panorama das teorias de alfabetização na am nas Últimas décadas (1980-2010)

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Resumo Ao longo dos últimos 30 anos, mudanças fundamentais nas teorias da alfabetização têm afetado de diferentes maneiras as práticas de ensino na América Latina, ao mesmo tempo em que outras transformações também foram ocorrendo na cultura escrita. Neste artigo, com base em um levantamento bibliográfico em língua espanhola, será possível observar três teorias sobre a apropriação da língua escrita com repercussões importantes no campo da alfabetização: Whole Language, consciência fonológica e pesquisa psicogenética, amplamente difundidas no âmbito da pesquisa psicolinguística e em propostas de ensino a elas associadas. A relação língua oral- língua escrita, a concepção de erro e diversidade e a variação linguística são eixos que atravessam os pontos centrais e discrepantes entre teorias. Palavras-chave Teorias da alfabetização. Linguagem integral. Consciência fonológica. Psicogênese da escrita. Construtivismo Panorama das teorias de alfabetização na América Latina nas últimas décadas (1980-2010) Mirta Castedo* Mirta Torres** * Universidade Nacional de La Plata, Argentina;Universidade Pedagógica, Buenos Aires, Argentina ** Ministério da Educação, Argentina – Secretaria de Educação, Governo da Cidade de Buenos Aires, Argentina

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Panorama Das Teorias de Alfabetização Na AM Nas Últimas Décadas (1980-2010)

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  • Resumo

    Ao longo dos ltimos 30 anos, mudanas fundamentais nas

    teorias da alfabetizao tm afetado de diferentes maneiras

    as prticas de ensino na Amrica Latina, ao mesmo tempo

    em que outras transformaes tambm foram ocorrendo na

    cultura escrita. Neste artigo, com base em um levantamento

    bibliogrfico em lngua espanhola, ser possvel observar trs

    teorias sobre a apropriao da lngua escrita com repercusses

    importantes no campo da alfabetizao: Whole Language,

    conscincia fonolgica e pesquisa psicogentica, amplamente

    difundidas no mbito da pesquisa psicolingustica e em

    propostas de ensino a elas associadas. A relao lngua oral-

    lngua escrita, a concepo de erro e diversidade e a variao

    lingustica so eixos que atravessam os pontos centrais e

    discrepantes entre teorias.

    Palavras-chave

    Teorias da alfabetizao. Linguagem integral. Conscincia

    fonolgica. Psicognese da escrita. Construtivismo

    Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas

    dcadas (1980-2010)

    Mirta Castedo*

    Mirta Torres**

    * Universidade

    Nacional de La Plata,

    Argentina;Universidade

    Pedaggica, Buenos Aires,

    Argentina

    ** Ministrio da Educao,

    Argentina Secretaria de

    Educao, Governo da

    Cidade de Buenos Aires,

    Argentina

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 88

    Introduo

    Ao longo dos ltimos 30 anos aconteceram mudanas fundamentais

    relativas s teorias de alfabetizao na Amrica Latina. Sem dvida, essas

    mudanas que foram se constituindo em dcadas anteriores incidiram

    de maneiras diversas nas prticas de ensino. Ao mesmo tempo, ocorreram

    mudanas culturais profundas, que incluram o prprio objeto dos processos

    de alfabetizao, a saber, a lngua escrita mesma. Cabe, portanto, destacar

    sinteticamente em que consistiram essas modificaes.

    At o incio dos anos 1980, os nmeros relativos ao fracasso em alfabetizao

    eram inexistentes ou conhecidos apenas indiretamente, ao se verificar o

    abandono precoce da escola por parte de milhes de crianas. O panorama

    terico era marcado pela Teoria do Dficit. De acordo com o Dicionrio de

    Cincias da Educao, nessa teoria:

    Isto , trata-se de uma teoria por meio da qual se legitima uma explicao

    circular: o fracasso tem origem em uma insuficincia de linguagem,

    produzida, por sua vez, pela origem social, que impede o desenvolvimento

    cognitivo, sem o qual a superao do fracasso impossvel. Desse ponto de

    vista, considerando que fracasso na escola e pobreza tm a mesma origem,

    pobreza e insuficincia lingustico-cognitiva ficam tambm inevitavelmente

    associadas. Uma teoria que torna a pobreza patolgica e naturaliza o fracasso.

    Paralelamente, na prtica, defendia-se que era preciso manter as crianas

    exercitando-se mesmo em lugares onde as crianas no liam, no escreviam,

    nem tinham contato algum com a lngua escrita e, assim, realizando tarefas de

    motricidade, seleo visual, pronncia, etc., at atingir determinados desempenhos

    visuais, auditivos e motores completamente alheios cultura escrita. The Literacy

    Dictionary destaca que essa prtica escolar conhecida como prontido ou

    preparao para a leitura (reading readiness, em ingls), com o intuito de

    alcanar uma disposio ou nvel mnimo para tirar proveito da instruo de

    leitura para, s ento, comear a se ensinar (AA. VV., 1995).

    [...] as dificuldades e o fracasso escolar das crianas, especialmente de grupos

    menos favorecidos, em geral so explicados como decorrentes de carncia na

    linguagem, tanto no lxico deficincias de vocabulrio , quanto na sintaxe

    utilizao de estruturas gramaticais relativamente simples ou incorretas. Supe-

    se que as deficincias lingusticas traduzam-se em dificuldades cognitivas (na

    elaborao de conceitos, em modos de raciocnio etc.), dando origem ao fracasso

    escolar. (AA. VV., 1983, p.372)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Introduo

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 89

    Na escola, as crianas no ouviam a leitura de textos, no trocavam opinies

    sobre as leituras feitas, no pegavam o lpis para tentar escrever, nem a

    professora ditava um conto ou qualquer outro tipo de relato para que fosse

    lido pelos outros. Determinados desempenhos motores, visuais, auditivos,

    etc. eram supostos como prvios e indispensveis para aprender a ler e a

    escrever e o esforo para desenvolv-los tomava vrios meses ou at mesmo

    anos. Sustentava-se o absurdo de que as pessoas precisavam se exercitar

    por meio de prticas que nada tinham que ver com a lngua escrita para poder

    ter acesso cultura letrada, mantendo-as, assim, cada vez mais distantes do

    objeto de ensino.

    No entanto, Telma Weisz (2010, p. 57) ressalta que h uma ruptura quando:

    Ao mesmo tempo, a Histria e outras Cincias Sociais comenaram a estudar esse

    objeto complexo que a escrita. Determinadas perspectivas psicolingusticas

    e didticas comearam a recorrer a esses estudos. Assim, o contexto scio-

    histrico transformou-se em recurso indispensvel para a compreenso do

    processo de aprendizagem e da especificidade do objeto de ensino.

    Desse modo, desde o incio dos anos 1980, temos condio de lutar contra

    as correntes que reduzem a criana a um aparelho fonador, auditivo e

    correspondentes associaes ptico-motores, obrigando os pequenos

    aprendizes a realizarem exerccios escolares de reproduo de formas (cpia)

    e a repetirem slabas ou sons isolados, fora da lngua. (FERREIRO, 2010, p.43).

    Nesse panorama de mudanas recentes, como destacam vrios autores

    (COLOMER, 2008; TEBEROSKY, 2010), tambm indispensvel considerar

    pelo menos duas transformaes ocorridas fora da escola: as mudanas

    relacionadas, produo de materiais de leitura e s novas tecnologias da

    informao e da comunicao.

    Por uma combinao de transformaes tecnolgicas dos processos de edio

    [...] as questes lingusticas envolvidas na alfabetizao comearam a se fazer

    presentes. Em diferentes lugares, de forma mais ou menos concomitante, comea-

    se a instalar a ideia da lngua escrita como um objeto sobre o qual se pode pensar,

    isto , uma posio contrria a um conjunto de habilidades e competncias

    psiconeurolgicas [...] A ruptura produzida por uma reconceituao do

    contedo da alfabetizao. A alfabetizao, vista como um objeto estritamente

    fonolgico, que se apresentava como uma relao um a um entre letras e sons e

    letras com sons transformou-se em outro objeto. O objeto da alfabetizao passou

    a ser muito mais que a correspondncia grafema/fonema. A linguagem, inclusive a

    questo discursiva, entrou no campo da alfabetizao.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 90

    e de comercializao, por um lado, somada profuso da produo literria

    destinada s crianas por parte de autores, ilustradores e artistas plsticos, o

    panorama relativo aos livros infantis atualmente muito diferente daquele que

    antes conhecamos. H trs dcadas, ainda predominava a ideia de que, para

    se ensinar a ler e a escrever, eram necessrios, primeiro, bons livros didticos

    para, depois, passar aos livros de verdade. Hoje, a produo to abundante,

    diversificada e de tamanha qualidade que no precisamos pensar nesses

    livros, mas sim em como selecionar os melhores ttulos para as aulas, porque

    perfeitamente possvel combinar qualidade literria e propsitos didticos.

    Os materiais de leitura, especialmente os livros de literatura infantil,1 so de

    grande qualidade literria e visual: atraem a ateno; h diversidade de temas,

    de formas, de gneros; possuem direcionamentos diferentes de acordo com

    cada idade e, de forma conjunta, as vrias faixas etrias (de dupla audincia,

    como dizem os crticos, para crianas e adultos). (TEBEROSKY, 2010, p.55).

    Vrios desses livros tm caractersticas que os tornam especiais para o incio

    da aprendizagem, sem que tenham sido concebidos para esse fim.

    Essa condio torna desnecessria a produo de textos especialmente

    elaborados para a escola e coloca em primeiro plano a necessidade de

    provimento de bibliotecas de apoio s turmas. Antes, dizamos que no se

    podia ensinar a ler sem livros (CERLALC, 1996). Hoje, dizemos que no fazem

    falta livros didticos ou textos elaborados especialmente para se ensinar

    a ler e a escrever. que h verdadeiros livros obras de arte, autntica

    literatura, livros de difuso que, embora no sejam material didtico, so

    especialmente adequados para o incio das aprendizagens. As imagens

    permitem antecipar enunciados, a diagramao das pginas convida o leitor

    a estabelecer correspondncia entre o que se l e o que est escrito, as

    marcas de edio servem de destaque, outras ressaltam segmentos que se

    repetem, etc. E isso acontece em todos os gneros: lrico, teatro, narrativa e

    textos informativos de todo tamanho e espcie. Diante de tantos materiais

    disponveis, por que utilizar, nas turmas das crianas menores, materiais

    que no representam tradio cultural alguma? Perdemos em conhecimento

    cultural e em possibilidade de antecipao, uma das estratgias bsicas de

    leitura que necessrio desenvolver para aprender a ler.

