os da minha rua

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5/11/2018 OsdaMinhaRua-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/os-da-minha-rua 1/33 OS DA MINHA RUA (CONTOS) para os da minha casa. para a tia rosa. para o tio chico.  para o avô aníbal. para a avó júlia.  para os camaradas professores ángel e maria.  para o avô mbinha. para a avó agnette. para os da minha infância.  para a Ray  :::  “não se esqueçam que vocês, as crianças,  são as flores da humanidade”  [palavras do camarada professor Ángel]  Os contos que estão de preto eu não consegui achar..

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OS DA MINHA RUA (CONTOS)para os da minha casa. 

para a tia rosa. para o tio chico. para o avô aníbal. para a avó júlia. 

para os camaradas professores ángel e maria. para o avô mbinha. para a avó agnette.para os da minha infância. 

para a Ray  

:::  

“não se esqueçam que vocês, as crianças, são as flores da humanidade”  

[palavras do camarada professor Ángel]  

Os contos que estão de preto eu não consegui achar..

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ÍndiceO voo do Jika 11A televisão mais bonita do mundo 15O Kazukuta 21Jerri Quan e os beijinhos na boca 25Os óculos da Charlita 29

A professora Genoveva esteve cá 33A ida ao Namibe 37O homem mais magro de Luanda 41O último Carnaval da Vitória 45A piscina do tio Victor 51Os quedes vermelhos da Tchi 55Manga verde e o sal também 61Bilhete com foguetão 65As primas do Bruno Viola 69O portão da casa da tia Rosa 73Os calções verdes do Bruno 77O bigode do professor de Geografia 81No galinheiro, no devagar do tempo 85

O Nitó que também era Sankarah 93Um pingo de chuva 97Nós chorámos pelo Cão Tinhoso 101Palavras para o velho abacateiro 10710 Para tingir a escrita de brilhos lentos e silenciosos (troca de cartas) 11511

O voo do JikaO Jika era o mais novo da minha rua. Assim: o Tibasera o mais velho, depois havia o Bruno Ferraz, eu e o Jika.Nós até às vezes lhe protegíamos doutros mais--velhos que vinham fazer confusão na nossa rua.O almoço na minha casa era perto do meio-dia. Àsvezes quase à uma. Ao meio-dia e quinze, o Jika tocavaà campainha. – O Ndalu tá?  – perguntava à minha irmã ou ao camaradaAntónio. – Sim, tá. – Chama só, faz favor.Eu interrompia o que estivesse a fazer, descia. – Mó Jika, comé? – Ndalu, vinha te perguntar uma coisa. – Diz. – Hoje num queres me convidar pra almoçar na tuacasa? – Deixinda ir perguntar à minha mãe.Entrei. O Jika ficou ansioso na porta, aguardando aresposta. Quase sempre a minha mãe dizia sim. Só sefosse mesmo maka de pouca comida, ou muita genteque já estava combinada para o almoço. Se a avó Chicaviesse, ia trazer também a Helda, e assim já não ia dar.12 Mas normalmente a minha mãe dizia mesmo «sim».E ficava a rir. – A minha mãe disse que podes.

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 – Ah é?  – ele pareceu surpreendido.  – E a que horasé que vocês vão almoçar? – Ao meio-dia e meia, Jika. – Então vou pedir na minha mãe.Deixei a porta aberta. O Jika devia voltar sem demoraquase nenhuma. Gritou contente, cá de baixo, na direcção

da janela do quarto da mãe dele: – Maaaaãe, a tia Sita me convidou pra almoçar na casadela. Posso? – Podes. Mas vem mudar essa camisa suada.O Jika deu uma esquindiva, fingiu que já tinha mudado,veio a correr numa transpiração respirada. Contente.Olhos do miúdo que ele era. Fosse o melhor programada semana dele. E eu, mesmo miúdo candengue,fiquei a pensar nas razões do Jika não gostar nada de almoçarna própria casa dele.O Jika estava habituado a muita gasosa. Nesse tempo,se houvesse gasosa na minha casa era para dividir.Como nós éramos três, eu e duas irmãs, quando o Jika

vinha almoçar, até a divisão corria melhor. Ele por vezesqueria fugir desse ritual: – Tia Sita, posso beber uma gasosa sozinho? – Sozinho, bebes na tua casa  – a minha mãe respondeu. – Aqui divide-se.Depois do almoço, o Jika disse que ia à casa delebuscar «uma coisa». Eu fiquei à espera, no portão aberto.Prometeu não demorar. Voltou com a tal coisa escondidadebaixo do braço, e entrámos rapidamente naminha casa. Subimos ao primeiro andar, fomos até aoquarto da minha irmã Tchi, e saltámos da varanda parauma espécie de telhado. Aproximámo-nos da berma. Láem baixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu

um muito, muito pequenino guarda-chuva azul.13  – Põe a mão aqui  – ensinou-me.  – Agora podemossaltar. – Tens a certeza?  – olhei para baixo. – Vamos só.Saltámos.A infância é uma coisa assim bonita: caímos juntosna relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudorimos. O Jika teve outra ideia. – Calma só, mô Ndalu. Vou na minha casa buscarum maior. – Não, Jika, desculpa lá. Vais saltar sozinho, eu já

num vou saltar mais de guarda-chuva. – Nem num bem grande que tenho, daqueles dapraia, anti-sol e tudo, colorido tipo arco-íris? – Nem esse!O Jika ficou desanimado. Sem outras propostas parabrincadeiras perigosas, decidiu ir para casa. Ao cruzaro portão, falou ainda: – Posso te perguntar uma coisa? – Diz, Jika. – Amanhã num queres me convidar pra almoçar natua casa?15 

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A televisão mais bonita do mundoSempre que era para ir a algum lugar de demorar,o tio Chico dizia que íamos à «casa andeia». Nunca percebiaquilo. Era uma dica dos mais-velhos. Nem mesmoa tia Rosa fazia só o favor de me explicar. Nada. Todosriam e eu apanhava do ar. Nessa noite o tio Chico falou:

 – Dalinho, vamos à casa andeia.Deviam ser umas sete da noite e fazia frio de cacimbofresco.Isso da «casa andeia» muitas vezes era então ficarmossentados num bar com os mais-velhos a beber ummonte de cerveja e a comer quase nada. Se havia outrascrianças eu ainda ia brincar mas normalmente nem já isso.Os homens conversavam, a tia Rosa também bebiamas ficava muito tempo calada. Eu brincava um poucose houvesse jardim ou mesmo rua. Depois sentava-meno colo da tia Rosa e começava a «encher o saco», comodizia o tio Chico. Começava a perguntar se já íamos embora,dizia que tinha sono e fome, mas só me respondiam

que estava quase a chegar a hora de irmos. E vinhammais cervejas. Muitas mais.A cerveja era a bebida preferida do tio Chico. A cervejaem muita quantidade, para dizer bem as coisas.O tio Chico era uma pessoa que podia beber muita16 cerveja e não ficava bêbado, podia mesmo conduziro carro dele nas calmas. Só não podia misturar. Umdia o tio Chico misturou vinho e whisky e depois mandouparar o carro que o filho dele ia a conduzir, começoua me abraçar e a falar à toa. Eu fiquei com vontadede chorar mas a tia Rosa veio me dizer que aquiloera normal. Mas se fosse só cerveja, acho que ninguém

