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F ITINERÁRIO PARA UMA LEITURA DE FREUD Paulo Endo e Edson Sousa reud não é apenas o pai da psicanálise, mas o fundador de uma forma muito particular e inédita de produzir ciência e conhecimento. Ele reinventou o que se sabia sobre a alma humana (a psique), instaurando uma ruptura com toda a tradição do pensamento ocidental, a partir de uma obra em que o pensamento racional, consciente e cartesiano perde seu lugar exclusivo e egrégio. Seus estudos sobre a vida inconsciente, realizados ao longo de toda a sua vasta obra, são hoje referência obrigatória para a ciência e para a filosofia contemporâneas. A sua influência no pensamento ocidental é não só inconteste como não cessa de ampliar seu alcance, dialogando com e influenciando as mais variadas áreas do saber, como a filosofia, as artes, a literatura, a teoria política e as neurociências. Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Freiberg (atual Příbor), na região da Morávia, hoje parte da República Tcheca, mas àquela época parte do Império Austríaco. Filho de Jacob Freud e de sua terceira esposa, Amália Freud, teve nove irmãos – dois do primeiro casamento do pai e sete do casamento entre seu pai e sua mãe. Sigmund era o filho mais velho de oito irmãos e era sabidamente adorado pela mãe, que o chamava de “meu Sigi de ouro”. Em 1860, Jacob Freud, comerciante de lãs, mudou-se com a família para Viena, cidade onde Sigmund Freud residiria até quase o fim da vida, quando teria de se exilar em Londres, fugindo da perseguição nazista. De família pobre, formou-se em medicina em 1882. Devido a problemas financeiros, decidiu ingressar imediatamente na clínica médica em vez de se dedicar à pesquisa, uma de suas grandes paixões. À medida que se estabelecia como médico, pôde pensar em propor casamento para Martha Bernays. Casaram-se em 1886 e tiveram seis filhos: Mathilde, Martin, Oliver, Ernst, Sophie e Anna.

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F

ITINERÁRIO PARA UMA LEITURA DE FREUDPaulo Endo e Edson Sousa

reud não é apenas o pai da psicanálise, mas o fundador de uma formamuito particular e inédita de produzir ciência e conhecimento. Ele

reinventou o que se sabia sobre a alma humana (a psique), instaurando umaruptura com toda a tradição do pensamento ocidental, a partir de uma obraem que o pensamento racional, consciente e cartesiano perde seu lugarexclusivo e egrégio. Seus estudos sobre a vida inconsciente, realizados aolongo de toda a sua vasta obra, são hoje referência obrigatória para a ciênciae para a filosofia contemporâneas. A sua influência no pensamento ocidental énão só inconteste como não cessa de ampliar seu alcance, dialogando com einfluenciando as mais variadas áreas do saber, como a filosofia, as artes, aliteratura, a teoria política e as neurociências.

Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Freiberg (atual Příbor), naregião da Morávia, hoje parte da República Tcheca, mas àquela época partedo Império Austríaco. Filho de Jacob Freud e de sua terceira esposa, AmáliaFreud, teve nove irmãos – dois do primeiro casamento do pai e sete docasamento entre seu pai e sua mãe. Sigmund era o filho mais velho de oitoirmãos e era sabidamente adorado pela mãe, que o chamava de “meu Sigi deouro”.

Em 1860, Jacob Freud, comerciante de lãs, mudou-se com a famíliapara Viena, cidade onde Sigmund Freud residiria até quase o fim da vida,quando teria de se exilar em Londres, fugindo da perseguição nazista. Defamília pobre, formou-se em medicina em 1882. Devido a problemasfinanceiros, decidiu ingressar imediatamente na clínica médica em vez de sededicar à pesquisa, uma de suas grandes paixões. À medida que seestabelecia como médico, pôde pensar em propor casamento para MarthaBernays. Casaram-se em 1886 e tiveram seis filhos: Mathilde, Martin, Oliver,Ernst, Sophie e Anna.

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Embora o pai tenha lhe transmitido os valores do judaísmo, Freud nuncaseguiu as tradições e os costumes religiosos; ao mesmo tempo, nunca deixoude se considerar um judeu. Em algumas ocasiões, atribuiu à sua origemjudaica o fato de resistir aos inúmeros ataques que a psicanálise sofreu desdeo início (Freud aproximava a hostilidade sofrida pelo povo judeu ao longo dahistória às críticas virulentas e repetidas que a clínica e a teoria psicanalíticasreceberam). A psicanálise surgiu afirmando que o inconsciente e asexualidade eram campos inexplorados da alma humana, na qual repousavatodo um potencial para uma ciência ainda adormecida. Freud assumia, assim,seu propósito de remar contra a maré.

Médico neurologista de formação, foi contra a própria medicina queFreud produziu sua primeira ruptura epistêmica. Isto é: logo percebeu que aspacientes histéricas, afligidas por sintomas físicos sem causa aparente, eram,não raro, tratadas com indiferença médica e negligência no ambientehospitalar. A histeria pedia, portanto, uma nova inteligibilidade, uma novaciência.

A característica, muitas vezes espetacular, da sintomatologia daspacientes histéricas de um lado e, de outro, a impotência do saber médicodiante desse fenômeno impressionaram o jovem neurologista. Doentes queapresentavam paralisia de membros, mutismo, dores, angústia, convulsões,contraturas, cegueira etc. desafiavam a racionalidade médica, que nãoencontrava qualquer explicação plausível para tais sintomas e sofrimentos.Freud então se debruçou sobre essas pacientes; porém, desde o princípiobuscava as raízes psíquicas do sofrimento histérico e não a explicaçãoneurofisiológica de tal sintomatologia. Procurava dar voz a essas pacientes eouvir o que tinham a dizer, fazendo uso, no início, da hipnose como técnicade cura.

Em 1895, é publicado o artigo inaugural da psicanálise: Estudos sobre ahisteria. O texto foi escrito com o médico Josef Breuer (1842-1925), oprimeiro parceiro de pesquisa de Freud. Médico vienense respeitado eerudito, Breuer reconhecera em Freud um jovem brilhante e o ajudou durante

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anos, entre 1882 e 1885, inclusive financeiramente. Estudos sobre a histeriaé o único material que escreveram juntos e já evidencia o distanciamentointelectual entre ambos. Enquanto Breuer permanecia convicto de que aneurofisiologia daria sustentação ao que ele e Freud já haviam observado naclínica da histeria, Freud, de outro modo, já estava claramente interessado naraiz sexual das psiconeuroses – caminho que perseguiu a partir do métodoclínico ao reconhecer em todo sintoma psíquico uma espécie de hieróglifo.Escreveu certa vez: “O paciente tem sempre razão. A doença não deve serpara ele um objeto de desprezo, mas, ao contrário, um adversáriorespeitável, uma parte do seu ser que tem boas razões de existir e que lhedeve permitir obter ensinamentos preciosos para o futuro”.

Em 1899, Freud estava às voltas com os fundamentos da clínica e dateoria psicanalíticas. Não era suficiente postular a existência do inconsciente,uma vez que muitos outros antes dele já haviam se referido a esse aspectodesconhecido e pouco frequentado do psiquismo humano. Tratava-se deexplicar seu dinamismo e estabelecer as bases de uma clínica que tivesse oinconsciente como núcleo. Há o inconsciente, mas como ter acesso a ele?

Foi nesse mesmo ano que Freud finalizou aquele que é, para muitos, otexto mais importante da história da psicanálise: A interpretação dos sonhos.A edição, porém, trazia a data de 1900. Sua ambição e intenção ao alterar adata de publicação era a de que esse trabalho figurasse como um dos maisimportantes do século XX. De fato, A interpretação dos sonhos é hoje umdos mais relevantes textos escritos no referido século, ao lado de A éticaprotestante e o “espírito” do capitalismo, de Max Weber, TractatusLogico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, e Origens do totalitarismo,de Hannah Arendt.

Nesse texto, Freud propõe uma teoria inovadora do aparelho psíquico,bem como os fundamentos da clínica psicanalítica, única capaz de revelar asformações, tramas e expressões do inconsciente, além da sintomatologia e dosofrimento que correspondem a essas dinâmicas. A interpretação dossonhos revela, portanto, uma investigação extensa e absolutamente inédita

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sobre o inconsciente. Tudo isso a partir da análise e do estudo dos sonhos, amanifestação psíquica inconsciente por excelência. Porém, seria precisoaguardar um trabalho posterior para que fosse abordado o papel central dasexualidade na formação dos sintomas neuróticos.

Foi um desdobramento necessário e natural para Freud a publicação, em1905, de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. A apresentação plenadas suas hipóteses fundamentais sobre o papel da sexualidade na gênese daneurose (já noticiadas nos Estudos sobre a histeria) pôde, enfim, vir à luz,com todo o vigor do pensamento freudiano e livre das amarras de suaherança médica e da aliança com Breuer.

