1967) corrobora a ideia. Ele faz uma análise abrangente da importância do código

acústico no sistema mítico dos povos ameríndios. Neste estudo, o autor relaciona o universo sonoro a

valores de transformação. Na obra, não existe mundo sem som e som sem sentido social.

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217

também os afetos decorrentes desta relação. Neste sentido, ―não há nada no intelecto que

não tenha passado primeiro pelos sentidos‖ (SERRES 2004 [1999]: 164).

Alguns dos cantadores mais destacados, como Culezinha, Antonio e Abdias, não

estavam presentes, já que tinham ido trabalhar numa usina de cana-de-açúcar no sul de

Alagoas. Além deles, D Joana viajara a São Paulo para visitar parentes migrantes e D.

Jardilina se revezava entre Lageiro do Couro e o Riachão, um pouco mais distante,

cuidando do gado e de sua vida. Um de seus filhos, José, se mudou para Caraibeiras/PE,

por causa de um emprego numa empresa de tecelagem de redes. Era a época de

migrações.

Apesar das migrações e do excesso de calor a aldeia estava em paz. A colheita de

2007 havia sido boa e ainda dava condições dignas de vida a todos. Não faltava feijão.

Algumas famílias ainda possuíam acesso fácil à carne – frango e bode –, graças a

criações particulares, decorrentes de um projeto da Cáritas, organizado em 2005. E as

cisternas estavam cheias de água, atenuando a sensação de calor.

No sertão, com casa, água, comida e rede, quase todo mundo vive bem. Para

completar, os primeiros umbus já estavam aparecendo, deixando todos felizes.

Os eventos musicais também movimentavam a vida da população. Ainda nos

primeiros dias da viagem participei de um toré no centro cultural de Lageiro do Couro.

Este evento aconteceu por causa da minha presença, já que me foi prometido por Tonho

Preto, numa conversa que tivemos em Gregório, onde fica sua casa.

Nesta conversa ele me presenteou com um CD patrocinado pela CHESF –

Companhia Hidrelétrica do São Francisco, que contém música classificada como ―do

sertão‖, possuindo vários subgêneros, entre eles seis torés gravados pelos Kalankó e os

Koyupanká – em conjunto. Na ocasião, Tonho me disse da importância de ter a cultura

registrada e que outros grupos indígenas já a possuíam, como os Xokó/AL.

Ele me pediu então que gravasse o próximo toré de que participasse e o

transformasse em CD. Tonho Preto mostrou saber o poder da tecnologia no mundo em

que vivemos e de como ela pode servir para a divulgação da cultura Kalankó,

fortalecendo-os na luta relacionada ao período em que vivem.

A aldeia não ficava em silêncio. Um dia após o toré, uma moça procurou o cacique

Paulo pedindo auxílio para seu marido, Vicente, que estaria enfeitiçado. Este estado se

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218

manifestava através de um comportamento classificado como ―estranho e surpreendente‖,

relacionado a um desarranjo mental. O cacique Kalankó marcou um serviço de chão para

a cura do cabra, que se realizou em Lageiro do Couro durante a noite.

O ritual teve pequena participação, mas se desenvolveu como qualquer outro

serviço de chão, o cantador recebendo o encantado, que faz uma série de prescrições com

relação aos remédios do mato e às condutas. O momento no qual o encantado assumiu o

corpo do sujeito ficou evidente através da mudança no tom de voz do cantador. A voz se

tornou mais grave e arrastada. Além disso, o timbre tornou-se mais rouco.

Depreende-se dos eventos acima narrados que a música e mais especialmente os

sons – da voz, por exemplo – está relacionada a momentos importantes na vida Kalankó e

marcam a dinâmica da vida na aldeia. Da mesma forma, representam temas e relações

essenciais ao universo cultural em questão, relacionando-se ao corpo e às emoções.

O conjunto destes sons constituiu uma paisagem sonora, no sentido de Schafer

(2001 [1977]), que a entende como um ―ambiente sonoro‖ (: 182-187). Para o autor

―tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro [pode ser] vista como um campo de

estudos‖ (Ibidem). A paisagem sonora em tela é caracterizada pela mistura de sons

comuns aos sertanejos de maneira geral e de sons tipicamente Kalankó.

A aldeia Kalankó é um espaço tipicamente rural. Os dias seguem no ritmo dos

trabalhos na roça e na pecuária. O código acústico é muito importante em ambos os

casos, especialmente no trabalho com o gado, cujo controle e direção dos animais são

obtidos através do som. O som grave e contínuo do carro de boi passando, por exemplo,

durante o amanhecer e o entardecer é bastante marcante e identifica o momento de início

e fim das atividades diárias.

O som repetitivo dos cavalos, dos galos, das galinhas cacarejando agudamente, dos

bois e vacas pastando são sons que complementam a experiência sonora do dia.

Além disso, o som que vem do rádio, quase sempre ligado em volume alto, também

chama a atenção. Se não marca o dia no plano do tempo, aponta para novas tecnologias e

sons presentes a partir do Tempo da Luta. Estes rádios normalmente estão reproduzindo

músicas sertanejas, românticas ou alguma missa católica. A televisão é também produtora

dos sons na comunidade, estando quase sempre ligadas nas casas que a possuem.

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219

Os sons podem representar também as relações de gênero e etárias na aldeia.

Alguns dos sons registrados são tipicamente masculinos. Os sons decorrentes do futebol

no final da tarde, por exemplo, indicam a dinâmica do jogo e as conversas dos

participantes que ficam apenas contemplando. Outros sons pertencem a ambos os

gêneros, como as conversas dos homens, mulheres e crianças à noite na frente da

televisão.

Além dos sons acima explicitados, os quais pertencem à paisagem sonora de

qualquer comunidade sertaneja nordestina, há sons que fazem parte especificamente da

cultura Kalankó. Estes são comuns de se ouvir especialmente no domínio do rito, mas

também na prática cotidiana.

O som da voz dos cantadores nas noites de cantoria ritual, por exemplo, são

característicos de lá e marcam papéis de liderança, além de delimitar espaços. Estes sons

criam a ideia de terreiro e suas fronteiras, as quais, por exemplo, não podem ser

ultrapassadas em momentos rituais.

Outros sons caracterizam esta paisagem. O som irregular, intenso e agudo das gaitas

de praiá (HERBETTA, 2006) é comumente ouvido no poró e no terreiro. Este som

representa uma forma de contato com o universo encantado. O isturro também pertence a

este domínio. Ele constitui-se por um grito longo, regular e grave, ―ooooopppp‖ e é

emitido especialmente no terreiro, representando o momento de troca das peças musicais.

Quando é um só, o isturro marca o fim e o começo de uma peça. Pode marcar também o

momento do cantador aumentar a intensidade da voz84

. O mesmo som pode ser observado

no trabalho com os animais, no momento de marcar alguma mudança de movimento no

trajeto dos bois.

Segundo seu Edmilson e Tonho Perto, o som do isturro vem de uma árvore, o

ajucá, apontando para uma relação entre os sons do rito com o domínio da natureza e,

consequentemente, com a ideia de encantado. Tonho Preto me disse ainda que os sons

que são importantes para os encantados vêm ―das matas‖, considerado o espaço

encantado, indicando a existência de outra paisagem sonora, que se relaciona com o

domínio da natureza.

84 O isturro, como mencionado, é aquilo que Menezes Bastos (1999 [1976]) chama de vinheta, espécie de

afixo marcador de início e fim de peça ou seqüência de peças musicais.

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220

Outro som importante para a relação com os encantados é o do assobio. Segundo D.

Jardilina ―pode ser dois ou três assovios‖. Este som representando alguma mensagem,

como a chegada de alguém de uma viagem, a doença ou a cura. Culezinha corrobora a

ideia. Para ele, o assobio é um som essencial para a comunicação com os encantados,

sendo que ―assovio de perto, significa que o encantadao tá longe… de longe, significa

que tá perto‖.

Depreende-se daí uma paisagem sonora encantada que se relaciona com a paisagem

sonora Kalankó e sertaneja e que diz respeito a alguns sons fundamentais para o

estabelecimento da comunidade, como é representado no diagrama abaixo.

O diagrama acima representa os quatro conjuntos de sons e sonoridades que são

considerados relevantes entre os Kalankó. A relação entre todos estes sons estabelece

uma ecologia sonora, na qual o som de um determinado espaço é apropriado e

resignificado em outro. Alguns sons pertencendo a duas paisagens, outros às quatro. O

conjunto deles apontado para a ideia de territorialização Kalankó.

Paisagem Sonora

Encantados

Paisagem sonora Natureza

Paisagem sonora Sertaneja

Paisagem Sonora

Kalankó

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221

Do repertório de sons percebidos, as características do som que mais marcaram

minha experiência na aldeia foram a freqüência e a intensidade sonoras. Ambas

características diretamente relacionadas à emoção.

A freqüência se relaciona a altura, ―um dos principais recursos para a transmissão

da emoção musical‖ (LEVITIN, 2010: 35). A altura diz respeito à tessitura de sons que

podem variar do grave ao agudo, possuindo ainda uma infinidade de gradientes

diferentes, os quais possibilitam diversas combinações. Ela se relaciona à taxa de

vibração do ar e é medida a partir de ciclos por segundo (Hz)85

. Suas curvas e quinas

representam a intensidade ou a quantidade de energia presente no processo de produção

da onda sonora. Ao mesmo tempo, a altura aponta para a identidade do objeto sonoro (:

53)86

.

A intensidade diz respeito a amplitude de vibração das moléculas. Ela é logarítmica,

sendo medida em decibéis (dB). É ainda representada por um espectro dinâmico, a partir

do qual ―as mais ínfimas alterações na intensidade têm um efeito profundo na

comunicação emocional da música‖ (: 82).

Baseando-me na audição continuada da música Kalankó, em exegeses musicais e

no software Spectrogram 16, que produz um espectro sonoro do som gravado87

, a partir

da frequência e intensidade do som88

, evidencia-se que a percepção do poder do encanto

no terreiro tem relação direta com o registro sonoro. Neste cenário, quanto maior o perfil

do espectro, maior a presença da energia encantada.

Este sistema constitui um continuum que varia do toré, no qual se tem o menor

espectro e, portanto, menor presença do encantado ao serviço de chão, que constitui o

maior espectro e, consequentemente, apresenta maior presença do encanto, o praiá nele

ocupando posição intermediária.

85 O ser humano pode ouvir frequências que variam de 20 a 20 mil Hz.

86 Note-se que o som produz muitos modos de vibração simultâneos. Ouvimos muitas alturas ao mesmo

tempo, as freqüências estando muitas vezes matematicamente relacionadas entre si.

87 Todo o repertório Kalankó, constituído por cerca de 18 torés, 15 praiás e 15 serviços de chão foi medido

através do software citado. Além disso, várias versões de um mesmo canto, produzidas em eventos

diversos, passaram pelo mesmo procedimento, o que dá um total de cerca de 150 análises espectrográficas.

Os registros espectográficos apresentados no capítulo apresentam o padrão evidenciado nas análises. Isto

para manter a dinámica e objetividade do texto, assim como economizar espaço.

88 Note-se que segundo Schafer (2001 [1977]: 175-182) a espectrografia ou qualquer outro meio de

registrar graficamente o som tem alcance limitado, reduzindo a experiência sonora a alguns elementos.

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222

Abaixo, apresento o espectro sonoro resultante da análise do toré ―Papagaio

Amarelo‖.

Note-se que o som se propaga a uma amplitude entre 60 e 90 decibéis. O pulso é

contínuo e não é muito intenso, possuindo intervalos regulares a cada 3 segundos. A

frequência mantém-se a 4 kHz e em alguns momentos diminui.

A figura apresenta uma série de tensões e relaxamentos, típicos do uso da voz, mas

que se apresentam de forma particular. O espectro sonoro apresenta fluxos curtos de

maior intensidade, seguidos por um fluxo longo de menor intensidade. E, além disso,

momentos quase sem energia.

Do ponto de vista Kalankó, ao longo deste toré os encantados estavam sobre o

terreiro, apenas observando. Eles mantinham uma distância considerável do evento, mas

podiam perceber tudo o que estava acontecendo.

Quando se considera o praiá, todos afirmam que os encantados se aproximam

consideravelmente do terreiro, em alguns momentos estando presentes ali e dividindo sua

energia com os corpos dos cantadores. É interessante notar como o espetro sonoro aponta

para a extensão da onda sonora observada no toré. Abaixo apresento a análise

espectrográfica de um canto de praiá realizado no ritual da semana santa de 2005. O

cantador é Tonho Preto.

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Note-se que o som se propaga a uma amplitude próxima a 90 decibéis, mantendo tal

disposição de maneira regular. O pulso é mais contínuo e intenso, possuindo intervalos

menores, mas ainda regulares a cada 1 segundo. A frequência é sempre superior a 4 kHz.

No caso acima, a figura apresenta fluxos sonoros intensos – ao menos em relação ao

toré. Da mesma forma, porém, tais fluxos são sempre maiores no início e vão se

afunilando até o momento de menor intensidade. É como se este trecho de praiá

representasse o toré elevado a alguma potência. Note-se que as pausas ou momentos de

menor intensidade são bastante reduzidos, o cantador sempre produzindo ondas sonoras

cheias.

Segundo Tonho Preto, neste momento, a energia encantada está atuando no

terreiro e os dançadores podem sentir isso. Culezinha me disse que sem esta energia seria

impossível suportar fisicamente o rito.

Em alguns momentos do praiá, o som se torna mais discreto, estabelecendo-se uma

relação entre o cantador e os dançadores. Neste momento, o cantador ainda mantém a

tendência de produzir fluxos cheios e intensos e os dançadores respondem com figuras

menores, as quais representam o afunilamento característico da onda sonora. Abaixo,

apresento o mesmo canto de praiá representado acima, no momento referenciado.

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Note-se que o som que é produzido pelo cantador mantém a mesma dinâmica dos

outros trechos apresentados. É um som cheio e intenso, possuindo maiores frequências

em relação ao som dos dançadores que respondem ao canto principal. O pulso não é nem

contínuo nem intenso e os intervalos são grandes. A frequência muitas vezes não chega a

4 kHz.

Percebe-se até o momento que a percepção Kalankó da presença dos encantados

está diretamente relacionada à intensidade da onda sonora representada nos espectros

sonoros. E que quando o espectro aponta para momentos de maior silêncio ou menos

intensidade, estes são considerados períodos de menor energia encantada.

Em oposição, alguns momentos do praiá representam grande intensidade de energia

encantada. Como já dito, o isturro representa um momento marcante dos cantos e aponta

para a energia referida. Ele é inclusive característico do se chama de praiá de parelha.

Neste momento os dançadores juntam-se às mulheres da aldeia e cada casal faz

movimentos de ida e volta em direção ao cantador (HERBETTA, 2006). Ao chegar à

posição do cantador, emite-se o isturro.

Para Tonho Preto ―é aí que a coisa tá quente‖, referindo-se a potência encantada.

Apresento abaixo um destes momentos.

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225

Note-se que agora quem emite a onda sonora cheia, mais intensa e com frequências

maiores é o dançador. Neste sentido, percebe-se que a energia encantada, representada

por esta forma sonora cheia, está nos referidos dançadores. Desta forma, explica-se a

afirmação de Tonho Preto que diz que na parelha a energia está no corpo dos

participantes.

Em seguida ao praiá de parelha, a voz do cantador volta a produzir figuras

cheias. Segue abaixo a continuação do praiá cantado por Tonho Preto.

Note-se que o som no praiá em questão é produzido por uma sequência de pulsos

bem definidos. O som é intenso e no final de cada pulso existe um intervalo para o

prosseguimento do pulso. O som propaga-se a uma amplitude de mais ou menos 45

decibéis. A frequência ultrapassa normalmente os 4 kHz.

As figuras formadas apontam novamente para um início cheio e intenso e um

movimento extenso, mas descendente em direção ao relaxamento. Como nos outros

praiás apresentados não há muito relaxamento. A voz do cantador que volta a produzir

figuras cheias e intensas marca o local da energia encantada.

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Depreende-se da análise em tela que a percepção Kalankó do som relaciona-se com

as figuras das ondas sonoras, representadas no espectro sonoro. Quanto maior é a

frequência e a amplitude, maior é a percepção da energia encantada.

O gráfico abaixo evidencia isto a partir de uma comparação entre a amplitude do

espectro sonoro de um toré à esquerda e de um praiá à direita.

O gráfico acima apresenta a relação dB:Hz delimitando a amplitude média por

frequência no toré e no praiá. De acordo com ele, pode-se perceber que o espectro

sonoro do praiá é mais volumoso, mantendo-se entre 60 e 90 de forma mais regular. Em

praticamente nenhum momento a onda sonora cai abaixo deste patamar. Ao mesmo

tempo, os picos superiores a 90 acontecem comumente. As quinas, com já mencionado,

apontam para momentos de intesidade de energia (LEVITIN, 2010: 53).

Para seu Edmilson, porém, é o serviço de chão (SC) que possui mais energia

encantada. Desta forma, é neste gênero musical que se pode perceber um espectro sonoro

mais volumoso, baseado em maiores frequências e/ou intensidades e mais quinas.

Abaixo, apresento um destes cantos realizado por seu Edmilson no terreiro da

retomada. Este canto tem relação com o encantado Sereno.

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227

Note-se que o som no serviço de chão acima é representado por grandes fluxos

sonoros. Estes fluxos são extensos e intensos. A figura padrão do canto Kalankó, que se

direciona para o relaxamento, é mais extensa do que nos outros cantos apresentados. É

como se o SC em questão apresentasse a mesma lógica dos outros gêneros, mas fosse

mais extenso em proporção aos outros.

Além disso, o SC é produzido a partir de uma sequência de pulsos bem definidos. O

som propaga-se a uma amplitude de mais ou menos 90 decibéis. A frequência ultrapassa

normalmente os 4 kHz.

Na mesma ocasião, seu Edmilson cantou outro SC que aponta outras características

sonoras interessantes. Abaixo apresento o canto que é relacionado ao Capitão

Lambuzinho.

Note-se que se os fluxos sonoros nele explicitados não são extensos e contínuos

como no primeiro analisado. A intensidade relacionada à amplitude do canto permanece

em destaque. Além disso, da mesma forma, o número e a extensão dos intervalos são

pequenos, representando um fluxo que aponta para a continuidade. Ao mesmo tempo, se

não há uma figura extensa, há diversas figuras que são caracterizadas pela maior

intensidade.

Ainda, este SC é produzido a partir de uma sequência de pulsos bem definidos. O

som propagando-se a uma amplitude de mais ou menos 90 decibéis e a frequência

ultrapassando normalmente os 4 kHz.

Depreende-se das análises espectrográficas do SC a presença de maiores

amplitudes. Neste sentido, podem-se comparar os SC em questão aos praiás,

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228

evidenciando que para os Kalankó, quanto maior o volume, maior é a percepção da força

encantada. O gráfico abaixo demonstra esta relação.

O gráfico acima apresenta o espectro sonoro tomando como base a relação dB:Hz

referindo-se à média do volume do espectro sonoro no praiá (esquerda) e no serviço de

chão (direita). De acordo com ele, pode-se perceber que o espectro sonoro do serviço de

chão é similar ao do praiá no sentido em que ambos apresentam altas taxas de frequência

e intensidade. O serviço de chão se destaca por atingir picos maiores em decibéis,

apontando para maior amplitude e pela quantidade de quinas.

As características que se destacaram na análise supracitada, como as altas taxas de

frequência e amplitude, assim como as formas do espectro sonoro, que apontam para uma

relação regularidade:poder, a qual se relaciona ao binômio som:encanto, já falada, podem

ser observadas em outros objetos sonoros relevantes para a paisagem sonora Kalankó.

Paulo me disse, por exemplo, que o lugar dos encantos é a antiga cachoeira de

Paulo Afonso. Uma cachoeira, no sertão alagoano, tem o sentido de santuário. Isto ocorre

não só na aldeia Kalankó. Desta forma, a natureza novamente aponta para o sentido do

poder, relacionado à abundância.

O som emitido por uma cachoeira é particular. Ele é intenso e contínuo, apontando

para a regularidade, que como visto, é percebida como energia encantada. Esta

característica é notada em outros objetos sonoros Kalankó, como no som do maracá.

O maracá é um instrumento musical classificado como vivo, como evidenciado no

capítulo 4 e, por isso, valorizado na aldeia. Segundo os Kalankó, ele é fundamental para

o contato com os encantados.

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229

Neste universo, o maracá pertence ao domínio da natureza, seu som possui

características especiais como os acima descritos. Segue abaixo trecho do som do maracá

analisado através de espectrografia.

Note-se que o som emitido pelo maracá se aproxima do som da cachoeira, pois é

intenso, regular e contínuo. Ele se próxima também dos outros sons relacionados à

natureza e aos encantados, pois também elimina os intervalos silenciosos de baixa

intensidade.

Neste sentido, evidencia-se que a regularidade é uma característica marcante nos

sons que são entendidos como poderosos e que isto se opõe de certa forma a dualidade

percebida na caatinga alagoana. Temos então que,

REGULARIDADE/SAZONALIDADE

A equação acima explicitada mostra que o som aponta para uma superação do

desequilíbrio escassez:abundância trabalhado no capítulo 1. Desta forma, sendo

fundamental para a vida na região.

Em oposição ao som dos maracás e da cachoeira, ambos os termos classificados

como vivos, tem-se o som das gaitas, que são consideradas não vivas. As gaitas

constituem momentos marcantes no domínio do rito, pois agem como marcadores

sonoros dos encantos e por isso representam a chegada dos mesmos. Abaixo apresento

um destes momentos.

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230

Note-se que no momento da gaita o som torna-se agudo e intenso, expresso como se

fosse um novo pulso. O som dela propaga-se a uma amplitude de mais ou menos 50

decibéis. A extensão do espectro sonoro é larga, mas a gaita não aponta para a

regularidade. Seu som não possui taxas altas de frequência e amplitude e nem extensos

fluxos regulares. De certa forma o espectro sonoro da gaita é similar ao do toré – menos

volumoso. Não por acaso o toré é chamado de brincadeira e possui o menor nível de

energia encantada entre os ritos Kalankó.