aguentava o tio Chico. Um dia, num desses lanches defim de tarde, enquanto eu comia, ele, o amigo dele e atia Rosa varreram assim uns trinta e nove copos decerveja.Desta vez o tio Chico disse que íamos à «casa andeia» mas era só a brincar. No caminho eu ouvi ele dizerà tia Rosa que íamos à casa do Lima buscar umascadeiras para o quintal. O Lima era um senhor muitomagrinho que também bebia bem, tinha os olhos semprea brilhar e a boca sempre a rir. Era simpático o Lima,e devia ser amigo do tio Chico porque o tio Chicogostava de lhe chamar «o sacana do Lima». Chegámosà casa do sacana do Lima numa rua bem escura que erapreciso cuidado quando andávamos para não pisar naspoças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda aviseia tia Rosa, «cuidado com as minas», ela não sabia que«minas» era o código para o cocó quando estava assimna rua pronto a ser pisado.O Lima veio abrir a porta, os olhos dele brilhavammuito e trazia já na mão uma nocal bem gelada. Passoua garrafa para a mão esquerda e apertou a mão de todoo mundo, mesmo da tia Rosa, e a mão dele estava muitogelada. Isso era bom na casa do Lima, as bebidas estavamsempre a estalar, eu assim me imaginei já a saborearuma fanta bem gelada. E me deram mesmo.Ainda estávamos no quintal, o Lima mostrou ao tioChico as tais cadeiras encomendadas. O Lima vendiamobílias muito feias, com um aspecto assim de cadeiras

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17 que os mais-velhos adormecem quando estão na casa dealguém com um funeral e o morto também. Eu não gostavados móveis que o Lima vendia, mas aquelas cadeirasaté que eram fixes, pintadas de uma cor clara comfitas assim de um plástico verde. Da cor da cadeira

comprida, verde também, que estava sempre no quintalda minha casa. Mas o tio Chico não gostou muito, disseque estavam mal soldadas e que aquilo era perigoso.O Lima riu, mas o tio Chico não estava a brincar. – Ó meu sacana, já viste se eu sento aí a minha sograe ela cai no chão, como é que tu vais ficar quando eu teder essa notícia?O Lima transpirava. Passou a mão na testa, olhoua cadeira. – A malta dá um jeito nisso depois, não te preocupes.Entra, Chico.Entrámos todos, mas até tenho que dizer aqui umacoisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos

brinquedos nem coisas assim novas. Então nós, ascrianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquercoisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixade papelão bem grande e restos de esferovite nochão. Isso só podia significar uma coisa: havia materialnovo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outracoisa qualquer, e mesmo acho que era essa a razão deestar toda gente com bebidas na mão. Eu tinha pensadoisso tudo, mas calado e, quando entrámos, entendi:na estante, havia uma televisão nova tipo um bebé daquelesacabados de nascer. Os olhos do Lima brilharammais ainda: – Olha lá esta maravilha, Chico.

Foi buscar com a mão ainda fresca da cerveja ummanual de instruções dentro de um plástico que cheiravaa novo. Eu já nem liguei mais à gasosa, fiquei a olhara estante com bué de fotos da família do Lima.18 Mandaram-nos sentar. O Lima carregou no botãoe nada. Ele transpirava. Ficou triste de repente. Mexeuna tomada, acendeu e apagou a luz da sala. O tio Chicocom a cerveja dele. A tia Rosa de braços cruzados. Euà espera da imagem a qualquer momento. Olhei o cinzentoda televisão e umas três luzes apareceram de repentecomo se fossem um semáforo maluco e tive a certezaque aquela era mesmo a televisão mais bonita do

mundo. Fez um ruído tipo um animal a respirar e acendeudevagarinho. Não consegui ficar calado e disse bemalto: «chéeeeeee, essa televisão é bem esculú!», e todosriram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisãoa cores que eu via na minha vida.A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Eralindo e eu nunca tinha reparado que um apresentadorde televisão podia vestir uma roupa com tantas cores.Lembro-me ainda hoje: estava a dar o noticiário em línguanacional tchokwe. Ninguém entendia nada, baixaramo som. A tia Rosa disse-me «fecha a boca, vai entrarmosca», e todos riram outra vez. Não me importei.Falaram de novo das cadeiras. O Lima dizia tudo

que sim, que podia ser resolvido. Mexeu nos botões datelevisão e a cor ficou ainda mais viva. Na imagem tudo

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 já estava misturado, parecia um quadro molhado comaguarelas bem exageradas. Pensei nos meus primos,a essa hora lá na casa da Praia do Bispo, com a televisãoda avó Agnette a preto-e-branco, e aquele plástico azulque até hoje não sei para que servia. Quando eu contasseda televisão a cores exageradas na casa do Lima, os

primos iam me acreditar, ou será que todos iam rir e mechamar de mentiroso com força?Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos diasiam ver cores naquela televisão a cores: a telenovela Bem- -Amado com o Odorico e o Zeca Diabo, o Verão Azul com o Tito e o Piranha, os bonecos animados do Mitchi,o Gustavo com três fios de cabelo e até a Pantera Cor--de-Rosa com o cigarro bem comprido. «Tudo a cores,como uma aguarela bem bonita», pensei, enquanto a tiaRosa me fazia festinhas na cabeça.

Kazukuta 

Nós estávamos sempre atentos à queda das nêsperas, das pitangas e das goiabas, e eramesmo por gritarmos ou por corrermos que o Kazukuta acordava assim no modo lento de virnos espreitar, saía da casota dele a ver se alguma fruta ia sobrar para a fome dele.Normalmente ele comia as nêsperas meio cansadas ou de pele já escura que ninguémapanhava. Mexia-se sempre devagarinho, e bocejava, e era capaz de ir procurar um bocadinhode sol pra lhe acudir as feridas, ou então mesmo buscar regresso na casota dele. Às vezes,mesmo no meio das brincadeiras, meio distraído, e antes de me gritarem com força para eu

não estar assim tipo estátua, eu pensava que, se calhar, o Kazukuta naquele olhar dele deramelas e moscas, às vezes, ele podia estar a pensar. Mesmo se a vida dele era só estar ali nacasota meio triste, sair e entrar, tomar banho de mangueira com água fraca, apanhar nêsperaspodres e voltar a entrar na casota dele, talvez ele estivesse a pensar nas tristezas da vida dele.Acho que o Kazukuta era um cão triste porque é assim que me lembro dele. Nós mesmo nãolhe ligávamos nenhuma. Ninguém brincava com ele, nem já os mais velhos lhe faziam só umafestinha de vez em quando. Mesmo nós só queríamos que ele saísse do caminho e não nosviesse lamber com a baba dele bem grossa de pingar devagarinho e as feridas quase a nuncasararem. Acho que o Kazukuta nunca apanhou nenhuma vacina, se calhar ele tinha alergia oumedo, não sei, devia perguntar no tio Joaquim. Também o Kazukuta não passeava na rua ecada vez andava só a dormir mais. Sim, o Kazukuta era um cão triste.Um dia era de tarde, e vi o tio Joaquim dar banho ao Kazukuta. Um banho longo. Fiqueiespantado: o tio Joaquim que ficava até tarde a ler na sala, o tio Joaquim que nos puxava asorelhas, o tio Joaquim silencioso, como é que ele podia ficar meia hora a dar banho aoKazukuta?Lembro o Kazukuta a adorar aquele banho, deve ser porque era um banho sincero, deve serporque o tio punha devagarinho frases em kimbundu ao Kazukuta, e ele depois ia adormecer.Kazukuta..., lembro bem os teus olhos doces brilharem tipo um mar de sonho só porque o tioJoaquim - o tio Joaquim silencioso - veio te dar banho de mangueira e te falou palavrastranquilas num kimbundu assim com cheiros da infância dele.E demorou.Nós já estávamos quase a parar a nossa brincadeira. Porque afinal a água caía nos pêlos doKazukuta, e os pêlos ficavam assim coladinhos ao corpo, e virados para baixo como se já

fossem muito pesados, e a água foi, não tinha mais, e mesmo sem fechar a torneira o tioJoaquim, com a mangueira ainda a pingar as últimas gotas dela, e no regresso do Kazukuta à

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casota, depois daquele abano tipo chuvisco de nós rirmos, o Tio Joaquim deu a notícia quetinha demorado aquele tempo todo para dar:- Meninos, a tia Maria morreu.Até tive medo, não daquela notícia assim muito séria, mas do que alguém perguntou:- Mas podemos continuar a brincar só mais um bocadinho?