A verdadeira descoberta de um método de trabalho capaz de expor oinconsciente, reconhecendo suas determinações e interferindo em seusefeitos, deu-se com o surgimento da clínica psicanalítica. Antes disso, anascente psicologia experimental alemã, capitaneada por Wilhelm Wundt(1832-1920), esmerava-se em aprofundar exercícios de autoconhecimento eautorreflexão psicológicos denominados de introspeccionismo. A perguntaóbvia elaborada pela psicanálise era: como podia a autoinvestigaçãoesclarecer algo sobre o psiquismo profundo tendo sido o próprio psiquismo oque ocultou do sujeito suas dores e sofrimentos? Por isso a clínicapsicanalítica propõe-se como uma fala do sujeito endereçada à escuta de umoutro (o psicanalista).

A partir de 1905, a clínica psicanalítica se consolidou rapidamente e setornou conhecida em diversos países, despertando o interesse e anecessidade de traduzir os textos de Freud para outras línguas. Em 1910, apsicanálise já ultrapassara as fronteiras da Europa e começava a chegar apaíses distantes como Estados Unidos, Argentina e Brasil. Discípulos deoutras partes do mundo se aproximavam da obra freudiana e do movimentopsicanalítico.

Desde muito cedo, Freud e alguns de seus seguidores reconheceram quea teoria psicanalítica tinha um alcance capaz de iluminar dilemas de outrasáreas do conhecimento além daqueles observados na clínica. Um dos

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primeiros textos fundamentais nessa direção foi Totem e tabu: algumascorrespondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos,de 1913. Freud afirmou que Totem e tabu era, ao lado de A interpretaçãodos sonhos, um dos textos mais importantes de sua obra e o considerou umacontribuição para o que ele chamou de psicologia dos povos. De fato, nosgrandes textos sociais e políticos de Freud há indicações explícitas a Totem etabu como sendo ponto de partida e fundamento de suas teses. É o caso dePsicologia das massas e análise do eu (1921), O futuro de uma ilusão(1927), O mal-estar na cultura (1930) e O homem Moisés e a religiãomonoteísta (1939).

O período em que Freud escreveu Totem e tabu foi especialmenteconturbado, sobretudo porque estava sendo gestada a Primeira GuerraMundial, que eclodiria em 1914 e duraria até 1918. Esse episódio históricofoi devastador para Freud e o movimento psicanalítico, esvaziando as fileirasdos pacientes que procuravam a psicanálise e as dos próprios psicanalistas.Importantes discípulos freudianos, como Karl Abraham e Sándor Ferenczi,foram convocados para o front, e a atividade clínica de Freud foipraticamente paralisada, o que gerou dissabores extremos à sua famíliadevido à falta de recursos financeiros. Foi nesse período que Freud escreveualguns dos textos mais importantes do que se costuma chamar a primeira faseda psicanálise (1895-1914). Esses trabalhos foram por ele intitulados de“textos sobre a metapsicologia”, ou textos sobre a teoria psicanalítica.

Tais artigos, inicialmente previstos para perfazerem um conjunto de doze,eram parte de um projeto que deveria sintetizar as principais posiçõesteóricas da ciência psicanalítica até então. Em apenas seis semanas, Freudescreveu os cinco artigos que hoje conhecemos como uma espécie deapanhado denso, inovador e consistente de metapsicologia. São eles:“Pulsões e destinos da pulsão”, “O inconsciente”, “O recalque”, “Luto emelancolia” e “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos”. Oartigo “Para introduzir o narcisismo”, escrito em 1914, junta-se também aesse grupo de textos. Dos doze artigos previstos, cinco não foram

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publicados, apesar de Freud tê-los concluído: ao que tudo indica, ele osdestruiu. (Em 1983, a psicanalista e pesquisadora Ilse Grubrich-Smitisencontrou um manuscrito de Freud, com um bilhete anexado ao discípulo eamigo Sándor Ferenczi, em que identificava “Visão geral das neuroses detransferência” como o 12o ensaio da série sobre metapsicologia. O artigo foipublicado em 1985 e é o sétimo e último texto de Freud sobremetapsicologia que chegou até nós.)

Após o final da Primeira Guerra e alguns anos depois de ter se esmeradoem reapresentar a psicanálise em seus fundamentos, Freud publica, em 1920,um artigo avassalador intitulado Além do princípio do prazer. Textorevolucionário, admirável e ao mesmo tempo mal aceito e mal digerido atéhoje por muitos psicanalistas, desconfortáveis com a proposição de umapulsão (ou impulso, conforme se preferiu na presente tradução) de morteautônoma e independente das pulsões de vida. Nesse artigo, Freud refaz osalicerces da teoria psicanalítica ao propor novos fundamentos para a teoriadas pulsões. A primeira teoria das pulsões apresentava duas energiaspsíquicas como sendo a base da dinâmica do psiquismo: as pulsões do eu eas pulsões de objeto. As pulsões do eu ocupam-se em dar ao eu proteção,guarida e satisfação das necessidades elementares (fome, sede,sobrevivência, proteção contra intempéries etc.), e as pulsões de objetobuscam a associação erótica e sexual com outrem.

Já em Além do princípio do prazer, Freud avança no estudo dosmovimentos psíquicos das pulsões. Mobilizado pelo tratamento dosneuróticos de guerra que povoavam as cidades europeias e por alguns deseus discípulos que, convocados, atenderam psicanaliticamente nas frentes debatalha, Freud reencontrou o estímulo para repensar a própria natureza darepetição do sintoma neurótico em sua articulação com o trauma. Surge oconceito de pulsão de morte: uma energia que ataca o psiquismo e podeparalisar o trabalho do eu, mobilizando-o em direção ao desejo de não maisdesejar, que resultaria na morte psíquica. É provavelmente a primeira vez emque se postula no psiquismo uma tendência e uma força capazes de provocar

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a paralisia, a dor e a destruição.Uma das principais consequências dessa reviravolta é a segunda teoria

pulsional, que pode ser reencontrada na nova teoria do aparelho psíquico,conhecida como segunda tópica, ou segunda teoria do aparelho psíquico(ego, id e superego, ou eu, isso e supereu), apresentada no texto O eu e o id,publicado em 1923. Freud propõe uma instância psíquica denominadasupereu. Essa instância, ao mesmo tempo em que possibilita uma aliançapsíquica com a cultura, a civilização, os pactos sociais, as leis e as regras, étambém responsável pela culpa, pelas frustrações e pelas exigências que osujeito impõe a si mesmo, muitas delas inalcançáveis. Daí o mal-estar queacompanha todo sujeito e que não pode ser inteiramente superado.

Em 1938, foi redigido o texto Compêndio de psicanálise, que seriapublicado postumamente em 1940. Freud pretendia escrever uma grandesíntese de sua doutrina, mas faleceu em setembro de 1939, antes de terminá-la. O Compêndio permanece, então, como uma espécie de inacabadotestamento teórico freudiano, indicando a incompletude da própria teoriapsicanalítica que, desde então, segue se modificando, se refazendo e seaprofundando.

Curioso talvez que o último grande texto de Freud, publicado em 1939,tenha sido O homem Moisés e a religião monoteísta, trabalho potente efundador que reexamina teses historiográficas basilares da cultura judaica eda religião monoteísta a partir do arsenal psicanalítico. Essa obra mereceucomentários de grandes pensadores contemporâneos como Josef Yerushalmi,Edward Said e Jacques Derrida, que continuaram a enriquecê-la, desvelandonão só a herança judaica muito particular de Freud, por ele afirmada e aomesmo tempo combatida, mas também o alcance da psicanálise no debatesobre os fundamentos da historiografia do judaísmo, determinante daconstituição identitária de pessoas, povos e nações.

Esta breve anotação introdutória é certamente insuficiente, pois muitoainda se poderia falar de Freud. Contudo, esperamos haver, ao menos,despertado a curiosidade no leitor, que passará a ter em mãos, com esta

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coleção, uma nova e instigante série de textos de Freud, com tradução diretado alemão e revisão técnica de destacados psicanalistas e estudiosos dapsicanálise no Brasil.

Ao leitor, só nos resta desejar boa e transformadora viagem.

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O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

A análise de uma amostra onírica

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Otítulo que dei ao meu tratado revela a que tradição na concepção dossonhos eu gostaria de dar continuidade. Propus-me a demonstrar que

eles são passíveis de interpretação, e as contribuições para o esclarecimentodos problemas oníricos de que acabamos de tratar serão apenas um ganhoacessório eventual na execução de minha verdadeira tarefa. Com a hipótesede que os sonhos são interpretáveis, entro de imediato em contradição com ateoria dos sonhos dominante e, na verdade, com todas as teorias do sonhoexceto a de Scherner, pois “interpretar um sonho” significa indicar o seu“sentido”, substituí-lo por alguma coisa que se encaixe como um elo demesmo peso e de mesmo valor no encadeamento de nossas ações psíquicas.Mas, como vimos, as teorias científicas do sonho não deixam espaço paraum problema de interpretação, pois para elas o sonho não é de forma algumaum ato psíquico, e sim um processo somático que se manifesta por sinais noaparelho psíquico. A opinião dos leigos, em todas as épocas, foi diferente.Ela faz uso do seu justo direito de proceder de maneira inconsequente e,embora admita que o sonho seja incompreensível e absurdo, não consegue sedecidir a lhe negar todo significado. Guiada por um pressentimento obscuro,ela parece supor que o sonho tem um sentido – ainda que oculto –, que a suafinalidade é substituir um outro processo de pensamento e que se trataapenas de descobrir acertadamente esse substituto para chegar ao significadooculto do sonho.