    Por outro lado, assistimos a uma terceira fase da histria da escrita, mais

    alm do manuscrito e da imprensa, a fase da escrita eletrnica (CASTRO,

    1994). Hoje, escrevemos com teclados e em telas de computador. Como 1 Livros de imagem, verses atuais de contos clssicos, histrias e jogos de linguagem,

    poesia tradicional e contempornea, e assim por diante.

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Introduo

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 91

    sempre tem acontecido, a alterao das condies materiais de produo

    causam mudanas profundas nas prticas: o processo de escrita e o objeto

    escrita foram e continuam sendo transformados.

    Quem escreve no s se libera do traado das letras e tem auxlio permanente

    dos corretores ortogrficos, como tambm, alm disso, deve aprender a fazer

    parte de uma sucesso coletiva de autores nem sempre identificveis ou

    reconhecidos, em contextos nos quais no obrigatrio possuir antecedentes

    autorais para publicar. O controle da escrita depende muito mais do domnio

    das ferramentas de publicao do que de algumas pessoas autorizadas,

    porque o formato digital expande as ferramentas tanto de publicao quanto

    de distribuio, independentemente do papel social reconhecido pelos outros.

    A edio est a cargo do produtor (algo que j vivemos h muito, antes da

    criao da imprensa) e, por ltimo, a distribuio em plataformas, em redes

    tambm nas mos do autor, desde que ele saiba manejar as ferramentas.

    Apesar de as maneiras de se utilizar produtivamente os computadores para

    ler e escrever em sala de aula estarem ainda longe de ser resolvidas, eles

    transformaram profundamente o ambiente escolar: o que h para ensinar

    e aprender? Novas ferramentas de produo, possibilidades de alterao

    proporcionadas pelas ferramentas, possibilidades criadas pelo produtor para

    que outros as modifiquem, meios de distribuio do que foi produzido... Ser

    possvel que essas novas prticas entrem no espao escolar? Ser custa

    da ampliao do tempo de ensino obrigatrio ou ser possvel abandonar o

    que no tem mais sentido na cultura, embora permanea em sala de aula?

    (CASTEDO; ZUAZO, 2011).

    nesse cenrio que teorias e prticas seguem seu curso. Como em todo

    processo histrico, no esto isentas de contradies nem de disputas pelo

    campo. Lutas no apenas produzidas no campo da pesquisa bsica, mas que

    tambm se entrelaam com outras transformaes muito mais lentas nas

    prticas, sempre flutuantes e nada homogneas nem exclusivas e diretamente

    determinadas pelas teorias. Prticas atravessadas por movimentos sociais e

    polticos, especialmente por movimentos de professores da educao bsica

    e da universidade. Prticas tambm facilitadas, dificultadas, fomentadas ou

    impedidas por polticas de estado nem sempre estabelecidadas com clara

    conscincia de seus efeitos em sala de aula. Lutas que no ficam margem

    de disputas pelo poder econmico, que detm os recursos para pesquisa,

    formao de professores, produo de materiais ou, pelo menos, para a

    aquisio de tecnologia.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 92

    Nos pargrafos seguintes, concentraremo-nos na apresentao das teorias,

    detendo-nos a olhar as prticas a partir de suas prprias janelas. A histria

    contada a partir da prtica, sem dvida, constituiria outra histria da

    mesma histria, no desenvolvida aqui. Sem dvida, seriam outros relatos

    que tambm poderiam ser construdos com base em outros enunciadores,

    posicionados em outras perspectivas tericas. Como sabemos que isto

    inevitavelmente assim, pecamos conscientemente com excesso de citaes

    com o intuito de equilibrar o prprio ponto de vista em relao a outras vozes,

    permitindo a busca de novas interpretaes.

    Whole language: contra a patologia do erro e do treinamento de habilidades

    e competncias isoladas

    No incio da dcada de 1960, Kenneth Goodman manifestou-se sobre o mal-

    estar em relao s teorias de leitura vigentes naquele momento que [...]

    trata[m] a leitura como uma identificao sequencial de palavras (GOODMAN,

    1994, p.15). Em oposio a essas teorias, afirma que a compreenso dos

    leitores ou ouvintes depende tanto do que eles prprios aportam transao

    que estabelecem com o texto, quanto do que o autor aportou a ele:

    A nfase que Goodman coloca na reconstruo do texto por parte do

    leitor procura voltar curvar a vara em relao posio oposta, at ento

    hegemnica, e ainda em vigor (que desenvolvemos mais frente). Suas

    afirmaes so resultantes de vrias dcadas de pesquisas nas quais, junto

    a outros estudiosos, como Yetta Goodman, Donald Graves, Lucy Mc Calkins,

    Louise Rosenblatt e Frank Smith, desenvolveram indagaes ao analisarem

    miscues ou erros (variaes das crianas ao lerem em voz alta, com base

    em pistas contidas no prprio texto) e ao aplicarem o teste de Cloze (tcnica

    aplicada para avaliar o processo de compreenso). Eles constroem um modelo

    que denominam sociopsicolingustico transacional,2 no qual explicam as

    chaves do sistema lingustico colocadas em jogo pelos leitores para construir

    significados (grafofnicas, lxico-gramaticais, semntico-pragmticos), as

    estratgias lingusticas utilizadas (reconhecimento, amostragem e seleo,

    2 As primeiras publicaes que conseguimos identificar nas quais consta o modelo citado

    datam do incio de 1980 (GOODMAN, 1984).

    A compreenso ser influenciada pela habilidade do escritor de construir o texto

    e do leitor de reconstru-lo e atribuir-lhe um significado. Mas isso no passa do

    escritor para o leitor. (GOODMAN, 1994, p.26)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Whole language: contra a patologia do erro e do treinamento de habilidades e competncias isoladas

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 93

    inferncia, predio, confirmao, correo) e os ciclos do processo de leitura

    (visual ou ptico, perceptual, sinttico e semntico).3

    Nesse modelo, o foco inicial de interesse a leitura nutre-se

    progregressivamente de investigaes sobre os textos, o processos de escrita,

    a diversidade sociolingustica e a alfabetizao. No obstante, as prticas

    vinculadas a essa teoria no se reduzem a cada uma dessas disciplinas, mas

    se constroem em um marco de referncia que leva a inmeras propostas e

    experincias em escolas e redes de escolas nos Estados Unidos da Amrica,

    Canad, Austrlia, Nova Zelndia, Inglaterra e Amrica Central. Alm disso,

    influencia outras posies em pases da Amrica Latina (especialmente na

    perspectiva construtivista).

    O movimento conhecido como Whole Language, ou Linguagem Integral,

    porque a ideia bsica que toda a linguagem se entrelaa, integral,

    separando-se, assim, do modelo de instruo de habilidades especficas

    isoladas. Em seu clebre artigo El lenguaje integral: un camino fcil para el

    desarrollo del lenguaje (1990) [A linguagem integral: um caminho fcil para o

    desenvolvimento da linguagem], K. Goodman (1990) apresenta um panorama

    da aprendizagem, do ensino e da linguagem. Contra todo o atual paradigma

    cognitivista vigente, ele proclama uma de suas mais clebres e provocativas

    frases: No existe hierarquia alguma de destrezas e subdestrezas nem uma

    sequncia universal obrigatria (GOODMAN, 1990, p. 11).4

    Na construo de situaes de ensino coerentes com essa perspectiva, a

    Whole Language colaborou significativamente com a introduo em sala de

    aula de mltiplas situaes de ensino hoje familiares: As aes autnticas de

    alfabetizao tm de se converter no foco da atividade diria da escola, tais

    como assinar em um papel, arquivar materiais, escrever receitas e cardpios,

    escrever prescries mdicas, registrar experincias e experimentos, fazer

    excurses em centros comerciais para registrar o que as pessoas leem, falar

    sobre as vrias experincias de leitura e escrita nas quais as crianas e os

    pais se envolvem, em casa e na comunidade, sem desconsiderar um centro

    de edio para cada aula (GOODMAN, 1991, p.5).5

    Assim, a Whole Language enfatiza o uso de estratgias ensinadas em contextos

    3 Para uma exposio detalhada, ver K. GOODMAN (1994).4 importante lembrar que, at ento, o exerccio das habilidades e destrezas isoladas

    no era posta em questo.5 Goodman d continuidade, desse modo, a uma longa tradio pedaggica voltada para

    o sentido das situaes de leitura e escrita nas quais o referente mais conhecido ,

    certamente, Clestin Freinet.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 94

    significativos, nos quais a ateno a unidades menores (a segmentao da

    linguagem em partes, incluindo os fonemas) aparece no contexto de prticas

    de leitura e escrita, e a servio das necessidades dos alunos em dar sentido

    aos textos ou produzi-los. Diz K. Goodman: os professores de linguagem

    integral tratam as partes da linguagem letras, sons, frases, oraes de

    forma integrada no contexto real de uso da lingua. Essa ateno no supe,

    nessa perspectiva, forar as crianas a analisarem [a linguagem] como um

    linguista (1990, p.9).

    Aquilo que, precisamente, compreende-se por unidades menores, bem

    como a forma de explor-las um dos principais pontos de discusso entre as

    teorias. A Whole Language foi duramente criticada pelos chamados modelos

    de ensino direto (CHALL, 1993), que consideravam que a linguagem integral

    sustentava um ensino incidental ou on demand. A essa crtica, Goodman

    (1993, p. 23) responde que:

    A Whole Language posiciona-se contra a norma fixa e reivindica a variabilidade

    da linguagem, considerando que o erro parte do aprendizado, e, a

    diversidade lingustica, uma fonte de enriquecimento e de conhecimento: v

    evoluo onde antes havia desvio (GOODMAN, 1994).6

    Quando se trata de escrever, a Whole Language tambm assume que o erro e o

    desvio so partes do processo. Assim, compartilha a perspectiva de Emergent

    Literacy (TEALE; SULZBY, 1986) e, posteriormente, tambm adere teoria

    6 As miscues [ou erros] so consideradas as variaes utilizadas pelo leitor, justamente

    por ser competente como usurio do idioma. Desde meados de 1960, K. Goodman

    comeou a construir um primeiro inventrio de miscues, que um instrumento utilizado

    para elaborar um plano de ensino que considere as capacidades construdas e as

    melhoras necessrias (Arellano OSUNA e K. GOODMAN, 1987).7 Grifo nosso.