O tio largou a mangueira, veio nos fazer festinhas.- Sim, podem.Parece mesmo vi um sorriso pequenino na boca dele. O tio Joaquim era muito calado e sorriadevagarinho como se nunca soubesse nada das horas e das pressas dos outros adultos. Àsvezes ele aparecia no quintal sem fazer ruído e espreitava a nossa brincadeira sem corrigirnada. Olhava de longe como se fosse uma criança quieta com inveja de vir brincar connoscotambém.O tio Joaquim gostava muito de dar banho ao Kazukuta. Um dia kazukuta estava muito velho emorreu mesmo. 

Jerri Quan e os beijinhos na bocaO Mateus gostava muito de vir à nossa casa - fim da tarde - porque a Irene muitas vezes tava

lá à espera dele. Ouvi muitas vezes outras pessoas dizerem que a minha mãe era boa pessoa

e a Irene também dizia "a tua mãe é um amor", isso porque a minha mãe deixava a Irene ficar

na sala do meio com as portas fechadas a dar beijinhos na boca do Mateus.

Eu não conseguia entender aquilo muito bem mas parece que o pai da Irene não gostava que

ela desse beijinhos na boca do Mateus. Ouvi dizer que o pai dela não gostava de negros mas

eu até via muitos negros lá na casa dele a beberem e comerem com ele e todos a rirem juntos.

Não sei. Se calhar um rapaz negro a dar beijinhos na boca da Irene já era uma coisa diferente.

Quando o Mateus chegou eu já tinha vestido as bermudas azuis e uma camisa branca

entalada. O cinto também. A minha mãe tinha me obrigado a tomar banho, cortar as unhas e

esfregar bem os pés mas ela era muito simpática, não me obrigava a pentear o cabelo e tinha-

se esquecido das orelhas. O Mateus entrou, mexeu-me no cabelo como eu não gostava que

fizessem e depois cumprimentou o meu pai.

- Queres ir ali pra sala do meio, Mateus? - todo mundo riu, ele ficou bem atrapalhado. A Irene

demorou para chegar mas depois apareceu. Ela tava bem bonita com um vestido branco

daqueles que o vento gosta de levantar nos filmes.

Saímos os três. A pé. Ainda não tava muito escuro, subimos pela zona verde, demos encontro

com a maternidade onde eu nasci, depois o Hospital Militar e o largo 1º de Maio. .

- Sabes que eu costumo vir aqui nos comícios, Irene? - ela disse que sim só para me

despachar, ia toda contente de mãos dadas com o Mateus, davam beijinhos na boca e riam

toda hora. Eu ainda não sabia qual era a surpresa..

Atravessámos um pequeno descampado e vi uma espécie de casa bem grande toda pintada

duma cor tipo pantera-cor-de-rosa. Na entrada havia bué de gente a imitar assim uns pontapés

de karaté e na parede um póster bem grande dum chinês bem pequenino a bater em bué de

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muadiês. Li devagar a soletrar numa dificuldade de palavras compridas: "A grande desfora", a

Irene riu mas o Mateus não, e falou com calma:.

- É "desforra", tem dois érres. Então, já sabes ler? - perguntou, enquanto comprava os bilhetes

da primeira vez que eles dois, de mãos dadas, me levaram a um cinema verdadeiro..

Chamava-se "Cine Atlântico" e era a maior sala com a maior quantidade de cadeiras e uma

tanta gente a fazer barulho que nunca mais o filme começava. Eu olhava aquele mundo todo

novo: o cinema sem paredes de lado, as árvores e as andorinhas, umas poucas nuvens no céu

bem escuro de quase-noite, e a tela toda branca se acendeu de luz brilhante antes mesmo de

as luzes se apagarem e aquela toda gente fazer um silêncio de espera e logo depois assobiar

forte para a fuga geral dos passarinhos quando todos começarem a gritar "Jerri Quan!, Jerri

Quan!". Bateram palmas e eu também..

Olhei para o lado e a Irene tinha a cabeça dela no ombro do Mateus, os dois olhavam o ecrã de

mil cores com as letras numa língua suspeita tipo os desenhos da minha irmã caçula, e embaixo a tradução: "A Grande Desforra". O Mateus, no meio dos assobios e gritaria, olhou para

mim, eu gritei também "a grande desforra", com dois érres bem carregados, "agora disse bem,

né?" e ele fez que sim com a cabeça..

O filme começou e era bem bom. Afinal Jerri Quan era o nome do artista e ele batia male!,

ninguém lhe aguentava, o nome do bandido careca era Kisse e quando soltaram o tio do Jerri,

depois da corrida de patins, o Kisse levou só bué de pontapés na cabeça até desmaiar. Vi o

filme quase todo sem olhar para os lados, nunca tinha visto um ecrã assim tão grande e o som

também era bem cuiante, única coisa foi que quando deram aquelas letras no fim senti que

tinha sido bem ferrado pelos mosquitos..

Voltámos para casa. Fui o caminho todo a imitar os golpes e pontapés do Jerri Quan na última

luta que ele até deu beijinho na careca do Kisse antes de ele cair já tipo bêbado sem forças. O

Mateus só ria..

Entrei em casa, fui contar o filme às minhas irmãs e aumentei já lá o que era meu. O Mateus foi

com a Irene para a sala do meio. A minha mãe mandou-me ir lá levar dois copos de sumo

Tang. Quando entrei eles tavam a dar aqueles beijinhos na boca bem demorados. O telefone

tocou. Saí a correr, fui atender..

A minha mãe ralhou-me bué depois desse telefonema, mas não foi mesmo de propósito. É que

nós as crianças gostamos de responder só assim sem pensar muito no que afinal vamos dizer.

O pai da Irene perguntou onde eu tinha ido. Eu disse a verdade. Se tinha gostado. Eu disse

que era muito bonito e que muitas pessoas já tinham lido sobre aquilo nalgum jornal porque

falavam das cenas antes delas acontecerem. Ele também perguntou se eu tinha ido com os

meus pais. Eu disse que não. Então o pai da Irene perguntou com quem eu tinha ido ao Cine

Atlântico..

E eu disse.

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Os óculos da CharlitaTodas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Durante o dia, como havia luz do sol, não senotava tanto, mas a partir das cinco e meia da tarde todas elas recusavam jogar «escondidas»porque tinham medo de não encontrar nenhum dos escondidos.