Outros sons bastante comuns de se ouvir na caatinga alagoana são os dos pássaros.

A caatinga possui uma diversidade enorme de espécies de aves pertencentes a diversos

gêneros, sendo alguns endêmicos.

Como já dito, os encantos são normalmente representados como pássaros, o que

aponta para a importância de seus cantos e da dinâmica de suas sonoridades. É

interessante notar como o canto de alguns destes pássaros89

seguem a mesma dinâmica

apresentada nos cantos Kalankó. Desta forma, estabelece-se uma hipótese de similaridade

ou contiguidade entre ambas. Sabe-se então porque os pássaros são encantos.

O espectrograma abaixo90

apresenta o espectro sonoro do canto do acauã. Este

pássaro é muito comum em toda região do semi-árido e é personagem central inclusive de

um toré. Ele pertence à espécie Herpetotheres cachinnans e seu canto pode durar vários

minutos. O espectrograma abaixo apresenta um breve estrato de cerca de 10 segundos.

89 Note-se que a relação entre sujeitos e pássaros e entre mito e canto dos pássaros, apontada até o

momento, é similar a observada em outras regiões, como na Nova Guiné. Feld (1990 [1982]), por exemplo,

evidencia tal relação entre os Kaluli. Para o autor, o som dos pássaros se relaciona com as sensações,

condutas e percepções dos Kaluli, sendo essencial para a constituição da pessoa na região.

90 Os espectrogramas dos cantos dos pássaros apresentados neste capítulo, assim como suas legendas e as

imagens das respectivas aves pertencem ao sítio ―Birds of Northeastern Brazil‖. Para os espectrogramas foi

usado Raven Pro Software.

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231

Frequentemente, o canto se inicia a partir de uma sílaba, passando para duas e no

final, finalizando em três sílabas. O nome do pássaro vem, inclusive, da sonoridade de

seu canto (A-CAU-Ã).

O espectrograma acima deixa claro como o canto do acõa desenvolve-se a partir

alguns fluxos mais intensos de som relacionados a momentos de fluxos menos intensos e

silêncios. Esta dinâmica sonora apresenta-se de forma regular formando imagens

intervalares que representam o som e o silêncio. O canto não é contínuo e os momentos

sonoros variam de 0.1 a 2.5 kHz.

Abaixo apresento outro pássaro, o viuvinha. Ele pertence à família Anatidae

Dendrocygna Viduata e pode ser chamado de White-faced, Whistling-Duck, Irerê ou

Marreca.

Durante a estação chuvosa, estes patos nidificam perto de açudes e lagoas e vivem

em bandos de 20 a 30 indivíduos. Eles são bastante valorizados pelos Kalankó, mas

atualmente são cada vez mais raros, por causa da caça descontrolada. Ainda são,

entretanto, bastante comuns na aldeia Kalankó, sendo representados também em um

canto de toré. Abaixo apresento trecho do canto analisado por espectrografia.

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O canto do viuvinho pode ser ouvido principalmente à noite. No exemplo acima, há

quatro repetições (marcados de 1 a 4), apontando para a repetição e regularidade do fluxo

sonoro. A amplitude aumenta em cada um dos fluxos. Observe a figura abaixo para

maiores detalhes da parte A.

O gráfico acima aponta para o fato de que há uma variação na intensidade do som,

representada no aumento da freqüência, que varia de fluxos que vão de 2 a 4 kHz a fluxos

que vão de 12 a 14 kHz. Esta situação indica a importância da variação da frequência

como modo de diferenciação de fluxos sonoros. Entre os Kalankó esta relação parece

apontar para significados relevantes à comunidade – relacionados à energia encantada.

Outros pássaros comumente encontrados na região também apresentam a mesma

dinâmica. Abaixo apresento análise espectrográfica do gavião caburé91

.

Note-se que o canto do gavião-caburé – ouvido ao longo do dia – é baseado em uma

sucessão de fluxos intensos e relaxamentos. E que os fluxos apresentam taxas de

91 Este pássaro pertence à família falconidae, Micrastur ruficollis e pode ser chamado popularmente como

Gavião-caburé. Ele é da subespécie Micrastur ruficollis ruficollis.

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frequência muito maiores que os relaxamentos. Além disso, que os intervalos são

regulares e extensos.

A rolinha azul também é bastante encontrada na aldeia. Ela é bastante apreciada

como carne de caça, não fazendo parte do sistema de representações presente no toré. Seu

canto também possui a mesma disposição sonora, mantendo a mesma dinâmica dos

outros cantos supracitados. Abaixo, um espectrograma corrobora o exposto.

A vocalização da rolinha-azul apresenta um sinal que passa pela faixa entre 200-

800 Hz.

O gráfico abaixo demonstra que na vocalização da rolinha-azul, podem ocorrer

pares de sons, como os pares (1,2) (1,2) no exemplo,

Além disso, fica claro que a intensidade do fluxo sonoro apresenta acréscimo ao

longo da onda sonora, indicando que o canto deste pássaro articula pares e intensidades

diferentes, armando uma estrutura sonora própria, similar à sonoridade Kalankó.

A análise dos espectros sonoros em tela – estruturados pelos Kalankó e pelas aves

da região apontam para diversas similaridades e algumas diferenças. Ambas as

sonoridades constituem-se por intervalos regulares, constituídos por diferentes fluxos de

sons, cada qual com intensidades diferentes. Na dinâmica Kalankó há uma valorização da

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continuidade, o que aponta para o volume do espectro sonoro e, consequentemente, a

presença do encanto. Nas sonoridades das aves evidenciadas, há uma valorização da

regularidade e repetição dos fluxos intensos de som.

Além disso, nos dois casos formam-se basicamente duas figuras distintas,

representando dois momentos de fluxos sonoros que são intercalados por momentos de

silêncio. Estas duas figuras aparecem sempre em relação, uma a outra, construindo

armações sonoras e constituindo as sonoridades específicas. Nestas sonoridades pode-se

perceber uma tendência ao aumento da amplitude sonora, ou seja, da intensidade do som,

ao longo da apresentação da onda sonora. Estas características, porém, se apresentam de

formas e graus diferentes nos diversos gêneros musicais Kalankó.

Depreende-se das análises espectrográficas acima apresentadas que a concepção

Kalankó de corrente sonora é volumétrica, quanto maior o volume do espectro sonoro,

maior é a percepção da energia. Esta relação é evidenciada em outros grupos indígenas

das TBAS – Terras Baixas da América do Sul – como nos casos Kamayurá (MENEZES

BASTOS, 1999 [1976]) e Guarani (MONTARDO, 2002). Além disso, que a percepção

sonora nativa tem relação direta com a paisagem sonora da natureza. Se por um lado a

regularidade do canto das aves é similar à dos cantos Kalankó, por outro, a regularidade

do som da natureza é classificada como viva ali.

Disto, pode-se concluir que para os Kalankó os sons da comunidade são

metáforas relacionadas à sonoridade dos pássaros. E que esta relação evidencia a

importância das aves no sistema de pensamento nativo, as quais são entendidas como

encantados. Em segundo lugar, os sons Kalankó são metonímias em relação ao universo

encantado, no sentido em que os fluxos sonoros são percebidos como energia vital para

os diversos corpos da caatinga.

Sendo assim, o som é o próprio encanto, enquanto o sujeito Kalankó pertence ao

mundo vegetal, os sujeitos sendo as árvores. Neste sentido, o encanto – através da

energia vital – é o elemento que promove a polinização das flores e árvores – que são os

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corpos Kalankó – e, portanto, a reprodução do grupo, estabelecendo a relação entre os

termos abaixo92

.

ENCANTO : SOM : AVE ::

SUJEITO : PLANTA

Se o corpo é o espaço que recebe a energia vital encantada, o espectro de som,

decorrente das diversas paisagens sonoras, afeta de forma mais intensa o corpo do sujeito,

gerando as emoções próprias do ser Kalankó. Isto posto, o som expressa a identidade do

encanto e seu poder, que interfere e transforma o mundo nativo.

Neste universo, o corpo é glorioso, – como em Serres (2001 [1985]) e Merleau-

Ponty (2006 [1945]) – ou seja, tem a potência de invenção e transformação do mundo e o

som é o alimento que garante a reprodução dos sujeitos na terra.

Na aldeia Kalankó, os encantos são as aves que polinizam as plantas, pessoas.

92 Há também uma imagem vegetal dos índios no imaginário europeu. Esta, porém, é inversa ao

imaginário indígena, já que aponta para o contraste de uma percepção baseada na relação entre o suposto

vigor animal dos africanos e a pretensa preguiça vegetal dos ameríndios (VIVEIROS DE CASTRO: 187).

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Capítulo 7

Circuito – redes de entrelaçamento no sertão

nordestino

A ideia de circuito perpassa todo o entendimento de mundo Kalankó. Ela

apareceu no estudo sobre a grande família (capítulo 4), formada a partir da associação de

sujeitos pertencentes a uma extensa rede social. Apareceu no estudo do processo de

catequese (capítulo 2). Lá, ela já fazia parte dos modos como a população apreendia a

nova realidade. E apareceu também no período da democratização brasileira, sendo

importante para a organização da luta política do grupo (capítulo 2).

Para os Kalankó, tudo o que existe de fato, concretamente, provém da posição do

ser ou do objeto num sistema abrangente e pré estabelecido, formado por inúmeros outros

elementos e variáveis. E da relação entre as diversas constantes e atributos deste sistema.

Os Kalankó, inclusive, são produto e produtor desta realidade.

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A própria ideia de encantado existe somente a partir da relação que estes entes

estabelecem entre os diversos espaços indígenas do sertão nordestino, entre eles –

encantados – e os seres humanos e entre os encantados entre si (HERBETTA, 2006). Se

o sujeito não zelar por sua semente e seus vestes, por exemplo, não há relação com o

encantado. Se não houver relação com outros espaços indígenas não há encantado. Se

não houver uma relação com o meio ambiente, não há semente nem veste – não havendo

o encanto.

Com os cantos a lógica é a mesma. Eles existem na medida em que participam

desta extensa rede de espaços, corpos, objetos e natureza.

Além disso, nada na visão nativa existe somente para os Kalankó. Tudo está ou

pode estar em diversos locais simultaneamente. Isto sempre em relação a um parente, o

que quer dizer que cada encantado pode existir em todas as aldeias indígenas sertanejas,

ao mesmo tempo. E, desta forma, muitos sujeitos podem possuir a semente, representação

material e a veste do encanto, também simultaneamente93

.

Em uma conversa que tive com o pajé Tonho Preto no terreiro da Januária em

2008 esta ideia me foi mais claramente formulada. O pajé disse que os encantados se

comunicavam com todas as aldeias indígenas do sertão nordestino, pois existe uma

espécie de rede ou circuito – nas palavras dele – que interliga os diversos espaços.

O mesmo acontece com os cantos que, ao serem criados em qualquer destes

espaços, podem – imediatamente – ser usados em qualquer outro dos espaços

classificados como indígenas. Acontece o mesmo com a energia encantada94

, que pode

atuar em todos os lugares, simultaneamente.

Da afirmação do pajé, pode-se depreender, em primeiro lugar, a lógica da

associação e do recorte, a qual busca aliar todos – extensamente –, mas executa um corte

em determinado momento, selecionando um tipo específico. No caso, busca associar

todas as aldeias indígenas do sertão a todos os encantos e seus cantos. O corte sendo

efetuado a partir da ideia de parente ou índio sertanejo.

93 A ideia de simultaneidade questiona a lógica identitária clássica, baseada na não contradição e na

dedução (MORIN, 2002 [1991]).

94 Me parece que a energia encantada produzida em um determinado espaço, só pode ser usada neste lugar.

Não havendo a possibilidade de produção da energia para uso em outro – ou sua distribuição. Este tema

deve ser melhor trabalhado em futuros estudos.

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Em segundo lugar que tais grupos não podem existir sós. Eles só existem em

relação ao outro – parente/igual. Existindo uma relação de dependência e similaridade de

um grupo a outro e de um sujeito a outro. O que acaba por elaborar formas similares ao

longo da caatinga. E, por último, que existe uma relação de similaridade e contiguidade

entre os termos da relação ENCANTOS : CANTOS : ENERGIA.

Similaridade pois são termos usados como sinônimos no discurso nativo. Muitas

vezes fala-se do encanto, usando o termo canto. Em outras, usa-se o termo energia, para

se referir aos encantados ou aos cantos. E assim sucessivamente. Contiguidade pois cada

um deles pode assumir a função do outro nos diversos espaços da aldeia. Desta forma, o

encanto de que se fala ao fumar um campiô, transforma-se em canto quando se dança um

praiá e em energia encantada no serviço de chão. Todos os termos assumindo a mesma

função.

É interessante notar também que a ideia colocada acima já está de certa forma

presente nos textos missionários, apontando para a longevidade do sistema e,

consequentemente, para seu caráter estrutural. A grande família, por exemplo, já estava

presente na ―ideia de que os índios os tinham [missionários, portugueses, curraleiros,

vaqueiros, soldados e escravos] por ―compadres‖ oferece[ndo] alguns indícios daquela

que devia ser a complexa rede de relações entre índios e colonos no século XVII‖

(POMPA, 2002: 278).

Neste sentido, Arruti (1999) ressalta a importância da manutenção dessas redes

que ele chama de círculos abertos de trocas de cultura, referindo-se aos laços não só de

parentesco, como também aos de afinidades.

Assim, o fenômeno opera a partir de alianças com a sociedade nacional, das

relações de parentescos com outros grupos indígenas e da consequente prática de seus

rituais, apontando para a importância das relações de aliança e reciprocidade

estabelecidas entre a maior parte dos sujeitos da região. O círculo aberto de cultura tendo

como base a relação de parentesco e afinidades, formadoras das alianças e das relações de

reciprocidade.

Barbosa (2003) também fala sobre a importância das trocas entre os diversos

grupos. Para ele, o sistema referido pode promover intensas transformações nos

conjuntos, estabelecendo novas identidades e rupturas.

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239

Desta forma – sendo importante ontem e hoje – o circuito se mostra como um

operador de transformações e permanências tanto no plano da sincronia quanto no da

diacronia. Isto não acontece de forma isolada e fragmentada – uma ordem de cada vez –,

constituindo, ao invés disso, uma dinâmica constante.

Este debate – entre diacronia e sincronia – poderia ―continuar sem saída, a menos

que não nos apercebamos que as duas ordens não estão, uma em relação à outra, numa

relação de causa e efeito‖ (LÉVI-STRAUSS, 2001 [1950]: 15). Elas atuam

conjuntamente e simultaneamente – uma influenciando a outra. Sendo assim, ―a

antinomia que alguns crêem descobrir entre a história e o sistema apareceria [...] apenas

se ignorássemos a relação dinâmica que se manifesta entre estes dois aspectos‖ (LÉVI-

STRAUSS, 1989 [1962]: 183).

Esta ideia do circuito é também uma espécie de base para o desenvolvimento da

etnologia e, consequentemente, da antropologia. Ela está presente nas teorias e

etnografias dos grandes autores da disciplina, como Mauss e Lévi-Strauss.

Para o primeiro, existem certas estruturas dinâmicas de troca e de relacionamento

social que são responsáveis pela formação das diversas sociedades e da comunicação

entre elas. Além disso,

o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e

imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de mais, amabilidades,

festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras,

cujo mercado não é senão um dos seus momentos e em que a circulação

das riquezas mais não é do que um dos termos do contrato muito mais

geral e muito mais permanente (MAUSS, 2001 [1950]: 55)

Estas estruturas podem assumir diversos nomes como Kula ou Potlatch.

Desta forma, as ideias do dar, receber e retribuir aparecem como fundamento da

sociedade. Nela, busca-se ―a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo

atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído‖

(MAUSS, 2001 [1950]: 52).

Estas solidariedades são estabelecidas entre os sujeitos que convivem. Entre estes

e os objetos, trocados nos espaços de convivência e entre os sujeitos, os objetos e o meio

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ambiente. Neste sentido, Mauss busca em sua análise um sistema de pensamento nativo

ou as categorias nativas sistematizadas, a partir das quais se organiza a sociedade.

Este tipo de circuito, como o Potlatch, o Kula e outros acabam apontando – a

princípio – para um movimento circular, ideia marcante em Mauss (2001 [1950]),

trazendo a noção de uma aparente simetria, na qual todos os elementos teriam valores

equivalentes e as constantes seriam facilmente medidas, com os elementos circulando em

torno dos grupos.

No Kula, por exemplo, os colares de conchas voltam ao local inicial

(MALINOWSKI, 1978). Contudo, segundo Leach esse ―modelo estrutural ideal [onde]

tudo se ajusta com muita perfeição: cada pessoa e cada grupo de pessoas tem um lugar

determinado num sistema claramente definido‖ (1996 [1964]: 243, grifo meu) não existe

na realidade95

.

Sendo assim, para Lévi-Strauss96

, cujo foco é a estrutura inconsciente, uma

comunidade sempre estabelece articulações entre diversas ordens de mesma natureza ou

não. Assim, ―o sistema de parentesco, as regras de casamento e as de filiação formam um

conjunto coordenado, cuja função é garantir a permanência do grupo social,

entrecruzando, como num tecido, as relações consangüíneas e as fundadas na aliança‖

(LÉVI-STRAUSS, 2008 [1958]: 335).

Desta forma, ele deixa clara a existência de um circuito aberto de relações e inter-

relações e de entrecruzamento de diversas ordens, responsáveis pelo estabelecimento do

grupo. Ao mesmo tempo em que também reforça a ideia de uma suposta simetria, ele

também questiona esta aparente harmonia, pois ―symmetry existis, however, but it

assumes a more complex form than I allowed at first, so as to simplify the argument‖

(LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]: 648).

95 Segundo Leach (1996[1964]: 324), Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard seriam dois dos maiores

defensores da teoria do equilíbrio.

96 Lévi-Strauss (2001 [1950]: 23) reconhece e valoriza o trabalho de Mauss, no sentido em que este foca

sua análise num ―sistema de interpretação [que dá] simultaneamente conta dos aspectos físico, fisiológico,

psíquico e sociológico de todas as condutas‖. É o que Mauss chama de fato social total, o qual deve ser

apeendido em sua totalidade para atingir realidades mais profundas (: 30). Para Lévi-Strauss, porém, Mauss

deveria seguir explorando sua análise, estendendo-se a uma ordem diacrônica e mantendo-se na ordem da

experiência. Segundo o autor, ―toda a teoria reclama assim a existência de uma estrutura, de que a

experiência não oferece senão os fragmentos, os membros dispersos, ou antes, os elementos‖ (: 34).

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Para o autor, a imagem da máquina é adequada para se pensar a produção e a

relação de diversas ordens entre as estruturas de um agrupamento, sendo assim na

ausência de influências externas, essa máquina funcionaria indefinidamente e a estrutura

social conservaria um caráter estático. O que elaboraria um sistema conservativo,

colaborando com a noção de circularidade e simetria. Não é isso o que ocorre.

É preciso introduzir – no modelo teórico – novos elementos, cuja intervenção seja

capaz de explicar as transformações diacrônicas da estrutura e, ao mesmo tempo, ―as

razões pelas quais uma estrutura social jamais se reduz a um sistema de parentesco‖

(LEVI-STRAUSS, 2008 [1958]: 336)97

. Deste modo, Lévi-Strauss abre uma brecha para

o debate sobre a concepção do circuito. Tal brecha é o ponto de partida para se pensar o

circuito expresso nas palavras de Tonho Preto, o qual será analisado neste capítulo.

Com base nas ideias até aqui colocadas – de circularidade e simetria –, alguns

temas particulares à etnologia sul-americana foram sendo elaborados, pensando em

constantes que definiriam uma rede social responsável pela elaboração do grupo.

Clastres (1988 [1974]), por exemplo, vê na violência, entre os Guarani, o

elemento formador de uma rede social de afinidade e reciprocidade, garantindo a

autonomia de cada grupo. Para ele, a guerra age como elemento positivo para a

elaboração da rede social.

Entre os Kalankó, a rede que liga as famílias indígenas do alto sertão alagoano é a

princípio visivelmente percebida numa série de festas, alimentadas pela teoria nativa de

música, que age como um grande articulador destes eventos (HERBETTA, 2006). Estes

que contam com a participação dos grupos indígenas da região, com destaque para

aqueles que mantêm ligações genealógicas de grau mais próximo.

No alto sertão nordestino, portanto, além de mulheres, bens ou palavras (LÉVI-

STRAUSS, 1985 [1967]), trocam-se músicas.

Desta forma, as comunidades que participam das mesmas festas possuem as

mesmas canções. Estas são transmitidas de grupo a grupo, construindo um mesmo

repertório musical e alimentando uma intensa rede de migração musical, na qual se

97 Estes autores afastam-se de outros como Radcliffe-Brown ou Malinowski que não acreditam nesta

dinâmica aberta e complexa, adeptos de uma etnologia similar à ideia de naturalidade ou a conceitos

fisiológicos. Ambos acreditam na existência de um método orgânico que funcionaria a partir de

necessidades simplesmente biológicas e no caso do primeiro, a partir de relações diádicas.

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destacam algumas músicas que são mais identificadas com o aldeamento de Brejo dos

Padres/PE, que de acordo com os sujeitos, possuem maior poder (HERBETTA, 2006).

As festas em comentário estão assentadas na contínua reprodução e elaboração de

um repertório musical comum entre os povos indígenas da região, pois as canções que

são cantadas nos vários encontros por determinado grupo são aprendidas pelos outros

presentes e reproduzidas nas comunidades. Desta forma um toré Xukuru pode ser

simultaneamente Kalankó, e, por isso, cantado nas aldeias em questão. Esta lógica

funciona indefinidamente entre todos os grupos que fazem parte desta extensa rede.

Isto evidencia a existência de um sistema de comunicação músico-ritual supra

local – espécie de linguagem franca –, o que evoca o caso xinguano (MENEZES

BASTOS 1999 [1976]). Algumas canções do repertório em consideração são bastante

comuns de se ouvir por toda a caatinga alagoana. Desta forma, os cantos assumem papel

de destaque, sendo um atributo importante para o entendimento do circuito Kalankó.

Outros elementos são, porém, importantes para a compreensão do sistema.