Por isso, o mundo leigo se esforçou desde sempre em “interpretar” osonho, empregando para tanto dois métodos diferentes em sua essência. Oprimeiro desses procedimentos tem em vista o conteúdo onírico como umtodo e procura substituí-lo por um outro conteúdo, compreensível e em certosentido análogo. Essa é a interpretação simbólica dos sonhos; naturalmente,ela fracassa desde o princípio com aqueles sonhos que se mostram nãoapenas incompreensíveis, mas também confusos. Um exemplo de seuprocedimento é dado pela interpretação que o José bíblico deu ao sonho dofaraó. Sete vacas gordas seguidas por sete vacas magras que devoram as

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primeiras é um substituto simbólico para a profecia de sete anos de fome quedevoram toda a fartura produzida por sete anos férteis na terra do Egito. Amaioria dos sonhos artificiais criados por escritores é destinada a essainterpretação simbólica, pois eles reproduzem o pensamento do autor sob umdisfarce que é inventado para se adaptar às características dos sonhos queconhecemos pela experiência.[1] A opinião de que os sonhos se ocupampredominantemente com o futuro, cuja configuração preveem – um vestígioda importância profética que lhes era concedida no passado –, transforma-seentão em motivo para deslocar ao futuro, mediante um “acontecerá”, osentido encontrado pela interpretação simbólica.

Naturalmente, não é possível ensinar a encontrar o caminho para essainterpretação simbólica. O êxito depende de um lampejo espirituoso, daintuição súbita, razão pela qual a interpretação dos sonhos por meio dosimbolismo foi capaz de se elevar à categoria de uma arte que parecia ligadaa um talento especial.[2] O outro método popular de interpretação dossonhos se mantém completamente afastado dessa pretensão. Poderíamoschamá-lo de “método de decifração”, visto que trata o sonho como umaespécie de escrita cifrada em que cada signo é traduzido por outro designificado conhecido de acordo com uma chave fixa. Sonhei, por exemplo,com uma carta, mas também com um funeral e outras coisas do gênero;consulto um “livro de sonhos” e descubro que “carta” deve traduzir-se por“aborrecimento” e “funeral” por “noivado”. Fica a meu critério, então,estabelecer um nexo entre as palavras-chave que decifrei, e também vouaceitar que ele se refere ao futuro. Uma variação interessante desse processode decifração, que em alguma medida corrige seu caráter de traduçãopuramente mecânica, é apresentada na obra de Artemidoro de Daldis sobrea interpretação dos sonhos.[3] Nessa obra, não se leva em conta apenas oconteúdo onírico, e sim também a pessoa e suas condições de vida, de modoque o mesmo elemento onírico não tem para o rico, o casado ou o orador omesmo significado que para o pobre, o solteiro ou, por exemplo, ocomerciante. O essencial nesse procedimento é que o trabalho interpretativonão é dirigido à totalidade do sonho, e sim a cada parte isolada do conteúdo

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onírico, como se o sonho fosse um conglomerado em que cada fragmento derocha exigisse uma análise particular. Não há dúvida de que foram os sonhosdesconexos e confusos que impulsionaram a criação do método dedecifração.[4]

Para a abordagem científica do tema, a inutilidade de ambos osprocedimentos populares de interpretação dos sonhos não pode ser postaem dúvida por um momento sequer. O método simbólico é limitado em suaaplicação, não sendo suscetível a qualquer exposição geral. No caso dométodo de decifração, só importaria que a “chave”, o livro de sonhos, fosseconfiável, algo de que não há qualquer garantia. Estaríamos tentados a darrazão aos filósofos e psiquiatras e, juntamente com eles, eliminar o problemada interpretação dos sonhos como uma tarefa imaginária.[5]

No entanto, fui dissuadido dessa atitude. Tive de reconhecer que essetambém é um daqueles casos nada raros em que uma crença popularantiquíssima, teimosamente conservada, parece ter chegado mais perto daverdade das coisas do que o juízo da ciência hoje em vigor. Preciso afirmarque os sonhos de fato têm um significado e que é possível um procedimentocientífico para interpretá-los. Cheguei ao conhecimento desse método daseguinte maneira:

Há anos me ocupo da dissolução de certas formações psicopatológicas– fobias histéricas, ideias obsessivas etc. – com propósito terapêutico; querdizer, desde que soube, por uma comunicação importante de Josef Breuer,que para essas formações, consideradas como sintomas mórbidos,dissolução e solução vêm a ser a mesma coisa.[6] Se conseguirmos explicaruma dessas representações patológicas pelos elementos dos quais se originouna vida psíquica do paciente, ela se desintegra, e ele se liberta dela. Dada aimpotência de nossos esforços terapêuticos usuais, e diante do caráterenigmático desses estados, me pareceu tentador, apesar de todas asdificuldades, avançar pelo caminho aberto por Breuer até chegar a umesclarecimento completo. Noutro momento, terei ocasião de informar emdetalhes sobre a forma finalmente assumida pela técnica do procedimento esobre os resultados de meus esforços. Foi no decorrer desses estudos

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psicanalíticos que topei com a interpretação dos sonhos. Os pacientes queobriguei a me comunicarem as ideias e pensamentos que lhes ocorriam apropósito de um determinado tema me narraram seus sonhos e assim meensinaram que estes podem ser inseridos no encadeamento psíquico a serseguido retrospectivamente na memória a partir de uma ideia patológica. Eranatural tratar o próprio sonho como um sintoma e aplicar-lhe o método deinterpretação elaborado para os sintomas.

Para tanto, é necessária uma certa preparação psíquica do paciente.Esforçamo-nos por obter duas coisas dele: um aumento de atenção para suaspercepções psíquicas e a suspensão da crítica com que costuma examinar ospensamentos que lhe ocorrem. Para a finalidade de se auto-observar com aatenção concentrada, é proveitoso que ele assuma uma posição de repouso efeche os olhos; é preciso impor-lhe expressamente a renúncia à crítica dospensamentos observados. Nós lhe dizemos, portanto, que o êxito dapsicanálise depende de ele levar tudo em conta e comunicar o que lhe vaipela mente, sem se deixar levar a reprimir ideias porque lhe parecem semimportância ou desligadas do tema ou ainda absurdas. Ele deve se comportarde maneira inteiramente imparcial em relação a suas ideias; pois, caso nãoconsiga encontrar a solução que busca para o sonho, a ideia obsessiva etc., aresponsável por isso será justamente a crítica.

Durante os trabalhos psicanalíticos, observei que a disposição psíquicado homem que reflete é muito diferente da do homem que observa seusprocessos psíquicos. Na reflexão, entra em cena uma ação psíquica a maisdo que na mais atenta das auto-observações, como também demonstram aexpressão tensa e a testa franzida da pessoa que reflete em oposição aorepouso mímico do auto-observador. Em ambos os casos deve haver umaconcentração da atenção, mas a pessoa que reflete também exerce umacrítica devido à qual rejeita uma parte das ideias que lhe surgem depois de tê-las percebido; interrompe outras imediatamente, de modo que não segue oscaminhos de pensamento que elas abririam; e, quanto a outras ainda, sabe secomportar de tal maneira que elas de forma alguma se tornam conscientes, ouseja, são reprimidas antes de sua percepção. O auto-observador, em

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compensação, apenas se esforça por reprimir a crítica; caso tenha êxito, vemà sua consciência um sem-número de ideias que de outro modo teriampermanecido inconcebíveis. Com ajuda desse material novo obtido para aautopercepção, é possível fazer a interpretação tanto das ideias patológicasquanto das formações oníricas. Como vemos, trata-se de produzir um estadopsíquico que tem em comum com o estado que precede o adormecer (ecertamente também com o estado hipnótico) uma certa analogia na divisão daenergia psíquica (da atenção móvel). Durante o adormecer, as“representações involuntárias” vêm ao primeiro plano pela redução de umacerta atividade voluntária (e com certeza também crítica) que deixamos agirsobre o fluxo de nossas representações; como motivo dessa reduçãocostumamos alegar “cansaço”; as representações involuntárias que surgem setransformam em imagens acústicas e visuais. (Ver as observações deSchleiermacher, entre outros, p. 66-68.)[7] No estado que utilizamos para aanálise dos sonhos e das ideias patológicas, renunciamos intencional evoluntariamente a essa atividade, e empregamos a energia psíquica poupada(ou uma parte dela) na observação atenta dos pensamentos involuntários queentão surgem e que conservam seu caráter de representações (essa é adiferença em relação ao estado de adormecimento). Assim, transformamosas representações “involuntárias” em “voluntárias”.