Perto das cinco era hora do lanche. A avó Agnette - ou a tia Maria - vinha até à varanda e

gritava o nome de um de nós. Alguém berrava «abuçoitos» e o jogo sofria esse intervalo deirmos beber chá aguado ou comer meia banana com pão. As filhas do sr. Tuarles não

lanchavam. Ficavam no muro da casa delas à espera. Se demorássemos muito já não queriam

continuar nenhum jogo.

A Charlita era a única que tinha uns óculos muito grossos, muito amarelos e muito feios. Elas

eram cinco - as filhas do sr. Tuarles. A Charlita além de ser a dona dos óculos era também a

única que já tinha ido a Portugal com o próprio sr. Tuarles, numa deslocação que tinha dado

muito que falar na Praia do Bispo.

Depois do lanche o sol ia embora de repentemente. Os soviéticos abandonavam a obra do

Mausoléu e nós ficávamos ali, no muro que dividia a casa da avó Agnette da casa do sr.

Tuarles. Passavam também muitos trabalhadores angolanos. Depois passava o camião com

uma torneira atrás a jorrar bué de água para acabar com a poeira. A Praia do Bispo era um

bairro cheio de camiões: passava esse camião da água, o camião-cisterna que vinha pôr

gasolina na bomba, o camião do lixo e o camião do fumo dos mosquitos. Todos esses camiões

davam alegria e tinham uma música própria que nós gritávamos enquanto corríamos atrás

deles.

A noite chegava. A conversa no muro aquecia. Dois ou três ficavam a estigar, os outros riam

só. O Paulinho contava filmes do Bruce Lee, do Trinitá e dos ninjas enquanto, num outro muro,atrás da trepadeira, o Gadinho espreitava a nossa infância de riso e atrevimento. O Gadinho

era «testemunha», não podia brincar quase nada nem ir a festas. Nem mesmo receber prendas

como um bolo de anos que lhe quisemos só oferecer.

Se entrássemos por alguma razão na sala do sr. Tuarles, encontrávamos todo o mundo com o

rabo afundado nuns cadeirões muito grandes e antigos. A mulher do sr. Tuarles. Os filhos

rapazes do sr. Tuarles e a mãe da mulher do sr. Tuarles.

As filhas ficavam sentadas perto, muito perto da televisão. Quando digo perto, estou a falar de

dois ou três palmos entre a cara delas e o ecrã. De vez em quando o sr. Tuarles gritava para

se afastarem para os lados:

- Dêem espaço, porra. Eu também quero ver.

A mulher do sr. Tuarles, a dona Isabel, não dizia nada. A mãe da mulher do sr. Tuarles, a avó

Maria, dizia alguma coisa em kimbundu e depois ria. Nós tremíamos.

As filhas passavam os óculos entre elas. Cada uma via dois minutos e os óculos mudavam de

rosto. Era bonito de ver. Quando não tinham os óculos na cara, tapavam o rosto quase todo e

deixavam um buraquinho apenas, «para ver melhor», diziam. Mas se a novela aquecesse

numa parte assim mais entusiasmante, o sr. Tuarles gritava «dêem espaço, porra» e a Charlita,

por ser a dona, voltava a pôr os óculos na cara. E ria.

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Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Mas a Charlita - que tinha os óculos grossos,

amarelos e feios - ria de ser a única da casa que conseguia ver bem as telenovelas e os

sorrisos nas bocas nítidas de todas as personagens.

A professora Genoveva esteve cáDepois do almoço o pai e a mãe sempre descansavam nem que fosse um bocadinho. O meu

pai, logo a seguir à refeição, gostava de comer qualquer coisa doce e depois ia dormir um

bocadinho. A minha mãe, que dava aulas à tarde, também tinha esse hábito de adormecer ali

no sofá, nem que fosse só por quinze minutos.

Mas era sábado e não tínhamos ido à praia. O meu pai e a minha mãe foram dormir juntos, lá

em cima. Eu e a mana Tchi ficamos na sala, a jiboiar, à espera que acontecesse alguma coisa.

E aconteceu mesmo: tocaram à campainha.

Espreitei pela cortina da sala. Era a professora Genoveva, colega da minha mãe na escola

onde ela dava aulas. Fazia muito calor. A professora Genoveva transpirava muito e tinha uma

cara muito preocupada.

- Não vou abrir - a minha irmã já tinha gritado.

- Nem eu! - eu disse a seguir.

- Mas eu pedi primeiro.

A mana Tchi ficou deitadinha no sofá, a rir. Eu tinha que ir falar com a professora Genoveva.

Abri a porta do corredor, e um bafo quente tocou-me na cara. Olhei e vi bem, era mesmo ela.

Peguei na chave, aproximei-me do portão pequenino. Abri a porta.

- Boa tarde, camarada professora.

- Estás bom, filho? - ela perguntou, e passou a mão toda suada no meu queixo, como eu não

gostava que ninguém fizesse.

- Sim, tudo bem.

- A mãe? - ela perguntou devagarinho.

- A mãe tá deitada.

- Ó filho, não podes ir chamar a mãe? Eu preciso muito de falar com ela.

Isso de «eu preciso muito de falar com ela» era uma frase que eu já conhecia de outras

pessoas. Mesmo eu já tinha sido ralhado muitas vezes pelo meu pai, só por ter-lhe acordado

na conta de umas pessoas chatas que tinham vindo lhe incomodar. Uma vez eu fui acordar o

meu pai, «pai, está lá em baixo o camarada João, veio pedir cigarros», e o meu pai disse assimmeio a dormir «cigarros, a bardamerda!», mas não podia dizer isso ao camarada João então

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menti que o meu pai estava mal disposto e eu não tinha conseguido lhe acordar. Também às

vezes a minha mãe dizia para eu ir de novo até ao portão pequenino dizer que a mãe tava a

lavar a cabeça e ainda ia demorar uns quarenta e cinco minutos. Mas naquele sábado eu nem

precisava de inventar nenhuma estória.

- Professora Genoveva, eu não posso acordar a minha mãe.

- Ó filho, mas eu preciso mesmo de falar com ela.

- Mas ela foi-se deitar porque estava muito incomodada.

- Ah sim?

- Sim, é que ela hoje acordou com a menstruação, estava cheia de dores.

A professora Genoveva fez uma cara muito estranha, parecia que tinha dores de menstruaçãotambém. Limpou o suor da testa, do queixo, mas não adiantou muito porque continuava toda

molhada.

- Hoje de manhã - eu continuei - a minha mãe acordou cheia de dores. A professora sabe como

é - encostei-me no portão - quando aparece a menstruação, depende muito das mulheres, mas

algumas têm muitas dores. A minha mãe nem sempre, mas desta vez está cheia de dores.

Tomou dois comprimidos para as dores antes do almoço, mas quando acabou de almoçar

ainda tinha dores e disse-me que se ia deitar a ver se lhe passava a moinha.

A professora Genoveva transpirava muito. Olhava para mim com os olhos muito abertos, nãosei o que lhe estava a acontecer. Fiquei um bocadinho preocupado.

- Quer um copo de água, camarada professora? - perguntei.

- Não, filho - ela gaguejou. - Diz só à mãe, quando ela acordar, que a professora Genoveva

esteve cá.

- Está bem, eu digo. Não leve a mal eu não ir lá acordar a mãe, mas sabe como é, estas dores

da menstruação, é sempre assim, a minha mãe por acaso não fica muitos dias com a

menstruação, é dois ou três dias, mas o primeiro dia é sempre o pior, mesmo com oscomprimidos...

- Sim, filho - ela gaguejou mais. - Dá as melhoras à mãe.

- Sim, mas não se preocupe, isso depois passa, é normal nas mulheres.