É importante destacar, por exemplo, que estes círculos de cooperação e troca se

dão no desenho de uma paisagem específica, construídas pelos próprios seres que a

habitam e acontecem, portanto, no espaço. Este sendo outro atributo importante para o

entendimento do circuito.

É interessante notar como algumas formas geométricas se destacam neste

universo.

O terreiro é sempre retangular e tem um tamanho similar em todas as aldeias

indígenas sertanejas. No terreiro, no domínio do rito, observam-se constantemente

círculos e semicírculos, elaborados a partir de formações coreográficas diversas.

Em frente ao terreiro retangular há uma oca grande em formato circular, também

de tamanho similar nas aldeias. Ela é construída a partir de toras de madeira e palhas de

caroá e sobe em espiral.

Tonho Preto corroborou a ideia da forma retangular em outra conversa. Em 2009,

ele indicou claramente a extensão da terra pretendida pelos Kalankó. A área de

abrangência deste território tem o mesmo formato retangular dos terreiros. Se os

terreiros são os locais da energia encantada, o território Kalankó é pensado para isso. O

formato retangular é o espaço de concentração da energia sendo similar à área de

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243

concentração da energia no chão no serviço de chão – um pano retangular estendido no

chão.

O formato é ainda o mesmo das roças de feijão, local de trabalho dos homens da

aldeia.

Além desta concepção horizontal expressa acima – baseada na retângulo e no

círculo – há uma percepção vertical hierárquica do espaço. Esta concepção horizontal

existe simultâneamente à outra, o espaço Kalankó sendo percebido a partir de ambas.

Desta forma, para os Kalankó, o universo é formado por três estratos, sendo o de

cima, superior, espaço do poder encantado e de Deus. O estrato do meio sendo o da

provação, espaço dos índios que devem sofrer, provando seu valor, para receber a graça

de Deus e garantir uma existência adequada após a morte. E o estrato de baixo, o local da

ameaça.

Tal percepção pode ter inspiração religiosa (GLEISER, 93), relacionada ao

cristianismo e ao processo de catequese, baseados na ideia de monoteísmo, na qual um

Deus – ou um tipo de poder – se isola num plano hierarquicamente superior.

O circuito se dá então entre estas formas geométricas e dentro delas – nas

dimensões estabelecidas. Todos os espaços estão conectados simultaneamente e se auto e

retroalimentando. Os fluxos de troca se movimentam em todos os sentidos, como

expressam as flechas do diagrama abaixo, que busca representar a concepção do espaço

Kalankó. Do lado esquerdo, está representada a concepção horizontal do espaço e no

direito a multidimensionalidade dele.

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O diagrama acima aponta para a ideia de que as trocas acontecem entre o espaço

Kalankó e os outros similares indígenas e no interior do espaço, estabelecendo um

universo que tem como base uma arquitetura fractal98

que gera formas similares,

elaborando um grande mosaico indígena na região.

Isto configura um espaço no qual tal célula padrão não está apenas na parte

Kalankó, mas também no todo do espaço indígena. O todo estando na parte. Crescendo a

população indígena, emerge a arquitetura de mundo produzida ali, que pode ser

imaginado no mapa abaixo99

.

Está célula padrão é ainda hologramática100

, possuindo multidimensões. Cada

uma definindo-se dialogiacamente em um circuito infinito, ou ―em outras palavras, há

interdependência, em cadeia, dos sentidos‖ (MORIN, 2002 [1991]: 207), onde uma aldeia

só faz sentido em relação à outra e uma dimensão em relação à outra.

Além disso, segundo Tonho Preto, o espaço Kalankó é constituído por múltiplos

pontos. Para o pajé, estes pontos só existem ou podem ser abertos em território indígena e

são responsáveis pela conjunção com o universo encantado. É através deles que a energia

encantada pode emergir na terra. Os Kalankó apontam determinados lugares no terreiro

98 Fractais constituem-se por estruturas geométricas de grande complexidade. São imagens que possuem as

características do todo multiplicadas em cada parte. É assim um objeto geométrico que pode ser dividido

em partes, cada uma das quais, semelhante ao objeto original.

99 Fonte: Atlas dos Povos Indígenas de Alagoas (2007).

100 Os hologramas são objetos tridimensionais que permitem a observação dos objetos que lhe deram

origem. Eles registram a radiação luminosa, na qual está contida a informação sobre a posição relativa de

cada ponto do objeto iluminado.

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245

e no pano usado no serviço de chão, denominando-os como pontos. Estes, só existem no

plano terrestre e requerem cuidados especiais.

A ideia de extensibilidade é importante e também se relaciona a concepção de

espaço entre os Kalankó. Ela tem a ver com o fato de que eles buscam alargar ao máximo

o uso de determinada forma geométrica. Deste modo, por exemplo, usa-se – no limite – a

extensão do terreiro no domínio do rito. No interior dele elaborando diversas outras

formas coreográficas (HERBETTA, 2006) que preenchem a extensão do espaço.

Neste sentido, diversas formas coexistem ao mesmo tempo. Na oca central as

reuniões, discursos e torés apontam para a mesma lógica. Dentro do círculo da oca, há,

portanto, outros círculos e semicírculos, os quais vistos em conjunto apontam para a

forma em espiral.

Este tema – da extensibilidade - aparece também quando se analisam a estrutura

dos cantos de toré, como já demonstrado no capítulo 5 e nas narrativas míticas da região,

como evidenciado no capítulo 3. Em ambos os casos, a ideia de extensão ou de uso da

totalidade do espaço é importante e representa o modo de entendimento do espaço

Kalankó.

Esta ideia de circuito que leva em consideração outras variantes e elementos,

além de multidimensões, é próxima da estabelecida por Morin 2002 (1991). Para ele, o

sistema sempre é dinâmico e complexo, tendo como base a ideia de simultaneidade e de

inter-relacionamento entre elementos, que alimentam e retroalimentam o sistema,

gerando movimento constante.

Isto aponta para a noção de transformação, que é baseado na ―ruptura da

invariância, a transgressão de normas, a irrupção de incertezas, o crescimento das

desordens e acasos‖ (MORIN, 2002 [1991]), os quais geram inovações.

Para Morin, de outra forma tem-se um pensamento redutor, ―ocultando as

solidariedades, inter-retroações, sistemas, organizações, emergências, totalidades,

[suscitando] conceitos unidimensionais, fragmentados e mutilados do real‖ (Ibid: 232).

O que significa dizer que o que é produzido entre os Kalankó deve ser

compreendido numa moldura cujos nexos simultaneamente tenham pertinência local,

regional, nacional e global. E que tudo o que é produzido lá pertence ao circuito.

Page 246: Peles braiadas - PUC-SP

246

Leach (1996 [1964] também criticou a noção de equilíbrio estável atribuído aos

sistemas sociais. Em seu estudo questiona-se a ideia de equilíbrio inerente e demonstra-se

que os modelos ―sob observação em qualquer tempo parecerão pertencer a vários

sistemas inteiramente distintos‖ (: 54).

A conseqüência deste circuito é, então, a instabilidade dos resultados,

distancionado-o da ideia de sistema determinístico (os quais tem resultados determinados

por leis de evolução). Os resultados do sistema são imprevisíveis ou aleatórios, ocorrendo

ao acaso, o problema sendo que ―os antropólogos sociais que, na esteira de Radcliffe-

Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode

comparar uma sociedade com outra pressupõem na verdade que as sociedades de que

tratam existem durante todo o tempo em equilíbrio estável‖ (Ibid: 67).

Isto fica claro quando se pensa no fenômeno da emergência étnica. Ninguém

poderia prevê-lo em outros tempos. Tempos nos quais tais populações eram consideradas

residuais (RIBEIRO, 2006 [1995]) – etapa próxima da extinção. Elas inclusive

desapareceram dos registros nacionais por volta de 1870, tornando-se socialmente

invisíveis – fantasmas –, graças ao ―efeito dizimador das enfermidades desconhecidas,

[que se] soma ao engajamento compulsório da força de trabalho e ao da deculturação,

[que] conduziram a maior parte dos grupos indígenas à completa extinção‖ (Ibid: 130)

Além do exposto, este sistema complexo depende também crucialmente das suas

condições iniciais. O comportamento do sistema dependendendo então da sua situação

"de início".

Isto pode ser visto entre os Kalankó, que eleboraram a origem do grupo, como

sendo localizado em Brejo dos Padres/PE. Este é um atributo essencial para o

entendimento do sistema. É a partir da percepção desta origem, que tem relação com uma

tradição marcadamente indígena e é assentada na relação genealógica de algumas

famílias que se tem a base do processo de emergência étnica do grupo. O ponto inicial

podendo ser sempre diferente, cada qual gerando seu sistema.

Deste processo gera-se uma série de dados e informações que alimentam o

circuito e o grupo, promovendo novas configurações. Segundo Maia Andrade (2008), as

trocas de natureza ritual não ocorrem isoladas de outros tipos de permutas intersociais, ao

contrário, elas ensejam tais permutas e, de certo modo, as viabilizam.

Page 247: Peles braiadas - PUC-SP

247

Se analisarmos o mesmo sistema, sob outras condições iniciais, logicamente ele

assumirá outros caminhos e mostrar-se-á totalmente diferente do anterior. Neste caso, os

Kalankó seriam outros.

Estes atributos, constituintes do sistema podem ser entendidos como atratores. A

ideia de atrator é importante para o entendimento de um sistema complexo, pois um

atrator101

é um conjunto compacto que atrai e é atraído por outro atrator. Esta relação

aponta para a noção de ―vizinhança‖ que forma uma bacia de atração. Esta bacia dando

uma ideia de uma dinâmica do movimento. Cada área de atração sendo variável e,

portanto, responsável por uma dinâmica complexa da configuração de novas armações e

posições, as quais são representadas por pontos no sistema.

Outro atrator importante de um sistema dinâmico e complexo diz respeito ao

tempo ou a evolução temporal. Desta forma, o sistema pode assumir diversos ritmos e

progressões no desenrolar deste tempo. Às vezes agindo de forma lenta e gradual,

intercalada a grandes saltos aleatórios (GLEISER, 2010: 93).

Os diversos outros atributos do sistema podem – cada um deles – evoluir com um

tempo específico. A soma de todas as transformações no tempo estabelecendo o ritmo do

circuito.

Este processo influencia os fluxos de informação e a emergência de eventos

aleatórios. Como o caso do reconhecimento Kalankó, que se deu junto à transformação

de outros atributos do sistema no desenrolar de certa temporalidade. Ele simplesmente

não poderia ter ocorrido nem antes nem depois.

Neste circuito, a emergência Geripankó, na década de 1980, serviu entre outras

coisas para intensificar e acelerar o processo de etnogênese de outros conjuntos

populacionais. Brejo dos Padres/PE representando a matriz cultural dos grupos.

O diagrama abaixo representa a emergência étnica dos cinco grupos indígenas

reconhecidos até o momento no sertão alagoano e suas temporalidades.

101 A ideia de atração –em um sistema dinâmico – pode ser observada, grosss modo, em Lévi-Strauss

(1990[1971]), quando ele entende que o mito é atraído pelo sentido ―as if by a magnet‖ (: 648).

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248

A questão do ritmo é vista aqui de maneira macroscópica, quando a proposta é

entender o ritmo como viabilizador do movimento, no caso de conjuntos populacionais

em direção a um reconhecimento oficial, através da relação estabelecida com outro

atrator importante do sistema – o Estado-nação.

Vê-se que entre estes grupos a emergência se dá com temporalidades diversas.

Nos Kalankó, a década de 1990 representa um salto aleatório. Isto porque, em 1998, o

conjunto da população partiu para a reivindicação política, pleiteando um

reconhecimento oficial como povo indígena.

Esta situação dá aos Kalankó uma nova posição no circuito em tela, mais

especificamente no plano das relações estabelecidas junto ao Estado nacional e suas

diversas instâncias, como a FUNAI – Fundação Nacional do Índio e a FUNASA –

Fundação Nacional da Saúde. Entre os Kalankó e as outras populações do sertão

alagoano, entre o movimento indígena e indigenista brasileiro. E assim sucessivamente.

Tem-se então um refinamento do diagrama acima exposto.

PANKARARU -

BREJO DOS

PADRES/PE

Geripankó

(1985)

Kalankó

(1998)

Karuazu

(1999)

Koyupanká

(2001)

Katokin

(2002)

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249

O Estado aqui representa um atrator relevante para a configuração deste sistema,

já que é ele que tem a autoridade de regular as relações entre a população em questão e o

espaço em que vive. E, além disso, de atribuir identidades sociais às populações em

questão, atraindo os outros atributos do sistema.

Depreende-se daí que os Geripankó colocam-se de forma destacada neste circuito,

em Alagoas, pois foram os primeiros a conquistar o reconhecimento e parte da terra.

Assumiram esta posição posteriormente à conquista destes recursos. Antes possuíam

posição de menor valor.

Ao mesmo tempo, os Koyupanká representam o elemento mais próximo, no

sistema, da posição dos Kalankó. Isto porque estabeleceram um sistema de alianças

consistentes, vivendo a luta pela reivindicação política juntos. E, portanto, estabelecendo

também maior volume de trocas.

Estado-nação /

Legislação

Pankararu -Brejo dos

Padres/PE

GERIPANKÓ (1985)

KALANKÓ (1998)

KOYUPANKÁ (2001);

KARUAZU (2000) e

KATOKIN (2002)

Page 250: Peles braiadas - PUC-SP

250

Com base nesta tendência, outras populações sentem-se atraídas pelo atrator

indígena, pleiteando um reconhecimento étnico oficial, como os Koyupanká. Note-se que

este processo também tem como base critérios genealógicos, que os ligam ao mesmo

aldeamento missionário e à prática de um sistema músico-ritual similares.

A mesma situação acima descrita pode ser expressa simultaneamente no diagrama

abaixo,

Ou no abaixo,

ESTADO-NAÇÃO

LEGISLAÇÃO

Koyupanká

Karuazu

Katokin

Page 251: Peles braiadas - PUC-SP

251

Todos os diagramas acima – e outros tantos possíveis – estão em conformidade

com o circuito estabelecido, que pode ser observado sob suas multidimensões. Um em

relação ao outro.

Neste sentido, há também uma transformação estabelecida entre as identidades

em jogo, o que faz com que sertanejos possam se autorreferenciar indígenas, e reivindicar

certos diretos previstos em lei. E vice-versa.

O Assentamento Salgadinho, localizado no alto sertão alagoano, é um exemplo do

processo inverso. O conjunto de sua população fazia parte dos Kalankó, possuindo

inclusive uma carteira da FUNAI, identificando-os como indígenas até 2000. A partir de

conflitos internos, referentes ao uso de recursos oficiais – do Estado-nação – eles foram

expulsos da aldeia, constituindo o assentamento em questão – sem a marca da

indianidade. Isto aponta para a flexibilidade, no que se refere à forma, de tais

agrupamentos.

Deste modo, o referente sertanejo ou indígena acaba por permitir imagens

cruzadas, segundo a posição do enunciador. Se, por um lado, pode-se depreender daí a

identidade indígena, por outro, pode-se expressar uma nítida relação de diferença e

―somente o observador externo tende a supor que as mudanças na cultura e na

organização estrutural de um grupo devem ter um significado desagregador‖ (LEACH

PANKARARU

Koyupanká

Karuazu

Katokin

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252

1996 [1964]: 328). Ao mesmo tempo, o mesmo sujeito pode enunciar qualquer um dos

dois marcadores, dependendo da ocasião.

Leach (1996 [1964] trabalhou com a questão entre os Kachin e os Chan na alta

Birmânia. O próprio conceito de tribo é questionado, já que não há como se delimitar no

plano do real quem é kachin ou chan, cada qual usando tal marcador da forma como mais

interessa no momento, tal conceito possuindo ―utilidade absolutamente negativa do ponto

de vista da análise social (: 56). Para o autor uma tribo só existe em relação a outra e

nunca a si mesma.

Da aproximação evidenciada entre os atratores – indígenas e não-indígenas – há

uma tendência crescente ou decrescente nos valores de outros atratores – como o sistema

encantado e a teoria musical – essencialmente relacionados a um deles – indígena.

Este fenômeno aponta para a existência de posições diversas na sociedade e no

circuito em questão, a situação real aparecendo ―cheia de incongruências; e são

precisamente estas incongruências que nos podem propiciar uma compreensão dos

processos de mudança social (Ibid: 71).

Para Morin, estas ambigüidades são entendidas como ganhos ao sistema, pois

―toda introdução da contradição e da incerteza pode transformar-se em ganho de

complexidade; é neste sentido que a limitação trazida pela física quântica ao

conhecimento determinista/mecanicista se transforma em ampliação complexificadora do

conhecimento e adquire um sentido plenamente epistemológico‖ (MORIN, 2002 [1991]:

231).

Ao mesmo tempo em que tal ambigüidade é real, pode-se observar na região, uma

intensificação entre os agrupamentos que se classificam como indígenas, e, portanto, uma

reafirmação do mundo encantado e de suas derivações, como os cantos e a energia

encantada, corroborando a contradição evidenciada.

Seguindo Morin, a ―contradição incita-nos ao pensamento complexo‖ (Ibid: 242),

a lógica clássica – dedutivo-identitária – sendo insuficiente para a explicação do real, já

que ―o mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente não implica

necessariamente – como quase sempre se supôs – que pertençam a dois sistemas sociais

totalmente diferentes‖ (LEACH, 1996 [1964]: 79). O alto sertão alagoano serve como

prova.

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253

Neste cenário, aumenta-se o repertório de cantos e objetos que se relacionam com

os sujeitos e criam-se novas formas de relacionamento com o meio ambiente. Além disso,

agregam-se novos instrumentos musicais, como as flautas, mas especialmente os

maracás, que podem ser produzidos em uma comunidade e doados a outra.

Outros elementos são elaborados, apropriados e permutados entre as aldeias da

região, como os cachimbos, as vestes de praiá, especialmente importantes na região, o

próprio caroá e outros recursos naturais, a semente, que representa materialmente o

próprio encanto e os gêneros musicais.

Isto fica mais claro entre os Kalankó quando se fala dos praiás e seu universo. O

sistema ritual dos praiás foi incorporado pelo grupo há pouco tempo. Isto aconteceu

quando o pajé Tonho Preto viveu perto de Tacaratu, em Brejo dos Padres/PE na década

de 1980, intensificando a relação entre dois atratores do sistema – eles, Kalankó e os

Pankararu. Desta relação, têm-se novos dados e atributos que alimentam o sistema, os

Kalankó, os Pankararu e os elementos permutados. Os primeiros possuindo um conjunto

de 15 vestes, cada uma das quais representa cada encantado.

Desta forma, a própria energia é permutada, já que em certas ocasiões um

cantador de outro grupo vai à aldeia aliada cantar e, desta forma, estabelecer o processo

da energia encantada (HERBETTA, 2006). Presenciei este fenômeno diversas vezes,

com destaque para quando Zezinho Koyupanká foi à aldeia da retomada e passou uma

noite inteira com o pajé Tonho Preto e o cacique Paulo no poró. Eles, conforme me

disseram no dia seguinte, estavam tentando estabelecer e manejar a energia encantada e a

presença de Zezinho foi fundamental, pois trouxe um acréscimo da energia que só ele

sabe administrar.

Este circuito é assim baseado em valores diversos que são atribuídos a vários

atributos, chamados aqui de atratores, que a partir de sua bacia de atração, atraem os

atributos localizados em outros pontos no sistema total, reconfigurando o circuito.

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254

Esta dinâmica dá ao sistema a marca da assimetria, o circuito agindo com base no

desequilíbrio102

. O que aponta para uma imagem não mais circular do circuito, mas talvez

em espiral, como representado abaixo.

Desta forma, nesta espiral o circuito atua em diversas ordens, que vão do mais

concreto – as aldeias, ao mais abstrato – a energia encantada. Passa ainda pelos objetos,

cantos, recursos naturais, corpos entre outros. Todas estas ordens fazem parte do circuito

e são inter relacionadas.

Esta relação está mais bem expressa no diagrama abaixo, que tem como base a

análise do capítulo 4 sobre a lógica associativa Kalankó. As flechas horizontais apontam

para a direção entre os fluxos de troca e as verticais representam as trocas inter aldeias ou

inter dimensões.

102 Como os atratores nunca estão realmente parados, tal sistema sempre é baseado em uma probabilidade,

nunca em uma certeza. Da mesma forma como postula o princípio da incerteza (HEISENBERG, 1996),

pelo qual as partículas nunca ficam paradas, sendo improvável a medida precisa de seus trajetos.

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255

Esta lógica expressa a noção da associação presente entre os Kalankó, que

entendem o mundo através da relação dos termos acima dispostos. Tudo ali está em

relação e nada existe fora desta relação. Tal lógica é similar à ideia do circuito até aqui

tratada, pois representa a elaboração de diversos entrelaçamentos. Além disso, cada

elemento permutado leva intrinsecamente os outros termos relacionados.

O esquema acima expresso pode ser reorganizado, dando-se maior destaque para

o papel da música que age como motor do circuito. O esquema abaixo busca reordenar os

termos,

Note-se que de um lado do termo: cantos há a presença de outros termos que

pertencem ao domínio da cultura e do outro, os termos pertencem ao domínio da Note-se

Note-se que os termos do lado direito do termo central – canto – pertencem ao

domínio da cultura e que os do lado esquerdo pertencem ao domínio da natureza. O termo

central agindo como um mediador entre os domínios.

Em segundo lugar é interessante notar como todos os termos atuam

simultaneamente, um termo sendo permutado e levando consigo a relação com todos os

outros.

Com base nesta ideia de circuito dinâmico, complexo e em espiral, pode-se

concluir que o Kalankó, em questão, é o resultado efêmero da relação entre os diversos

atratores postos e diversamente valorados neste circuito. O grupo representa um ponto

possível e permutável do sistema total. E possui em si os diversos termos permutados que

configuram armações temporárias que se auto e retroalimentam. Estas armações

temporárias, geram novos formatos e modos de operação. Cada um deles configura um

evento aleatório. Sempre poderia ter sido diferente.