    [...] o fonetismo constitui um conjunto de relaes entre dois sistemas semiticos

    fonologia e ortografia em uma lngua escrita alfabeticamente. Os leitores e escritores

    passam a controlar essas relaes medida que aprendem a dar sentido linguagem

    escrita. No sou contra a decodificao. [...] A linguagem integral no exclui a leitura

    fontica. abrangente e, portanto, a inclui.

    Os professores que aderem corrente da linguagem integral [...] rejeitam as

    abordagens negativas, elitistas e racistas de pureza lingustica que limitariam

    as crianas a uma linguagem correta eleita arbitrariamente [...] Esta condio

    [...] confunde a eficcia da linguagem com o status de quem a fala, pois se

    considera melhor a linguagem das pessoas que tm poder e determinada

    posio social 7[...] As atitudes sociais fazem com que a linguagem seja reflexo de

    suas atitudes. (GOODMAN, 1990, p.10)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Conscincia fonolgica: contra a desateno ao ensino de habilidades bsicas

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 95

    psicogentica sobre a apropriao da escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1979).

    De modo que, tanto do ponto de vista psicolingustico quanto sociolingustico,

    a Whole Language deu uma enorme contribuio despatologizao do erro,

    rompendo o crculo que naturaliza e legitima a relao pobreza-fracasso.

    Apesar das objees, as ideias da Whole Language enraizaram-se em milhares

    de professores e deixaram legados inegveis: a nfase na leitura do adulto tal

    como se faz em casa, as bibliotecas de sala de aula e os verdadeiros livros

    no lugar dos livros didticos, as prticas lingusticas compreendidas como

    um todo, no direta nem facilmente separadas em habilidades, a localizao

    do erro no plano de desenvolvimento em lugar do plano da deficincia ou

    da dificuldade... so algumas de suas contribuies.

    Como toda teoria e todo movimento, avana sobre alguns aspectos e se

    detm ou detido em outros.

    Conscincia fonolgica: contra a desateno ao ensino de habilidades bsicas

    Para a perspectiva cognitivista, centrada na descrio cada vez mais detalhada do

    processamento da leitura, ler extrair significado, e mesmo que isto implique

    a mobilizao de conhecimentos lxico-semnticos, sintticos e pragmticos,

    somente os primeiros so especficos da leitura, porque so os que permitem

    identificar as palavras escritas. Os outros servem tambm para compreender a

    lngua, pois o processamento da frase totalmente automtico, mas saber ler

    mais que entender a frase, entender a frase escrita:

    Observa-se que, para o autor, ainda que no seja explcito, no caso do

    bom leitor no possuir o conhecimento da lngua e da cultura tambm o

    mecanismo de identificao de palavras ficaria restrito. Mas, por outro lado,

    ao definir o mau leitor, s se atribui a causa ao mecanismo de identificao

    A diferena fundamental que distingue aquele que sabe ler daquele que no sabe

    a capacidade de atribuir sentido preciso a cada uma das palavras escritas que

    compem a frase. Os conhecimentos sintticos e pragmticos so indispensveis

    para ler, mas no so o saber ler, mas o conhecer a lngua em que se l. Nessa

    abordagem, aprender a ler criar um mecanismo capaz de identificar de forma

    eficaz todas as palavras escritas que o leitor conhece oralmente. Para o bom leitor,

    o mecanismo funciona bem e, graas a ele, sua compreenso de textos ser to

    boa quanto seu conhecimento da lngua, sua inteligncia e sua cultura permitem.

    Para o mau leitor, a identificao das palavras funciona mal e, por isso, reduz-se

    inevitavelmente a sua compreenso de textos. (ALEGRIA, 2010, p.39)

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 96

    de palavras, sem jogar com o conhecimento lingustico, cognitivo e cultural.8

    Alm disso, para poder identificar palavras, o leitor deve reconhecer que

    expresses como mar e bar so palavras diferentes, mas isto no implica

    conscincia fonolgica, j que o exerccio automtico do processo de fala

    permite a discriminao. O que faz falta reconhecer que mar e bar tm trs

    fonemas e que se distinguem apenas pelo primeiro. Isto o que realmente

    constitui atividades metafonolgicas que exigem anlise consciente da

    estrutura fonolgica da palavra. (ALEGRIA, 2010, p.39). Ou seja, a chave

    para ler a preciso do reconhecimento visual das marcas escritas que, uma

    vez identificadas, podero ser compreendidas.

    Na Amrica Latina, nessa mesma perspectiva, diz ngela Signorini (1998,

    p.6), citando J. Gombert (1990), que a conscincia fonolgica faz parte dos

    conhecimentos metalingsticos, e que ela no se desenvolve ao mesmo tempo

    em que se aprende a produzir e a perceber a fala. Em sentido mais especfico,

    seria a capacidade de ser consciente das unidades em que possvel dividir

    o discurso: desde palavras que compem as frases at unidades menores: os

    fonemas (conscincia fonmica) (DEFIOR, 1996, p.50-51).

    Desse modo, duas questes centrais norteiam os debates com outras

    perspectivas e nessa mesma linha: as caractersticas das tarefas de instruo

    e a relao entre reflexo fonolgica e apropriao da leitura. Por sua vez, essa

    linha discute fortemente com os desenvolvimentos tanto psicolingusticos

    quanto didticos da Whole Language e do construtivismo psicogentico.

    Originalmente, na relao com as caractersticas das tarefas de instruo, essa

    teoria assume posio radicalmente oposta antecessora. Interessa-se pelo

    diagnstico da capacidade de isolar os fonemas, j que a considera a chave do xito

    na aprendizagem da leitura; por outro lado, prope-se o exerccio de treinamento

    como meio para possibilitar essa aprendizagem. Silvia Defior assinala que as tarefas

    diagnsticas tambm podem servir de guia para o planejamento atividades de

    instruo que levem ao desenvolvimento das habilidades fonolgicas (1996, p.50).

    Essas tarefas so: comparao da durao acstica das palavras, identificao

    da quantidade de palavras de um enunciado, identificao de unidades dentro

    das palavras ouvidas, identificao de rimas orais, classificao de palavras por

    seus sons iniciais, sntese dos sons, identificao do som inicial, quantidade de

    sons em uma palavra, anlise de palavras pela sonoridade, sons agregados em

    8 Na perspectiva da conscincia fonolgica, a pesquisa sobre a leitura e sua apropriao

    supe tambm investigar suas dificuldades, de modo a precisar os mecanismos

    implicados no processo de leitura dos bons e dos maus leitores.

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Conscincia fonolgica: contra a desateno ao ensino de habilidades bsicas

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 97

    uma palavra, substituio e supresso de unidades, especificao de unidades

    suprimidas, inverso de unidades, pronncia lenta para separar sons. Uma das

    caractersticas especficas que raramente essas tarefas se realizam com apoio

    da escrita; em geral, analisam-se emisses orais. Assim, quando se julga que uma

    palavra maior que outra, suprime-se uma unidade para ver como a palavra fica

    o que se faz julgar como soaria sem uma de suas partes. Analisar unidades

    menores, nessas tarefas, significa analisar a oralidade; somente quando essa

    anlise est tendo sucesso que se passa a escrever, de tal modo que a anlise da

    oralidade se constitui em pr-requisito.

    No entanto, a relao entre reflexo fonolgica e aquisio da leitura objeto

    de debate interno na linha de estudo: ou bem a conscincia fonolgica

    precede a aquisio da leitura (precedncia que pode ser definida de diversas

    formas facilitar, correlacionar, provocar...), ou bem as relaes so mais de

    reciprocidade. Segundo Signorini (1998, p.17), podem-se fazer trs tipos de

    relao entre conscincia fonolgica e escrita:

    Depois de se referir a numerosas pesquisas que exemplificam as posies

    assinaladas e julgar seus resultados em relao metodologia empregada, a

    autora adverte que essas relaes foram se reformulando: [a conscincia

    fonolgica] [...] est formada por um conjunto de habilidades de diferentes

    nveis de dificuldade e diferentes ordens de emergncia no desenvolvimento, e

    as tarefas empregadas para medi-las variam em relao s demandas cognitivas

    que impem. Considerando o exposto, conclui, citando Perfetti (1991):

    9 Grifo nosso.

    Do ponto de vista terico, pode-se argumentar que a habilidade para analisar a

    estrutura fonolgica das palavras faladas facilitaria criana a descoberta do

    princpio alfabtico. O argumento contrrio que o contato com a escrita alfabtica

    fornece conhecimentos explcitos acerca da estrutura fonolgica da linguagem oral,

    que complementa o conhecimento implcito nos processos de produo e recepo

    da fala. A terceira possibilidade que a conscincia fonolgica, a leitura e a escrita

    se desenvolvem de forma recproca.

    [...] o desenvolvimento de algumas habilidades fonolgicas pode preceder o

    ensino da leitura em muitas crianas. Nessa categoria inclui-se, por exemplo,

    sensibilidade a slabas e rimas, que envolve um nvel mais global ou menos

    analtico de conscincia fonolgica. Em outro extremo do continuum, a habilidade

    de manipular fonemas (supresso, inverso) parece requerer a exposio da

    escrita. (SIGNORINI, 1998, p.20)9

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 98

    Nessa mesma hiptese de reciprocidade, Jess Alegra (2010) enfatiza os

    resultados obtidos por Peter Hatcher e seus colaboradores (1994), que:

    A hiptese de reciprocidade no compartilhada por todos os pesquisadores

    da mesma linha, mas a partir deste sculo, o mais frequente, tanto nos

    Estados Unidos da Amrica como na Amrica Latina e na maioria dos pases

    centrais, que os desenvolvimentos didticos assumam a posio segundo

    a qual a conscincia fonolgica precede e guia a aprendizagem da leitura.1210

    11 12

    10 Grifo nosso. Enfatizamos ainda que esse autor, plenamente identificado com a perspectiva da

    conscincia fonolgica, no considera adequado um treinamento exclusivamente oral, sem

    que se inclua a exposio escrita como meio facilitador (sem especificar de que tipo de

    exposio se trata). 11 Em igual sentido, as pesquisas pioneiras de outros representantes orientam-se nessa

    mesma linha. As mais difundidas foram aquelas realizadas com adultos iletrados

    (MORAIS et al., 1979), e com chineses adultos (READ et al., 1986). Apesar disso, nenhum

    desses autores admite que a informao linguistica guie a informao visual e, sim, que

    a compreenso sempre posterior ao processamento visual.12 Em grande parte, isso se deve a iniciativas como No Child Left Behind ou National