Para muitas pessoas, não parece fácil adotar a atitude exigida em relaçãoa ideias que parecem “emergir livremente” e renunciar à crítica de hábitopraticada em relação a tais ideias. Os “pensamentos involuntários” costumamdesencadear a mais violenta resistência, que pretende impedi-los de surgir.Porém, se dermos crédito ao nosso grande filósofo-poeta Friedrich Schiller, acondição para a produção poética também deve incluir uma atitude muitosemelhante. Numa passagem de sua correspondência com Körner, cujadescoberta devo a Otto Rank, Schiller responde à queixa de seu amigo sobresua escassa produtividade: “A razão de tua queixa, segundo me parece, seencontra na coação que o teu entendimento impõe à tua imaginação. Nesteponto, preciso esboçar um pensamento e lhe dar uma forma sensível por

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meio de uma imagem. Não parece bom, além de desvantajoso para as obrascriativas da alma, quando o entendimento examina com demasiadaseveridade, já nos portões, por assim dizer, as ideias que chegam.Considerada isoladamente, uma ideia pode ser muito insignificante e muitoexcêntrica, mas talvez ela se torne importante por meio de outra que venhadepois dela; talvez, numa certa ligação com outras ideias que talvez pareçamigualmente insípidas, ela possa resultar num elo bastante útil: o entendimentonão pode julgar tudo isso se não conservá-la pelo tempo suficiente para vê-laem ligação com essas outras. Em compensação, numa cabeça criativa, meparece, o entendimento suspende a vigilância dos portões, as ideias entramde maneira desordenada e só então ele observa e avalia a multidão. Vocês,senhores críticos, ou seja lá como for que se chamem, têm medo ou vergonhada loucura momentânea e passageira que se encontra em todos os criadorestípicos e cuja maior ou menor duração distingue o artista que pensa dohomem que sonha. Daí as queixas de esterilidade, pois vocês rejeitam cedodemais e separam com rigor excessivo”. (Carta de 1o de dezembro de1788.)

E, no entanto, essa “suspensão da vigilância dos portões doentendimento”, como a denomina Schiller, esse colocar-se no estado deauto-observação destituído de crítica, de forma alguma é difícil.

A maioria de meus pacientes é capaz de fazê-lo depois das primeirasinstruções; eu mesmo consigo fazê-lo perfeitamente se, enquanto isso, anotoas ideias que me ocorrem. A quantia de energia psíquica que assim ésubtraída à atividade crítica, e com a qual podemos elevar a intensidade daauto-observação, oscila consideravelmente conforme o tema em que se devefixar a atenção.

O primeiro passo na aplicação desse procedimento ensina que não sedeve tomar o sonho inteiro como objeto de atenção, mas apenas partesisoladas de seu conteúdo. Se eu perguntar ao paciente ainda sem prática oque lhe vem à mente acerca de um sonho, em geral ele não consegueapreender nada em seu campo de visão intelectual. Preciso lhe mostrar osonho em partes, e então ele me apresenta uma série de ideias a propósito de

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cada parte, que podemos chamar de “pensamentos ocultos” dessa parcelaonírica. Portanto, já nessa primeira e importante condição, o método por mimpraticado se afasta do método popular, histórica e lendariamente famoso, dainterpretação mediante o simbolismo, e se aproxima do segundo, o “métodode decifração”. Como este, ele é uma interpretação en détail, e não enmasse; como este, ele toma o sonho desde o princípio como algo composto,como um conglomerado de formações psíquicas.

No curso de minhas psicanálises de neuróticos já interpretei talvez maisde mil sonhos, mas não gostaria de me servir desse material para introduzir atécnica e a teoria da interpretação dos sonhos. Deixando inteiramente de ladoo fato de que me exporia à objeção de serem, afinal, sonhos de neuropatas,que não permitem tirar conclusões sobre os sonhos de pessoas saudáveis, háoutro motivo que me obriga a rejeitá-los. O tema para o qual esses sonhosapontam sempre é, naturalmente, a história clínica que está na base daneurose. Isso exigiria para cada sonho uma informação preliminar muitolonga, assim como um aprofundamento na natureza e nas condiçõesetiológicas das psiconeuroses, coisas que no fundo são novas esurpreendentes num grau extremo e assim desviariam a atenção do problemado sonho. Minha intenção, ao contrário, é transformar a resolução dossonhos em um trabalho preliminar para a exploração dos problemas maisdifíceis da psicologia das neuroses. Porém, ao renunciar aos sonhos dosneuróticos, meu principal material, não posso ser tão exigente com o resto.Restam apenas aqueles sonhos que me foram contados ocasionalmente porpessoas saudáveis de minhas relações ou aqueles que encontrei registrados,como exemplos, na literatura sobre a vida onírica. Infelizmente, falta-me aanálise de todos esses sonhos, sem a qual não posso encontrar o seu sentido.Meu procedimento, afinal, não é tão cômodo quanto o do método popularde decifração, que traduz o conteúdo onírico segundo uma chave fixa; estoupreparado, ao contrário, para que o mesmo conteúdo onírico, para pessoasdiferentes e em contextos diferentes, também possa ocultar um sentidodiverso. Dessa forma, dependo de meus próprios sonhos como de um

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material abundante e cômodo que provém de uma pessoa mais ou menosnormal e se refere a acontecimentos variados da vida cotidiana. Certamentehaverá quem levante dúvidas sobre a confiabilidade dessas “autoanálises”. Aarbitrariedade, diriam, de forma alguma está excluída delas. Segundo meujuízo, as condições para a auto-observação são mais favoráveis do que paraa observação de outras pessoas; em todo caso, é lícito experimentar atéonde a autoanálise pode nos levar na interpretação dos sonhos. Tenho outrasdificuldades a superar em meu próprio íntimo. Temos um receiocompreensível de expor tantas coisas íntimas de nossa vida psíquica, além desaber que não estamos a salvo dos erros de interpretação alheios. Masdevemos ser capazes de superar isso. “Tout psychologiste”, escreveDelboeuf, “est obligé de faire l’aveu même de ses faiblesses s’il croît parlà jeter du jour sur quelque problème obscur.”[8] E também da parte doleitor, devo supor, o interesse inicial nas indiscrições que preciso cometerlogo dará lugar ao aprofundamento exclusivo nos problemas psicológicos queassim são iluminados.[9]

Portanto, vou escolher um de meus próprios sonhos e explicar meumétodo de interpretação a partir dele. Cada um desses sonhos exige umainformação preliminar. Agora preciso pedir ao leitor que por um bommomento faça seus os meus interesses e mergulhe comigo nos mais ínfimosdetalhes de minha vida, pois semelhante transferência é exigida de maneiraimperiosa pelo interesse no significado oculto dos sonhos.

Informação preliminar

No verão de 1895, tratei psicanaliticamente uma jovem senhora ligada amim e à minha família por estreitos laços de amizade. É compreensível que talmistura de relações possa se tornar uma fonte de múltiplas inquietações parao médico, tanto mais para o psicoterapeuta. O interesse pessoal do médico émaior; sua autoridade, menor. Um fracasso ameaça afrouxar a antiga amizadecom os familiares do paciente. O tratamento teve um êxito parcial; a paciente

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perdeu a sua angústia histérica, mas não todos os seus sintomas somáticos.Naquela ocasião, eu ainda não estava muito certo quanto aos critérios queindicam o desenlace definitivo de um histórico clínico de histeria, e exigi dapaciente uma solução que não lhe pareceu aceitável. Nesse desacordo,interrompemos o tratamento por causa do verão. – Certo dia, recebi a visitade um colega mais jovem, um de meus amigos mais próximos, que tinhavisitado a paciente – Irma – e sua família em sua casa de campo. Pergunteicomo a encontrara, e recebi a resposta de que ela estava melhor, mas nãointeiramente boa. Sei que as palavras de meu amigo Otto, ou o tom em queforam ditas, me incomodaram. Acreditei perceber nelas uma censura, comose eu tivesse prometido demais à paciente, e – com ou sem razão – atribuí asuposta tomada de partido de Otto contra mim à influência dos familiares dapaciente, que, como supunha, nunca tinham visto meu tratamento com bonsolhos. De resto, minha sensação desagradável não me ficou clara, e tambémnão lhe dei qualquer expressão. Na mesma noite ainda redigi o históricoclínico de Irma para, numa espécie de autojustificação, repassá-lo ao dr. M.,um amigo comum, que na época era a personalidade que dava o tom emnosso círculo. Naquela noite (mais provavelmente ao amanhecer) tive osonho que segue, anotado logo após o despertar.[10]

Sonho de 23-24 de julho de 1895

Um imenso salão – muitos convidados, que recepcionamos. – Entreeles, Irma, que logo chamo à parte para, de certa forma, responder suacarta e lhe fazer censuras por ainda não ter aceitado a “solução”. Digo-lhe: Se você ainda sente dores, então é realmente apenas culpa sua. – Elaresponde: Se você soubesse que dores eu sinto agora na garganta, noestômago e no abdômen; isso está me sufocando. – Eu me assusto e aexamino. Ela tem uma aparência pálida e inchada; penso que, no fimdas contas, estou desconsiderando algo orgânico. Eu a levo até a janelae examino sua garganta. Ela demonstra alguma resistência, como fazem

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as mulheres que usam dentadura. Penso que ela não precisa agir assim.– Mas a boca se abre com facilidade, e à direita encontro uma grandemancha branca, e noutra parte, sobre estranhas estruturas curvas queimitam de maneira evidente os cornetos nasais, vejo amplas crostascinza-esbranquiçadas. – Chamo depressa o dr. M., que repete o exame eo confirma... A aparência do dr. M. é muito diferente da habitual; eleestá bastante pálido, manca, está sem barba no queixo... E então meuamigo Otto também está ao lado dela, e meu amigo Leopold a percutesobre o corpete, diz que ela tem uma região surda embaixo, à esquerda,e também aponta para uma parte da pele do ombro esquerdo que estáinfiltrada (o que, assim como ele, também sinto, apesar do vestido)... M.diz: Não há dúvida, é uma infecção, mas sem importância; ainda viráuma disenteria e a toxina será eliminada... Também sabemos deimediato a origem da infecção. Pouco tempo atrás, quando ela estava sesentindo mal, meu amigo Otto lhe aplicou uma injeção de um preparadode propil, propileno... ácido propiônico... trimetilamina (cuja fórmula vejoem negrito diante de mim)... Não se fazem essas injeções tãolevianamente... É provável que a seringa também não estivesse limpa.