Estas armações foram vistas até o momento de uma perspectiva macro, a partir da

permuta de elementos concretos dispostos em suas ordens e associações. As armações,

Aldeias:índios:objetos:cantos:encantos:energia:natureza

Aldeias:índios:objetos:encantos:cantos:energia:natureza

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256

porém, são também – e ao mesmo tempo – estabelecidas a partir de variações no plano

microscópico. Sempre a menor partícula pode transformar o sistema103

(DELEUZE &

GUATTARI, 1992 [1991]: 52-79).

Neste sentido, uma pequena partícula, que é entendida aqui como uma ideia (ou

uma imagem ou ainda um signo), pode transformar o sistema, pois ―não pensamos sem

nos tornarmos outra coisa, algo que não pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma

partícula, que retornam sobre o pensamento e o relançam‖ (DELEUZE & GUATTARI,

1992 [1991: 59].

As ideias expressas sendo constituintes do circuito, pois tem ―uma posição, uma

energia, uma massa, um valor de spin, mas sob a condição de receber uma existência ou

uma atualidade física, ou de ―aterrisar‖ nas trajetórias que os sistemas de coordenadas

poderão captar‖ (Ibid: 155).

E, além disso, elas podem ter ―o papel iniciador de uma pequena diferença, isto é,

de um pequeno desvio em relação à norma, com detonador de cismogênese e

correlativamente de morfogênese (MORIN, 2002 [1991] : 39), transformando todo o

sistema.

Uma vez desencadeado o processo, ele é irreversível, não sendo passível de teste.

O mundo não é um laboratório.

Estas ideias e suas permutas essenciais à configuração das armações do circuito

podem ser observadas em vários momentos e/ou mídias. Há ainda, no ar, uma economia

simbólica que circunscreve os outros planos do circuito.

Algumas expressões Kalankó, por exemplo, são comumente usadas pelos

sertanejos. A expressão na madeira é fácil de ouvir na região e traz o significado de algo

positivo, confiável e consistente. Clóvis uma vez usou a expressão se referindo às pessoas

que vivem em um assentamento rural, próximo a Água Branca. Entre os Kalankó o

sentido da expressão é o mesmo, apontando para seres, condutas e ideias consistentes e,

portanto, confiáveis.

103 A ideia de circuito aponta também, grosso modo, para a noção de plano de imanência de

Deleuze&Guattari (1992 [1991]). Este plano, na concepção dos autores, é ―sempre único, sendo ele mesmo

variação pura, tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanência variados, distintos, que

se sucedem ou rivalizam na história, precisamente segundo os movimentos infinitos retidos, selecionados‖

(: 55).

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257

Além disso, a expressão aponta para a relação simbólica do universo vegetal e dos

índios, dando a entender que a humanidade, baseada na relação KALANKÓ:ÁRVORES

é percebida de um ponto de vista positivo.

Outro termo comumente observado em diversos espaços na caatinga é fino. Tal

termo designa algo que foi bem feito. É uma qualificação a uma ação considerada

positiva. Zé Silva disse na época da eleição de 2008 para prefeito que seu partido estava

agindo de forma fina, se organizando e buscando de forma consistente a vitória eleitoral.

Na aldeia Kalankó o termo designa uma ação positiva possuindo, desta forma, o

mesmo significado. O cacique também usa o termo quando se refere a tal domínio

político. Certa vez disse que o cacique deve ser muito responsável não podendo se

deslumbrar com a aquisição de bens materiais. Sendo responsável, ele estaria agindo de

maneira fina.

Outros tantos termos são comuns aos repertórios linguísticos indígenas e

sertanejos (HERBETTA, 2006).

A literatura de cordel104

é outro suporte destas relações e ideias que são

permutadas pela região. Alguns termos e relações presentes no universo cultural Kalankó

aparecem com destaque em alguns dos cordéis espalhados no sertão nordestino. Tal

literatura sendo importante forma de codificação e expressão de noções e valores

(SOARES FERREIRA, 2010). Isto não significa que os Kalankó produzam ou

consumam especialmente esta mídia nem que haja um estudo aprofundado sobre ela aqui.

Apenas que o cordel perpassa toda a região do sertão nordestino e é um suporte para

signos relevantes aos sujeitos que vivem lá.

Uma relação aparentemente distante, mas com o mesmo sentido, é também

proposta por Lévi-Sttrauss 1995 (1991). Neste estudo, o autor relaciona parte da

mitologia ameríndia a alguns contos folclóricos franceses. Para ele, há certamente um

processo de apropriação presente na relação, ―consequently, borrowing from European

folklore do not constitute a new kind of phenomenon. They take place in a long history of

104A literatura de cordel é uma forma de poesia popular muito difundida por todo o Brasil, especialmente

nas classes populares e, particularmente, no sertão nordestino. Este, local de intensa produção cordelista. A

produção da literatura de cordel no país tem diferentes características formais, temáticas, dimensão, número

de páginas, tipo de impressão, entre outros.

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258

exchange among tribes, in the course of which the transformations spontenously

generated by mythological thought had already produced many of their effects‖ (: 197).

No que se refere ao cordel, os reinos distantes, como o dos encantados, são

motivos comumente usados na imaginação cordelista. As poções transformadoras

também são muito presentes, assim como os remédios do mato, a energia encantada e

mesmo o circuito. Todos eles, elementos do imaginário Kalankó.

No livreto ―O herói da floresta e a princesa encantada‖, de João Firmino Cabral,

por exemplo, a história se passa num reino distante e tem como personagem principal

uma princesa que vai ser encantada. A ideia de encantado aparece relacionada a ela, mas

traz um sentido pejorativo, já que o encantamento a transforma numa ave feia – a coruja.

O responsável por isso é um feiticeiro ligado à ideia de maldade e, por isso,

perigoso. Ele mora numa floresta distante e se contrapõe a outro feiticeiro – Aureliano –

que é ―bom igual ao mel‖. O mel é um elemento normalmente encontrado na mitologia

ameríndia, já que ―as metáforas inspiradas pelo mel [estão] entre as mais antigas de nossa

língua e de outras que a precederam‖ (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1967]: 9). É encotrado

também no pensamento Kalankó, como evidenciado no capítulo 3.

O mel está aqui relacionado à bondade e a um poder mágico. Desta forma,

relaciona-se também à alegria, com que tal personagem é representado. Temos então, ao

menos nesta história, a seguinte relação,

MEL:PODER:BONDADE:ALEGRIA

Tal relação pode se aproximar de algum sistema de pensamento ameríndio, como

o dos Kalankó, por exemplo, que usam o mel em seu principal ritual, o do Cinta-

Vermelha, mas se distancia do de tantos outros, nos quais o mel aparece como elemento

perigoso, ligado à sedução e à ameaça.

Neste mesmo cordel, o universo vegetal é expresso de forma positiva, pois se

relaciona com a princesa que é, ―linda como a deusa flora‖ ou é definida como ―uma flor

orvalhada‖. A princesa, portanto, se posiciona próxima deste reino vegetal e distante do

reino dos pássaros, ao qual ela se opõe. O feiticeiro mau também se posiciona no

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259

universo vegetal, quando se transforma num cravo. Isto só acontece, porém, quando ele

se enfraquece, apontando para o fato de que a humanidade para ele é ruim.

Estabelece-se, então, a seguinte relação,

HUMANIDADE:REINO VEGETAL :: SUJEITO:FLOR

Tal relação é a mesma do universo cultural Kalankó.

Neste cenário, a princesa só assume a forma de uma ave, quando está encantada.

Os pássaros relacionam-se ao mundo dos encantados, da mesma forma que aparecem nos

Kalankó.

A diferença aqui expressa é que a princesa encantada, metamorfoseada em

pássaro – uma ―coruja feia‖ – precisa de proteção, posição simetricamente inversa ao

universo Kalankó, onde os encantados geram a proteção.

O verso abaixo deixa clara a negatividade presente na ideia de ave,

Antes a transformaria

Num pássaro de voz estranha

Ou seja, em uma coruja

Duma feiúra tamanha

Assim deixaria a moça

Naquela grande montanha

O verso inclusive desqualifica a voz da ave, esta que pertence ao código acústico,

sempre valorizado no reino dos pássaros ou encantados. Outros animais também

aparecem com sentido pejorativo. Todos eles se relacionam à ideia do feio e são aliados

ao feiticeiro mau. O urso, por exemplo, parece um monstro e guarda a porta da ―prisão‖

da princesa encantada e as serpentes são horrorosas e agem como o exército de tal

feiticeiro.

Deste modo, forma-se a relação ANIMAL:MALDADE, apontando para um

distanciamento do domínio da natureza, já que o reino animal pertence a ele. Neste

sentido, tem-se uma forte oposição ao pensamento Kalankó, no qual a ideia de natureza é

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260

bastante valorizada, por estar ligada à energia encantada e aos encantados, como

expressa a equação abaixo.

Kalankó = {NATUREZA:ENCANTADO:ENERGIA:CORAGEM:PROTEÇÃO}

≠ Cordel = {NATUREZA:ENCANTADO:MALDADE:DESPROTEÇÃO}

Depreende-se daí que as mesmas ideias – Kalankó e sertanejas – são pertencentes

a um meta repertório, o qual contém todas as imagens possíveis elaboradas na região,

mas que se subdividem em repertórios distintos. Em cada repertório elas são articuladas e

rearticuladas de tal forma que geram sentidos diversos e o entendimento de mundo de

cada população.

Desta forma, os Kalankó usam ideias similares às dos sertanejos, mas com

armações diferentes, significando o mundo em que vivem de outra maneira. A

apropriação de uma nova ideia pode transformar todo o sistema.

A visão no mesmo cordel tem um valor especial. Ela significa controle, prova e

proteção. O feiticeiro bom, por exemplo, acompanha toda a narrativa,

Duma bola de cristal

Na cabana onde morava

O caboclo via tudo

Que o bruxo mau praticava

E jurou que de Carlito

Ele um dia se vingava

Com base na relevância de tal código, a solução do herói para libertar a princesa

encantada foi cegar todos os seus oponentes, urso, cobras e feiticeiro. A visão

relacionando-se à potência do sujeito, que sem ela é presa fácil para seu oponente.

Para conseguir tal façanha, o herói contou ainda com um ―pó mágico‖, produto

feito com ervas do mato e com a ajuda do vento que levou a assistência de um aliado de

Clemente. A ideia do ―pó‖ está relacionada à da energia, como expressa o verso abaixo,

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261

E disse a ele – este pó

Foi tirado de uma planta

Se tiveres em perigo

Ele te dar força tanta

Que qualquer um inimigo

Só em te ver se espanta

Além disso, a planta se aproxima do entendimento de humanidade, sendo

portadora de uma energia especial para o espaço em questão. A relação sendo similar

entre os Kalankó, para os quais a energia aparece como ―coragem e proteção‖.

Neste cenário, o cordel serve como instrumento de circulação de ideias, assim

como os cantos fazem, no caso indígena. As relações estabelecidas com base na leitura do

livreto apresentado que circula pela região podem ser observadas em vários outros.

Em outro livreto, ―O príncipe sortudo e a sapinha encantada‖ de Josué Lima da

Silva, a narrativa também se passa num reino distante, como o reino encantado. O termo

– reino – é o mesmo e tem o mesmo sentido espacial – da distância.

Na história, dentre todos os animais presentes, destaca-se um pássaro, cuja pena

indica o caminho a ser seguido para a conquista do objetivo. No caso, o filho do rei deve

provar ao pai que é o mais capaz entre três filhos de assumir o reino.

Um sapo aparece como agente de transformação. O que traz um sentido similar ao

de encantado para os Kalankó. Da mesma forma, o sapo concede a graça, transformando

―uma sapinha, numa moça bela demais, a jovem tinha um encanto, que não há entre os

mortais‖. O termo encanto relacionado agora ao belo.

A relação acima expressa pode ser encontrada entre os Kalankó, que relacionam

os encantados a outros termos sempre positivos na aldeia, sendo eles fonte da energia

vital para os sujeitos em questão. A relação expressa na análise do cordel acima, podendo

ser novamente usada,

Kalankó = {NATUREZA:ENCANTADO:ENERGIA:CORAGEM:PROTEÇÃO}

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262

Os encantados são, desta forma, centro da crença indígena e, ao mesmo tempo,

muito presentes nas narrativas cordelistas. Neles, eles aparecem comumente como um

agente transformador, assim como no universo indígena. Ora eles são ligados aos

humanos, ora aos não humanos. Ora eles aparecem com sentido positivo, ora negativo.

Isto evidencia o fato de que na poesia popular, os ―enunciados contêm variáveis e

constantes. O personagem e seus atributos mudam, não as ações e as funções‖ (LÉVI-

STRAUSS, 1987 [1973]: 125).

No livreto ―Lampião e os quatro reis do baralho‖, de José Furtado de Carvalho, o

personagem título é relacionado a um encanto, que como tal tem a função da

transformação. Neste caso, porém, Lampião só conseguiu estar no domínio do encantado

quando deixou de ser humano. O verso abaixo corrobora a ideia,

Lampião não vive mais

Não precisa ter medo

Seus tiros são sociais

Estão pelo mundo inteiro

Por falta de tribunais

É que tem o justiceiro

Desta forma, este cordel aponta para uma relação observada na aldeia Kalankó e

expressa abaixo105

,

ENCANTADO:NÃO-HUMANO :: ÍNDIO:HUMANO

E, além disso, complementa a potência do encanto, que assim como no universo

indígena, tem a capacidade de atuar na sociedade – ―seus tiros são sociais‖ e

simultaneamente em diversos lugares – ―estão pelo mundo inteiro‖.

105 Lembre-se que se os encantos são, entre os Kalankó, possuidores de agência e intencionalidade, como

evidenciado no capítulo 4, mas eles não pertencem a mesma ordem dos humanos, como já falado.

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263

Se os sentidos do termo encantado parecem variar entre o negativo e o positivo, o

humano e o não humano, como visto acima a percepção sobre o espaço parece ser sempre

similar.

A caatinga é vista a partir de uma perspectiva sazonal, ou seja, trazendo o sentido

do sofrimento, em época de seca e da alegria, quando chove. A relação é também

marcante entre os Kalankó.

No livreto ―A moça que foi vender o periquito em Piancó‖, de José Costa Leite,

por exemplo, o autor categoriza a caatinga de uma maneira similar. Para ele

Bela igualmente o sertão

Em ano de muita chuva

Com flores na região

Estas três frases de uma septilha trazem primeiramente a ideia da abundância. Ele

se refere a MUITA chuva – recurso bastante valorizado. Relaciona-se, então, à

abundância, a ideia de BELEZA, sendo belo o que é exagerado. Disto toma-se que

cresçam, FLORES na região. Ora, na concepção de mundo Kalankó, a ideia do sujeito é

relacionada à das FLORES. Elabora-se então uma relação cara aos Kalankó, evidenciada

abaixo.

EXAGERO:BELEZA:FLORES = ABUNDÂNCIA:BELO:ÍNDIO.

Isto se confirma no verso oito, quando o autor compara a personagem principal do

livreto, Alzira, a uma flor,

Alzira com 15 anos,

era uma flor em botão,

com a boca cheirando a mel,

e muito amor no coração,

aonde ela chegava,

todo homem lhe olhava,

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264

com um olhar de sedução

Desta forma, o ser humano está relacionado à ideia da flor e, além, disso, ao mel.

Elemento que também aparece na mitologia Kalankó, ligada à ideia de sedução e de

conjunção.

O motivo da história é a relação da Alzira com as aves, mais especificamente com

uma, o periquito. Sendo assim, pode-se estabelecer mais uma similaridade com o

universo Kalankó, a valorização do reino das aves e a predileção por algumas delas.

No folheto, o periquito se destaca por sua capacidade de falar. O código acústico

mostrando-se importante.

A história termina quando as aves de Alzira morrem e ela precisa, portanto,

vender seu periquito. Desta forma, o povo todo volta a ficar triste, marcando uma

sazonalidade que varia da tristeza à alegria. Termos que se relacionam ao domínio da

natureza. Desta forma, temos que,

TRISTEZA:PERDA:ESCASSEZ DE PÁSSAROS ::

ALEGRIA:EXAGERO:FLORES:ABUNDÂNCIA DE PÁSSAROS

De alguma forma os pássaros têm relação direta com a alegria. Esta relação é

também presente no universo Kalankó, já que, como tratado, os pássaros são relacionados

aos encantados e, por isso, à alegria e à abundância na aldeia.

A relação FLOR:HUMANO aparece novamente no folheto ―A vida de Mario de

Andrade‖, de Téo Azevedo. Na narrativa, Mario de Andrade aparece como sendo muito

trabalhador, ―mas meigo como uma flor‖. A flor servindo para caracterizar o personagem

e se opor ao aspecto rude do trabalhador.

Além das relações acima expressas, o código acústico aparece muitas vezes como

agente transformador. No livreto – ―Luiz Gonzaga – o cantor do século‖, – de José

Evangelista, levanta-se a hipótese de o cantor supracitado não ter morrido, mas ter-se

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265

encantado. O canto, neste cordel, aparece como momento de profunda alegria, em

oposição a uma vida sofrida, assim como assume esta posição entre os Kalankó106

.

Os valores sertanejos expressos no cordel são muito apreciados nas aldeias. O

trabalho, por exemplo, sempre é recompensado com uma graça, que significa a

recompensa por algo. Os valores da generosidade, solidariedade e honestidade também

sendo expressos neste suporte.

Em um cordel de Auta Maria, intitulado, ―Valorização da cultura popular‖, ela

destaca o valor da amizade, reafirmando a ideia da aliança como forma de superação da

seca e da tristeza na caatinga.

Para a autora, o termo encanto aponta para a oposição da tristeza. Segundo ela,

―na vida há sofrimento, encantos e também beleza‖. O equilíbrio nesta poesia é a causa

de uma vida digna, já que ―uma vida equilibrada, traz sempre um bom resultado‖. Para

isso evitam-se determinadas emoções, como a ambição e a ingratidão, ―a ambição é

perigosa, e vale refletir bem, quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o

que tem‖ e a ingratidão aparecendo como disjuntora da rede de alianças estabelecidas na

grande família, já que ―convém conservar a amizade, em qualquer situação, aponte-se

para o que se diz, ingratidão tira a afeição‖.

Em outro livreto, ―Uma terra nunca esquecida‖, Auta reforça a ideia da grande

família. O verso abaixo comprova a ideia,

Daquele casal surgiram filhos

hoje, bisnetos, tetranetos

e alguém que não tem denominação

junto com outras famílias

formam uma grande população

106 A relação do canto com a superação da percepção de sofrimento será mais bem trabalhada no capítulo

8.

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266

A própria ideia do circuito Kalankó aparece de forma interessante neste folheto. A

autora nos últimos versos estabelece que

Muitas ideias escapam

Ninguém é dono do saber

Faz jus aceitar os limites

Que a vida pode oferecer

Espera-se que essas trovas

Possam orientar alguém

Até porque experiência

É uma troca de vai e vem

Ambos os versos trazendo a noção de certa fluidez e movimento de

conhecimento. No primeiro as ideias não têm dono, podendo se deslocar para qualquer

ambiente. No segundo, estabelece-se um circuito de troca regular, constituindo a equação

abaixo, que aponta para a representação do circuito.

CIRCUITO:MOVIMENTO:LIBERDADE

A ideia do circuito aparece também no livreto ―Afogados da Ingazeira – uma cidade

que nasceu do amor‖, de Alexandre Morais. Neste livreto o circuito é entendido a partir

da afirmação: ―versos soltos no ar‖. O ar representando o suporte do intercâmbio de

ideias no sertão. Além disso,

Com toda a inspiração

Que me traz este lugar

Versifico o que aprendo

Trato de multiplicar

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Boto tudo em cordel

E depois solto no ar.

A noção de que os versos criados são soltos no ar e, a partir daí, se movimentam

aleatoriamente é similar ao circuito Kalankó. Em ambos a incerteza é a marca do

movimento. Lembre-se que, para os Kalankó, os próprios encantados são como o ar ou se

movimentam nele, corroborando a ideia de que este é o suporte do movimento. Ou ainda

que tal movimento traz a ideia de incerteza.

Todas estas narrativas apontam, quando olhadas em sua estrutura, para uma grande

transformação, que pode ser expressa na relação dos seguintes termos

BEM:MAL :: NOITE:DIA :: ANIMAL:HUMANO :: VIOLÊNCIA:PAZ ::

DESEQUILÍBRIO:EQUILÍBRIO

Neste sentido, todos os cordéis agem como se pertencessem a um só gênero.

Sempre a narrativa apresentando a transformação de um termo a outro.

No livreto ―Nascimento, vida e morte do cangaceiro Zé Baiano‖ de João Firmino

Cabral, narra-se como se estabelece a transformação da VIOLÊNCIA à PAZ no sertão

nordestino. Para isso, um sujeito sertanejo, relacionado à ideia de bondade, desafia o

cangaceiro Zé Baiano, aqui visto como o mal. A sextilha abaixo comprova o exposto,

A partir deste combate,

Reinou a paz no sertão

Não se viu mais violência

Desordem, nem confusão

Aonde imperava o crime

Passou haver união

Já no cordel ―Meia noite no cabaré‖, de Leandro Gomes de Barros, o processo de

transformação é da tristeza e miséria, representada pela noite, pela boemia e pelo silêncio

para a alegria e a riqueza. Ambos os termos relacionados à ideia de flor. Esta

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transformação aponta ainda para o despertar da natureza, representada pelo canto de uma

ave. O termo encanto aparece relacionado a este momento e a natureza aparece ativa e

enérgica,

Nisso, longe ouviu-se um canto

De um galo sobre o poleiro

Era dia prazenteiro que desdobrava seu manto

A madrugada um encanto

O céu lindo, cor de rosa

E a brisa vaporosa

Soprava nos matagais

Os virentes coqueirais

Mostravam a copa frondosa

Além disso, reaparece a ideia de abundancia ligada à copa da árvore.

Os cordéis desta forma com base no repertório de imagens presentes na região

acabam por elaborar uma narrativa de transformação apoiando-se em relações entre

termos e significados caros à população de lá e que acabam por trazer a ideia de bem

estar no sertão.