    Reading Panel (2000) Teaching children to reed: an evidence based-assessment of the

    scientific research literature on reading and its implications for reading (U.S. Department

    of Health and Human Services Public Health Service National Institutes of Health National

    Institute of Child Health and Human Development), com a constituo de comisses de

    especialistas para decidir quais eram as evidncias cientficas disponveis sobre a melhor

    [...] implementam um programa de treinamento (40 sesses de 30 minutos em

    um perodo de 20 semanas) com grupos de crianas de 7 anos que apresentavam

    problemas de leitura. O grupo fonologia dedicava a totalidade das sesses de

    treinamento s atividades metafonolgicas sobre fonemas, slabas e rimas. O

    grupo fonologia leitura recebia treinamento metafonolgico semelhante, mas

    parte do tempo era destinada para colocar em prtica a relao entre unidades

    fonolgicas e ortogrficas, isto , apresentava-se material escrito que podia

    se relacionar com as unidades fonolgicas.10O grupo leitura utilizava todo

    o tempo do treinamento em atividades de leitura e escrita, sem fazer aluso s

    relaes entre essas atividades e a fonologia. Os resultados mostram que apenas

    o grupo fonologia leitura alcanou resultados em leitura superiores ao grupo

    de controle, que no havia recebido nenhum tratamento particular e seguia

    seus cursos normalmente em sala de aula. A superioridade do grupo fonologia

    leitura foi observada em tarefas de leitura de pseudopalavras, de palavras

    isoladas, em contexto e em compreenso de textos. Isto , as intervenes

    para potencializar as habilidades fonolgicas tm de se integrar ao ensino da

    leitura para alcanar uma eficcia mxima na melhoria das habilidades de

    alfabetizao. interessante notar que empregar todo o tempo disponvel para ler

    e escrever menos eficiente do que dedicar parte do tempo a praticar atividades

    metafonolgicas, sobretudo com crianas que apresentavam problemas de

    aquisio da leitura. (ALEGRIA, 2010, p.40) 11

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Conscincia fonolgica: contra a desateno ao ensino de habilidades bsicas

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 99

    Na sequncia dos trabalhos relatados em Leitura e Vida, publicao

    especializada em leitura e escrita com ampla circulao na Amrica Latina,

    pode-se rastrear o debate na regio. Em 1984, Ana Maria Borzone e Susana

    Gramigna replicaram o paradigma experimental de Isabelle Liberman (1972)

    com crianas da cidade de Buenos Aires. Liberman concluiu que [...]

    existe uma correlao significativamente positiva entre a habilidade para

    segmentar fonemas e as conquistas alcanadas na aprendizagem da leitura

    e da escrita. (1984, p.6). Na pesquisa com as crianas de lngua espanhola,

    Borzone e Gramigna concluem, de forma coincidente, que a dificuldade para

    a segmentao fonolgica maior se comparada silbica13 e que o acesso

    estrutura fonolgica e silbica da lngua resultado no s do processo de

    maturao [...] mas tambm de treino14. (BORZONE; GRAMIGNA, 1984, p.14)

    Em 1988, Borzone e Signorini apresentaram outra experincia na qual

    assinalaram: [...] no se trata de uma relao causa-efeito..., mas de um

    fator facilitador da aprendizagem. Seguindo Liberman, a forma de facilitar

    consistiria em [...] uma vez que as crianas compreendem a natureza da fala

    sua estrutura segmental , descobrem com mais facilidade de que maneira

    a escrita representa a linguagem. Isto , no se trata de um modelo recproco,

    mas de prioridade ainda que em sentido lasso, facilitador (1988, p.7). A

    seguir, sustentam: evidente que a linguagem escrita proporciona criana

    esquemas para conceituar e analisar a estrutura da fala (1988, p.4). Nessa

    afirmao, parecem se aproximar de uma postura de reciprocidade. Contudo,

    tanto nesse artigo como em pesquisa precedente em colaborao com outra

    autora (GRAMIGNA; MANRIQUE, 1984), Borzone sustenta que a prtica para

    as crianas pr-leitoras no est centrada na linguagem escrita, mas que

    consiste em exerccios orais de anlise e sntese de palavras e oraes,

    que se baseia em repetir em voz alta as palavras, descobrindo segmentos

    no materializados em um diagrama que reproduz a estrutura fonolgica da

    palavra (BORZONE; SIGNORINI, 1988, p.9).15

    maneira de se ensinar a ler. A primazia da perspectiva da conscincia fonolgica sobre

    outras perspectivas tericas deve-se, em grande parte, a evidncias que somente se

    admitem naqueles resultados que se projetam de um paradigma experimental clssico,

    em que um desenho experimental correto e o controle de variveis garantiriam um

    resultado cujos fundamentos tericos no precisam ser colocados em debate. 13 Todas as linhas de pesquisa concordam que a conscincia oral da slaba precoce e no

    parece necessitar de nenhuma instruo.14 Termo que se refere ao ensino como instruo direta. 15 Tarefa muito empregada nessa perspectiva, desde o comeo da dcada de 1970

    (ELKONIN, 1973), divulgada amplamente nos trabalhos de Berta BRASLAVSKY (2006). No

    princpio, o resultado da experincia que, ao escreverem as palavras desconhecidas

    que eram propostas, as crianas que receberam os exerccios empregaram estratgias

    de anlise em maior porcentagem quando comparadas quelas que no os receberam

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 100

    Em seus ltimos trabalhos, esse grupo de pesquisadores sustenta

    categoricamente que, se as crianas desenvolvem conscincia fonolgica,

    podem inferir as correspondncias letras-sons, caracterizando essa postura

    como uma reformulao do mtodo fnico, contrapondo-se ao mtodo global,

    atribudo linguagem integral e ao desenvolvimento didtico da perspectiva

    psicogentico-construtivista (explorados a seguir). Destaca-se que:

    Nesse artigo, reafirma-se a controvrsia com outras posturas tericas.

    Segundo as autoras,

    As autoras estimam que a perspectiva psicogentica acarrete implicaes

    educativas arriscadas porque interpretam que nessa teoria:

    Sua proposta incorpora, especialmente a partir da dcada de 1990, teorias

    que do conta de outros aspectos, tanto do sujeito da aprendizagem

    quanto do objeto de ensino. Entre os inmeros aspectos a considerar,

    (BORZONE; SIGNORINI, 1998). Mas a interpretao dos resultados, como em qualquer

    pesquisa, pode variar. Assim, sobre esse mesmo estudo, SIGNORINI (1998) assinala, em

    apoio s hipteses de reciprocidade, que se observou que a escrita das palavras de modo

    convencional mais fcil do que a segmentao fonolgica.16 Grifos nossos. Enfatizamos essa afirmao j que, hoje, nem mesmo nessa teoria a

    necessidade de ensinar letra a letra sustentada.

    [...] o mtodo fnico foi reformulado em termos psicolingusticos no contexto

    das pesquisas relativas conscincia fonolgica. [...] A partir dessa perspectiva,

    estabelece-se que, se as crianas desenvolvem a conscincia fonolgica, podem

    inferir as correspondncias letras-sons. Por isso no necessrio o ensino

    sistemtico das correspondncias, como sustenta o mtodo fnico [em suas

    verses anteriores]. da que a concepo da conscincia fonolgica converte-

    se na superao do mtodo fnico, e no pode se confundir com ele. (DE MIER;

    SNCHEZ ABCHI; BORZONE, 2009, p.1-2)16

    [...] a linguagem integral, ou mtodo global, questiona a aprendizagem da leitura

    e da escrita com base em unidades isoladas e abstratas como os fonemas, em prol

    de uma abordagem global do texto, que tenta enfatizar o significado e diminuir

    a ateno sobre as unidades lingusticas que no tm significado. (DE MIER;

    SNCHEZ ABCHI; BORZONE, 2009, p.1)

    [...] a reflexo e a anlise que permitem a aprendizagem da escrita dependem

    fundamentalmente das alteraes nos esquemas de aprendizagem com os quais

    a criana opera diante dos objetos de seu entorno. No caso da escrita, depender

    do material escrito disponvel para a criana durante a aprendizagem... (DE MIER;

    SNCHEZ ABCHI; BORZONE, 2009, p.5)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Conscincia fonolgica: contra a desateno ao ensino de habilidades bsicas

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 101

    particularmente importante a incorporao da perspectiva assumida sobre

    o ensino da escrita (SNCHEZ ABCHI; BORZONE, 2010). Seguindo a mesma

    linha cognitiva de identificao cada vez mais detalhada de processos e

    subprocessos executados pelo sistema cognitivo, alm dos modelos

    mais conhecidos e compartilhados por todas as teorias sobre o processo

    redacional, destaca-se o modelo de Virginia Berninger, que retoma e

    modifica o modelo de Hayes e Flower para dar conta dos processos de escrita

    nas etapas precoces de aprendizagem. Berninger distingue, no processo de

    traduo ou de textualizao, dois subprocessos: de gerao textual,

    que supe a transformao de ideias em linguagem, e de transcrio, que

    integra os processos de nvel inferior. Na transcrio, envolvem-se habilidades

    de codificao ortogrfica e habilidades grafomotoras para o traado das

    letras, no consideradas no modelo de Hayes e Flower.17 Ressalta-se que,

    como argumentado nos modelos clssicos, quando essas habilidades

    no esto automatizadas, a criana deve dedicar muita ateno memria

    operativa.... Por isso, nas primeiras sries, a textualizao depende no

    s da coordenao das habilidades lingusticas e ortogrficas, mas tambm

    do grau de automatizao de tal coordenao (SNCHEZ ABCHI; BORZONE,

    2010, p.3).18 Retoma-se, assim, o modelo de habilidades inicialmente

    mencionado, reformulado com a linguagem de modelos cognitivos.

    Com essa e outras contribuies, elaboram uma proposta pedaggica

    integradora,19 que inclui mais que os exerccios destacados inicialmente

    para treinamento em conscincia fonolgica. Nessas propostas, afirma-

    se que as habilidades consideradas de nvel inferior devem ser atendidas

    simultaneamente com as denominadas de nvel superior, por meio de

    intervenes assim classificadas:

    na transcrio ou nvel inferior:

    o atividades de conscincia fonolgica jogos e atividades com

    rimas, busca de palavras que compartilhem sons, reconhecimento

    de sons intrusos etc;

    o traado uso de cadernos que facilitem as habilidades motoras a

    partir de atividades de complemento de desenhos, de resoluo de

    labirintos e de traado de letras;

    17 Que no se ocupam de crianas no processo de alfabetizao.18 Ressalve-se que o modelo de Berninger no leva em conta o papel do contexto na

    produo nem atende aos processos linguisticos envolvidos.19 Ver, por exemplo, BORZONE; ROSEMBERG (2000); BORZONE et al., 2004.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 102

    o escrita de palavras no contexto das atividades de produo

    textual;

    na composio ou nvel superior: produo de textos desde o incio da primeira srie, a partir da situao de Escrevam o que ditamos at a

    condio de escrita independente.