Esse sonho tem uma vantagem em relação a muitos outros. Fica claro deimediato a que acontecimentos do dia anterior ele se liga e de que tema trata.A informação preliminar dá informações sobre isso. A notícia que recebi deOtto sobre o estado de Irma e o histórico clínico que fiquei escrevendo atétarde da noite ocuparam minha atividade psíquica também durante o sono.Apesar disso, ninguém que tivesse tomado conhecimento da informaçãopreliminar e do conteúdo do sonho poderia imaginar o seu significado. Eumesmo não o conheço. Espanto-me com os sintomas de que Irma se queixa,pois não são os mesmos de que a tratei. Sorrio da ideia absurda de umainjeção de ácido propiônico e do consolo oferecido pelo dr. M. Quando seaproxima do final, o sonho me parece mais obscuro e mais denso do que no

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começo. Para descobrir o significado de tudo isso, preciso me decidir a fazeruma análise minuciosa.

ANÁLISE

O salão – muitos convidados, que recepcionamos. Passávamosaquele verão em Bellevue, uma casa isolada numa das colinas vizinhas aoKahlenberg. Essa casa fora no passado destinada a ser um estabelecimentode recreio, daí os cômodos extraordinariamente altos e em forma de salão. Osonho também aconteceu em Bellevue, e para ser mais exato, poucos diasantes da festa de aniversário de minha mulher. Durante o dia ela tinhamanifestado a expectativa de que vários amigos viriam ao seu aniversário eseriam nossos convidados, entre eles também Irma. Meu sonho, portanto,antecipa essa situação: é o aniversário de minha mulher, e muitas pessoas,entre elas Irma, são nossas convidadas e as recepcionamos no grande salãode Bellevue.

Eu censuro Irma por não ter aceitado a solução; digo-lhe: Se vocêainda sente dores, é por sua própria culpa. Isso eu também poderia ter lhedito, ou lhe disse, na vigília. Naquela época, minha opinião (que mais tardereconheci incorreta) era de que minha tarefa se limitava a comunicar aopaciente o sentido oculto de seus sintomas; o fato de ele aceitar ou não essasolução, da qual depende o êxito do tratamento, não seria maisresponsabilidade minha. Sou grato a esse erro, agora felizmente superado,por ter me aliviado a existência num momento em que, apesar de toda minhainevitável ignorância, se esperava que eu produzisse curas bem-sucedidas. –Na frase que digo a Irma no sonho, porém, observo que, sobretudo, eu nãoquero ser culpado pelas dores que ela ainda sente. Se a própria Irma é aculpada, então a culpa não pode ser minha. Será que o propósito do sonhodeveria ser buscado nessa direção?

As queixas de Irma; dores na garganta, no abdômen e no estômago;sufocações. Dores de estômago pertenciam ao complexo sintomático de

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minha paciente, mas não eram muito fortes; ela se queixava mais desensações de enjoo e náusea. Dores de garganta, no abdômen e sufocaçõesmal desempenhavam um papel no seu caso. Fico surpreso por ter escolhidoesses sintomas no sonho, e por enquanto também não conheço o motivo.

Ela tem uma aparência pálida e inchada. Minha paciente estavasempre corada. Suponho que nesse ponto uma outra pessoa a substitua.

Eu me assusto ao pensar que, no fim das contas, desconsiderei umaafecção orgânica. Ninguém duvidará que esse seja um medo constante doespecialista que atende quase exclusivamente neuróticos e está acostumado aatribuir à histeria tantos sintomas que os outros médicos tratam comoorgânicos. Por outro lado, se apodera de mim – vinda não sei de onde – umaligeira dúvida de que meu susto não é inteiramente sincero. Se as dores deIrma têm um fundamento orgânico, então não tenho obrigação de curá-la.Afinal, meu tratamento elimina apenas dores histéricas. Parece-me, portanto,que eu desejaria um erro de diagnóstico; então a censura pelo fracassotambém estaria eliminada.

Eu a levo até a janela para examinar sua garganta. Ela resiste umpouco, como fazem as mulheres que usam dentadura. Penso que ela nãoprecisa agir assim. No caso de Irma, nunca tive ocasião de inspecionar suacavidade bucal. O ocorrido no sonho me lembra o exame feito há algumtempo em uma governanta, que, de início, dava a impressão de beleza juvenil,mas, ao abrir a boca, tomou diversas providências para esconder adentadura. A esse caso, relacionam-se outras lembranças de exames médicose de pequenos segredos que eles revelaram, para desagrado de ambas aspartes. – Ela não precisa agir assim: em primeiro lugar, é um cumprimentopara Irma; suspeito, porém, que haja também outro significado. Numa análiseatenta, sentimos se esgotamos ou não os pensamentos ocultos que caberiaesperar. A maneira de Irma ficar parada junto à janela me lembra de súbitooutra experiência. Irma possui uma amiga íntima que tenho em alta conta.Quando a visito certo dia à tardinha, encontro-a junto à janela na mesmaposição reproduzida no sonho, e seu médico, o mesmo dr. M., explicou que

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ela tinha uma placa difterítica. A pessoa do dr. M. e a placa retornam nocurso do sonho. Agora me ocorre que nos últimos meses tive todos osmotivos para supor que essa outra senhora também seja histérica. A própriaIrma me revelou isso. Mas o que sei de seu estado? Precisamente o fato deque sofre de sufocações histéricas, tal como Irma no sonho. Portanto, nosonho eu substitui minha paciente por sua amiga. Agora me lembro de quevárias vezes brinquei com a hipótese de que essa senhora também pudesserecorrer a mim para livrá-la de seus sintomas histéricos. Mas julguei issoimprovável, pois ela é de índole muito reservada. Ela resiste, como mostra osonho. Outra explicação seria a de que ela não tem necessidade disso; atéagora, ela realmente se mostrou forte o bastante para controlar seu estadosem ajuda alheia. Restam apenas alguns traços, que não posso atribuir nem aIrma nem à sua amiga: pálida, inchada, dentes postiços. Os dentes postiçosme levaram àquela governanta; agora me sinto inclinado a me contentar comdentes ruins. Então me ocorre outra pessoa à qual esses traços poderiamaludir. Ela também não é minha paciente, e eu não gostaria que fosse, poisobservei que ela se envergonha diante de mim e não a considero umapaciente dócil. Ela está quase sempre pálida, e quando certa vez passava poruma fase especialmente boa, estava inchada.[11] Portanto, comparei minhapaciente Irma com duas outras pessoas que resistiriam da mesma forma aotratamento. Que sentido pode haver no fato de que no sonho a troquei porsua amiga? Talvez o fato de que eu gostaria de trocá-la; ou a outra despertasimpatias mais fortes em mim, ou tenho uma opinião mais elevada de suainteligência. É que considero Irma tola por não aceitar minha solução. A outraseria mais inteligente e, portanto, cederia com maior facilidade. A boca seabre facilmente; ela contaria mais coisas do que Irma.[12]

O que vejo na garganta: uma mancha branca e cornetos nasaisrecobertos por uma crosta. A mancha branca lembra difterite, e, assim, aamiga de Irma, mas também a doença grave de minha filha mais velha há maisou menos dois anos, bem como todos os sobressaltos daqueles temposdifíceis. As crostas nos cornetos nasais fazem lembrar uma preocupação com

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minha própria saúde. Naquela época, eu fazia uso frequente de cocaína paracontrolar incômodos inchaços nasais e soubera poucos dias antes que umapaciente que fazia como eu desenvolvera uma extensa necrose da mucosanasal. A recomendação do uso de cocaína, que eu fizera em 1884, tambémme rendera sérias recriminações. Um caro amigo, já falecido em 1895,acelerou o seu fim ao abusar dessa droga.[13]

Chamo depressa o dr. M., que repete o exame. Isso simplesmentecorresponde à posição que M. assumiu entre nós. Mas o depressa échamativo o bastante para exigir uma explicação especial. Ele me lembra umtriste acontecimento médico. Certa vez, devido à prescrição continuada deuma droga que na época ainda era considerada inofensiva (sulfonal), euproduzira uma grave intoxicação numa paciente, recorrendo depressa aocolega mais velho e mais experiente em busca de auxílio. Uma circunstânciaacessória confirma que tenho realmente esse caso em vista. A paciente quesucumbiu à intoxicação tinha o mesmo nome de minha filha mais velha. Jamaistinha pensado nisso até o momento; agora quase me parece uma vingança dodestino. Como se a substituição de pessoas devesse prosseguir num outrosentido; esta Mathilde por aquela; olho por olho, dente por dente. É como seeu procurasse todas as ocasiões pelas quais pudesse me censurar por falta deprobidade médica.