Pode-se dizer, então, que os espaços são povoados destas partículas, que podem

promover transformação nos sistemas107

. Para Morin, este universo das ideias é

classificado como noosfera. A noosfera, para o autor, pertence à biosfera, junto da

psicosfera e sociosfera e é composta pelas ideias e conceitos criados e enunciados, sendo

―simultaneamente fechado e aberto. É fechado porque se protege e defende contra as

degradações ou agressões externas. É aberto porque se alimenta de confirmações e

verificações vindas do mundo exterior‖ (MORIN, 2002 [1991]: 158).

Desta forma, uma ideia criada num determinado lugar pode ser apreendida em

outro, mesmo distante, e resignificada no universo cultural em questão. Isto pode ser

107 Nestes momentos, há o que Gladwell (1999) chama de tipping point, ou seja, algo que às vezes

pertence ao plano micro e que pode desencadear profundas transformações, constituindo um curto-circuito.

Neste momento há uma reação em cadeia na sociedade, gerando profundas transformações.

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269

observado quando se constata que ―narrativas com caráter de contos numa sociedade, são

mitos para outra e inversamente‖ (LÉVI-STRAUSS, 1987 [1973]: 134)108

.

A noosfera emerge então como uma realidade objetiva, dispondo de relativa

autonomia, já que ―como os deuses, as ideias são seres desenfreados; escapam

rapidamente ao controle dos espíritos, apoderam-se dos povos e desenvolvem fabulosa

energia histórica (MORIN, 2002 [1991]: 148)

Desta forma, o circuito atua em diversos planos – do macro ao micro. Todos eles

atuando simultaneamente, gerando armações temporárias que se auto e retroalimentam.

Estas armações temporárias, podem gerar novos formatos ou conservar outros109

.

Neste cenário, a ideia de espiral não consegue mais representar satisfatoriamente a

forma e dinâmica do circuito Kalankó – mais complexo. Sendo assim, a árvore talvez

seja a forma mais interessante para pensar este circuito. Isto porque possui sempre uma

situação inicial, que pode mudar. Pode ser o aldeamento de Brejo dos Padres/PE, a

emergência Geripankó, a Kalankó ou qualquer outra, representados na raiz.

Possui também suas temporalidades e ritmos próprios, representados no ritmo de

crescimento diverso das ramificações, galhos, folhas, flores e frutos. E, além disso,

possui atratores/atributos diversos com valores diferentes, que existe em suas

multidimensões, formando uma rede de correlações que se auto e retro-alimentam,

gerando os atributos que vão operar a produção de outros atributos/atratores que

produzem a própria rede de relações que o gerava, emergindo daí uma série de

bifurcações ou a totalidade da árvore. Tudo acontecendo ao mesmo tempo – agora.

108 Este sistema aponta para o sistema de transformação evidenciado na obra de Lévi-Strauss. Neste

sistema termos e funções podem se transformar ao passar de um lado a outro – dos mitos e dos espaços. É o

que ocorre com o mito, que pode se transformar em toré e em cordel, já que ―each of their transformations

results from a dialectic opposition to another transformation, and their essence lies in the irreducible fact of

translaction by and for opposition‖ (LÉVI-STRAUSS, 1990 [1971]: 645).

109 A ideia de transformação e conservação está presente em outras etnografias sul americanas. Gow

(2001) quando estuda os Piro se concentra em um sistema de transformações simbólicas - imaginadas pelos

Piro. Para ele, elas são parte de um regime de transformações no qual aparece como simples

―transformação de uma transformação‖ e servem, de certa forma, para parar o tempo.

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A árvore não por acaso é uma ideia muito relevante aos Kalankó, que dela retira

as propriedades medicinais para a cura do corpo do sujeito. É na árvore também que

buscam significar a relação com os outros povos indígenas do sertão. Como já falado,

chamam de tronco velho, o aldeamento de Brejo dos Padres/PE e de pontas de rama, os

diversos grupos que se entendem descendentes dele.

É na árvore também que se entendem como sujeito. É na flor, mais

especificamente, que se pensam belos e saudáveis, prontos para habitar a caatinga

nordestina.

Cada flor um sujeito, cada galho uma aldeia, cada folha um canto.

Neste universo, a árvore torna-se então uma imagem bastante concreta, a ponto de

representar o ser no mundo Kalankó, efêmero por um lado, como a fragilidade de um

ramo, mas constante de outro, como o tronco. Ligado a um corpo produzido na

temporalidade do sertão e na imaginação e criatividade das pessoas.

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O circuito é então transformação e conservação. É uma espécie de diálogo de

perspecticas, extensão de relações, claro e escuro, previsível e imprevisível, aberto e

fechado – flor e pássaro.

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Capítulo 8

Riso Kalankó – formas de associação e

diferenciação

A despeito dos termos identificados e das relações estabelecidas no decorrer do

trabalho, tudo faz parecer que entre os Kalankó há uma ética das emoções cara aos

sujeitos na aldeia. E que é com base nela que eles se identificam e se relacionam,

constituindo-se como pessoa. O sensível parece ser assim anterior ao inteligível, desta

forma ―não [havendo] nada no intelecto que não tenha passado pelas sensações‖

(SERRES, 2004 [1999]). Neste capítulo busco determinar esta ética das emoções e sua

importância na constituição da noção de pessoa, ―não o sentido do ―eu‖, mas a noção, o

conceito respectivo que os homens‖ de lá criaram (MAUSS, 1974 [1950].

Sempre que estive na aldeia Kalankó, fui produtor, receptor e testemunha de uma

série imensa de emoções, as quais fizeram parte de todo o trabalho de campo. E, além

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disso, principalmente, fazem parte da vida dos Kalankó. Sem elas, eles não seriam o que

são.

Um dos momentos mais marcantes no que se refere à emotividade foi o toré

realizado em minha despedida do período em que vivi lá em 2005.

Ao longo do tempo em que permaneci ali, havia combinado uma festa de despedida

com o cacique e o pajé, além de algumas outras pessoas mais próximas, como Culezinha.

Pedrinho, dançador Kalankó, porém, foi mais rápido e me surpreendeu na noite do

último sábado, oferecendo-me um toré.

No dia seguinte, eu e Culezinha fomos pela manhã a Santa Cruz do Deserto/AL.

Aproveitei a oportunidade para convidar algumas pessoas para o outro toré que se

realizaria na parte da noite em Lageiro do Couro. Ao longo do dia, Culezinha organizou

um jogo de futebol entre dois times da aldeia, após o qual iniciamos um churrasco, que

durou até o anoitecer e contou com intensa participação de toda a comunidade Kalankó.

Inclusive de integrantes das famílias de Santa Cruz do Deserto, Quixabeira e do

Salgadinho, sendo um importante momento de associações e conversas entre os sujeitos

que não se encontram costumeiramente.

O toré teve início por volta das 21h00min, com um discurso de liderança

(HERBETTA, 2006) do pajé. Os cantos foram puxados por boa parte dos cantadores.

Todo mundo dançou animadamente – de forma individual ou em parelha.

Nas rodas de toré, podia se observar vários tipos de casal. Jovens namorados,

crianças, idosos e mulheres. A alegria era aparente. As conversas foram amistosas,

relembrando eventos do tempo em que permaneci por lá, planejamentos para o futuro e

piadas. O riso era uma expressão constante e os termos usados nas conversas eram

sempre carinhosos.

Neste momento, pude sentir o apreço que os Kalankó haviam criado por mim,

assim como o que eu havia criado por eles.

O evento durou até às 2h00min da manhã, quando, então, bebemos a garapa e

finalizamos o ritual. A chuva que começou neste instante seguiu até o dia amanhecer.

Este tipo de evento é bastante marcante, pois contrasta com o discurso Kalankó do

cotidiano. Como já dito anteriormente, eles percebem o mundo a partir do sofrimento. O

mundo dado é o da tristeza.

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Isto fica claro quando falam da questão da terra, por exemplo. Este assunto é

especialmente tocante para os Kalankó, já que é o recurso máximo na aldeia. É por ela

que elaboraram o Tempo da Luta, que parece não ter fim.

O pajé Tonho Preto sempre se indigna quando trata da questão e demonstra sua

profunda tristeza com relação ao descaso no cumprimento das leis, percebido nas práticas

do Estado brasileiro. Mesmo em se tratando do período da democratização brasileira.

Para ele, tudo o que se refere à relação dos direitos conquistados, presentes no

discurso da lei e a prática destes direitos – como a territorialização oficial – acaba se

arrastando por anos. Os Kalankó ainda não têm sua terra demarcada.

Este tipo de tristeza está diretamente relacionado à resignação observada na

aldeia.

Esta resignação é revelada quando algo não acontece da maneira idealizada, como

uma boa colheita, a conclusão de um projeto ou a conquista de um direito, por

exemplo110

. Nestes momentos, normalmente, os sujeitos apenas dizem que ―Deus não

queria assim‖ ou ―a vida é assim mesmo – dura‖.

Desta forma, elimina-se a capacidade individual de cada um e moraliza-se o

fracasso, comumente relacionado a alguma culpa ou pecado anterior.

Com relação à resignação, há uma intensa luta política em curso, liderada pelo

cacique Paulo que cobra a participação de todos e afirma categoricamente que eles

podem, sim, conquistar o direito previsto em lei. A resignação, porém, torna o

desenvolvimento deste movimento sempre difícil, o que faz com que o cacique se sinta

bastante frustrado, como evidenciado no capítulo 2.

O próprio reconhecimento oficial do grupo só foi conquistado em 2003, depois de

pelo menos cinco anos de reivindicações. Além disso, só aconteceu graças a um acordo –

a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – elaborado no exterior.

Talvez não pudesse ser diferente, uma vez que vivem em um lugar onde a graça vem de

fora – de longe, do alto. Note-se que não se desconsidera aqui a intensa luta indígena e

indigenista, responsável por incríveis conquistas no período da democratização brasileira.

110 Uma parte relevante das etnografias produzidas atualmente tratam da relação entre a emoção e a

conduta. Riviére (2000), por exemplo, estuda os Trio com base na relação mencionada. O autor ―look at

this idea thy have and some other emotion in terms of which they account for their behavior and to show

how closely a number of the features of their social organization fit with this behavior‖ (: 252).

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A vida Kalankó aponta ainda para uma estruturação perversa do estado

democrático, personalista e cristão111

formado no Brasil. Nele, o sujeito deve esperar por

alguma graça. Ela, tendo origem em outro plano – distanciado. Nada se pode fazer.

Conforme evidenciado no capítulo 2, este estado de resignação pode estar

relacionado a um Estado desigual e discriminatório, o que por sua vez indica uma

estrutura ideológica que sustenta esta injustiça – ou seja, uma mentalidade escravocrata e

submissa.

O sofrimento relacionado à tristeza, porém, também pode ser visto fora da esfera

política brasileira. A morte ou a ameaça da morte, por exemplo, gera muita tristeza. E

esta tristeza vem sempre acompanhada de muitas lágrimas. Os Kalankó choram muito na

iminência da morte.

Certa tarde, eu estava sentado embaixo de uma árvore na saída de Januária

acompanhado de Culezinha, Tonho, Antonio e mais alguns de seus amigos e vizinhos

tomando um ―litrinho‖ de cachaça e comendo uma galinha assada. Motivo de alegria –

para todos. O ambiente era de descontração, cheio de brincadeiras e risadas.

De repente, uma das crianças da aldeia chegou correndo e informou que Abdias

havia caído do cavalo no meio da caatinga e que o evento podia ser realmente sério,

apesar de não ter maiores detalhes. Todos ficaram muito preocupados com a situação de

Abdias e algumas lágrimas escorreram nas faces dos presentes.

A questão do uso da cachaça começou a ser discutida, já que se cogitou ser a

causa da queda do cavalo. De maneira geral, para os Kalankó a cachaça sempre é a causa

dos acidentes, já que ela desordena o equilíbrio mental – como já discutido no capítulo 6.

Cogitou-se também, a partir de outras notícias, que Abdias havia batido a cabeça no chão,

aumentando as preocupações, já que é a parte do corpo mais valorizada, como já

estudado.

A resignação de certa forma também apareceu, já que o que tinha acontecido era

fruto de alguma força maior. Desta vez, porém, as lágrimas geraram ação. O evento do

111 Isto ocorre apesar da separação oficial entre o Estado e a Igreja, a partir da república, em 1889. Parece-

me ainda que ao menos no Brasil o oficial não é sinônimo de real. Para um aprofundamento na questão, ver

Buarque de Holanda (1995 [1936]). O autor corrobora a ideia quando afirma que ―assim, nenhuma

elaboração política seria possível senão fora dela (religião), fora de um culto que só apelava para os

sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade (: 150).

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―litrinho‖ e da galinha foi finalizado de forma abrupta e fomos todos para a aldeia

aguardar ansiosamente novidades e planejar possíveis desdobramentos.

Por sorte, os ferimentos de Abdias – de fato na cabeça – foram apenas superficiais

e a ameaça de morte não passou de um susto.

Em outra ocasião, um ano após esta, o susto foi com a queda de seu Edmilson que

trouxe bastante preocupação e choro na aldeia. Nesta ocasião, os ferimentos foram mais

graves e seu Edmilson foi transferido imediatamente para o hospital de Água Branca e

depois para o de Paulo Afonso. Ele se recuperou plenamente o que trouxe tranquilidade

novamente à aldeia. Isto só aconteceu pelo pronto atendimento de seus familiares.

Novamente, as lágrimas e atitudes reapareceram indicando que algo poderia ser feito.

Depreende-se dos eventos narrados que a frustração primeiramente citada, ligada

à relação com o Estado brasileiro e seu descaso para com o povo, é operacionalizada sem

tanta indignação ou de uma maneira mais branda, relacionada à passividade e a

resignação. Isto se dá em oposição à emoção em seguida tratada, a da ameaça interna ao

grupo. Esta sim vivida de forma intensa – as lágrimas apontando para a ação do sujeito.

Desta forma, pode-se imaginar um sistema no qual as emoções geradas, tendo

como causa algo interior ao grupo, são vividas de forma mais intensa e as que têm como

causa algo exterior ao grupo, de forma mais passiva. As emoções vividas no interior do

grupo requerem, portanto, alguma dose rápida de ação do sujeito, apontando para

algumas atitudes.

A generosidade, por exemplo, é vista como uma ação importante para a vida na

caatinga. Ela está relacionada também à ideia de grande família já discutida

anteriormente. Algumas condutas são derivadas dela e muito valorizadas entre os sujeitos

da comunidade. A colaboração na roça do primo, por exemplo, é sempre comum e bem

vista, mesmo entre aqueles que têm alguma rixa política.

A visitação funciona também a partir da mesma lógica, estabelecendo-se como o

dom no alto sertão. Quanto mais se visita os vizinhos e adjacentes, mais se é bem visto na

comunidade. Em decorrência, dar a cadeira, receber visitas até mais tarde, servir um prato

imenso de comida são outras condutas apreciadas entre os Kalankó.

Outras emoções são muito evitadas a ponto de serem quase eliminadas da

convivialidade. Em poucos momentos eu tive contato com a raiva, por exemplo. Tal

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277

emoção é guardada ao domínio do particular. Meu contato com ela deu-se em algumas

conversas, nas quais me foram narradas algumas situações de conflito no interior da

aldeia.

Isto acontece, talvez, porque há um procedimento específico para tratar conflitos e

desavenças internas. Nestes casos reúne-se o conselho indígena, junto ao resto da

população da aldeia. Isto acontece nas ocas centrais de cada localidade. Neste conselho

discute-se abertamente a situação ocorrida e a população emite suas opiniões acerca do

evento. No final estipulam-se novas condutas e desculpam-se os envolvidos.

Presenciei uma vez a reunião de tal conselho. Na ocasião um índio mais velho e

casado – havia assediado sexualmente uma mulher da comunidade, recém viúva e parente

dele. A situação foi condenada por todos e a causa justificada do ato foi o abuso da

cachaça. O ocorrido foi narrado abertamente a todos os presentes na reunião, o que fez

com que os envolvidos se desculpassem e mudassem suas condutas.

Desta forma, pode se dizer que o equilíbrio é uma busca, já que segundo D.Jardilina

―uma vida equilibrada, traz sempre um bom resultado‖. Para isso evitam-se determinadas

emoções, como a ambição e a ingratidão, que aparecem como disjuntura da rede de

alianças estabelecidas na grande família, evidenciada no capítulo 4.

Estes códigos da convivialidade entre os Kalankó apontam para uma ética das

emoções112

, as quais elaboram uma forma de convívio de fundo emotivo (BUARQUE

DE HOLANDA, 1995 [1936]: 148), como a que existe de forma geral entre os

brasileiros.

Isto ocorre em outras regiões, indicando o estudo das emoções como relevante.

Lagrou (2006) corrbora a ideia e chama a atenção para as emoções sentidas e vividas

entre os Kaxinauá. Lá, ter saudade dos parentes significa ser gente.

Esta ética é responsável pela elaboração e manutenção das diversas relações

sociais no grupo e do grupo com o exterior, todas baseadas ‖in those capabilities of

creating relationships with others that are conducive to a health environment in which to

raise children‖ (OVERING, 2000: 78).

112 Para Lévi-Strauss (1990 [1971]) o fenômeno das emoções não pode ser entendido descolado das

operações intelectuais e do nível da consciência, pois ―any phenomenon of the life of the emotions which

does not reflect, on the level of consciousness, some important event hindering or accelerating the work of

the understanding, is not a matter for the social sciences‖ (: 668)

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278

Desta forma, a vida Kalankó, segundo Tonho Preto é voltada para o que chama de

vida sossegada, que significa a busca por relações equilibradas que geram boas emoções

e, ao mesmo tempo, a evitação de conflitos que podem desencadear emoções negativas.

Este estilo de vida é bastante comum de ser visto nas aldeias indígenas do Brasil.

Nelas, o excesso nas emoções é evitado. Não se pode rir demais nem chorar

demasiadamente. Ambos os exageros são prontamente rechaçados.

Este sistema baseado na emotividade indica haver uma gramática do ser Kalankó

no mundo, a qual tem como base as sensações que devem ser reguladas e articuladas.

A mesma situação está presente no trabalho de Overinng (2000) sobre algumas

comunidades amazônicas. Em uma análise dos mitos k‘iraeu ela percebe a relação do

exagero com o perigo, já que ―in all three of the mythic episodes we find that the display

of dangerous emotions results in a disturbed sociality, made specific through the onset in

a victim fine of the three symptom of the illness of k‘iraeu: i.e. excessive laughter,

excessive sex or excessive defecation‖ (: 76).

Da mesma forma, os Kalankó buscam regular as emoções do grupo, valorizando

umas e evitando outras. Daí a importância da normatização de condutas como as citadas

neste capítulo. Além disso, controlam-se as sensações e percepções dos sujeitos, as quais

estão relacionadas à alegria ou tristeza e, a partir daí, ao prazer ou à dor. Cada um destes

afetos gerando imagens e condutas imediatas ao sujeito.

Neste cenário, os Kalankó têm absoluta percepção do violento processo histórico

de contato e marginalização a que formam submetidos e expressam este entendimento em

suas narrativas, falas e ritos. Note-se que se expressam comumente através de operadores

claramente apropriados no processo de entedimento de um mundo cristão, como

observado no capítulo 2.

Se não possuem uma intrincada elaboração simbólica do casamento, do

nascimento e da morte, como algumas comunidades indígenas amazônicas, apresentam

uma concepção da existência do grupo bastante complexa.

Como já mencionado, eles percebem suas experiências na caatinga alagoana a

partir do sofrimento, pano de fundo de suas emoções, concepções e condutas. Segundo

Merleau-Ponty (2006 [1945]) a percepção reúne nossas experiências sensoriais em um

mundo único (: 310). No caso Kalankó, um mundo de dor.

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279

As narrativas referentes ao trabalho, por exemplo, sempre possuem como tema

central a questão do sofrimento, que serve para se obter algo. O trabalho, inclusive,

parece ser um elemento bastante valorizado justamente por ser um instrumento de

conquista e alívio do sofrimento.

Certa vez, por exemplo, Cícero, Kalankó de Quixabeira me contou – de modo

empolgado – que, apesar de não ter comido muito do seu feijão durante o inverno e ter

tido problemas de saúde decorrentes desta falta de alimentação, ele conquistou, no final

do período, uma boa quantidade do recurso que pôde ser vendido gerando uma renda para

sua família. Sua fala é cheia de dor, orgulho por suportá-la e alegria por recompensá-la.

Tal narrativa, assim como outras, emerge do contexto e evidencia o modelo de

como a comunidade organiza seus dramas sociais. O próprio cotidiano é visto como um

sofrer ―em si‖, o que de acordo com Ponty (2006 [1945]: 23-83), traz a idéia do lançar-se

no mundo, experiênciando-o.

É muito comum se ouvir na comunidade, quando a expressão comum de

cumprimento: ―Tudo bem?‖ é usada, uma resposta como ―Mais ou menos‖, ―Indo‖ ou

ainda ―Como Deus qué‖. Estas respostam apontam, novamente, para o sofrimento como

percepção do mundo Kalankó. É como se, para eles, viver fosse equivalente a sofrer.

Os próprios rituais, especialmente o do praiá, chamados às vezes de festa e/ou de

comemoração, são também chamados de provação, indicando o mesmo sentido de

sacrifício e dor supracitados.

Em julho de 2008, por exemplo, ocorreu um evento bastante marcante na região,

que foi por eles denominado de Retomada da terra Kalankó. No ano seguinte, em julho

de 2009, quando se completou um ano da retomada da terra, a comunidade foi

pressionada pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário – a realizar uma celebração

da data.

Após algumas reuniões, os Kalankó decidiram não fazer a festa argumentando

que não havia nada a se comemorar, pois havia sido um ano de intenso sofrimento e a

terra – recurso máximo no universo Kalankó – todavia não havia sido demarcada.

Diante destas posturas, pode-se depreender que o sofrimento é, então, uma

essência da existência Kalankó, e pode ser percebido a partir da facticidade que envolve o

grupo.

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280

Neste sentido, o lugar social de injustiça, resignação e opressão, experienciado

pelos Kalankó no sertão nordestino, é percebido como um mundo de sofrimento. E é

sobre esse mundo que o sujeito pode elaborar uma série de elementos, como rituais,

festas, cantos e narrativas, estabelecendo assim importantes relações de adaptação e

transformação da realidade.