A professora Genoveva parecia que se estava a sentir mal. A boca dela não fechava e

desapareceu rápido como se, de repente, não quisesse mais falar comigo.

Voltei para dentro. A mana Tchi perguntou o que eu tinha estado ali a falar com ela, e eu

expliquei tudo.

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- Pois é, a mãe no primeiro dia de menstruação fica sempre cheia de dores.

- Sim, eu sei, eu disse-lhe isso mesmo, mas ela parece que não acreditou.

Ficamos um bocadinho ali a ver mais televisão. Tava a dar aquelas cenas do circo chinês que

 já tínhamos visto umas quinhentas vezes. Acabamos por adormecer.

O telefone tocou, e nós dois, bem ensonados, quase não conseguíamos atender. Quando

consegui lá chegar e levantei o auscultador, a minha mãe já tinha atendido, e falava com a

professora Genoveva. Então desliguei o telefone cá de baixo. Passado um bocadinho a minha

mãe desceu. Já estava acordada mesmo. A minha mãe deu um beijinho à mana Tchi, depois

veio me fazer festinhas.

- A Genoveva ligou-me assustada, diz que tu lhe deste uma lição sobre a menstruação - a

minha mãe ria.

- Ela esteve aqui e queria que eu te acordasse. Eu expliquei que tavas incomodada. - Eu sei,

filho, eu percebi. - Mas também, ela escusava de te ligar para te contar isso tudo. Assim

acordou-te à mesma!

- Não faz mal.

Ficamos a ver televisão. O ar condicionado funcionava mal. Fazia muito calor. O meu pai

desceu depois. Antes de se aproximar abriu o armário e comeu um chocolate pequenino. A

minha mãe passou a mão na barriga, coitada, devia estar com cólicas. Dei-lhe um beijinho e

fiquei ali, quieto, perto dela, a fazer-lhe festinhas também.

A ida ao NamibeFomos num avião bem pequenino. Íamos passar quinze dias noutra província. Era o sítio ondetinha nascido o meu pai: chama-se Namibe. O meu avô disse-me que se chamavaMoçâmedes.

Para mim os nomes não interessavam muito. O que me deixava mais curioso é que me

disseram que lá havia um deserto, e eu já tinha aprendido na escola que era a província de

Angola que tinha avestruzes que corriam bué rápido, tinha gazelas e a famosa Welwitchiamirabilis, a planta mais bonita de todos os desertos do mundo.

Quando saímos do avião já fazia bué de frio. Estávamos no mês de Agosto, mês do Cacimbo

para todas as crianças que gostam de sentir aquela geada das cinco da tarde, e mês das

piores crises de asma para mim. Mas aquela província era tão bonita e gostei tanto de ter

passado aquelas duas semanas na casa do primo Beto que nem tive nenhuma crise. Foi muito

bom conhecer a província do Namibe.

Os dois primeiros dias ficámos na cidade, na casa desse primo do meu pai chamado Beto.

Como toda a gente lhe chamava "primo Beto", eu também cheguei na sala e chamei-lhe deprimo Beto. Todos os mais velhos riram, só a minha mãe não riu. Mas depois passou-me logo

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essa atrapalhação porque vi, pela primeira vez na minha vida, esses caroços que eles

chamavam de "tremoços". Por alguma razão o meu pai ainda não tinha me chamado para eu

vir provar. É que eu era assim um pouco estraga-tudo nessa altura, e o meu pai já devia

desconfiar mais ou menos o que eu ia fazer com os tais tremoços.

Disseram para eu provar, não gostei do sabor. Mas pelo formato, e também por causa da

experiência que eu já tinha com as fisgas lá na minha rua de Luanda, vi que aquele tremoço

dava masé para ser disparado só assim apertando com os dedos. Fui lá fora treinar na árvore e

quando voltei à sala já tinha a pontaria bem afinada. A primeira vítima foi a minha irmã, a

segunda foi uma velha que estava lá sentada e que era muda. Fiquei todo satisfeito porque

pensei que ela não fosse me queixar. Mas era uma velha queixinhas e o meu pai pôs-me de

castigo.

O resto dos dias passámos na quinta do primo Beto. Aí gostei muito de ter conhecido uma

horta com um pequeno lago, onde nós arrancávamos o tomate do chão, lavávamos e

comíamos logo ali. Também uma menina muito bonita chamada Micaela, ensinou a mim e à

mana Tchi a comer batata-doce crua, que era uma maravilha. Comíamos a bata-doce e, se

tínhamos sede, atacávamos o tomate. Voltávamos os três para a quinta, ao fim do dia, e eu

dava corrida aos perús. Também nunca tinha conhecido um perú assim de perto com os gritos

dele tão engraçados de glu-glu.

O pai da Micaela, o primo Zequinha, foi muito simpático e ensinou-me duas técnicas de caçar

rolas, uma era pôr visgo nas árvores e esperar os pássaros pousarem, e a outra, que eu gostei

mais, era usar a arma de chumbo para tentar caçar alguma coisa. Digo "tentar" porque a minha

pontaria não era lá muito boa, então dediquei-me mais à técnica da cola branca na árvore.

De manhã acordávamos cedinho e era tudo muito frio e muito bonito. Eu usava aquele casaco

azul bem antigo que a minha mãe me deu, e que tinha um tecido bem macio tipo veludo que eu

adorava tanto. Matabichávamos devagar. Os mais velhos falavam devagar. Combinaram ir à

caça. A minha irmã riu, baixinho, e não disse a ninguém, mas eu sei que ela viu a maneira

como eu olhava para a Micaela. É que a Micaela era muito bonita.

Podíamos brincar de manhã e até perto da hora do almoço. Ajudávamos a pôr a mesa, e

depois do almoço eu e a mana Tchi tínhamos que estudar um bocado. Havia também um livro,

sobre o comportamento do corpo humano, que a minha mãe dividiu em dez partes para eu e

ela lermos um bocadinho todos os dias. Quando chegou o capítulo das relações sexuais eugostei muito daquelas fotografias do homem deitado todo nu com a mulher, e da parte que

dizia que, para fazer um filho, "o homem introduzia suavemente o pénis na vagina da mulher".

Eu nunca queria avançar esse capítulo. A minha mãe é muito querida porque ela sabia que já

tínhamos passado aquele capítulo mas deixou-me repetir outra vez a lição.

Um dia, ao fim da tarde, o sol estava muito bonito assim todo amarelo quase bem torrado. O

meu pai tinha ido à caça com o primo Beto e o primo Zequinha também. A mana Tchi tava a

descansar e a minha mãe a ler. Eu perguntei à Micaela se ela queria dar uma volta comigo ali

pela quinta. Ela disse que sim. Mas a volta foi muito rápida, e eu perguntei se ela queria dar

outra volta. Ela riu e disse que sim. Como não queríamos dar outra volta, sentámo-nos numaspedras mais distantes da casa e eu tinha muita vergonha mas também muita vontade de lhe

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perguntar se ela queria namorar comigo. E ela disse que sim. Então, talvez para comemorar,

demos mais duas voltas à casa, mas já de mãos dadas.

Na província do Namibe eu conheci a avestruz, as gazelas, um montão de pássaros, o deserto,

e nesse dia à noite, o meu pai e os primos dele caçaram um olongo. Aquilo é que foi ficar de

boca aberta: eu nunca tinha visto um animal tão grande e tão pesado, e também nunca tinha

visto umas armas tão compridas. O primo Zequinha disse que até podiam matar elefantes com

aquelas balas, eu pensei que não era verdade, mas o meu pai disse-me que sim.