O dr. M. está pálido, sem barba no queixo e manca. O que estácorreto nisso é que sua má aparência desperta constantes preocupações emseus amigos. As duas outras características devem pertencer a outra pessoa.Lembro-me de meu irmão mais velho, residente no exterior, que não usabarba no queixo e, se bem me lembro, se parece em tudo com o M. dosonho. Alguns dias atrás recebi a notícia de que ele está mancando devido auma enfermidade artrítica nos quadris. Deve haver uma razão para que nosonho eu funda as duas pessoas numa só. Lembro-me, de fato, que eu estavaindisposto com ambos por razões parecidas. Ambos rejeitaram certaproposta que lhes fiz recentemente.

Agora meu amigo Otto está ao lado da paciente, meu amigo

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Leopold a examina e indica uma região surda embaixo, à esquerda. Meuamigo Leopold, parente de Otto, também é médico. Visto que exercem amesma especialidade, o destino os transformou em concorrentes que aspessoas comparam sem cessar. Durante anos, os dois me assistiram quandoeu ainda dirigia um consultório público que atendia crianças com doençasnervosas. Cenas como a reproduzida no sonho ocorreram muitas vezes ali.Enquanto eu debatia com Otto acerca do diagnóstico de um caso, Leopoldtinha examinado a criança outra vez e apresentado uma colaboraçãoinesperada para resolvê-lo. Havia entre eles uma diferença de carátersemelhante à existente entre o inspetor Bräsig e seu amigo Karl.[14] Oprimeiro se distinguia pela “ligeireza”, o outro era lento e ponderado, porémconsciencioso. Se no sonho comparo Otto e o cauteloso Leopold, talacontece de maneira evidente para elogiar este último. É uma comparaçãosemelhante àquela feita acima entre a indócil paciente Irma e sua amigaconsiderada mais inteligente. Agora também noto uma das vias pelas quais aligação de pensamentos se desloca no sonho: da criança doente ao hospitalinfantil. – A região surda embaixo, à esquerda me dá a impressão decorresponder em todos os detalhes a um caso particular em que Leopold mesurpreendeu por sua meticulosidade. Além disso, penso em algo como umaafecção metastática, mas isso também poderia ser uma relação com apaciente que eu gostaria de ter no lugar de Irma. É que essa senhora, atéonde pude ver, imita uma tuberculose.

Uma parte da pele do ombro esquerdo que está infiltrada. Sei deimediato que se trata de meu próprio reumatismo no ombro, que percebosempre que fico acordado até altas horas da noite. Além disso, as palavrasno sonho são ambíguas: o que, assim como ele, também sinto. Sinto emmeu próprio corpo, entenda-se. De resto, me ocorre como soa incomum aindicação “uma parte da pele que está infiltrada”. Estamos acostumados à“infiltração atrás, em cima, à esquerda”; ela se refere ao pulmão e, assim,outra vez à tuberculose.

Apesar do vestido. Isso com certeza é apenas uma intercalação.

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Naturalmente, no hospital infantil examinávamos as crianças despidas; trata-se de algum tipo de oposição ao modo de examinar pacientes adultas.Costumava-se contar de um clínico eminente que sempre fazia o exame físicode suas pacientes através das roupas. O resto é obscuro para mim; falandofrancamente, não tenho nenhuma inclinação a me aprofundar neste ponto.

O dr. M. diz que é uma infecção, mas sem importância. Ainda viráuma disenteria e a toxina será eliminada. De início, isso me pareceridículo, mas, como todo o resto, precisa ser analisado com cuidado. Vistomais de perto, acaba mostrando uma espécie de sentido. O que encontrei napaciente foi uma difterite local. Recordo-me que na época do adoecimentode minha filha houve uma discussão sobre difterite e difteria. Esta é a infecçãogeneralizada que se origina da difterite local. Leopold indica uma infecçãogeral desse tipo por meio da região surda, que, portanto, permite pensar numfoco metastático. Acredito, na verdade, que precisamente na difteria essasmetástases não ocorrem. Elas me fazem lembrar, antes, uma piemia.

Sem importância é um consolo. Penso que se encaixa da seguintemaneira: a última parte do sonho trouxe o conteúdo de que as dores dapaciente provêm de uma grave afecção orgânica. Desconfio que tambémcom isso eu só queira me livrar da culpa. O tratamento psíquico não pode serresponsabilizado pela continuidade de dores difteríticas. No entanto, agorame envergonho de atribuir uma doença tão grave a Irma única eexclusivamente para me aliviar. Parece cruel demais. Preciso, portanto, dagarantia de um bom desfecho, e não parece má escolha colocar o consolojustamente na boca do dr. M. Porém, neste ponto me mostro superior aosonho, o que necessita de explicação.

Contudo, por que esse consolo é tão absurdo?Disenteria: uma remota representação teórica qualquer de que

substâncias patogênicas podem ser eliminadas pelo intestino. Será que querozombar da abundância de explicações pouco convincentes e de estranhasassociações patológicas do dr. M.? Ainda me ocorre outra coisa sobre adisenteria. Meses atrás recebi um jovem que apresentava estranhas dores ao

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evacuar e que outros colegas haviam tratado como um caso de “anemiaacompanhada de subnutrição”. Reconheci se tratar de uma histeria, não quisexperimentar minha psicoterapia nele e o mandei fazer uma viagem marítima.Dias atrás recebi uma carta dele, desesperada, do Egito, onde ele sofrera umnovo ataque que o médico declarara se tratar de disenteria. Suspeito que odiagnóstico seja apenas um erro do colega ignorante que se deixa fazer debobo pela histeria; porém, não pude me poupar recriminações por tercolocado o paciente na situação de contrair uma afecção intestinal orgânicaquando já tinha uma histérica. Além disso, disenteria lembra difteria, palavraque não é mencionada no sonho.

Com o prognóstico consolador de que ainda virá uma disenteria etc.devo realmente ter zombado do dr. M., pois me lembro que certa vez, anosatrás, ele contou rindo algo muito parecido de um colega. Ele fora consultadopor esse colega a propósito de um paciente gravemente doente, e foi levadoa advertir o outro, que parecia muito esperançoso, de que encontraraalbumina na urina do paciente. O colega não se deixou desconcertar, masrespondeu tranquilo: Não tem importância, caro colega, o albumina logoserá excretado! – Não tenho mais dúvidas, portanto, de que essa parte dosonho contém uma ridicularização dos colegas que ignoram a histeria. Comoque para confirmar isso, me passa agora pela cabeça a seguinte pergunta:será que o dr. M. sabe que os sintomas de sua paciente, a amiga de Irma,que fazem temer uma tuberculose, também se devem à histeria? Será que elereconheceu essa histeria ou se deixou “tapear” por ela?

Porém, que motivo eu poderia ter para tratar tão mal a esse amigo? Émuito simples: o dr. M. está tão pouco de acordo com a “solução” que sugeria Irma quanto ela própria. Nesse sonho, portanto, já me vinguei de duaspessoas; de Irma, dizendo-lhe que se ela ainda tem dores a culpa é dela, e dodr. M., ao colocar em sua boca as absurdas palavras de consolo.

Sabemos de imediato a origem da infecção. Esse conhecimentoimediato no sonho é curioso. Pouco antes nada sabíamos, visto que ainfecção foi indicada apenas por Leopold.

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Quando ela estava se sentindo mal, meu amigo Otto lhe aplicouuma injeção. Otto realmente contou que durante o breve intervalo que ficarana casa da família de Irma fora chamado ao hotel vizinho para aplicar umainjeção em alguém que de repente se sentira mal. As injeções me recordamoutra vez o infeliz amigo que se intoxicou com cocaína. Eu lhe recomendara adroga apenas para uso interno enquanto ele se desintoxicava da morfina,porém ele imediatamente se aplicou injeções de cocaína.