Destarte, é possível afirmar que este sofrimento pode ser transformado. Isto

ocorre através da graça, ou seja, um recurso que os sujeitos conquistam de uma ordem

sobrenatural – como de Deus ou dos encantos – por meio do próprio trabalho. É a partir

do trabalho, então, que o grupo e os sujeitos atuam no mundo em relação à sua adaptação

e transformação – do mundo dado –, sempre em busca de um sutil equilíbrio da vida na

caatinga alagoana113

.

Este processo é colocado em prática especialmente através da expressividade do

grupo, dando dinâmica ao universo simbólico nativo. A vida na caatinga não é fácil. A

dor contingente à percepção do sofrimento pode, portanto, ser atenuada pelo ardor, que

vem de alguns momentos especiais da comunidade.

Estes momentos estão relacionados a alguns ritos, os quais aparecem como

espaços privilegiados de expressão dos valores que atestam o sentimento de pertença a

algo maior, por possuírem um projeto de ser no mundo ou mesmo por comunicarem

símbolos e significados importantes referentes à idéia do ser Kalankó.

Mas, concretamente, da perspectiva Kalankó, os ritos são importantes por

relacionarem o espaço e o sujeito ao mundo encantado (HERBETTA, 2006). O ardor

vem, assim, de uma experiência estética, que não é individual, mas coletiva. Trata-se de

uma abertura para o outro, engendrada pela atração de sensibilidades e a socialização de

gostos partilhados.

Deste modo, ela se torna relevante para a experiência estética criada para atenuar

a sensação de sofrimento, presente como pano de fundo de suas ações. A estética, desta

forma, é o modo de criação do ardor. Neste sentido, a reflexão sobre a natureza realiza-se

através da arte – como construção e não acaso.

113 É importante observar, contudo, que esta reflexão não parte de uma concepção naturalizante e estática

de mundo, mas sim, conforme Viveiros de Castro (2002), de um mundo que, apesar de ―dado‖ (ao sujeito),

está sempre em um movimento contínuo de construção e relação com os processos sóciohistóricos

envolvidos.

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281

Numa pesquisa que fiz em 2003 com base num questionário com perguntas semi-

abertas sobre lazer, momentos de emoção e os gostos musicais da comunidade, percebi

que em 100% dos casos o toré é citado como a música de que se gosta mais. E, além

disso, como o lazer preferido da comunidade.

Alguns depoimentos já apresentados no capítulo 3 e outros tantos são bem

evidentes quanto à questão. Para Zé, por exemplo, ele ―nasceu no toré‖, e vai morrer nele.

Para Tonho, ―o toré é a música que sempre se cantou‖, desde os antepassados. Para

Maria, ―não dá para viver sem toré‖. Estes depoimentos apontam novamente para a

importância deste rito para a comunidade, como já evidenciado no capítulo 3. É como se

o toré representasse o espaço de formação da pessoa, ou seja, nascer no toré carrega o

sentido de se descobrir sujeito, se autorizar, se reconhecer e se apropriar de um modo de

ser no mundo.

Neste cenário, a prática do complexo ritual em análise, se por um lado caracteriza

e constitui os sujeitos e povos indígenas do alto sertão alagoano, por outro os distingue de

outros sujeitos e grupos sociais tipicamente não índios. Se o praiá e o serviço de chão são

mais restritos, o toré é o rito de caráter público propriamente.

Além disso, no domínio do toré, tem-se uma boa visão de uma série de práticas,

noções, ideias e sentimentos que são observáveis em relação ao domínio do cotidiano. Lá,

por exemplo, busca-se sempre a dança em parelha. Quase sempre o par sendo formado

por um homem e uma mulher. Muitas vezes da mesma idade, o que pode apontar para

uma erotização do evento, mas na maioria dos casos acontece sem critérios de idade ou

família. Dança-se com quem estiver disponível. O que aponta para a lógica da associação,

no caso de corpos, que não devem se isolar.

O toré é o local da convivialidade e, sendo assim, representa e gera um tipo de

estilo de vida, elaborado pela convivência de todos.

Desde a primeira vez em que estive com os Kalankó, em 2001, pude

participar de uma série grande de torés, destacando-se uma apresentação realizada em

homenagem a uma ONG austríaca, que estava lá para realizar uma doação em dinheiro de

um projeto realizado no exterior.

Este evento foi realizado no terreiro de Lageiro do Couro, em novembro de 2001

e contou, além das integrantes da ONG, com a equipe do projeto ―Formação e

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282

Capacitação para a Sustentabilidade‖ da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina,

– dentre eles, eu – além do coordenador do CIMI – Conselho Indigenista Missionário –

para a região.

A aldeia estava lotada. No início, duas austríacas discursaram na oca central de

Lageiro do Couro seguida por Jorge Vieira, integrante do CIMI. Por fim, o pajé fez um

discurso de liderança (HERBETTA, 2006), longo e emocionante, falando sobre a

situação da comunidade, suas lutas e conquistas.

Depois disso, os Kalankó cantaram alguns torés e, por fim, convidaram todos os

presentes para dançar e cantar com eles. Foi uma grande demonstração de boas vindas.

Todos ao final expressaram alegria por participar do rito. Houve uma integração entre os

sujeitos ali presentes.

A partir daí, produziu-se uma série de conversas entre todos os participantes,

tornando mais fácil o conhecimento sobre a cultura indígena, o CIMI e a ONG austríaca.

O toré é chamado de brincadeira entre os Kalankó. O adjetivo brincadeira114

coloca-se em oposição ao adjetivo pesado, usado quando se fala do praiá e do serviço de

chão. Isto aponta para o caráter menos poderoso ou mais aberto do rito. Segundo os

Kalankó, ―o toré é uma brincadeira de respeito‖, apontando para sua importância na

produção de relações sociais e estilos de vida.

O toré é percebido na aldeia em oposição aos outros ritos e, por isso, tem algumas

características específicas que apontam para sua função de máquina de produzir boas

relações sociais. Desta forma, ele é, por exemplo, o espaço de recebimento do não-índio –

tanto dentro como fora da aldeia. Participar de um bom toré é um sinal de hospitalidade.

Além de brincadeira, também pode ser classificado como promessa. Promessa na

aldeia significa a execução de, no mínimo, três ―rodas‖ de cantos num dia específico do

ano e em homenagem a algum evento, geralmente relacionado a alguma cura. Novamente

o toré está relacionado à alegria.

Segundo Tonho Preto, esta lógica da hospitalidade, da produção de boas relações

sociais e da alegria, está relacionada à percepção da vida sossegada e pode ser observada

em diversos outros momentos e situações.

114 Para um maior aprofundamento no sistema terminológico usado na aldeia, ver HERBETTA (2006).

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283

O toré foi usado, por exemplo, em junho de 2005, como espaço de reunião entre

os Kalankó e a escola que atende as crianças de Lageiro de Couro. Tal evento foi como

uma reunião de pais, na qual professores conhecem os pais dos alunos e conversam sobre

os filhos.

Ana, professora da escola na época, me disse depois que havia sido a primeira vez

que tinha de fato ido à aldeia e que tinha tido contato com os familiares dos alunos. Além

disso, foi a primeira vez que ela participou de um ritual de toré, sentindo-se, a partir daí,

mais próxima da cultura dos alunos Kalankó. Entendeu um pouco mais a insistência das

crianças – nas aulas – para trabalharem com elementos do rito e até mesmo para dançar o

toré em sala. Atividades às quais ela prometeu, ao menos, dar mais atenção, já que me

disse, nunca houve um esforço por parte da prefeitura na direção de alguma capacitação

dos professores em trabalhar com uma cultura diferenciada.

Note-se que a escola não é uma escola indígena, sendo frequentada por outros

alunos sertanejos da região. Desta forma, tal evento serviu como forma de aproximação

eficaz entre todos os sujeitos em questão.

Em outra oportunidade o toré foi usado como espaço de interlocução com a

população da cidade de Água Branca. Isto ocorreu no momento da 130º festa pela

emancipação política do município, em abril de 2005.

Os Kalankó na ocasião foram convidados a participar do desfile e a apresentar o

toré na praça central da cidade.

Os Kalankó apresentaram três cantos de toré na frente do palco central da festa.

Todos cantaram e dançaram animadamente, orgulhosos por poderem apresentar seu ritual

no centro da cidade e por demonstrarem existir.

No último canto – o terceiro – o cacique convidou as outras pessoas presentes a

participarem. Este convite representava uma aproximação com a cultura indígena e com a

população Kalankó. A integração foi pequena, mas o fato de ter havido a apresentação e

o convite, gerou opiniões favoráveis na população da cidade sobre o grupo em questão.

Eu ainda permaneci no evento que terminou com um show de forró (gênero

musical bastante apreciado pelos Kalankó). Neste ínterim conversei com algumas pessoas

sobre o ocorrido e todos se mostraram felizes e receptivos aos Kalankó, emitindo

afirmações positivas sobre os sujeitos do grupo.

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Algumas pessoas com quem conversei começaram a se lembrar de situações nas

quais haviam tido contato com os indígenas. Todas elas recordaram destes momentos de

forma carinhosa, ressaltando a ―honestidade de seu Edmilson‖, por exemplo, ou a boa

convivência com o cacique, dentre outros momentos.

Este tipo de apresentação, na qual se leva o toré para o exterior e tenta-se, assim,

a aquisição de alianças nestes outros espaços é comumente usado pelos Kalankó.

Em outra ocasião, um evento seguiu a mesma lógica da apresentação acima

descrita. Fomos todos juntos para a Novena de Santa Cruz do Deserto/AL, realizada em

maio de 2007. Antes da apresentação, os Kalankó se reuniram numa casa e cantaram

diversos torés para, como disseram, esquentar.

O termo esquentar aponta aqui para a intensificação da energia encantada no corpo

do sujeito, que desta forma passa do frio para o quente, tendo então mais energia para

agir. Isto também significa que há um aumento na emotividade dele, estando de certa

forma mais próximo do grupo e dos encantados. Ao mesmo tempo, o sujeito potencializa

a sociabilidade do evento.

Passamos, então, uma hora esquentando para a festa. Todos estavam realmente

participando intensamente do momento, demonstrando a alegria por estar ali. No

momento do toré, em si, reparei que o sorriso era uma marca constante. Ao final da

apresentação, novamente convidou-se os observadores para participarem, o que

significava dizer, para estarem mais próximos da cultura indígena.

Após a experiência vivida, era nítido que estávamos todos quentes e felizes.

Nestes momentos algumas demonstrações de apreço e carinho são comuns. Tonho Preto,

por exemplo, cantou alguns torés improvisados, os quais falavam do sujeito do grupo, de

conquistas, da noite e da minha presença na aldeia.

Pode-se depreender do exposto que o toré é muito importante para a comunidade,

constituindo um rito polissêmico (REESINK, 2000). Ele se relaciona à brincadeira que

produz boas relações sociais, à promessa da cura, à produção da alegria e ao

fortalecimento do corpo, evidenciado no termo esquenta.

Apesar de as pessoas participarem do toré por vários motivos, eles compartilham

o corpo, a dança, o som, o cheiro e tudo o mais que a experiência coletiva pode

comunicar, para, em seguida, transformar em discurso aquilo que vivenciaram.

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Isto parece ser comum em outras aldeias da região.

Nos Xukuru, segundo Neves (2005) dançar o toré semanalmente fortalece a noção

de indianidade. Desta forma, lá, quem dança o toré assume sua condição de ser índio

Xukuru. Isto ocorre porque o sujeito sai de seu cotidiano e vivencia um momento de

liminaridade, em que cessam as hierarquias e a pessoa assume novas condições, valores,

crenças e ideais coletivas, configurando o que Turner (1974, 1987, 1992) chamou de

communitas. Seguindo a análise de Turner, que estudou os Ndembos, há uma conexão

entre conflito social e ritual (como mencionado no capítulo 1). Quando os conflitos

aumentam, há uma tendência ao aumento da quantidade de rituais. Desta forma, o toré

sendo mais valorizado nos momentos de conflitos.

Tratar o momento do toré como um momento de communitas ou conflito social é

bastante usado pela etnologia na região do sertão nordestino, marcando o toré como uma

estrutura de performance cultural, que relaciona o sujeito do grupo à ideia de indianidade

e o coloca em oposição às outras populações da região e ao Estado brasileiro.

Entre os Kalankó me parece acontecer o mesmo, o toré afirma a noção de

indianidade, posta em relação a outras populações e instituições não-indígenas. Essa

universalidade manifesta justamente a ideia de que o conjunto de maneiras e processos

que constituem os corpos é o lugar de emergência da diferença (VIVEIROS DE

CASTRO, 2002: 388). Daí o subtítulo deste capítulo – associação e diferenciação.

Além disso, entretanto, o toré transcende noção de indianidade. Ele traz em si

também a concepção de humanidade, presente entre os Kalankó na noção de vida

sossegada. Neste rito, elabora-se a pessoa Kalankó. Pessoa que possui um estilo de vida,

gerado pela ética da boa convivência, que tem relação com as boas relações sociais e a

alegria.

Neste cenário, o papel do riso é vital no cotidiano Kalankó.

O riso tem se tornado tema importante da etnologia indígena. Beaudet (1996) já

tinha chamado a atenção sobre a riqueza de se analisar o riso. Lévi-Strauss (1990 (1971),

também chamou, inúmeras vezes, a atenção para o riso – e também para o choro – como

operadores de processos transformativos. Lagrou (2006) corrobora o exposto. Para ela,

estudando os Kaxinawa, o riso tem alta eficácia ritual.

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Entre os Kalankó, é como se o riso tivesse a função de atenuar – e fosse criado

para isso – o mundo dado do sofrimento. O humor parece ser um código importante para

fazer frente a outros domínios do universo cultural em questão. Ele, também, evidencia o

potencial para a integração social presente no toré, já que ―good laugher is essential to the

health of community‖ (OVERING, 2000: 76)115

.

Desta forma há toda uma disciplina no uso do riso na aldeia. Deve-se saber usar o

humor gradualmente em seus diferentes níveis ou graus – sem excesso. Excesso de

humor é desordenador. Além disso, deve-se tomar cuidado com os tipos de humor –

cinismo e sarcasmo são evitados.

Neste cenário, o riso aparece como resistência à resignação. E, sendo

assim, se opõe ao cristianismo. Isto acontece, pois esta risada acontece pelo prazer de rir,

que se relaciona ao desejo, ação inversa e simetricamente oposta à passividade cristã,

evidenciada no capítulo 2. O riso – assim como o choro – potencializa o sujeito,

apontando para a ação do mesmo.

Ele tem, portanto, relação com a invenção (WAGNER: 1981) que atenua o mundo

dado do sofrimento. O terreiro, especialmente no toré, é um lugar para estar alegre. Faça

chuva ou sol, lá os Kalankó se divertem.

Este afeto que faz com que todos na aldeia declarem nascer e gostar do toré parece

certificar noções de pertencimento ao grupo. Se os Kalankó declaram tristeza e

sofrimentos, é no terreiro – no toré – o local onde eles brincam e se divertem – onde

coletivamente sorriem.

O riso é então um operador de pertencimento e estabelece relações sociais. Eles são

Kalankó – participando do mesmo sistema de parentesco e festas, se divertem-se juntos.

Sorriem juntos.

Neste cenário, o riso e a alegria são entendidos e se relacionam com a ideia de

beleza. O belo é o que se tem no toré. Neste sentido, o estilo de vida Kalankó – da busca

pela vida sossegada – está relacionado ao belo. Isto em oposição ao feio, percebido por

eles muitas vezes no cotidiano e na relação com a idei ade mistura, presente na naoção de

pele braiada.

115 A autora compara o riso entre as comunidades amazônicas e o riso que está mais relacionado ao

cristianismo. Este último para ela é entendido como perigoso em oposição ao primeiro (OVERING, 2000:

66). Assim, ―the role of laughter is vital to the everyday life in an Amazonian community (: 64).

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O toré é bonito, é o momento de contato com o mito estetizado, de confrontação

com a resignação.

Sendo assim, se o belo é o espaço do riso116

, o belo é também engraçado. O humor

gerando uma série de reações, dentre elas, o riso comedido que pode se intensificar até

uma pequena gargalhada. Cria-se então uma estética da ação, que está desta forma

diretamente relacionada ao senso de comunidade e, consequentemente, à noção de

humanidade.

Algumas narrativas117

que exploram o campo da fantasia e do humor apontam para

o exagero como motivo a ser explorado. Elas são geradoras de intensas risadas.

Seu Francisco, por exemplo, me contou a história de um homem que depois de

passar fome comia ―tanto, mas tanto, que sua barriga começou a crescer, crescer, até

estourar‖.

Já Abdias me contou a história de um cachorro que defecava tantas moedas de ouro

que poderia gerar a abundância de dinheiro – recurso importante no universo indígena.

Na primeira história, a barriga do homem estourou, trazendo de novo a idéia da

falta e na segunda o cachorro era uma farsa, pois quando vendido a peso do ouro nunca

mais produziu as moedas. Ambas as histórias apontam para um equilíbrio sutil vivido na

caatinga – a escassez e a abundância.

Desta forma, o belo para os Kalankó está também relacionado à ideia de

abundância118

, assim como o feio, à ideia de escassez. A abundância sendo vista como

uma forma de se compensar o sofrimento vivido na caatinga alagoana.

A vida simbólica e cotidiana é sempre pautada pelo exagero, em oposição ao

cotidiano, no qual se controlam os excessos. Um prato de comida, por exemplo, mais do

116 Para Lévi-Strauss (1990 [1971]) o riso está ligado a algum corte abrupto na realidade. Para ele,

―laughter, thus explained, is the opposite of anguish, the feeling we experience when the symbolic faculty,

far from being gratified by the unexpected solution of a problem that was prepared to struggled with, feels

itself, as it were, being strangled by the need, in vitally urgent circumstances, to achieve a synthesis

between operational or semantic fields, when it is without the means of doing so‖ (: 658).

117 Segundo Langdon (1999), alguns estudos de narrativa tratam os textos como fixos e, com isso, ignoram

que a narrativa é resultado do contexto de sua narração. Isso implica que muitos trabalhos enfatizam uma

busca pela versão original da narrativa ou pela sua autenticidade e ignoram que a tradição é um processo

dinâmico e que a vida social é dramatúrgica, com os atores sociais interagindo e produzindo cultura a todo

o momento.

118 Tais formas de adaptação estão geralmente relacionadas ao termo oposto da escassez – e, portanto,

marca da diferença – a abundância. A ideia de abundância está ligada à potência humana e aos recursos

obtidos na comunidade. Além de estar relacionada a um período do ano, indicando a sazonalidade como

termo importante do código de entendimento de mundo nativo.

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que compensar as vitaminas e nutrientes necessários a quem trabalha na roça, é sempre

exagerado, abundante de feijão, arroz, carne e do que mais houver no momento.

A família Kalankó também é vista como a grande família. Cada casal deve ter o

máximo de filhos possíveis; abundância familiar esta que deve compensar tanto as mortes

decorrentes das doenças comuns à população, quanto a falta ou o sofrimento. Ter muitos

filhos, mais do que mão-de-obra para a lavoura, equilibra a vida na caatinga alagoana. O

cacique Paulo, por exemplo, modelo do ser Kalankó, diz que tem dez, mas quatro

morreram.

Depreende-se das narrativas acima que a idéia de abundância está ligada à

quantidade e repetição.

Os cantos Kalankó apontam para a mesma situação. Eles, de certa forma, produzem

a abundância na comunidade. Como já mencionado, no toré, a estrutura do canto é a de

―pergunta-resposta‖ na qual o cantador canta dois versos e os participantes respondem

com mais dois. Por exemplo:

Caboclo de pena,

não pisa no chão (cantador);

Peneira no ar,

que nem gavião (participantes)

Além de algumas variações sobre essa base, há um complemento

produzido a partir do jogo de vogais característicos do praiá:

Vamô minha gente,

uma noite não é nada

(2x)

Ô, quem chego foi Kalankó

(Cantador)

No romper da madrugada (participantes)

Vamo vê se nóis acaba (Cantador)

O resto da empeleitada (participantes)

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Lê lê lê eio há há

Há há he Eio a há há

O desenvolvimento da peça baseia-se no canto e na repetição119

desses elementos.

De acordo com os registros de campo, o canto de toré pode durar de 3 a 22 minutos.

Quanto mais longo, melhor, pois a sensação de alegria e envolvimento será ainda maior.

Segundo os Kalankó, quanto mais células repetidas, mais intenso, pois mais energia

encantada chegará ao terreiro. Sendo assim, o toré também produz a abundância na

caatinga alagoana. Consequentemente, se relaciona ao belo, ao humor e ao riso.

Esta estrutura é similar ao canto de praiá, que não gera o riso e depende da

repetição de células baseadas num jogo de sílabas e vogais repetidas durante a execução

da peça. O padrão de execução identificado é a formação de três células: A, B e C que

podem ser articuladas nas seguintes formas:

He o ha he

He ha he hoa A

He ho ha he

He ho ha haia

He ho ha he B

He ho ha haia

He ho ha he

He ho ha haia B

He ho ha he

He ho ha hoa

He ho ha he C

He ho ha haia

119 A repetição na música é um recurso largamente utilizado por diversas culturas, sendo inclusive tema

bastante discutido na música ocidental, de base européia. O senso comum, muitas vezes usa a expressão

com um sentido pejorativo. Ao mesmo tempo alguns gêneros musicais ocidentais muito populares – do

sertanejo romântico à música eletrônica – se apoiam consideravelmente neste recurso. Para a percepção

musical Kalankó, a repetição é absolutamente fundamental.

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O canto dura em média 5 minutos e conta com algumas variações: ABCC, ABBA,

ABCA. Quanto mais as células são repetidas, mais intenso é considerado o evento. O que

significa dizer que há mais energia encantada no terreiro – e, assim, mais alegria.

O serviço de chão, outro gênero musical da comunidade, também é produzido pela

repetição de estruturas com base num jogo de sílabas e vogais. Neste canto elabora-se

uma célula composta por sílabas aparentemente sem conteúdo semântico. Por exemplo: a

expressão ahei ou ahum que tem um andamento mais rápido e é repetida intensamente,

configurando o que chamo de ―repetição radical‖, o que, por sua vez, dá origem ao que os

Kalankó classificam como o momento de maior energia encantada presente no terreiro,

suficiente para curar e para matar. Note-se que no serviço de chão fica claro também que

a velocidade é um elemento essencial para esta musicalidade, como evidenciado no

capítulo 3 e 5.