No último dia de manhã é que o meu pai se lembrou de tirar fotografias a todos. Eu também

aproveitei uns pássaros que o primo Zequinha já tinha conseguido matar, pus todos assim no

chão perto dumas pedras e fui buscar a arma de chumbo. Fiz um póster de joelho no chão

estilo filme de cobói e o meu pai tirou uma foto que eu tenho até hoje, também com chapéu que

me ficava grande mas que tinha assim aquele estilo do Trinitá.

Gosto muito dessas fotos todas que nós tirámos na província do Namibe, tem uma muito bonitada minha mãe bem distraída a fumar um cigarro, tem a foto do meu pai perto do olongo que

eles tinham caçado mas, para dizer mesmo a verdade, a foto mais bonita é uma que tou eu, a

Micaela e a mana Tchi. A Micaela tá bonita, eu até que tou posterado, mas a mana Tchi, com o

fato olímpico vermelho também desse tecido fofo tipo veludo, a mana Tchi é a que está mais

bonita: com o riso bem bonito e, assim quase a sair da foto, os dois puchinhos, bem grandes, a

prender o cabelo todo preto dela. A mana Tchi.

O homem mais magro de Luanda- Mas caíste das escadas ou foi assim acidente de carro? - Não, pá. Foi o Chico que me deu um apertão. 

(palavras do Vaz, dias depois do apertão.)

A casa do tio Chico tinha talvez a cerveja mais deliciosa de Luanda. Os mais-velhos é que

falavam isso, antes e depois de beberem umas quantas. Eu e a tia Rosa tínhamos mais a

ocupação de abrir a porta e ir buscar essa tal deliciosa cerveja.

Não me lembro bem se os toques eram diferentes ou não, mas o tio Chico sabia quem estava

no portão pelo modo como a campaínha tocava. As pessoas iam chegando.

- Ó Rosa, traz aí uns torresmos e o jindungo malandro.

Dois toques rápidos "é o Osório, vai abrir, Dalinho", um toque suave tipo tímido "é o Mogofores,

e vem com sede", toque longo e palmas "é o Lima, ó Rosa dá aí um jeito", a mesa enchia-se de

copos de cerveja, aperitivos e sobras, quitetas, kitaba, camarões, chouriço, a televisão sempre

ligada e pessoas de todas as cores que vinham beber dos barris de cerveja do tio Chico.

O tio Chico gostava de fazer obras no quintal, acho eu. Ao lado da enorme gaiola de rolas ele

construiu dois quartos. Pensei que era quarto de gente afinal era para guardar carne, peixe e o

barril de cerveja que ficava lá dentro. Um quarto era tipo geleira, o outro era arca de congelartudo.

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Naquele tempo o tio Chico tinha um contacto para ir buscar barris de cerveja e podia haver

maka se não houvesse aquela botija fininha de dar pressão aos finos. Ficava tudo dentro do

quartinho-geleira. Cá fora havia a torneira da cerveja e um banquinho para eu chegar lá e

poder encher os copos. Eu então gostava bué dessa minha missão de finos.

No quintal do tio Chico eu já não contava os finos, era perda de tempo. Depois do fino setenta

e sete as pessoas riam muito e já não havia quase torresmos no pires. Os olhos brilhavam

mais e eu até já podia contar anedotas sem graça nenhuma que todos riam mesmo só à toa.

A campainha tocou. Só que o tio Chico não disse quem era. Eu olhei logo na direcção do

portão, para saber se ia já a correr abrir. O Lima pousou o copo. O Mogofores parou de rir

ainda por cima arrotou sem pedir desculpa. O Osório puxou as calças para cima como sempre

gostava de fazer mesmo que o cinto já estivesse perto do sovaco. A tia Rosa também esperou.

A campainha tocou mais. Eu já só mexia os olhos.

- Vai lá ver - o tio Chico falou.- O miúdo não vai sozinho - a tia Rosa agarrou-me no braço.

Os outros ficaram com cara de não-sei-quê. Era sempre assim, se houvesse uma pequena

maka entre a tia Rosa e o tio Chico, todos paravam de beber. A tia Rosa levantou-se, fomos

 juntos. Era o Vaz.

O Vaz era um senhor muito alto, também camba do tio Chico, talvez o homem mais magro de

Luanda.

- Boa noite, dona Rosa, o sr. Chico está? A tia abriu o portão para ele entrar assim rápido comoele se mexia tipo mosquito eléctrico.

No quintal já havia barulho de novo. Todos riram quando o Vaz entrou nessa maneira

desajeitada de cumprimentar as pessoas.

- Ó meu sacana, então tu não sabes tocar a campainha como deve ser?

O Vaz não disse nada, cumprimentou todos e no fim aproximou-se com receio do tio Chico.

- Não me digas que tás outra vez com medo de me apertar a mão?

Não sei, eu era só uma criança dessas a olhar os mais-velhos, mas muita gente não gostava

assim muito de cumprimentar o tio Chico.

- Anda cá, meu sacana, andas a tocar a minha campaínha com toques secretos, tu quase que

entras pela racha do muro.

O Vaz, com medo, chegou perto do tio Chico. Quando foi abraçado, o tio Chico fez questão de

lhe dar um apertozito. As costas do Vaz fizeram um ruído tipo estalido de porta enferrujada.

- Ó Dalinho, traz aí um fino bem tirado para este sacana do Vaz.

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Atravessei o quintal com o copo de vidro na mão, na direcção da torneira da cerveja pendurada

na parede. Na cozinha aberta, cá fora, a tia Rosa, com o avental dela azul e bonito, com

chinelas abertas e antigas, fritava mais torresmos e controlava o peixe grosso no forno.

Durante muitos anos, para mim o mundo teve o cheiro daquele quintal maluco: as cervejas, as

comidas e as mãos da tia Rosa a emprestarem cheiros de cozinha aos meus cabelos

despenteados.

De longe olhei o Vaz fazer caretas de dor. Tentava disfarçar, mas desconseguia. Trouxe-lhe o

fino bem gelado e ele bebeu tudo assim num gesto de matar a dor.

- Tavas cheio de sede, meu sacana.

Depois do jantar, as filhas do tio Chico já tinham ido dormir e a telenovela estava quase a

acabar. Acordei com a voz do Sinhôzinho Malta a dizer "tou certo ou tou errado...?", e o

telefone tocou. O tio Chico atendeu. Primeiro ficou preocupado, depois riu devagarinho.

- Tá bem, tá bem, espero que corra tudo bem com esse sacana.

Eu e a tia Rosa também queríamos saber do caso. O tio andou devagar, de propósito. Sentou-

se.

- Ó Rosa, vai-me lá buscar um fino, filha - o tio Chico fechou as janelas da sala, recebeu o copo

e bebeu de penalty. - À saúde do Vaz - ainda disse, enquanto ia para o quarto.

A tia Rosa apagou a luz da sala e fomos juntos para o quarto.

- O sacana do Vaz tá no hospital, tem duas costelas partidas.

Eu ainda queria perguntar se isso de costelas era o quê, mas já era tarde.

- Amanhã vamos lá ver o gajo, e tu podes mexer na manivela da cama, Dalinho.

O tio apagou o candeeiro, enquanto a tia Rosa fez-me uma festinha na bochecha e endireitou o

lençol, como fazia sempre há tantos anos, para os mosquitos não me ferrarem nos braços e

não me atrapalharem nos meus sonhos de falar durante a noite.