    Por outro lado, as posturas diante da diversidade lingustica, que veiculam

    uma concepo sobre as relaes lnguas orais-lnguas escritas, podem

    ser averiguadas no trabalho de grupo sobre os problemas especficos da

    alfabetizao em contextos em que se fala uma variedade do espanhol muito

    marcada por um substrato de lngua verncula ou em setores urbanos

    marginais (BORZONE; ROSEMBERG, 2000; ROSEMBERG et al., 2007). Com

    base em estudos de natureza etnogrfica, identificam-se diferenas na

    mediao cultural, na estrutura social e nas formas de interao, no sistema

    de valores e nos estilos de linguagem. Constatadas as diferenas entre a casa

    e a escola, pretende-se facilitar o ingresso da criana alfabetizao por

    meio de uma proposta de alfabetizao intercultural, sustentada em uma

    srie de diferentes livros de leitura escolar que reflitam o cotidiano da criana

    daquela rea, seu dialeto, costumes, conhecimento e meio familiar. O

    narrador emprega o dialeto-padro enquanto que, na transcrio dos dilogos

    dos protagonistas da comunidade, observa-se uma escrita que transgride a

    norma para aproxim-la de alguns traos da fala dessas comunidades. Isto

    , o modo facilitador supe duas operaes: por um lado, a proximidade do

    contedo referido (a vida cotidiana da criana); por outro, a transcrio da

    fala na escrita, operao complexa quando se pretende ir alm do lxico para

    dar conta da pronncia, a menos que, como nesse caso, se parta da ideia de

    que a lngua escrita reflete a oralidade.

    Por outro lado, do ponto de vista pedaggico, estamos diante de uma postura

    que considera a necessidade de dar formato escolar, em livros didticos, s

    formas culturais externas escola ideia contrria de levar escola a cultura

    oral e escrita das comunidades para incorpor-la como objeto de reflexo.

    Investigao psicogentica sobre a escrita: contra a reduo da lngua

    escrita a um cdigo de correspondncias

    Em 1979, publicado o livro Los sistemas de escritura en el desarrollo del

    nino (Psicognese da lngua escrita), de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky,

    obra que inaugura a pesquisa psicolingustica relativa aquisio da lngua

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Investigao psicogentica sobre a escrita: contra a reduo da lngua escrita a um cdigo de correspondncias

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 103

    escrita com base na perspectiva psicogentica.20 Em um artigo publicado em

    1981, explicam de que maneira se apoiam no marco conceitual da teoria

    psicogentica de Piaget para compreender os processos de construo de

    conhecimento da lngua escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1981, p.6). Quatro

    anos depois, Ferreiro publica um artigo que engloba os resultados das duas

    pesquisas iniciais mais importantes at o momento: os estudos transversais

    prvios envolvendo crianas argentinas, citados no livro de 1979, e um

    estudo longitudinal com mil crianas mexicanas com idade entre trs e sete

    anos (FERREIRO; GMEZ PALCIO, 1982).

    Um dos conceitos centrais da teoria piagetiana construo , explicado

    por Ferreiro (1991), quando se refere lngua escrita. Afirma que ele utilizado:

    Quando fala de escrita, diz Ferreiro, no se refere apenas produo de

    marcas grficas por parte das crianas; tambm falo da interpretao dessas

    marcas grficas. Ela enfatiza ainda o tipo de dado sobre o qual se constri a

    teoria: preciso cotejar uma srie de produes escritas e conhecer as

    condies de produo, o processo de produo e a interpretao final dada

    pelo sujeito. Ao tratar esse dado luz de uma teoria:

    A respeito da progresso, afirma que se h grandes variaes nas idades

    de surgimento dessas conceitualizaes, as sequncias parecem ser

    regulares e que [...] possvel falar de uma relao de filiao entre

    esses modos de conceitualizao, entendendo que uma filiao mais 20 A primeira pesquisa foi realizada em Buenos Aires (Argentina) entre 1974 e 1976, com a

    colaborao de Susana Fernndez, Ana Kaufman, Alicia Lenzi e Liliana Tolchinsky.

    [...] como Piaget o utilizou quando falou da construo do real da criana, ou

    seja: o real existe fora do sujeito, mas preciso reconstru-lo para conquist-lo.

    exatamente isso que se tem descoberto que as crianas fazem com a lngua

    escrita: tm de reconstru-la para poder se apropriar dela. [...] Quando falamos

    de construo da escrita da criana, no estamos falando de emergncia

    mais ou menos espontnea de ideias engenhosas, ideias curiosas, ideias s

    vezes extraordinrias que os pequenos tm [...]. Algo muito importante e pouco

    compreendido que um processo construtivo envolve processos de reconstruo,

    e que processos de coordenao, de integrao, de diferenciao etc, tambm so

    processos construtivos. (FERREIRO, 1991, p.5)

    [...] possvel falar de processo de construo, no caso da lngua escrita, porque

    se pode identificar a existncia de conceitualizaes infantis que no possvel

    explicar por uma leitura direta dos dados do ambiente, nem por transmisso de

    outros indivduos alfabetizados [e afirma que] essas conceitualizaes tm um

    carter muito geral e aparecem em crianas expostas a ortografias diferentes, a

    sistemas educativos diferentes e a condies socioculturais muito diversas. Isso no

    exclui as especificidades. (FERREIRO, 1991, p.7)

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 104

    que uma simples sucesso porque, nesse caso, explicam-se quais so as

    relaes de precedncia que permitem abarcar o novo como algo construdo

    anteriormente (FERREIRO, 1991, p.7).21

    Desde o incio, de modo crescente e cada vez mais explcito, o marco scio-

    histrico desempenha papel fundamental na compreenso do processo, por

    conta como se mencionou da especificidade do objeto. Para isso,

    distancia-se da verso banalizada da histria da escrita:

    Ao contrrio, concebe a escrita como um sistema de marcas ou sinais social

    e culturalmente construdo que a criana precisa reconstruir. A histria

    da escrita na qual se apoia Ferreiro no linear nem est desprovida de

    condicionantes materiais, de desigualdades, de conflitos de poder.

    Nos debates sobre conscincia fonolgica, a teoria enfatiza que cada vez

    mais claro que a relao entre nveis de segmentao da fala e escrita uma

    relao dialtica e no linear. Explica Ferreiro (2004, p.8):

    Por esse motivo, posiciona-se repudiando a reduo da lngua escrita a

    um cdigo de correspondncias (segundo a definio dos linguistas, nem

    todas as letras correspondem a fonemas e muito menos a unidades isoladas

    21 O trabalho contm breve resumo das conceituaes sucessivamente identificadas at o

    momento e enumeram-se os primeiros avanos da tese de Sofa Vernon. Vrios trabalhos

    publicados na revista Lectura y Vida abordam outros tantos progressos na espeficicao

    das diferentes conceituaes, incluindo os relacionados anlise da slaba em funo da

    escrita em momentos da crise da hiptese silbica. (FERREIRO, 2009).

    Felizmente a pesquisa atual est nos distanciando das verses tradicionais da

    histria da escrita, considerada como uma caminhada inevitvel at o alfabeto,

    e est nos distanciando tambm da viso tradicional que nos apresentava o

    sistema alfabtico como o nico sistema que acumula todas as virtudes sem

    nenhum defeito: simples, econmico, preciso, o alfabeto nos levaria pela mo at

    a alfabetizao universal, o pensamento racional, a cincia contempornea... e

    democracia. (Ferreiro, 1994, p.5)

    ... na interao com a escrita, os dois nveis de anlise cruciais (a anlise em

    palavras grficas e a anlise das palavras em segmentos no significativos)

    tornam-se relevantes. para compreender a escrita tal como a praticamos que

    preciso descobrir que aquilo que na escrita se chama de palavras no se refere

    unicamente a segmentos isolados na emisso porque os artigos, as preposies e

    as conjunes devem fazer parte da definio de palavra, ainda que no tenham

    significao autnoma. para compreender a escrita tal como existe na sociedade

    que preciso descobrir que a segmentao das palavras vai alm da slaba

    unidade natural e deve se localizar em um nvel abstrato (porque muitas vezes

    impronuncivel) de diferenciaes dificilmente audveis e poucas vezes visveis ao

    nvel da articulao.

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Investigao psicogentica sobre a escrita: contra a reduo da lngua escrita a um cdigo de correspondncias

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 105

    na emisso) a equao conscincia fonolgica = mtodo fnico, porque

    despreza a criana, que s pode ser treinada e impossibilitada de descobrir

    por si mesma; a dicotomia mtodo fnico/mtodo global e a negao da

    capacidade da criana de compreender a escrita pelos seus esforos para

    produzir escrita (FERREIRO, 2004, p.8).

    Para demonstrar a natureza dessa relao dialtica e no linear e mostrar

    que um nvel mnimo de reflexo sobre a lngua exigido pela escrita que,

    por sua vez, prov um modelo de anlise que exige refinamento sobre

    a reflexo inicial realiza, com Sofa Vernon, uma pesquisa que analisa as

    relaes entre os nveis de conceitualizao da escrita e das possibilidades

    de segmentao oral (VERNON; FERREIRO, 1999), incluindo a segmentao

    que estuda a conscincia fonolgica. Propem tarefas de segmentao oral

    de dois tipos: diante de desenhos e de cartes com escrita, e analisam as

    respostas de crianas com idades prximas, mas em diferentes nveis de

    conceitualizao da escrita (desde pr-silbicos com controle quantitativo at

    alfabticos com valor sonoro convencional). Classificando todas as respostas,

    no somente em termos de corretas ou errneas, elas concluem que quanto

    mais analticas, mais evoludo o nvel de conceitualizao da escrita, e que,

    no caso de crianas com nvel igual de conceitualizao, as respostas mais

    avanas so obtidas quando a segmentao oral se realiza diante de um

    esttmulo escrito (esses resultados tambm foram obtidos em ingls e em

    portugus). Por isso seria equivocado afirmar que essa perspectiva nega a

    existncia da conscincia fonolgica, mas que a entende como um ponto de

    chegada e reconhece uma gnese que se constri em interao com a escrita

    e no custa de uma anlise da oralidade sobre si mesma.