A prática musical Kalankó, portanto, opera com a ideia da quantidade e repetição.

Os cantos nativos são, assim, uma máquina de produzir abundância no alto sertão

alagoano.

Tal composto musical recorre, ainda, a sentidos locais e gera emoções fundantes do

grupo, sempre ligados à abundância – como a alegria e o riso. Deste modo, tal máquina

acaba por gerar afetos positivos à população local, as quais de acordo com os sujeitos são

responsáveis pela emoção e pelo gosto de ser Kalankó.

A abundância produzida pela máquina musical significa alegria. Quanto mais

repetição, mais alegria sentem os sujeitos em questão. Assim, ser ou não Kalankó lá tem

mais a ver com este gosto do que com qualquer outra elocubração mais complexa.

Neste sentido, o investimento afetivo, que se relaciona às apropriações e às

negociações com as sonoridades, mostra-se central para a compreensão dos gêneros

musicais, da sociabilidade e da noção de pessoa.

Isto fica mais claro quando se olha mais detalhadamente para a forma musical dos

cantos120

.

120 Os três torés apresentados aqui foram coletados, em julho de 2007, durante um sábado de lua cheia na

caatinga alagoana. Eles foram transcritos pelo músico e compositor André Ribeiro e fazem parte de um

estudo maior ainda em desenvolvimento. Por isso, a análise decorrente deles trata ainda apenas de alguns

apontamentos. Neste sentido, tais pontos serão mais bem aprofundados no futuro. Eles são assim pistas de

uma complexa teoria musical Kalankó.

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O canto ―Lá no alto da serra‖ – abaixo – foi coletado em um toré realizado num

sábado de julho de 2007, assim como os outros apresentados neste capítulo. Esta peça foi

a primeira da noite e teve duração de aproximadamente 15 minutos.

Além das características comuns a um toré, já apontadas no capítulo 5, evidencia-se

que a repetição é uma marca deste gênero. Homens e mulheres cantam sobrepostos,

elaborando um falso bordão, que é repetido até o final da peça.

Além disso, a transposição, ao longo do canto, acontece de forma ascendente. O

trajeto sendo percorrido a partir de reiterações musicais, como demonstrado na

transcrição abaixo.

Na parte A o cantador principal enuncia a frase marcando o motivo do canto. Ele

repete a frase inicial ao menos duas vezes, como ocorreu no evento referido. Em seguida,

o coro responde com mais uma frase, constitundo a parte B do canto. Ela é a resposta da

parte A, como evidenciado abaixo,

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O canto segue com a repetição deste diálogo. O cantador repete A e o coro repete

B. Ambos estabelecem e seguem métricas rítmicas de maneira precisa. Além disso, volta-

se, após as repetições mais marcantes, à parte A. Ela é cantada como a parte A inicial, de

introdução, talvez apontando para o caráter sazonal da vida na caatinga alagoana. A parte

A é repetida duas vezes.

Na parte final do canto percebe-se a maior participação do coro, que repete a parte

B até o final da peça.

O canto ―Minha aldeia tem caboclo‖, – abaixo – foi o segundo da noite e teve

duração de aproximadamente 11 minutos. Nele percebe-se a intensa profusão de arpejos.

O uso destes arpejos parece-me estar ligado à reiteração da mensagem.

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Na parte A o cantador principal enuncia a frase marcando o motivo do canto. Ele

repete a frase inicial ao menos duas vezes, como ocorreu no evento referido. Em seguida,

o coro responde com mais uma frase, constitundo a parte B do canto. Ela é a resposta da

parte A.

A parte B, novamente é reiteradamente repetida, o que dá a extensão do canto. Tal

extensão, marcantemente longa, colabora também para a apropriação da mensagem

contida nele, diretamente ligada ao afeto.

Repete-se a célula acima até o fim do canto. Segundo o pajé João Koyupanká,

presente no evento, este foi um ―canto bonito‖.

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O terceiro canto, ―Urubu de serra negra‖, – abaixo – apresentado aqui, foi o terceiro

da noite, completando um primeiro bloco ternário. Os Kalankó têm a ideia de que o toré

deve ser cantado de três em três, com já mencionado.

Esta peça teve duração de aproximadamente 13 minutos.

O canto evidencia transposição.

A parte B, novamente é intensamente repetida e institui a extensão do canto –

consequentemente da alegria dos sujeitos.

Além disso, a partir da repetição de alguns elementos melódicos e textuais, tem-se

mais facilidade para memorização. A qualificação de um personagem como o urubu ou

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295

mesmo a serra negra – similar ao que acontece na canção popular brasileira com a baiana

ou a garota de Ipanema – é uma das principais formas de manifestação da reiteração no

texto.

Todas as peças Kalankó analisadas são reiterativas na medida em que assumem

uma significação nova e retomam a partir daí um caminho já exposto pelo grupo. Elas

têm a ver com repetição e diferença.

São reiterativas também porque isto se dá através da repetição de algumas figuras

sonoras – células melódicas e rítmicas similares. E, além disso, reiteram o uso de alguns

termos, que podem ser personagens, objetos ou ações.

De acordo com Janotti Junior (2006), o termo reiteração significa tomar um novo

caminho ou itinerário e, também, possuir isomorfismo, que implica na existência no

tempo do canto de figuras iguais, com a mesma forma.

Tal elemento é ainda considerado pelo autor, fundamental, tendo em vista a

perspectiva comunicacional dos fenômenos musicais contemporâneos inscritos antes de

tudo nas expressões musicais, para a formação de gêneros musicais, os quais envolvem

regras econômicas (direcionamento e apropriações culturais), regras semióticas

(estratégias de produção de sentido inscritas nos produtos musicais) e regras técnicas e

formais (que envolvem a produção e a recepção musical em sentido estrito).

Entre os Kalankó, a forma musical mostra que há uma intensa mistura de elementos

de tradições diversas, como a européia, africana e indígena, as quais dão origem a um

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296

bloco sonoro de grande significado na localidade, e relevante para a população dali. Esta

questão foi melhor analisada no capítulo 5.

Note-se que, a forma musical em tela é caracterizada pela repetição dos mesmos

elementos nos outros gêneros musicais, como o praiá e o serviço de chão.

Desta forma, a música Kalankó mostra-se relevante para modelar o sujeito Kalankó,

que antes de qualquer coisa, se entende como tal, pelo afeto que sente através da música

do grupo e da emoção decorrente dela – a alegria. Produz-se, então, o gosto do ser

Kalankó que, consequentemente, o diferencia dos outros gostos e seres da região. Isto

evidencia o que Gow (2000) chama de ―particular experiential state‖ (: 46), apontando

para uma estética da comunidade e uma concepção própria de condição humana.

Em outras palavras, para os Kalankó, a alegria decorrente da extensão do canto tem

a ver com a potência humana decorrente do acúmulo de energia encantada no terreiro,

que faz o corpo humano forte e o possibilita viver, ser e sorrir Kalankó.

Esta realidade pode ser observada em outros locais no mundo. Entre os

Yanomami, os cantos são baseados na ―repetição obsessiva da uma linha melódica

(CLASTRES, 2004 [1980]: 40).

Além disso, no espaço correspondente ao hinduísmo pode-se observar uso similar

do som.

Em alguns sistemas hindus, diz-se que os mantras são sons primordiais que

possuem poder em e por si mesmos. É como entre os Kalankó onde o encanto é o som –

que tem, portanto, poder nele mesmo. Neste sentido, o som em ambos os cenários exerce

um poderoso efeito sobre o corpo e a mente, podendo gerar estados de profunda

emotividade.

O mantra também funciona através da pronunciação repetida, que leva ao controle

de uma determinada forma de energia. Esta atividade é o resultado de se ter controle

sobre a própria energia, através do qual se obtém a capacidade de comando sobre

fenômenos externos.

Outra similaridade reside no fato de muitos mantras serem baseados numa série

de sílabas aparentemente sem conteúdo semântico inteligível. Da mesma forma que

muitos trechos de cantos Kalankó. Ambos invocando, a partir de sua repetição, uma

energia intensa, ligada a um Buda ou a um encantado.

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297

Ambas as tradições, dispersas no espaço, apontam para o fato de que a sonoridade

produzida nestas comunidades pode ter um efeito intenso na vida das pessoas. Efeito que

reside no fato de atuar no corpo e mente do sujeito, regulando emoções e sensações. Estas

que podem curar e proteger, sublimando o mundo dado. Ressalte-se que a música

Kalankó parece, então, apontar para a alegria e o sorriso.

Desta forma, parece-me que o mundo dado121

para os Kalankó está relacionado ao

sofrimento, decorrente da experiência de cristianização e expropriação de suas terras. E o

universo inventado está conectado a prática de uma sonoridade específica, que lida com a

falta ou o excesso de uma energia vital.

O lugar social de injustiça e opressão, experienciado pelos Kalankó, é percebido

como um mundo inato de sofrimento. É sobre esse mundo que o sujeito pode inventar

uma série de elementos artificiais – como rituais, cantos e narrativas – estabelecendo

operadores que aliviam a dor de ser Kalankó. O som em todos os casos é essencial.

Assim, se por um lado criam-se tabus que são importantes para a manutenção de

uma vida coletiva e estão relacionados ao sofrimento, por outro, os Kalankó estabelecem

regras de convivialidade, baseadas num sistema de representação que aponta para

maneiras de lidar com as regras, sublimando-as.

Neste sentido, a música transcende o tabu e a dor e extravasa o sofrimento,

canalizando a energia encantada para o corpo do sujeito.

Supera-se a dor de possuir peles braiadas.

Neste sentido, entendo que, para os Kalankó, a emoção que gera o ardor e desloca

o sofrimento do ser no mundo é percebida através da conquista da abundância – que é

uma forma de se compensar o sofrimento vivido na caatinga alagoana e é tamb´´m

entendida como o belo. Além disso, a abundiancia é o elemento fundante de um estilo de

convivência baseado na vida sossegada, configurando uma ética particular das emoções,

representada abaixo.

121 Tal lógica é muito bem exposta por Wagner (1981), que pensa a cultura através das categorias de inato

e artificial. O inato é algo percebido como imanente e o artificial é dialogicamente obtido através da

invenção humana, que cria convenções e controles sobre o inato, a fim de inventar formas de adaptação à

realidade.

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Dentre todos os torés que vivenciei na última década, um me chamou em especial

a atenção. Neste, não participei. Não tive coragem. Apenas contemplei um momento de

marcante beleza e humor.

Este toré aconteceu na noite final do Encontro dos Povos Indígenas do Sertão

Nordestino, em 2007.

Ao longo de todo o dia a alegria estava evidenciada nas rodas de toré, nas quais

podia se perceber o riso estampado no rosto de todos. Ao mesmo tempo, o sofrimento era

sempre tema presente nos discursos de liderança proferidos. Todos cobravam maior

participação e união entre os povos indígenas e pediam respeito do governo federal. O

que apontava para o sentimento de tristeza.

Fazia muito frio e começou a chover, o que fez com que o rito dos praiás –

ansiosamente aguardado – não pudesse acontecer. Ouvi alguns comentários resignados,

afirmando que a vida do índio é assim mesmo – difícil.

A fogueira acesa todos os dias estava quase apagando por causa da chuva que

começou a cair fortemente, ameaçando também o toré final. Este toré reuniria todos os

participantes do encontro, marcando a união de todos.

Os não índios – eu, minha esposa, integrantes do sindicato rural de Alagoas e de

movimentos de contestação à transposição do Rio São Francisco voltamos correndo para

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nossas barracas que estavam dispostas debaixo da oca central da retomada – protegidas

das intempéries do tempo.

Ao mesmo tempo e inversamente, os índios – pertencentes a diversas etnias

presentes no alto sertão– correram para o terreiro, em frente a nossas barracas. Eles

começaram a cantar e dançar o toré.

O fogo resistia bravamente à abundância de água da chuva.

Permanecemos – os não indígenas – confortavelmente na oca, conversando sobre as

questões dos índios levantadas ao longo do encontro. Passamos um bom tempo nessa

conversa, esperando que a brincadeira fosse terminar cedo. Estávamos sem coragem de

participar e de admitir isso.

A roda, entretanto, não terminou. Os índios dançaram debaixo da chuva,

completamente enlameados, ao longo de toda a noite.

Não cheguei a ver o final do rito.

Dormi pensando nas imagens daqueles corpos braiados sorrindo à luz da fogueira.

Todos. Índios, caatinga, ideias, lama, alegria, fogueira, risos, água, risos...

associados, constituindo uma paisagem especial e emocionante. Não existia nem mais o

passado sofrido nem o futuro misterioso. A vida na caatinga alagoana era aquele

momento de alegria e jubilo. Sempre.

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Considerações Finais

Amarrações – sistemas de conservação e

transformação no alto sertão

―O sertão vai virar mar e o mar virar sertão‖ Antonio Conselheiro

Note-se em primeiro lugar que modos de ser Kalankó é radicalmente diferente de

modos do ser Kalankó. Os sentidos são inversamente simétricos.

Enquanto a última expressão aponta para uma construção fenomenológica do ser,

reificando o sujeito e a consciência dele; a primeira expressão indica a existência de um

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sistema de variantes que apenas aponta para a ideia da pessoa. Ou seja, o ser é fruto de

um arranjo temporário de determinados elementos, como ficou evidente no capítulo 7122

.

O desenvolvimento deste trabalho baseou-se na exploração deste sistema de

variantes observado, mais especificamente em um sistema de representação simbólica

que marca, expressa e perpassa os arranjos dos elementos estudados. Desta forma, o

centro do trabalho é o ponto de vista Kalankó sobre o que é ser Kalankó na região.

Em termos especificamente Kalankó, o sistema de representação em consideração

descortina uma forma particular de atuação no mundo, sendo desencadeador de processos

importantes para a vida da comunidade, envolvida muitas vezes em uma dramática

situação de contato com o mundo não índio. Além disso, ele aponta para uma série de

aproximações e afastamentos com relação a outras populações – indígenas ou não,

especialmente na caatinga alagoana.

Ao mesmo tempo, o sistema em tela é na verdade uma variante local, Kalankó, de

uma estrutura pan-nordestina, responsável, no contexto sertanejo, pela elaboração do

conhecimento, dos sujeitos e do mundo. Ressalte-se que este sistema aponta para uma

estrutura inconsciente de entendimento e criação do mundo na região. É a partir dele,

inclusive, que se estabelecem as relações mais estratégicas da sociedade indígena, de um

lado com o Estado e a sociedade nacional, de outro com os próprios indígenas Kalankó e

com os outros povos indígenas. E, por fim, ele torna possível a ponte com os encantados,

o meio ambiente e a história.

Como foi visto, este sistema de representações tem base social e apareceu de

forma mais clara na análise dos torés. Estes foram analisados a partir de seu potencial

mítico, ou seja, aproximados de narrativas míticas, desvelando rico universo simbólico,

presente em uma estrutura inconsciente.

Além disso, o toré, assim como os outros gêneros musicais da comunidade, foi

estudado a partir de sua forma, representada nas transcrições musicais. A partir desta

análise, desvelou-se interessante dinâmica de extensão e variação de temas. Processo que

pode ser comparado e estendido a outros sistemas atuantes na aldeia.

122 Uma noção similar é evidenciada em algumas etnografias no sertão nordestino. A noção de regime do

índio, presente em Grunewald (2004), por exemplo, me parece apontar para sentidos similares. Ao mesmo

tempo, no mesmo trabalho, em outros autores, reforça-se uma noção fenomenológica do ―ser índio‖ (ver

PALITOT e SOUZA).

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Alguns temas e relações emergiram deste universo simbólico revelado nas

análises supracitadas e mostraram-se essenciais para o entendimento de mundo nativo. A

flor, por exemplo, surgiu como signo fundamental no pensamento Kalankó.

Ao mesmo tempo em que ela representa a beleza da caatinga, e, especialmente, o

período da abundância – de chuva, quando ela cresce e se espalha pela região; ela aponta

para o próprio sujeito, que se entende como tal. Isto em relação aos pássaros,

relacionados aos encantados e entendidos em conjunção às flores.

FLOR U PÁSSARO

Neste sentido, temos uma concepção positiva de pessoa, relacionada à abundância

e ao belo, como expressa a equação abaixo.

SUJEITO:BELEZA:FLOR

Em oposição à relação acima expressa, emerge o termo braiado, que se relaciona

à ideia do podre. Tal termo está presente na expressão peles braiadas e representa o

processo de mistura e hibridismo a que tais populações se viram violentamente

envolvidas, ao menos desde o aldeamento missionário, no século XIX. A equação abaixo

apresenta estas relações.

MISTURA:BRAIADO:PODRE

Os Kalankó, do ponto de vista deles, possuem peles braiadas. E vem daí o

sofrimento que suportam como ficou evidente no capítulo 1.

A vida deles é então organizada para sublimar esta emoção, como observado no

capítulo 8.

O aldeamento forçado é visto como a nascença do grupo pelos próprios nativos. É

lá, segundo eles, que se deu o processo de formação do que chamam de tradição,

relacionado ao que chamam hoje de ciência do índio. Ambas as expressões apontam para

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sentidos positivos e ligados à ideia de pureza e potência, como evidenciado nas relações

abaixo.

TRADIÇÃO:CIÊNCIA :: PUREZA:POTÊNCIA

Como se pode perceber, ambas as relações se afastam diametralmente da ideia de

mistura.

Estes processos de distanciamento e aproximação das ideias de PUREZA e

PODRE marcam a trajetória dos Kalankó e mostram-se relacionados com a força

encantada.

A força encantada é decorrente da atuação e presença dos encantados na aldeia.

Na maioria dos casos tem-se contato com esta energia no terreiro, espaço especialmente

produzido para isso.

Esta força é responsável por uma espécie de energia vital que alimenta os sujeitos

em questão. Isto ocorre, pois ela produz algumas transformações importantes na aldeia,

conforme indicadas neste trabalho.

Uma das transformações se refere à mudança de tempo, entre o Tempo dos

Antepassados e o Tempo da Luta. O Tempo da Luta é fortemente referido nas narrativas

sobre a história do grupo, apontando para uma tomada de consciência do mesmo e

expressando uma nova realidade.

Segundo os Kalankó, o contato com a energia encantada se intensifica no Tempo

da Luta, no qual os Kalankó buscam conquistar uma posição mais destacada na rede de

relações sociais do alto sertão alagoano.

Neste sentido, este processo relacionado à energia referida aponta também para o

processo de afirmação de uma identidade indígena. Isto ficou claro quando se tratou do

processo de democratização brasileiro, no capítulo 2.

Este capítulo apresentou o fortalecimento do movimento indígena e indigenista

brasileiro, o que teve como resultado a emergência étnica de diversas populações que

passam a se afirmar indígenas. Do ponto de vista Kalankó, no Tempo da Luta assume-se

a mistura, mas relaciona-se a ela, a partir da potência encantada.

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Além disso, a energia encantada é responsável pela vitalidade do corpo entre os

Kalankó. A energia neste sentido está relacionada à saúde do sujeito. Outra

transformação evidenciada refere-se ao fato de que ela pode curar, como é entendida no

serviço de chão. Além disso, ela está relacionada à capacidade mental do sujeito, como

foi demonstrado no capítulo 6.

Neste capítulo ficou evidente que segundo os Kalankó as doenças estão ligadas a

desarranjos mentais, que podem gerar uma série de outros desequilíbrios. Nestes casos,

deve-se apelar à energia encantada. Em muitos casos, quem passa por este processo

acaba mantendo um contato mais próximo com tal universo encantado, tornando-se

cantador (a) destacado (a), representando uma transformação de status.

Estas transformações em comentário possuem, em comum, alguns padrões de

relações antagônicas, apontadas e trabalhadas ao longo do estudo. Dentre elas, destaca-se

a oposição:

CÉU/TERRA

Para os Kalankó o céu – também chamado espaço – é o local dos encantados, e

releciona-se a ideia de poder. A terra é o local do índio, espaço de provação e sofrimento.

Ao longo do estudo, ficou evidente que o domínio do rito, entre os Kalankó, busca acima

de tudo conectar o céu e a terra, apontando para o paraíso que lhes fora prometido.

Melhor dizendo, busca-se estabelecer a energia encantada na aldeia.

Segundo os Kalankó, a energia encantada é produzida através da união ou

associação dos sujeitos, espaços, objetos e natureza, como foi evidenciado no capítulo 4.

Este capítulo apresenta desta forma uma lógica de associação e recorte e discute

como ela determina a grande família, produzindo primos e, ao mesmo tempo, classifica

alguns elementos em vivos e a maioria em não- vivos.

Os elementos entendidos como vivos muitas vezes chegam a possuir ou apontar

para os sentidos de agência e intencionalidade. Desta forma, do maracá ao encantado, os

Kalankó relacionam-se com sujeitos. Estes elementos são compreendidos como sendo da

tradição do índio e, portanto, referem-se ao domínio da ciência indígena.

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Os não-vivos possuem atuação inversa, referindo-se à mistura e apontando para o

podre. A equação abaixo representa estas relações.

VIVOS:TRADIÇÃO / NÃO-VIVOS:PODRE

Como evidenciado no capítulo 4, do ponto de vista nativo os elementos vivos

possuem um corpo que deve ser zelado. O maracá, a veste de praiá e o corpo do sujeito,

por exemplo, devem passar por uma série de procedimentos, os quais estão relacionados

ao encruzamento e à defumação. E, além disso, se relacionam à manutenção da vida ou

potência destes elementos.

Estes cuidados apontam para uma extrema valorização do corpo na aldeia, o que

pode ser observado no plano do sensível.

No capítulo 8 explorou-se esta ética do sensível na aldeia, a qual diz respeito a

uma busca Kalankó por uma vida equilibrada ou, como dizem, sossegada. Desta forma,

no plano do concreto, referenciado nas relações sociais cotidianas, o exagero é evitado.

Caso contrário, arrisca-se perder o equilíbrio, o que pode apontar para a doença.