O último Carnaval da VitóriaA vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeirabem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um familiar a avisar que abrincadeira já acabou e está na hora de jantar. A vida afinal acontece muito de repente - nuncaninguém nos avisou que aquele era mesmo o último Carnaval da Vitória.

O Carnaval também chegava sempre de repente. Nós, as crianças, vivíamos num tempo fora

do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade. Para nós segunda-feira era um

dia de começar a semana de aulas e sexta-feira significava que íamos ter dois dias sem aulas.

Depois as datas eram assim isoladas: Carnaval da Vitória, dia do trabalhador, dia um das

crianças, férias grandes, feriado da independência e o natal com o fim de ano também já a

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chegar. O Carnaval tinha que ser anunciado pelos mais velhos, como se nós, as crianças,

vivessemos numa vida distraída ao sabor da escola e da casa da avó Agnette.

O dia da "véspera do Carnaval", como dizia a avó Nhé, era dia de confusão com roupas e

pinturas a serem preparadas, sonhadas e inventadas. Mas quando acontecia era um dia

rápido, porque os dias mágicos passam depressa deixando marcas fundas na nossa memória

que alguns chamam também de coração. Na televisão passava o grande desfile do Carnaval

da Vitória e, na Praia do Bispo - o bairro poeirento da avó Nhé -, nós formávamos um grupo

pequenino que, com um apito gritante, fazia uma passeata de quase quarenta e cinco minutos.

Havia que ir até à bomba de gasolina, atravessar a rua com cuidado, passar perto da casa do

Xana, esse Xana que todo mundo dizia que tinha um jacaré no quintal dele, ir pelo passeio da

Andreia, a amiga bonita da minha prima, cumprimentar a tia Adelaide no portão, esperar que o

Paulinho também viesse, e entrar no bairro da Kinanga, passando pelo Cine, apitando sempre

forte, dando a volta na igreja e voltando pela rua principal outra vez a olhar as ruas com

cuidado por causa dos carros que vinham com velocidade conduzidos pelos bêbados do

Carnaval da Vitória.

Ao chegar a casa se calhar a tia Maria e a avó Nhé tinham preparado um lanche magrinho,

com banana, pão, umas fatias bem fininhas de bolo feito com metade da receita normal,

ngonguenha para quem quisesse, quatro rebuçados duros e antigos que ninguém atacava, um

pires pequeno de arroz doce só com cheiro de canela, alguma paracuca e a gasosa

«baptizada», que era uma gasosa misturada com água de modo a que uma garrafa de fanta ou

coca-cola, depois de baptizadas, dessem para três ou quatro copos. A tia Maria vinha da

cozinha com o prato de arroz-doce ainda a polvilhar o restinho de canela que saía do frasco, a

rir, e a fazer estranhos movimentos na boca com a placa de dentes toda velha que ela usava.

Nós não podíamos rir. A avó Nhé tinha proibido todos os netos de estigarem a tia Maria nesse

gesto dela da placa, e tinha dito que a tia Maria era «boazinha». Nós ríamos às escondidas,

porque a tia Maria era muito gorda e tinha o hábito de pôr os dedos também gordos em todas

as comidas para provar quando a avó Nhé não tava a olhar.

As nossas mães faziam de propósito para nos deixar lá na casa da avó Nhé no dia do Carnaval

da Vitória. Às vezes até fico a pensar que no dia do Carnaval era a data em que eu via os

primos todos, mais até que no natal.

Quando entrávamos para vir lanchar, as roupas e as pinturas eram já só um resto de coisaspenduradas, azuis suados e vermelhos tristes nas bochechas da prima Naima e da mana Tchi.

As "Arletes", como a avó chamava o grupo das filhas do sr. Tuarles, às vezes vinham também

lanchar connosco, mas a tia Maria dava-lhes cada olhada que elas quase nem tinham coragem

de tirar comida nenhuma. Acho que a tia Maria só gostava das crianças que eram de casa e

principalmente não queria que outras crianças comessem as coisas que ela tinha preparado. A

tia Maria era muito gorda e passava muitas horas na cozinha, de tal maneira que já ninguém

gostava de lhe dar beijinho nas bochechas a cheirar a cebola e a margarina daquelas latas

vermelhas.

Além da avó Nhé e da tia Maria, estava também a avó Catarina, toda vestida de preto e muitocaladinha, com o lenço escuro a tapar o cabelo todo branquinho. Ela era muito calada e tinha

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sempre aquele hábito de passar o dia todo a abrir e fechar as janelas do quarto dela, mas na

altura do Carnaval da Vitória, ela era boa a dar ideias para inventar máscaras, "a Naima pode

ser a bailarina", dizia com a voz dela muito apagada como se fosse uma pessoa que ainda não

tinha percebido que afinal já tinha morrido há muitos anos, "a Tchissola pode ficar a fada", e ia

para o quarto dela ver se tinha deixado as janelas abertas, trazia mais uma roupa, um lenço,

uma ideia, "o Amilcar vai mascarado de polícia", o Amilcar adorava que lhe chamassem o sr.

Polícia, ficou vaidoso com a camisa azul e o lenço no pescoço, tinha até uma pistola de

madeira que parecia dos filmes do Trinitá.

Quando entrámos para lanchar, na televisão estava a dar, em directo, o desfile do Carnaval da

Vitória. Eu não gostava de arroz-doce, a mana Tchissola atacou o meu pires. Ficámos todos a

ver o desfile e era um mês de Março. O locutor deu alguma informação errada sobre o

Carnaval, e um dos primos disse que não era assim, que aquele era o Carnaval da Vitória

porque a 27 de Março se comemorava o dia em que as forças armadas tinham expulsado o

último sul-africano de solo angolano, e bué de gente começou a estigar porque ali não

estávamos em nenhuma aula e não queriam lição de história. Mas eu pensei que o meu primo

tinha razão.

Estávamos nessa distracção de risos e gasosas baptizadas, quando a avó Catarina veio me

pedir o apito. Eu tinha esquecido de lhe entregar o apito. Naquele tempo, antes de sairmos de

casa para o nosso desfile de crianças mascaradas, a disputa era quem ia levar o apito na boca.

Esse que tinha o poder de apitar fazia a vez daqueles que, no desfile de verdade, vão à frente

a marcar o ritmo do grupo. Nesse ano, não sei porquê, ninguém tinha mostrado vontade de

apitar, e a avó Catarina tinha me dado o apito. Eu fiquei contente e nervoso, porque se eu não

apitasse bem mais tarde iam me gozar durante bué de semanas. Mas correu tudo bem.

Agora, devagarinho e sempre falando baixo, a avó Catarina veio me pedir o apito.

- Dá-me o apito, filho, que eu tenho de ir lá a cima ver se deixei as janelas abertas.

Ela parecia ter pressa. Procurei nos bolsos, nada no casaco, nada na calça. Fiquei

atrapalhado, pousei o copo com o restinho da gasosa aguada do baptismo.

- Espera só, avó - levantei a calça, encontrei o apito escondido na meia. Tinha medo de ser

roubado porque já tínhamos voltado para casa quando estava escuro.

Dei-lhe o apito e ela fez uma coisa que fazia poucas vezes: sorriu e fez-me um carinho na

bochecha. Nunca disse aos meus primos porque iam me gozar, mas eu não sabia que a mão

assim toda enrugadinha da avó Catarina era tão suave. Fechei os olhos. Quando os abri, ela já

não estava lá: a avó Catarina era muito rápida a desaparecer.