Um preparado de propil... propileno... ácido propiônico. Comocheguei a isso, afinal? Na mesma noite em que redigi o histórico clínico e emque tive o sonho, minha mulher abrira uma garrafa de licor em cujo rótuloconstava a palavra Ananás[15] e que fora um presente de nosso amigoOtto. Ele tinha o hábito de dar presentes em todas as ocasiões possíveis;tomara que um dia uma mulher o cure disso.[16] Esse licor exalava um cheirotão forte de álcool amílico que me recusei a prová-lo. Minha mulher sugeriuque déssemos a garrafa de presente aos empregados, e eu, ainda maiscauteloso, impedi isso com a observação filantrópica de que eles também nãodeveriam se envenenar. O cheiro de álcool amílico (amil...) evidentementedespertou em mim a lembrança de toda a série (propil, metil etc.) queforneceu ao sonho os preparados de propileno. Com certeza fiz umasubstituição; sonhei com propil depois de sentir o cheiro de amil, massubstituições desse tipo talvez sejam autorizadas mesmo na química orgânica.

Trimetilamina. Vejo a fórmula química dessa substância no sonho, oque em todo caso atesta um grande esforço de minha memória, e na verdadeessa fórmula está impressa em negrito, como se algo especialmenteimportante devesse ser destacado do contexto. A que me leva atrimetilamina, à qual minha atenção fora chamada dessa maneira? A umaconversa com outro amigo, que há anos sabe de todos os meus trabalhosquando ainda estão germinando, assim como sei dos seus. Naquela ocasião,ele me comunicara certas ideias acerca de uma química sexual, mencionando,entre outras coisas, que acreditava reconhecer na trimetilamina um dosprodutos do metabolismo sexual. Essa substância me leva assim à

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sexualidade, àquele fator ao qual atribuo a maior importância para a origemdas afecções nervosas que pretendo curar. Minha paciente Irma é uma jovemviúva; se me empenho em me desculpar pelo fracasso de seu tratamento, omelhor que posso fazer é invocar esse fato, que seus amigos bem gostariamde mudar. De resto, como é notável a composição de um sonho desses! Aoutra mulher que tenho no sonho como paciente em lugar de Irma também éuma jovem viúva.

Suspeito por que a fórmula da trimetilamina ocupa tanto espaço nosonho. Muitas coisas importantes se reúnem nessa palavra: a trimetilaminanão é apenas uma alusão ao fator preponderante da sexualidade, mastambém a uma pessoa cujo apoio lembro com satisfação quando me sintoabandonado com minhas opiniões. Não deveria esse amigo, que representaum papel tão grande em minha vida, reaparecer na concatenação depensamentos do sonho? É claro que sim; ele é um grande conhecedor dosefeitos das afecções do nariz e de suas cavidades secundárias, e revelou àciência algumas relações altamente notáveis entre os cornetos nasais e osórgãos sexuais femininos. (As três estruturas curvas na garganta de Irma.)Pedi-lhe que examinasse Irma para verificar se suas dores de estômago talveztivessem origem nasal. Ele próprio, porém, sofre de abscessos nasais que medeixam preocupado, e a piemia, na qual penso em função das metástases nosonho, deve aludir a isso.

Não se fazem essas injeções de maneira tão leviana. Aqui a censurade leviandade é lançada diretamente sobre meu amigo Otto. Acredito que àtarde pensei algo semelhante quando ele pareceu atestar sua tomada departido contra mim por meio de suas palavras e de seu olhar. Foi algo como:com que facilidade ele se deixa influenciar; com que leviandade emite seusjuízos. – Além disso, a frase acima volta a aludir ao amigo falecido, que sedecidiu tão rápido a tomar injeções de cocaína. Como já disse, eu de formaalguma tinha injeções dessa droga em vista. Com a censura que faço a Ottopor lidar levianamente com substâncias químicas, observo que volto a tocarna história daquela infeliz Mathilde, história da qual resulta a mesma censura

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contra mim. É manifesto que reúno aqui exemplos de minhaconscienciosidade, mas também do contrário.

É provável que a seringa também não estivesse limpa. Mais umacensura a Otto, embora tenha outra origem. Ontem encontrei por acaso ofilho de uma senhora de 82 anos a quem preciso aplicar diariamente duasinjeções de morfina. No momento ela está no campo e, segundo soube, sofrede uma flebite. Logo pensei se tratar de uma infiltração causada por umaseringa contaminada. Orgulho-me de, em dois anos, não lhe ter provocadonenhuma infiltração; minha preocupação constante é manter a seringa limpa.É que sou consciencioso. A flebite me leva outra vez à minha mulher, quedurante uma de suas gestações sofreu de congestões venosas, e agoratambém me vêm à memória três situações parecidas envolvendo minhamulher, Irma e a falecida Mathilde, situações cuja identidade evidentementeme deu razão para substituir as três pessoas entre si.

Completei a interpretação do sonho.[17] Durante esse trabalho, meesforcei por me precaver contra todas as ideias que deviam ser provocadaspela comparação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos oníricosocultos por trás dele. Nesse meio-tempo, também compreendi o “sentido”do sonho. Observei um propósito que foi realizado pelo sonho e que deve tersido o seu motivo. O sonho realiza alguns desejos que foram despertados emmim pelos acontecimentos da noite anterior (a notícia de Otto, a redação dohistórico clínico). O resultado do sonho é que não sou culpado pelas doresque Irma ainda sente, mas que a culpa é de Otto. Ele me irritou com seucomentário sobre a cura incompleta de Irma, e o sonho me vinga dele aovoltar a censura contra o próprio Otto. O sonho me absolve daresponsabilidade pelo estado de Irma ao atribuí-lo a outros fatores (toda umasérie de motivações). O sonho apresenta um certo estado de coisas tal comoeu poderia desejá-lo; seu conteúdo, portanto, é uma realização de desejo,e seu motivo, um desejo.

Tudo isso salta aos olhos. Contudo, também há muitos detalhes do

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sonho que se tornam compreensíveis sob o ponto de vista da realização dedesejo. Não me vingo de Otto apenas por sua precipitação em tomar partidocontra mim, atribuindo-lhe uma ação médica precipitada (a injeção), mastambém me vingo dele pelo péssimo licor com cheiro de álcool amílico,encontrando no sonho uma expressão que une as duas recriminações: ainjeção com um preparado de propileno. Ainda não estou satisfeito, masprossigo minha vingança ao lhe contrapor o seu concorrente, mais confiável.Com isso pareço dizer: gosto mais dele do que de ti. Porém, Otto não é oúnico a sentir o peso de minha ira. Também me vingo da paciente rebelde aotrocá-la por uma mais inteligente, mais dócil. Também não deixo passar aoposição do dr. M., mas, numa alusão clara, lhe expresso minha opinião deque ele trata o assunto como um ignorante (“Virá uma disenteria etc.”). Sim,me parece que lhe dou as costas e apelo a alguém com maioresconhecimentos (meu amigo que me falou da trimetilamina), da mesma formaque me voltei de Irma à sua amiga, de Otto a Leopold. Tirem essas pessoasdaqui, troquem-nas por outras três de minha escolha, assim estarei livre dascensuras que acredito não merecer! A própria falta de fundamento dessascensuras me é demonstrada no sonho da maneira mais minuciosa. As doresde Irma não são de minha conta, pois ela própria é culpada delas ao serecusar a aceitar minha solução. As dores de Irma não me dizem respeito,pois são de natureza orgânica, de modo algum curáveis por um tratamentopsíquico. A doença de Irma se explica satisfatoriamente por sua viuvez(trimetilamina!), situação que afinal não posso mudar. A doença de Irma foicausada por uma injeção imprudente de Otto com uma substânciainapropriada, algo que eu jamais teria feito. A doença de Irma se deve a umainjeção feita com uma seringa suja, tal como a flebite da velha senhora,enquanto eu jamais faço algo errado quando aplico injeções. Observo, éverdade, que essas explicações para a doença de Irma, que coincidem emme aliviar, não concordam entre si, inclusive se excluem. Todo esse discursode defesa – esse sonho não é outra coisa – lembra vivamente a defesadaquele homem que foi acusado por seu vizinho de lhe ter devolvido uma

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chaleira em mau estado. Em primeiro lugar, ele a devolveu intacta; emsegundo, a chaleira já tinha furos quando a tomou emprestada; e em terceiro,ele jamais emprestou uma chaleira do vizinho. Tanto melhor assim; se apenasuma dessas defesas for reconhecida como válida, o homem deverá serabsolvido.

Ainda entram no sonho outros temas cuja relação com meu desencargoda doença de Irma não é tão transparente: a doença de minha filha e a deuma paciente de mesmo nome, a nocividade da cocaína, a afecção de meupaciente que viaja pelo Egito, a preocupação com a saúde de minha mulher,de meu irmão e do dr. M., meus próprios achaques corporais e apreocupação com o amigo ausente que sofre de abscessos nasais. Contudo,ao considerar o conjunto desses elementos, eles se unem num único grupo deideias que poderia ter o seguinte rótulo: preocupações com a saúde, própriae alheia, probidade médica. Recordo-me de uma sensação desagradável econfusa quando Otto me trouxe a notícia do estado de Irma. A partir dogrupo de ideias que entra em jogo no sonho, eu gostaria de acrescentar aposteriori a expressão para essa sensação fugaz. É como se ele tivesse medito: “Não levas tuas obrigações médicas suficientemente a sério, não ésconsciencioso, não cumpres tuas promessas”. Em consequência disso, teriase colocado à minha disposição o referido grupo de ideias, de maneira queeu pudesse demonstrar o alto grau de minha probidade, o quanto me importaa saúde de meus parentes, amigos e pacientes. Notavelmente, esse materialtambém inclui lembranças dolorosas que falam mais a favor da acusação queatribuo a meu amigo Otto do que a favor de minha inocência. O material éimparcial, por assim dizer, mas há um nexo inequívoco entre esse materialmais amplo em que o sonho se apoia e o tema mais restrito do sonho, temado qual resultou o desejo de ser inocente da doença de Irma.