Inversamente, no plano do simbólico, o exagero é bastante valorizado. Ele aponta

para a abundância e, desta forma, para a saúde e potência do sujeito. Ressalte-se que

sensações importantes são geradas pelo código acústico, os quais constroem sentidos

básicos para a comunidade e geram as emoções esperadas.

Evidencia-se no capítulo em questão que o riso tem um papel fundante para o

grupo. Ele está relacionado e é a marca aparente da alegria, produzida no domínio do rito

do toré. Essa é a política do cotidiano, que relaciona a alegria à abundância, como

expressa na equação abaixo.

EXAGERO:CONCRETO:PODRE / EXAGERO:SIMBÓLICO:POTÊNCIA

Desta forma, pode se pensar em uma equação que aponte para as relações abaixo

expostas.

VIVO:PUREZA:POTÊNCIA::NÃO-VIVO:PODRE:BRAIADO

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Na análise dos dois processos históricos estudados no capítulo 2 – o aldeamento

forçado e a democratização – ficou claro que há uma relação dialética e constante entre o

plano diacrônico e o sincrônico.

Se o caráter histórico colado a tais processos é responsável por mudanças

contextuais importantes, como o ajuntamento forçado, a convivência no aldeamento a

extinção do mesmo, o processo de migração decorrente dele, a catequização e a

emergência étnica, então há também um caráter diacrônico a ser considerado.

Tal caráter está relacionado a uma estrutura ligada à ideia de circuito, a qual

perpassa todos os outros domínios culturais. A descrição deste circuito diz respeito a um

sistema assimétrico de intercâmbio dos elementos vivos, especialmente, e também não-

vivos, conforme demonstrado no capítulo 7.

Nele, parte-se de uma análise de sistemas em equilíbrio, explorando as relações

do circuito do ponto de vista nativo. Isto acontece a partir da identificação, nomenclatura

e classificação dos elementos referentes ao circuito. Desta forma, fica evidente que o

circuito conforme entendido na aldeia é operacionalizado a partir de relações

assimétricas.

As relações acima mencionadas e a ligação entre as diversas populações foram

trabalhadas no mesmo capítulo 7. Nele, a ideia de circuito perpassa diversos planos e

ordens e intercambia elementos e ideias entre as populações da região. Desta forma, os

mesmos signos são usados por populações diversas com sentidos variáveis, o que

configura cada sistema de representação específico.

Desta forma, entendo que obtive evidenciar que o sistema de representação ali

atuante é absolutamente fundamental para a elaboração do vir a ser na região,

constituindo identificações e diferenças em relação a outros grupos – indígenas e não.

Compreendo também que as descrições dos elementos e das relações acima

aproximam os Kalankó de outros tantos povos indígenas das Terras Baixas da América

do Sul – TBAS – e os afastam de outros. E que o resíduo desta equação de afastamento e

aproximação aponta para o que pode ser a pessoa Kalankó. Ao menos, temporariamente.

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Ao mesmo tempo, pode-se depreender que o ser Kalankó – em essência – não

existe. Ele é fruto de uma armação temporária, que vai se desmanchar em tantas outras

armações. Assim como ocorre com todos os outros povos indígenas ou não na TBAS.

O diagrama abaixo apresenta os principais termos identificados e suas relações.

O diagrama acima apresenta os termos e relações que guiam a vida na aldeia

Kalankó. Como se pode entender, os Kalankó organizam ações que buscam conjugar o

céu com a terra. Isto ocorre para a materialização da energia encantada, compreendida

como fonte da potência, apontando então para saúde ou doença, ao mesmo tempo que

para a vida ou a morte. Depreende-se do diagrama ainda que ―é entre essas estruturas,

que são todas expressões parciais dessa totalidade [...] que busco saber se há propriedades

comuns‖ (LEVIS-STRAUSS, 2008 [1958]: 98).

A partir do exposto acima, este estudo não desejou aprisionar o pensamento

etnológico e o pensamento Kalankó nos limites estreitos do território e da etnia. Buscou-

se, a todo instante, ir para todos os lados da aldeia. Ir além da aldeia. Ir, inclusive, para

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fora dela. Isto tendo como base uma teoria das relações, a qual aponta, como mencionado

acima, para uma estrutura subjacente à percepção e à ação.

Tal perspectiva apontou uma série de ambiguidades, partindo da insolúvel

homogeneidade cultural entre todos os seres humanos que vivem no alto sertão alagoano.

O que indica que o ser Kalankó é potencialmente o ser sertanejo e o ser brasileiro. Um a

um, dois a dois ou ao mesmo tempo, já que a escolha é uma das soluções possíveis entre

possíveis preexistentes. A equação abaixo apresenta a situação.

{KALANKÓ ≠ SERTANEJO : BRASILEIRO} :: {KALANKÓ : SERTANEJO ≠

BRASILEIRO} :: {KALANKÓ : SERTANEJO : BRASILEIRO}

Depreende-se dela que em alguns momentos o conjunto Kalankó se distancia

drasticamente do conjunto sertanejo e do brasileiro. Isto ocorre, por exemplo, na ideia de

etnicidade, fundamento do campo da etnologia indígena e marca do Tempo da Luta,

descrito no capítulo 2. Neste momento, os Kalankó procuram se distanciar de todas as

outras populações. Isto pode ser claramente percebido nos discursos elaborados na aldeia.

Tonho Preto, por exemplo, nestas ocasiões, sempre marca no rito a diferença para com

religiões de caráter africano e outras.

Ao mesmo tempo, em outros momentos, os Kalankó podem estar em homologia

com os sertanejos, mas distantes dos brasileiros. Isto acontece quando recortam a ideia de

grande família e percebem-se mais próximos dos sertanejos. O Tempo dos Antepassados

é, por exemplo, um período no qual, tal relação foi evidente. Da mesma forma, neste

momento eles se afastam da ideia de brasileiro, por sofrerem o preconceito comum ao

nordestino.

Alguns episódios históricos do sertão nordestino corroboram a relação. A Guerra

de Canudos, por exemplo, marcou uma aliança entre negros, índios, europeus

empobrecidos, todos identificados como sertanejos, em oposição ao Brasil, entendido

como república do sul. Os sertanejos neste episódio foram duramente discriminados e

violentamente reprimidos (CUNHA, 2005 [1902]).

Além disso, entre os termos que formam o conjunto sertanejo, pode se achar

homologias no sistema de representações, já que ambos são caracteristicamente

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309

conhecidos por sua hospitalidade, atenção ao outro e, consequente, formação de relações

de aliança e reciprocidade.

Depreende-se daí que, em alguns momentos, o conjunto Kalankó se aproxima

drasticamente do conjunto sertanejo e também do conjunto brasileiro. Isto ocorre, por

exemplo, na ideia de cidadãos, a qual busca posicionar tais sujeitos junto ao conjunto da

populaçao brasileira, conferindo-lhes identificadores específicos, como o documento de

registro comum ao cidadão brasileiro – RG – ou uma conta no banco. Isto ocorre mesmo

que em relação a um recorte, delimitado por alguns direitos específicos, reivindicados no

Tempo da Luta.

Neste momento, os Kalankó são índios sertanejos e brasileiros, eliminando de

uma vez por todas a oposição, muitas vezes cruel, aos povos indígenas que só são

indígenas se forem absolutamente diferentes e viverem no antigamente, distante dos

―traços específicos do espírito brasileiro‖ (BUARQUE DE HOLLANDA, 1995 [1936]:

149).

No cenário acima exposto, representado pela equação expressa, os Kalankó

podem se afastar ou aproximar das ideias de sertanejo e brasileiro. Podendo assim

configurar uma formação unitária, binária ou mesmo ternária, dependendo do contexto e

dos interesses em jogo. Note-se que nunca se afastam o suficiente para ir aquém de um

Kalankó nem além das possibilidades de um brasileiro.

Isto pode ser comprovado em diferentes níveis e ordens. Neste sentido, a ideia do

Tempo Futuro torna-se interessante.

Para todos, Kalankó, sertanejos e brasileiros a expressão tem relevância. Além

disso, parecem apontar para um sentido similar.

Para os primeiros, representa o terceiro período da história Kalankó, denominado

Tempo Futuro e ainda não muito bem definido. Do ponto de vista deles, o Tempo Futuro

é um tempo localizado em um momento indefinido, que só poderá ser atingido após

inúmeras batalhas. É o tempo ideal, no qual o alto sertão alagoano vai voltar a ser e

pertencer ao índio. Nele, os ancestrais encantados terão maior poder de atuação sobre a

caatinga alagoana. A equação abaixo evidencia as relações marcantes entre os termos

identificados.

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310

TEMPO FUTURO: TRANSFORMAÇÃO: POTÊNCIA

Para os sertanejos a ideia tem o mesmo sentido. Para eles, o futuro aponta para as

potencialidades da caatinga. Muitos dos meus interlocutores na cidade de Água Branca

sempre que se referiam ao futuro, relacionavam-no a algum projeto de exploração

sustentável da caatinga. Tais projetos, que poderiam ser o desenvolvimento do turismo, a

apicultura ou a produção de vinho, sempre apontavam para a terra como provedora de

recursos essenciais à população.

Da mesma forma, a ideia de ―Brasil, o país do futuro‖, tão comum em diversas

regiões do país, corrobora o sentido da equação acima, apontando para a potência

localizada num tempo futuro.

Esta ideia é muito cara ao país sendo tema de análise de diversos autores. Caio

Prado Jr., por exemplo, afirmou que a formação brasileira se completaria no momento em

que fosse superada a nossa herança de inorganicidade social – o oposto da interligação

com objetivos internos – trazida da colônia. Este momento estaria localizado no futuro

(SCHWARZ, 1999: 17-18).

Sérgio Buarque de Holanda afirmou algo análogo. Para o autor, o país será

moderno e estará formado quando superar a sua herança portuguesa, rural e autoritária,

quando então teríamos um país democrático. Também aqui o ponto de chegada está mais

adiante, na dependência das decisões do presente. Celso Furtado, por seu turno, disse que

a nação não se completa enquanto o comando, principalmente o econômico, não passar

para dentro do país. Como para os outros dois, a conclusão do processo encontra-se no

futuro, que agora parece remoto (Ibidem). A equação abaixo representa as ideias expostas

e aponta para a equação Kalankó elaborada sobre o mesmo tema.

TEMPO FUTURO: TRANSFORMAÇÃO: POTÊNCIA

Depreende-se daí que apesar das aproximações e dos distanciamentos há um

sentido que permeia os termos em questão. O futuro sempre representa as mudanças

necessárias para a potencialização dos sujeitos e dos espaços.

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311

O devir é o resultado da equação que conjuga os termos em questão, tomando “a

cultura conforme fórmula musical de tema e variações‖ (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1962]:

106). Neste sentido o devir representa o mesmo, como evidenciado abaixo.. Neste sentido

o devir representa o mesmo, como evidenciado abaixo.

DEVIR:TRANSFORMAÇÃO:CONQUISTA

::

KALANKÓ:SERTANEJO:BRASILEIRO

Desta forma, buscando entender como D. Joana podia ouvir os encantados e como

o código auditivo poderia gerar profundas e concretas transformações na aldeia Kalankó,

acabei tendo contato com o pensamento Kalankó. E também com o sertanejo e brasileiro.

Tal pensamento expressa ideias diversas sobre os modos possíveis de ser Kalankó

– e também de não ser Kalankó. Neste sentido, procurando inventar aproximações e

diferenças entre todos as pessoas a fim de manter um grupo étnico imaginado. O que

acontece a partir de uma lógica de associação e recorte, mas também de variação.

Se a pele é braiada por causa de processos sócio-históricos, o devir é puro, já que

se alimenta da graça – que pode ser a água da chuva ou a energia encantada – que vêm

de cima, mas está sempre em relação à potência da terra – que vem de baixo.

Para os Kalankó, o devir é o momento no qual a terra é conjugada ao espaço.

O sertão vai virar céu.

TERRA U CÉU

A relação acima é base do ponto de vista Kalankó sobre a noção do que é uma

pessoa na aldeia. E também do mundo elaborado lá.

Ela aponta também para o fato de que o sistema de pensamento em questão é

tendencialmente binário, o que ficou evidenciado ao longo do trabalho, a partir das

inúmeras oposições estabelecidas, entre os Kalankó, para explicarem seu mundo e se

relacionarem a ele. Algumas relações são lembradas abaixo:

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312

PODRE : PUREZA

ANTEPASSADO : LUTA

MISTURA : TRADIçÃO

RECORTE : ASSOCIAçÃO

TERRA : CÉU

LOCAL : NACIONAL

TORÉ : PRAIÁ

PASSIVIDADE : ATIVIDADE

CHORO : RISO

ESCASSEZ : ABUNDÂNCIA

VERÃO : INVERNO

(...)

Esta tendência dualista ficou ainda especialmente evidenciada na análise da

estrutura musical nativa, analisada no capítulo 5123

.

Neste sentido, pode-se se dizer que os Kalankó se aproximam consideravelmente

de outras populações ameríndias das TBAS. Isto porque ambos os conjuntos parecem

possuir uma lógica dual, identificada em estudos clássicos entre os Jê brasileiros.

Além disso, ambas as populações apresentam uma concepção assimétrica dos

pólos identificados e envolvidos nas relações em tela. É como se sempre existisse uma

tendência ao desequilíbrio.

Este tema – do dualismo e do desequilíbrio– é bastente relevante e polêmico na

etnologia produzida nas TBAS e em outros lugares. Segundo Lévi-Strauss (1995 [1991])

―certain people, occupying an immense though bounded geographical area, have chosen

to explain the world on the model of a dualism in perpetual disequilibrium, whose

sucessive states are embedded into one another – a dualism that is expressed coherently at

times in mythology, at times in social organization, and at times in both at once‖ (:239).

123 Algumas etnografias produzidas no sertão nordestino, entre populações indígenas, já haviam apontado

para a noção do pensamento dualista. O estudo de Valle (1993), por exemplo, indicou que os Tremembé,

do Ceará, elaboram um sistema de oposições binárias, as quais se relacionam com a percepção da

etnicidade.

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313

Em outros autores, o tema aparece diretamente relacionado a instituições

particulares, especialmente referidas na organização social baseada na divisão dos grupos

em metades complementares, como evidenciada em muitos povos indígenas, como por

exemplo, entre os Kaingáng, divididos entre Kamé e Kairu (BALDUS, 1979).

Lévi-Strauss, porém, demonstra que ―dual organizations (are) less as an institution

with certain precise and identifiable features than as a method for solving problems‖

(1995 [1991]: 236).

O modo dual de pensar Kalankó, portanto, não necessita necessariamente ser

evidenciado em alguma instituição específica, mas apenas aponta para o fato concreto de

que os Kalankó entendem o mundo a partir de oposições binárias em constante

desequilíbrio. E que buscam resolver as tensões deste universo a partir delas. Além disso,

ressalte-se que, como postula Lévi-Strauss (2008 [1958]: 166), o dualismo esta´sempre

em relação a um triadismo, não podendo ser reduzido a oposições binárias, o que

representaria uma simplificação da questão.

Desta forma, entre os Kalankó, alguns termos – mediadores – apontam para a

tentativa de resolução da tensão referida. Estes termos agem como um terceiro termo nas

relações binárias identificadas, estabelecendo o triadismo mencionado. As trovoadas, por

exemplo, resolvem temporariamente a questão da escasssez de água, do mesmo modo

que o serviço de chão soluciona a questão dos desequilíbrios mentais e corporais, porque

cura. Ele ainda se coloca como um terceiro termo entre o toré e o praiá.

O riso também se posiciona entre o sujeito passivo e o ativo, apontando para o

segundo. Ele de certa forma busca resolver a questão do mundo dado do sofrimento e,

por isso, marca – na face das pessoas – a solução Kalankó para superar a tristeza

decorrente da mistura.

É como se todo a conduta Kalankó fosse organizada para superar o tênue

(des)equilíbrio entre o Tempo dos Antepassados e o Tempo da Luta entre o sofrimento e a

vida entre o podre e o puro. A pisada, neste universo, parece ser fundamental, pois

marca, no corpo, a conjunção entre o céu e a terra a qual busca materializar a energia

vital que pode transformar o desequilíbrio em equilíbrio e, talvez, estabelecer o Tempo

Futuro.

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314

Este sistema dual complexo é, portanto, um modo de pensar o mundo e de existir

nele124

. E se relaciona a uma estrutura triádica, cujo terceiro termo opera como um

mediador dos outros dois.

É também a base da organização do ponto de vista Kalankó sobre o que é ser uma

pessoa Kalankó e o que não é.

Desta forma, este sistema aparece como o plano que conecta todos os termos e

relações do sistema de pensamento Kalankó e o que amarra os capítulos desta tese.

Nela, buscou-se ressaltar a importância do estudo do pensamento indígena no alto

sertão alagoano, com foco em um sistema simbólico. Isto, para o entendimento dos

grupos em questão e de outros que ainda estão por vir. Neste sentido, procurou-se

também um distanciamento das categorias nativas. Este, com o intuto de uma

aproximação mais correta à estrutura que subjaz à consciência das pessoas Kalankó.

Deste ponto de vista, esta tese tem como objetivos aprofundar o estudo das

identificações sociais no alto sertão alagoano e reposicionar a etnologia produzida lá no

campo de estudos da etnologia indígena. Se a questão da identificação social é importante

para pensar esta realidade, pensemos do ponto de vista dos sujeitos que, em certa medida,

se classificam indígenas.

Neste cenário, o estudo da identificação social teve como foco um processo

constituído pela elaboração de representações sobre o mundo, das permutas delas e dos

códigos usados para a elaboração e troca de signos125

.

Além disso, o reposicionamento referido abre uma gama imensa de possibilidades

e coloca os Kalankó e os outros povos indígenas da região de maneira simétrica no

campo da antropologia. Desta forma, a perspectiva não é mais a da escassez – de

alteridade – mas a da abundância de possibilidades de entendimento do fenômeno

humano.

Se o valor desta perspectiva está no respeito à humanidade e suas multiplicidades,

então o limite dela está no próprio humano e suas ambiguidades. Este trabalho tem como

124 Ressalte-se que se este estudo aproxima o pensamento Kalankó aos sistemas duais das TBAS, ele não

encerra nem se aprofunda no assunto, deixando-o aberto a novas aproximações e análises, podendo-se,

inclusive, ―tratar as formas aparentes de dualismo como distorções superficiais de estruturas cuja natureza

real é outra, e muito mai scomplicada‖ (2008 [1958]: 177).

125 Note-se que nem se elimina nem se desvaloriza outras perspectivas sobre a questão das identidades

sociais. Todas elas são bastante presentes nos estudos das populações indígenas do sertão nordestino. Neste

cenário apenas se alarga o sentido da expressão e o campo de atuação antropológica.

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315

base, portanto, minha perspectiva – humana – da perspectiva – humana – dos Kalankó –

em relação a si mesmos.

Neste sentido, não posso descolar de meu engajamento à terra. Nem eles. Somos

todos relação com ela.

Não sou Kalankó e também não sou mais o mesmo. Ao mesmo tempo, os

Kalankó são os produtores desta nova posição.

Será esse o Tempo Futuro? Será o Tempo da Luta? De quem?

Dos humanos.

Demasiadamente.

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ANEXO I – Lista da população Kalankó

(1998)

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ANEXO 2

Os cantos apresentados no CD – a seguir – não representam exatamente os

mesmos cantos transcritos e analisados ao longo da tese. Eles servem acima de tudo para

dar uma amostra mais concreta da musicalidade analisada, corroborando com o trabalho

desenvolvido e conferindo a importância adequada à experiência do ouvinte e suas

sensações. Isto para maior compreensão da antropologia proposta.

Os cantos aqui gravados são aqueles que apresentaram boa qualidade técnica de

gravação e repetição – sem as quais estaria prejudicada a audição. Além disso, eles foram

aprovados pelos Kalankó.

Ao mesmo tempo, porém, representam parte representativa do repertório Kalankó.

1- Toré – Olha aquela mata

Cantador: Paulo

Local - Centro Cultural de Lageiro do Couro

Evento – Toré - coletivo

Duração – 7 36

Ano – 2007

2 – Toré – Acoã fez o ninho

Cantador – Tonho Preto

Local – sua casa em Gregório

Evento – entrevista - individual

Duração – 1 59

Ano – 2003

3 - Toré - Abelha, tempo de chuva

Cantador – Tonho Preto

Local – Centro Cultural de Lageiro do Couro

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Evento – Toré - coletivo

Duração – 9 38

Ano – 2007

4 - Toré - Abre-te porta janela

Cantadora – D. Jardilina

Local– Casa da cantadora em Lageiro do Couro

Evento – entrevista – apresentação individual

Duração - 1 20

Ano – 2005

5 – Toré – Na baixa da jurema

Cantador – Tonho Preto

Local – Centro Cultural de Lageiro do Couro

Evento – Toré - coletivo

Duração – 5 27

Ano – 2007

6 - Praiá

Cantador - Paulo

Local – Terreiro da Januária

Evento – Praiá - coletivo

Duração – 4 14

Ano – 2003

7 - Praiá

Cantador – Tonho Preto

Local – Terreiro da Januária

Evento – Praiá - coletivo

Duração – 5 35

Ano – 2003

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8 - Praiá

Cantador – Antonio Koyupanká

Local – Terreiro da Januária

Evento – Praiá - coletivo

Duração – 3 50

Ano – 2003

9 - Praiá

Cantador – Tonho Preto

Local – Terreiro da Januária

Evento – Praiá - coletivo

Duração – 2 07

Ano – 2003

10 - Serviço de Chão

Cantador - Seu Edmilson

Local – Lageiro do Couro

Evento - Rito na casa de D. Jardilina

Duraçnao – 7 12

Ano – 2005

11 – Serviço de Chão

Cantador - Seu Edmilson

Local – Lageiro do Couro

Evento - Rito na casa de D. Jardilina

Duração –4 27

Ano – 2005

12 - Serviço de Chão

Cantador - Seu Edmilson

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Local – Lageiro do Couro

Evento - Rito na casa de D. Jardilina

Duração – 5 41

Ano – 2005

13 – Serviço de Chão

Cantador - Seu Edmilson

Local – Lageiro do Couro

Evento – Entrevista – apresentação individual

Duração –4 23

Ano – 2009