    A teoria sobre a aquisio da lngua escrita por parte do sujeito levou desde

    suas primeiras formulaes a uma reconceituao da escrita e do status escolar

    da escrita: A escrita no um produto escolar, mas sim um objeto cultural,

    resultante do esforo coletivo da humanidade, objeto que se interpreta e se

    produz mesmo antes da escolarizao, j que a aprendizagem escolar se

    insere (ainda que no se saiba) em um sistema de concepes previamente

    elaboradas, e esse objeto no pode ser reduzido a um conjunto de tcnicas

    perceptivo-motoras. Mas j ento se adverte que a simples presena do

    objeto e das aes sociais no garante conhecimento, mas influem criando

    as condies para que isso seja possvel, ao mesmo tempo em que se

    assinala que as conceitualizaes infantis no podem ser atribudas a uma

    influncia direta do meio porque h conhecimentos especficos sobre a

    lngua escrita que s podem ser adquiridos com outros informantes (leitores

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 106

    adultos ou crianas maiores) (FERREIRO; TEBEROSKY, 1981, p.12).

    Outra grande influncia no campo educativo foi a despatologizao das

    escritas infantis e, paralelamente, da pobreza, j que se comea a compreender

    que aqueles que fracassam na escola (de forma massiva), os setores mais

    pobres, no so diferentes daqueles que tm xito:

    Por ltimo, em relao escola, a perspectiva histrica a leva a questionar a

    misso dessa instituio:

    A distncia de informao que separa um grupo social de outro no pode ser

    atribuda a fatores puramente cognitivos. Esta distncia diminui quando o que

    est em jogo o raciocnio da criana; aumenta quando se necessita contar com

    informaes precisas do meio. Na verdade, o sistema de escrita tem um modo social

    de existncia. Ainda que no seja necessrio contar com informao especial para

    se aprender uma atividade to natural como a de marcar (deixar traos sobre

    qualquer tipo de superfcie), e embora essas marcas estejam longe de constituir

    escritas em sentido exato, imprescindvel que a informao seja socialmente

    transmitida para conceituar aes to pouco transparentes como a leitura. A

    criana que cresce em um meio letrado est exposta influncia de uma srie

    de aes. E quando dizemos aes, neste contexto, queremos dizer interaes.

    (FERREIRO E TEBEROSKY, 1981, p.13)

    A principal tendncia foi equiparar igualdade homogeneidade. Se os cidados

    eram iguais perante a lei, a escola devia contribuir para produzir esses cidados,

    homogeneizando as crianas, independentemente de suas diferenas iniciais; no

    obstante transformar a diversidade conhecida e reconhecida em uma vantagem

    pedaggica: esse parece ser o grande desafio para o futuro, desafio considerado

    em construo e, ao mesmo tempo, indispensvel: alfabetizar, transformando em

    vantagem pedaggica as diferenas de idade em um mesmo grupo, as diferenas

    dialetais, as diferenas de lnguas e de culturas. (FERREIRO, 1994, p.11)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Estado atual do desenvolvimento didtico em alfabetizao inicial na perspectiva construtivista psicogentica

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 107

    Estado atual do desenvolvimento didtico em alfabetizao inicial na

    perspectiva construtivista psicogentica

    Como destacado, a pesquisa psicogentica teve impacto decisivo sobre

    as prticas de ensino na alfabetizao inicial. A explicao do processo de

    transformao construtivo em oposio s teorias que descrevem estados

    sucessivos uma das razes (de ordem epistemolgica) desse impacto. Para

    aproximar o ensino da aprendizagem, tornou-se essencial entender de que

    maneira se transformam as formas de compreenso do objeto que se ensina.

    Alm disso, ao explicar em que consiste o processo de todas as crianas,

    Ferreiro deu um novo sentido a profundas preocupaes poltico-pedaggicas

    pela incluso de todas as crianas nas prticas de leitura e escrita. Talvez

    por essa razo, essa perspectiva no apenas uma linha de pesquisa e uma

    proposta didtica, mas sim um movimento que conta com a participao de

    pesquisadores, docentes e polticos da educao de diversos nveis e origens.

    Na base do desenvolvimento do ensino construtivista encontra-se a pesquisa

    psicogentica, mas, como todo desenvolvimento didtico, no se nutre

    apenas de uma teoria. A especificidade do saber didtico a partir de uma

    perspectiva no aplicacionista supe agrupar elementos de distintas teorias

    no antagnicas do ponto de vista epistemolgico (ou alguns aspectos de

    teorias no to convergentes que podem ser novamente conceituados) e

    articul-los para fundamentar o ensino.

    A construo do conhecimento didtico provm de um movimento dialtico

    entre a ao didtica e a conceituao da ao. Muitas vezes, os problemas

    da prtica de ensino levam a buscar respostas que somente mais tarde so

    conceituadas como critrios, situaes, tipos de intervenes, etc. Outras

    vezes, a concepo origina-se em problemas da mesma teoria (didtica ou

    de referncia) e conduz prova e reformulao constante para validar

    nas salas de aula a possibilidade de desenvolvimento do que se concebe

    fora delas. Esse processo se desenvolve em vrios pases desde o comeo

    da dcada de 1980, tanto sob a forma de pesquisas didticas das quais

    necessariamente participam docentes como nos processos de formao

    contnua de professores, na elaborao de materiais para o ensino ou para a

    organizao de grades curriculares.22

    22 Na poca, elaboraram-se grades curriculares no Mxico, em Educao Pr-escolar (1992

    e 2004), Educao Bsica e Primria Indgena (2006) e Primria (2009); os Parmetros

    Curriculares Nacionais no Brasil (1997); as grades para Educao Bsica (Cidade de

    Buenos Aires, 1998) e Educao Primria da Provncia de Buenos Aires (2007), na

    Argentina.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 108

    Na dcada de 1980, as primeiras propostas testadas nas escolas

    desenvolveram-se quase simultaneamente no Mxico, na Venezuela e

    Espanha; mais tarde, na Argentina e no Brasil (KAUFMAN, 1988; KAUFMAN,

    GOMES PALACIOS, 1982; LERNER, CANESCHI et al., 1985 e 1981; TEBEROSKY,

    1982, 1984; TEBEROSKY et al., 1987).23

    Depois desses primeiros passos, poderamos dizer que a produo didtica

    floresceu na dcada 1990 e alcanou maior sistematicidade nos dias atuais.24

    Progressivamente, foi dando lugar a uma descrio cada vez mais detalhada

    de possveis prticas de ensino, ao mesmo tempo em que gerou uma srie de

    conceitos didticos cuja elaborao no foi concluda: os objetivos propostos,

    os tipos de situaes necessrias para alcan-los e de intervenes que o

    professor desenvolve para ajudar as crianas a avanarem, assim como das

    condies que se resguardam para tornar o ensino possvel.

    O objetivo principal formar alunos como praticantes da cultura escrita.

    Nesse sentido, a aspirao vai alm de uma mudana de mtodo ou de

    prescries para a aula: preciso organizar o ensino-aprendizado de forma

    distinta daquela que a escola construiu historicamente. Ao redefinir o objeto

    de ensino e os propsitos formativos, assume-se um projeto de escola, no

    23 No caso do Brasil, alm dessa perspectiva, uma linha parcialmente diferente tem sido

    desenvolvida por Magda Soares que, por caminhos diversos, considera que tanto os

    mtodos sintticos quanto os mtodos analticos concebem a leitura como um processo

    de decodificao, e a escrita como um processo de codificao de fonemas. A autora

    sustenta que a primeira ruptura se deu quando a teoria psicogentica esclareceu

    o processo de construo da criana sobre a lngua escrita como um sistema de

    representao, e todas as consequncias que essa ruptura acarretou para as prticas

    de alfabetizao. Mas, alm disso, ela introduz o conceito de letramento para pontuar

    a insufincia do conceito de alfabetizao em relao s aprendizagens da leitura e da

    escrita das prticas sociais e profissionais. No obstante, ela enfatiza que a apropriao

    do sistema alfabtico e ortogrfico da escrita (a alfabetizao), e o desenvolvimento das

    competncias e habilidades para o uso desse sistema nas prticas sociais reais de leitura

    e escrita (o letramento) devem ser processos conjuntos e indissociveis, distinguem-se

    em relao aos objetos de conhecimento, assim como com os processos cognitivos e

    lingusticos de aprendizagem. (SOARES, 2010) Alfabetizao e letramento so duas

    linhas de ao didtica que requerem situaes especficas. Para anlise detalhada, ver

    SOARES, 2003; 1998; 1986.24 Cabe aqu mencionar KAUFMAN et al., 1989; KAUFMAN, 1988 e 2007; PALACIOS DE

    PIZANI et al., 1992; LERNER, PALACIOS DE PIZANI, 1994; TEBEROSKY; TOLCHINSKY, 1995;

    CASTORINA et al., 1996; NEMIROVSKY, 2009; LERNER, 2001; TEBEROSKY; MARTNEZ,

    2003; TEBEROSKY; SOL, 2001; PELLICER; VERNON, 2004. Os estados nacionais e as

    cidades tambm formaram e continuam sendo organismos que difundem grande parte

    desse desenvolvimento. Alm da produo argentina mencionada, cabe destacar:

    SECRETARIA DE EDUCAO PBLICA DO MXICO (1984); ROCKWELL et al. (1989).

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Estado atual do desenvolvimento didtico em alfabetizao inicial na perspectiva construtivista psicogentica

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 109

    apenas de ensino, que convive e se tensiona com outros projetos, muitas

    vezes hegemnicos:

    Em consonncia com esse propsito, foi necessrio reformular o objeto de

    ensino como essas prticas sociais da linguagem, algo muito mais complexo

    e amplo do que a lngua contida nessas prticas, porque se aponta para

    as dimenses particulares do funcionamento da linguagem em relao s

    prticas sociais em geral, dado que a linguagem tem uma funo de mediao

    em relao a essas ltimas (LERNER, 2001). No se trata apenas de utilizar a

    linguagem para se comunicar nem s de exercer prticas por imerso, mas sim

    de faz-lo promovendo uma progressiva descontextualizao da linguagem

    colocada em jogo, em situaes que sempre cumprem com esse propsito

    didtico (em maior ou menor grau) e que, a princpio no necessariamente

    sempre tambm tm um propsito comunicativo que lhes d sentido

    imediato.25

    Um dos problemas didticos fundamentais como assumir como objeto de

    referncia as prticas sociais da leitura e da escrita no momento inicial da

    alfabetizao, quando as crianas ainda esto aprendendo a ler e a escrever.