Não quero afirmar que descobri o sentido completo desse sonho, quesua interpretação não tenha deixado lacunas.

Eu ainda poderia me deter muito tempo nele, extrair mais explicaçõesdele e discutir novos enigmas que ele coloca. Eu mesmo conheço os pontos a

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partir dos quais se pode seguir outros nexos de pensamento; porém,escrúpulos que entram em consideração quando se trata de nossos própriossonhos me impedem de fazer o trabalho de interpretação. Quem estiverpronto a me criticar por semelhante reserva, que tente ser mais franco do queeu. Contento-me, por enquanto, com o novo conhecimento obtido: seseguirmos o método de interpretação de sonhos aqui mostrado,descobriremos que o sonho realmente tem um sentido e de forma alguma é aexpressão de uma atividade cerebral fragmentada, como querem os autores.Depois de completado o trabalho de interpretação, o sonho se revelacomo uma realização de desejo.

[1]. Numa novela de W. Jensen, Gradiva, descobri por acaso vários sonhos artificiais construídosde maneira perfeitamente correta e que podiam ser interpretados como se não tivessem sidoinventados, mas sonhados por pessoas reais. Questionado por mim, o escritor confirmou que nãotomara conhecimento de minha teoria dos sonhos. Aproveitei essa concordância entre minhainvestigação e a sua criação como prova do acerto de minha análise dos sonhos. (A loucura e ossonhos em “Gradiva”, de W. Jensen, Freud, 1907 a.)[2]. Aristóteles afirmou que o melhor intérprete de sonhos é aquele que melhor apreendesemelhanças, pois as imagens oníricas, como as imagens na água, são distorcidas pelo movimento,e aquele que é capaz de reconhecer o verdadeiro na imagem distorcida obtém os maiores êxitos(Büchsenschütz, 1868, p. 65).[3]. Artemidoro de Daldis, nascido provavelmente no começo do século II de nossa era, nos legouo mais completo e mais cuidadoso estudo sobre a interpretação dos sonhos no mundo greco-romano. Ele dava importância, como T. Gomperz (1866) ressalta, em basear a interpretação desonhos na observação e na experiência, e separava rigorosamente a sua arte de outras, enganosas.O princípio de sua arte interpretativa, segundo a exposição de Gomperz, é idêntico à magia, oprincípio da associação. Um objeto onírico significa aquilo que ele lembra. Aquilo que lembra aointérprete, bem entendido! Por isso, da circunstância de que o elemento onírico pode lembrardiversas coisas ao intérprete, e a cada intérprete coisas diferentes, resulta uma fonte dearbitrariedade e de incerteza que não pode ser controlada. A técnica que exponho nas páginasseguintes se afasta da técnica antiga no ponto essencial de impor o trabalho interpretativo àprópria pessoa que sonha. Ela não pretende considerar as ideias que ocorrem ao intérprete, e simaquelas que ocorrem à pessoa acerca do elemento onírico em questão. – Contudo, segundo relatosrecentes do missionário Tfinkdji (1913), os intérpretes modernos do Oriente também dão grandeimportância à colaboração de quem sonhou. Ele afirma o seguinte sobre os intérpretes de sonhosentre os árabes da Mesopotâmia: “Pour interpréter exactement un songe, les oniromanciens lesplus habiles s’informent de ceux qui les consultent de toutes les circonstances qu’ils regardent

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nécessaires pour la bonne explication (...). En un mot, nos oniromanciens ne laissent aucunecirconstance leur échapper et ne donnent l’interprétation désirée avant d’avoir parfaitement saisiet reçu toutes les interrogations désirables”. [“Para interpretar de maneira correta um sonho, osoniromantes mais hábeis se informam com o consulente a respeito de todas as circunstâncias quejulgam necessárias para uma boa explicação (...). Numa palavra, nossos oniromantes não deixamescapar nenhuma circunstância enão dão a interpretação desejada antes de ter compreendido e assimilado perfeitamente todas asperguntas desejáveis.” (N.T.)] Entre essas perguntas, normalmente se incluem aquelas quesolicitam informações exatas sobre os parentes mais próximos (pais, mulher, filhos), assim comoa fórmula típica: “Habuistine in hac nocte copulam conjugalem ante vel post somnium?”. [“Osenhor manteve relações sexuais com sua mulher antes ou depois do sonho?” (N.T.)] – “L’idéedominante dans l’interprétation des songes consiste à expliquer le rêve par son opposé.” [“Aideia dominante na interpretação dos sonhos consiste em explicar o sonho pelo seu oposto.”(N.T.)][4]. O dr. Alfred Robitsek chamou minha atenção para o fato de os livros orientais de sonhos, dosquais os nossos são deploráveis imitações, praticarem a interpretação dos elementos oníricosquase sempre de acordo com a homofonia e a semelhança das palavras. Visto que essesparentescos têm de se perder na tradução para a nossa língua, surge daí a incompreensibilidadedas substituições em nossos “livros de sonhos” populares. – Sobre a extraordinária importânciado jogo de palavras e do trocadilho nas antigas culturas orientais, é possível obter informações naobra de Hugo Winckler. – O mais belo exemplo de interpretação de um sonho que nos foi legadopela Antiguidade se baseia num trocadilho. Conta Artemidoro: “Parece-me, porém, queAristandro também deu uma interpretação extremamente feliz a Alexandre da Macedônia quandoeste sitiava Tiro e, em razão do grande dispêndio de tempo, irritado e aflito, teve a impressão dever um sátiro dançando em seu escudo; por acaso, Aristandro se achava nas proximidades de Tiro,no séquito do rei que guerreava os sírios. Ao decompor a palavra sátiro em sa e tyros, eleconseguiu fazer com que o rei intensificasse o cerco, de modo a se tornar senhor da cidade”. (Sa -Tyros = Tiro é tua.) – Aliás, o sonho depende tão intimamente da expressão linguística queFerenczi afirmou com razão que cada língua tem a sua própria linguagem onírica. Via de regra, umsonho é intraduzível para outra língua e, por essa razão, segundo creio, também um livro como opresente. Não obstante, o dr. A.A. Brill, de Nova York, e outros depois dele, conseguiram fazertraduções de A interpretação dos sonhos.[5]. Depois de concluir meu manuscrito, recebi uma obra de Stumpf (1899) que coincide com meutrabalho na intenção de provar que o sonho tem sentido e é interpretável. Porém, suasinterpretações ocorrem por meio de um simbolismo alegorizante, sem garantia de universalidadedo procedimento.[6]. Breuer e Freud (1895 d).[7]. Ao observar diretamente essa transformação das representações em imagens visuais, H.Silberer obteve contribuições importantes para a interpretação dos sonhos (1909, 1910 e 1912).[8]. “Todo psicólogo é obrigado a confessar inclusive as suas fraquezas se acredita lançar luzsobre algum problema obscuro.” (N.T.)[9]. De qualquer forma, não quero deixar de dizer, numa restrição do que afirmei acima, que quasenunca comuniquei a interpretação completa de meus sonhos. Provavelmente tive razão em nãoconfiar muito na discrição do leitor.

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[10]. Esse foi o primeiro sonho que submeti a uma interpretação detalhada.[11]. A queixa de dores no abdômen, ainda não explicada, também pode ser atribuída a essaterceira pessoa. Trata-se, naturalmente, de minha própria mulher; as dores no abdômen me fazemlembrar uma das ocasiões em que sua timidez se tornou clara para mim. Tenho de confessar a mimmesmo que nesse sonho não sou muito amável com Irma e com minha mulher, porém observopara me desculpar que meço ambas pelo ideal da paciente dócil e bem-comportada.[12]. Suspeito que a interpretação desse trecho não foi longe o bastante para seguir todo o sentidooculto. Se quisesse continuar a comparação entre as três mulheres, eu iria longe. – Todo sonhotem pelo menos um ponto em que é insondável, um umbigo, por assim dizer, que o liga aodesconhecido.[13]. Ernst Fleischl von Marxow (1846-1891). (N.R.)[14]. Protagonistas de um romance autobiográfico de Fritz Reuter (1810-1874). (N.T.)[15]. Essa palavra, aliás, tem uma semelhança notável com o sobrenome de minha paciente Irma.[16]. Nesse aspecto, o sonho não se mostrou profético. Ele acertou em outro sentido, pois asdores de estômago “não solucionadas” de minha paciente, pelas quais eu não queria ser culpado,foram as precursoras de uma grave formação de cálculos biliares.[17]. Embora, como é compreensível, não tenha comunicado tudo o que me veio à mente duranteo trabalho de interpretação.