    Como assinalam Kaufman (1998, 2007) e Lerner (1996, 2010), entre outros,

    um princpio didtico orienta a resposta para esse problema: desde o primeiro

    dia de aula, as crianas comeam a se formar como leitores e escritores; quer

    dizer, no h uma primeira etapa em que se aprende a ler e a escrever e, depois,

    outra em que se l e escreve realmente. Muito antes de haver compreendido

    as regras de composio do sistema alfabtico, isto , antes de ter aprendido

    a ler e a escrever sozinhas, as crianas participam de situaes em que o

    docente l em voz alta e dita diversos textos completos e com sentido para

    o aluno e, sobretudo, as crianas podem tentar ler e escrever com ajuda do

    professor e de fontes de informao disponveis, ainda que no o faam de

    forma convencional. Esse um dos problemas didticos fundamentais que

    essa perspectiva se prope a resolver, e um dos aspectos centrais em que

    se diferencia de outras propostas. Para solucionar esse problema, propiciam-

    se inmeras situaes que adquirem sentido em funo dos objetivos, das

    25 Sobre a transformao das prticas sociais em prticas escolares, alm dos textos de

    Delia Lerner citados, ver SCHNEUWLY; DOLZ (1997).

    Participar da cultura escrita supe apropriar-se de uma tradio de leitura e

    escrita, supe assumir uma herana cultural que envolve o exerccio de diversas

    operaes com os textos e a colocao em ao de conhecimentos sobre as relaes

    entre os textos; entre eles e seus autores; entre os prprios autores, os textos e seu

    contexto (...). (LERNER, 2001, p.25)

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 110

    caractersticas dos textos e das prticas a elas associadas.

    As situaes didticas so instncias de trabalho no concebidas como

    atividades isoladas em sala de aula, mas sim como momentos em que

    as crianas participam da leitura ou da escrita no contexto de sequncias

    ou projetos, com objetivos e modalidades distintos. A preocupao por

    sistematizar os tipos de situaes surge desde o incio; por exemplo, no

    comeo dos anos 1980, Teberosky propunha situaes de leitura, ditado,

    cpia e escrita (1984). As situaes didticas fundamentais (classificadas

    de diversas maneiras, de maneira nenhuma contraditrias) reiteram-se

    e alternam-se, e em sua reiterao e alternncia parece residir a potncia

    formadora que demonstram possuir (LERNER, 1996). Em cada situao, as

    crianas tm oportunidade de acesso a prticas ou conhecimentos distintos

    e complementares.

    Nas situaes em que as crianas escutam a leitura do professor, elas tm

    acesso linguagem prpria da escrita (a linguagem escrita, TEBEROSKY,

    1990). A partir da, constroem as possveis antecipaes formulaes em

    linguagem escrita que colocaro em jogo na hora de tentar ler e escrever

    sozinhas. Nas situaes de leitura autnoma, enfrentam-se diretamente

    com os textos, qualquer que seja sua complexidade, com a condio de

    que sejam previsveis a partir do contexto material e/ou do contexto verbal

    colocado novamente pelo docente. O conhecimento que vai sendo construdo

    no apenas produto da imerso no mundo da escrita, mas tambm da

    interveno deliberada do adulto, que lhes permite o acesso a informaes

    e lhes prope coorden-las cada vez mais at poderem ler autonomamente.

    Entre escutar a leitura do professor e ler sozinhas, possvel desenvolver

    uma srie de variaes. As situaes prototpicas de escrita, por sua vez, so

    aquelas em que as crianas ditam ao professor ou escrevem autonomamente;

    tambm se trata, neste caso, de situaes complementares.

    Ao ditar, o professor faz com que as crianas participem do planejamento da

    escrita, pois o docente compartilha com elas decises fundamentais (a quem

    se escreve e com que propsito, o que escrever, em que ordem, com que grau

    de formalidade ou de envolvimento...) e, por sua vez, mostra-se como escritor:

    rel para verificar se est compreensvel, se ficou bem, se falta algo, se

    necessrio sintetizar ou tornar claro. Desse modo, ainda antes de escrever

    autonomamente, as crianas buscam solues para melhorar os textos e

    falam sobre as possibilidades alternativas para faz-lo. Nessa situao,

    desenvolve-se em classe o processo recursivo da escrita, preocupao

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Estado atual do desenvolvimento didtico em alfabetizao inicial na perspectiva construtivista psicogentica

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 111

    presente desde os primeiros trabalhos (TEBEROSKY, 1984 e 1990; KAUFMAN,

    1994; CASTEDO, 1995; CASTEDO; MOLINARI, 1997 e 2000; MOLINARI, 1999;

    GALLO, 2005).

    Ao mesmo tempo, o professor organiza situaes para que as crianas

    escrevam autonomamente. Para isso, dispe de um repertrio de intervenes

    para ajud-las a avanar. Assim, as crianas provam a resistncia dos

    instrumentos e das superfcies de escrita, a direcionalidade convencionalmente

    aceita, o traado das letras, a construo das palavras; recorrem a escritas

    conhecidas para produzir novas escritas, confrontam suas produes com a

    de seus companheiros e/ou com as escritas disponveis em livros e em

    cartazes, analisam seletivamente os textos de que dispem para decidir o

    que copiar, releem por conta prpria ou com a ajuda do professor e participam

    na deciso do que acrescentar, corrigir, eliminar; quer dizer, atuam como

    sujeitos psicologicamente ativos e produtivos. Ao se encarregarem

    diretamente da escrita, participam do processo de deciso sobre o que

    escrever e podem revisar aquilo que fizeram. Como observa Delia Lerner

    (2010, p.49):26

    O ano e o ciclo escolar organizam-se de maneira que os alunos podem

    participar da maior diversidade possvel de situaes, manter sua

    continuidade, programar situaes simultneas que se desenvolvem em um

    mesmo perodo do ano, prever a progresso em que sero apresentadas e

    sustentadas cotidianamente. Diversidade, continuidade, simultaneidade,

    progresso, alternncia de situaes so critrios construdos ao longo

    desses anos em diversos conceitos organizadores do ensino.

    As situaes de ensino podem se estabelecer de diversas maneiras

    (modalidades organizativas) de acordo com vrios critrios: a necessidade

    ou no de apresent-las como uma sequncia necessria de situaes, sua

    26 Podem-se citar ALVARADO et al., 2006; CASTEDO et al., 1999, 2001, 2007, 2009a e

    2009b; CUTER, 2007; CUTER; TORRES, 1995; LERNER et al., 1996 e 2001; MOLINARI, 1998;

    MOLINARI et al., 2007; MOLINARI; CORRAL, 2008; TORRES, 2010a e 2010b; TEBEROSKY,

    1987 e 1990; NEMIROVSKY, 1999.

    H uma variedade de documentos e de publicaes que procuram explicar

    detalhadamente o funcionamento dessas situaes em aula e as condies e

    os tipos de intervenes mais produtivas que o professor pode desenvolver.26

    Considerando o intenso trabalho que temos feito e continuamos fazendo para

    conceituar e hierarquizar a interveno do professor, gostaria de pensar que

    ningum duvida do papel essencial que essa interveno tem na

    nossa perspectiva didtica.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 112

    frequncia e durao, o predomnio ou equilbrio de objetivos, a necessidade

    ou no de se obter um produto que contextualize o sentido das prticas

    desenvolvidas.

    A organizao em sequncias e em projetos didticos (um tipo especial de

    sequncia), ou em atividades freqentes, diferencia-se claramente de uma forma

    muito difundida de atividades nas escolas: as atividades soltas/fragmentadas.

    Um tipo de sequncia que tem cada vez mais importncia, medida que

    avana a escolaridade, aquela que privilegia contedos prprios da reflexo

    sobre a linguagem, inicialmente identificados em prticas contextualizadas.

    Trata-se de sequncias de sistematizao: nelas predominam claramente os

    objetivos didticos sobre os propsitos comunicativos (TORRES, 2002). Por sua

    vez, a modalidade organizativa de projetos foi tratada em inmeros trabalhos

    (TEBEROSKY, 1984; KAUFMAN, 1994; CASTEDO, 1995; KAUFMAN; RODRGUEZ,

    2001). Nesses projetos, muitas vezes difcil organizar situaes que permitam

    que as crianas leiam e escrevam autonomamente porque h gneros que

    so colocados em jogo fundamentalmente mediante situaes de leitura do

    professor e de ditados ministrados por ele. Por isso, o professor dispe-se a

    oferecer particularmente espaos para desenvolver prticas como localizar

    uma informao especfica, reler fragmentos, rotular e classificar elementos,

    modificar enunciados, etc. Isto , trata-se daquelas prticas em que os alunos

    podem tentar ler e escrever sozinhos. Ao mesmo tempo, vem ganhando

    importncia crescente as prticas de escrita intermedirias, que no sero

    publicadas como produto do projeto, mas que servem de memria para a aula,

    de consulta, de fonte de informao, etc. (SEPLVEDA; TEBEROSKY, 2008;

    PORTILLA; TEBEROSKY, 2010). As atividades frequentes tambm permitem

    garantir regularmente a aproximao com prticas cuja principal caracterstica

    , precisamente, a regularidade, sem a necessidade imperiosa de ordenamento

    das situaes. Entre outras, os nomes prprios ocupam lugar importante na

    leitura e na escrita (GRUNFELD, 2004), os ttulos interpretados e produzidos em

    diversos contextos (TEBEROSKY, 1987) e outros nomes e letreiros como os dias

    da semana, do ms, listas de todo tipo, etc. So atividades apoiadas na vida

    cotidiana, o que permite transform-las em hbitos mais ou menos duradouros.

    Ao deixar de lado o ensino das letras, uma a uma, e ao partir de prticas

    complexas e indissociveis de seus contextos, muitas vezes supes-se que se

    trata apenas de uma aprendizagem por imerso. Alm disso, alguns estudos

    naturalistas parecem mostrar que, quando se trabalha com gneros diversos,

    parece que o sistema de escrita se dilui neles (GRUNFELD, 2004; MORAIS et al.,

    2005). Mas isso no necessariamente assim. A reflexo sobre o sistema de

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Estado atual do desenvolvimento didtico em alfabetizao inicial na perspectiva construtivista psicogentica

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 113

    escrita est sempre presente, incluindo a reflexo sobre as unidades menores.

    A reflexo sobre o sistema de escrita sistemtica, diria repousa

    sobre uma deciso sustentada pelo professor que a deixa dependente da

    oportunidade. Trata-se da reflexo diferida, isto , suscitada no momento

    em que se toma a linguagem como objeto, geralmente depois de coloc-lo

    em cena no contexto da prtica. Atender a unidades menores no significa

    apenas, nem necessariamente, o ensino de habilidades bsicas, como a

    codificao fonolgica, o traado das letras e a escrita de palavras.

    preciso tentar interpretar e produzir a escrita de modo que todos

    compreendam as leis que permitem que os membros de uma comunidade

    se entendam. Essa experincia de interpretao e produo compartilhada,

    essa negociao mediada pelo professor sobre o que dizer e como dizer

    a fonte de reflexo que permite a observao. Algumas crianas, em muitos

    momentos, refletem sem pedir autorizao. Outras precisam da ajuda de um

    adulto. Por exemplo, o que Chapeuzinho Vermelho perguntou primeiro: que

    olhos to grandes ou que orelhas to grandes? O que o lobo respondeu: para

    te escutar melhor ou pra te ouvir melhor? Nesse tipo de interveno, em que

    as crianas precisam voltar ao texto para procurar respostas, a professora

    detm a sucesso de atividades de leitura e escrita com sentido imediato

    para propor uma situao (ou um momento da situao) em que a lngua

    torna-se objeto de reflexo. Est ensinando que imprescindvel antecipar

    e igualmente se fixar nas letras para corroborar as antecipaes. Recorta o

    problema, retoma-o fora da situao de leitura com sentido imediato, torna-o

    Para poder pensar acerca das relaes entre fala e escrita preciso realizar uma

    complexa operao psicolgica de objetivao da fala (e nessa objetivao, a

    prpria escrita desempenha papel fundamental). A criana adquiriu a lngua oral

    em situaes de comunicao efetiva, como instrumento de interao social.

    Sabe para que serve a comunicao lingustica. Mas ao tentar compreender a

    escrita deve objetivar a lngua, ou seja, transform-la em objeto de reflexo:

    descobrir que tem partes ordenadas, permutveis, classificveis; descobrir que

    as semelhanas e diferenas no significante no so paralelas s semelhanas e

    diferenas de significado, descobrir que h diversas maneiras de dizer a mesma

    coisa, tanto ao falar quanto ao escrever; construir uma metalinguagem para falar

    sobre a linguagem, transformada agora em objeto. As diversas maneiras de falar

    permitem, de imediato, planejar o interesse de pensar sobre a linguagem, porque

    as diferenas pem em destaque uma problemtica que as semelhanas ocultam.

    (FERREIRO, 1994, p.8)

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 114

    comum para que todas as crianas se apropriem dele , e compartilha os

    distintos critrios para corroborar o que dizem exatamente algo que se

    abstrai, progressivamente, das situaes particulares.

    Concluso comparativa

    O modo como as relaes entre lngua oral e lngua escrita so entendidas e, em

    tal contexto, o que se compreende por unidades menores, alm do lugar se lhes

    atribui no ensino constituem os principais pontos de divergncia entre as teorias

    analisadas. Parece que a ideia de atender a unidades menores, no contexto da

    prtica, esbarra em uma concepo segundo a qual isso s possvel com um

    paradigma de instruo direta sobre as correspondncias fonema-grafema,

    como se as relaes entre unidades fossem transparentes e sua compreenso

    resultasse da mera exposio do adulto. Pelo contrrio, conceber que podem

    resultar de processos de reflexo progressiva do aluno, sujeito pensante e

    construtor, pelo transitar por situaes sistematicamente propostas pelo docente,

    com intervenes especficas, parece no ser considerado ensino.

    Sem dvida, a essa rivalidade esto subjacentes concepes distintas sobre

    a escrita. Se pensada como um cdigo de transcrio da oralidade, reduz-se

    a funo da escrita e, nesse caso, parece imprescindvel propor um paradigma

    de instruo direta sobre as correspondncias fonema-grafema.

    Essa concepo da escrita como cdigo bem conhecida. Como assinala

    Celia Zamudio (2010), a psicognese da lngua escrita teve repercusso

    importante no campo da lingustica:

    Porque ps em discusso a concepo dominante no Ocidente sobre a relao entre a linguagem oral e a escrita. Desde Aristteles at a lingustica do sculo XX, pensa-se que os signos da escrita

    alfabtica reproduzem apenas os elementos e as unidades da lngua oral. As repercusses dessa ideia tm tido longo alcance em muitos mbitos; penso, entretanto, que tm incidido

    com mais fora na noo de aprendizagem da escrita que a tradio escolar ocidental forjou. E se os elementos e as unidades de uma lngua so evidentes para os seus falantes, para o

    aprendizado dos signos da escrita ser necessrio apenas associar os primeiros aos segundos. [...]. Ao questionar o imediatismo dos segmentos vogais e consonantais e, inclusive, das

    prprias palavras, a teoria psicogentica tem contribudo para liberar a escrita de sua condio especular e torn-la objeto digno de seu prprio estudo. Eu diria, alm disso, que tem suscitado

    a necessidade de um estudo lingustico da escrita e de uma psicologia que se interesse pelo desenvolvimento dos sistemas grficos e pelos seus efeitos sobre a cognio. [...] Quando algum centra a pesquisa em propriedades da escrita alfabtica atual, nas alteraes experimentadas ao longo da histria, consideradas as circunstncias em que isso aconteceu, nas diversas maneiras

    de ler ou de produzir os textos; do mesmo modo, quando algum tenta entender o que as crianas fazem quando esto aprendendo a lngua escrita, os erros que produzem ou a maneira como se aproximam da escrita, pode-se dizer que a lngua escrita muito mais que a reproduo

    da lngua oral. (ZAMUDIO, 2010, p.44)

  • Panorama das teorias de alfabetizao na Amrica Latina nas ltimas dcadas (1980-2010)

    Concluso comparativa

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 115

    Nas palavras de Ferreiro (2002, p.167):

    Na verdade, no se est falando de uma postura que atenda ao trabalho com

    unidades menores e outras no, mas de algumas que propem uma srie de

    exerccios, como atividades de conscincia fonolgica, de habilidades motoras

    para o traado das letras, de escrita convencional e cpia de palavras, etc.,

    e outras, como a perspectiva construtivista, que propem prticas dirigidas

    e sistemticas de leitura e escrita, com intervenes do docente igualmente

    sistemticas, que tentam conduzir a uma reflexo sobre as mltiplas relaes

    entre lngua oral e lngua escrita (em todos os nveis em que isto se sucede,

    no s na relao fonemas-grafemas).

    Tanto na perspectiva da Whole Language quanto na construtivista, a ateno

    s unidades menores est explicitada desde o incio. K. Goodman pretendia

    consider-las no contexto das prticas. Por sua vez, desde a dcada de

    1980, Ana Teberosky (1982; 1992), a propsito de seus trabalhos sobre a

    escrita representada e sobre a escrita entre pares, j distinguia subprocessos

    de escrita, inventum, compositio, scriptum, apoiando-se na retrica

    clssica e na reconceituao das mesmas pesquisas cognitivas de Hayes e

    Flower. Nesses trabalhos, surge claramente a preocupao pelo ensino do

    scriptum, s que a nfase no est em isolar fonemas da oralidade e no

    traado das letras, mas em outro tipo de tarefas. Desde ento, a perspectiva

    construtivista tem conseguido conceituar o problema didtico, que constitui

    articular as prticas do leitor ou do escritor com a apropriao do sistema de

    escrita (LERNER et al. 1996), assim como realizar um estudo minucioso de

    situaes e intervenes a servio desse propsito. A produo a respeito foi

    amplamente citada ao longo deste artigo.

    Nesse sentido, embora a perspectiva construtivista compartilhe os

    desenvolvimentos de Whole Language, no lcito igual-las. O construtivismo

    foi alm, tanto no campo psicolingustico quanto didtico. Avanou nas

    indagaes com as crianas menores, as que ainda no liam; introduziu o

    escrever como objeto de pesquisa no s o ler , e conseguiu explicar e

    construir uma teoria sobre as conceitualizaes das crianas acerca da escrita

    O que estamos propondo, para o aprendiz que falante de uma lngua, com sua

    respectiva representao alfabtica, um processo dialtico de mltiplos nveis em

    que, para comear, o objeto lngua no est dado. Esse objeto deve ser construdo

    em um processo de objetivao, processo em que a escrita proporciona o ponto

    de apoio para a reflexo. Tampouco as unidades de anlise esto dadas; elas se

    redefinem continuamente, at corresponder (aproximadamente) s que definem o

    sistema de representao.

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 116

    (no apenas uma descrio de condutas sucessivas). Isso porque, entre

    outras razes, no compartilhava a ideia de que falar, escutar, ler e escrever

    fossem processos equivalentes. Desse modo, foi adiante com o inventrio de

    erros para dar lugar a uma teoria com base na lgica do sujeito.

    No campo do ensino, partindo das situaes propostas pela Whole Language,

    e em colaborao com essa mesma linha, em particular com os trabalhos de

    Yetta Goodman, houve progressos em direo a uma maior sistematizao

    e definio de critrios de ensino e, muito especialmente, sistematizaram-

    se as intervenes do docente para cada tipo de situao, incluindo as de

    escrita, que se mostraram mais eficientes no que se refere percepo das

    unidades menores.

    Definitivamente, disso que se fala quando se discute a formulao de teorias:

    apropriar-se do que j foi feito para continuar avanando na reformulao

    das perguntas e na elaborao de respostas, sempre provisrias.

    TRADUO de Airton Dantas

    REVISO TCNICA de Antnio A. Gomes Batista

  • An overview of literacy theories in the Spanish America over the past decades (1980-2010) Abstract

    cadernoscenpec | So Paulo | v.1 | n.1 | p. 87-126 | dez. 2011 117

    An overview of literacy theories in the Spanish

    America over the past decades (1980-2010)

    Abstract

    Over the last 30 years fundamental changes have taken place in theories

    of literacy. In Latin America, they have affected teaching in different ways.

    Meanwhile other changes were occurring in literacy. From the survey of

    literature distributed in Latin America, in this article are studied three theories

    on the acquisition of written language with important implications for the

    field of literacy: the Whole Language, the phonological awareness and the

    psychogenetic theory. These theories are those that have been more reported

    in the region. The relationship oral-written language, the concept of error and

    linguistic diversity and variation are the axes that pass through the major

    points of agreement and disagreement between theories.

    Keywords

    Theories of literacy. Whole language. Phonological awareness. Psychogenesis

    of writing. Constructivism

  • CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta

    cadernoscenpec 118

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