Levantaram o som da televisão. O camarada locutor estava a conversar com alguém e

ouvimos comentários de aquele ser mesmo o último Carnaval da Vitória.

Lá fora, o camião da água passou a largar água no passeio da avó Nhé que tinha sempre

muita poeira por causa das obras do Mausoléu. Muitos miúdos brincavam de correr perto

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desse camião e um soviético dizia palavras que ninguém entendia mas acho que ele estava a

dizer disparates na língua dele.

Como não podia apanhar poeira, por causa da asma, fui para o quintal. Fazia um vento que

voava devagar então as folhas da figueira faziam um ruído que era mais um segredo que um

barulho. Lá longe, na rua principal, ouvi o barulho da Honda 1100 do João Serrador a passar.

Os dois jacós na gaiola disseram bué de disparates porque estavam assustados com o barulho

da mota e só havia uma coisa a fazer: fui até ao tanque da roupa onde tinham deixado uma

água azulada por causa do sabão, molhei as mãos e sacudi para dentro da gaiola. Os jacós

lambiam o corpo com vontade. Mesmo vendo os olhos deles tão alegres, nunca entendi porquê

que o sabor daquele sabão azul lhes acalmava mais que um carinho.

Isto foi em fins de Março. No último ano do famoso Carnaval da Vitória.

A piscina do tio Víctorpara o tio Víctor que nos dava prendas-do-dia. Para a "Buraquinhos". 

Quando o tio Víctor chegava de Benguela, as crianças até ficavam com vontade de fugar à

escola só para ir lhe buscar no aeroporto dos voos das províncias. A maka é que ele chegava

sempre a horas difíceis e a minha mãe não deixava ninguém faltar às aulas.

Então era em casa, à hora do almoço, que encontrávamos o tio Víctor. E o sorriso dele,

gargalhada tipo cascata e trovão também, nem dá para explicar aqui em palavras escritas. Só

visto mesmo, só uma gargalhada dele já dava para nós começarmos a rir à toa, alegres,

enquanto ele iniciava umas magias benguelenses.

- Isto vocês de Luanda nunca viram - abria a mala onde tinha rebuçados, chocolates ou outras

prendas de encantar crianças, mais o baralho de cartas para magias de aparecer e

desaparecer o ás de ouros, também umas camisas posteradas que nós, "os de Luanda", não

aguentávamos.

À noite deixávamos ele jantar e beber o chá que ele gostava sempre depois das refeições.

Devagarinho, eu e os primos, e até alguns amigos da rua, sentávamos na varanda à espera do

tio Víctor. É que o tio Víctor tinha umas estórias de Benguela que, é verdade, nós os de Luanda

até não lhe aguentávamos naquela imaginação de teatro falado, com escuridão e alguns

mosquitos tipo convidados extra.

Eu já tinha dito ao Bruno, ao Tibas e ao Jika, cambas da minha rua, que aquele meu tio então

era muito forte nas estórias. Mas o principal, embora ninguém tivesse nunca visto só uma foto

de admirar, era a piscina que ele disse que havia em Benguela, na casa dele:

- Vocês de Luanda não aguentam, andam aqui a beber sumo Tang!

Ele ria a gargalhada dele, nós ríamos com ele, como se estivessem mil cócegas espalhadas no

ar quente da noite.

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- Nós lá temos uma piscina enorme - fazia uma pausa dos filmes, nós de boca aberta a

imaginar a tal piscina. - Ainda por cima, não é água que pomos lá - eu a olhar para o Tibas,

depois para o Jika:

- Não vos disse?

O tio Víctor continuou assim numa fala fantasmagórica:

- Vocês aqui da equipa do Tang não aguentam¿, a nossa piscina lá é toda cheia de Coca-Cola!

Aí foi o nosso espanto geral: dos olhos dos outros, eu vi, saía um brilho tipo fósforo quase a

acender a escuridão da varanda e assustar os mosquitos, nós, as crianças, de boca aberta

numa viagem de língua salivada, outros a começarem a rir de espanto, de repente todos

gargalhámos, o tio Víctor também, e rebentámos numa salva de palmas que até a minha mãe

veio ver o que se estava a passar.

Agora já ninguém me perguntava nada, falavam directamente com o tio Víctor, queriam mais

pormenores da piscina e ainda saber se podiam ir lhe visitar um dia destes.

- Vai todo mundo - o tio Víctor riu, olhou para mim, piscou-me o olho. - Vem um avião buscar a

malta de Luanda! Preparem a roupa, vão todos mergulhar na piscina de Coca-Cola, nós lá não

bebemos desse vosso sumo Tang¿

- Ó Víctor, pára lá de contar essas coisas às crianças - a minha mãe chegou à varanda.

Ele piscou-lhe o olho e continuou ainda mais entusiasmado.

- Não tem maka nenhuma, pode ir toda malta da rua, temos lá em Benguela a piscina de Coca-

Cola¿ Os cantos da piscina são feitos de chuinga e chocolate!

Nós batemos palmas de novo, depois estreámos um silêncio de espanto naquelas quantidades

de doce.

- A prancha de saltar é de chupa-chupa de morango, no chuveiro sai fanta de laranja, carrega-

se num botão ainda sai sprite¿ - ele olhava a minha mãe, olhos doces apertados pelas

bochechas de tanto riso, batemos palmas e fomos saindo.

Quando entrei de novo em casa, fui lá para cima dizer boa noite a todos. Passei no quarto do

tio Víctor, ele tinha só uma luz do candeeiro acesa.

- Tio, um dia podemos mesmo ir na tua piscina de Coca-Cola?

Ele fez assim com o dedo na boca, para eu fazer um pouco-barulho.

- Nem sabes do máximo¿ No avião que vos vem buscar, as refeições são todas de chocolate

com umas palhinhas que dão voltas tipo montanha-russa!, lá em Benguela há rebuçados nas

ruas, é só apanhar ¿ e ficou a rir mesmo depois de apagar a luz, até hoje fico a perguntar onde

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é que o tio Víctor de Benguela ia buscar tantas gargalhadas para rir assim sem medo de gastar

o reservatório do riso dele.

Fui me deitar, antes que a minha mãe me apanhasse a conversar àquela hora. No meu quarto

escuro quis ver, no tecto, uma água que brilhava escura e tinha bolinhas de gás que faziam

cócegas no corpo todo. Nessa noite eu pensei que o tio Víctor só podia ser uma pessoa tão

alegre e cheia de tantas magias porque ele vivia em Benguela, e lá eles tinham uma piscina de

Coca-Cola com bué de chuínga e chocolate também. Vi, também no tecto, o jeito dele

estremecer o corpo e esticar os olhos em lágrimas de tanto rir.

Foi bonito: adormeci, em Luanda, a sonhar a noite toda com a província de Benguela.

Os quedes vermelhos da Tchi

Os "quedes" eram da Tchi, minha irmã mais velha. E estavam lá abandonados numa poeirafina, atrás da porta da casa de banho. No dia seguinte havia comício no Largo 1.º de Maio. Aconcentração era na minha escola "Aplicação e Ensaios", às sete da manhã. A minha mãemandou-me ir preparar a farda.

Camisa azul clarinha, calção azul escuro. Tudo limpinho e engomado. E cheirava àquelanaftalina boa que trazia outros cheiros de antigamente. É um bocadinho assustador, masmesmo quando somos crianças o antigamente já fica lá longe.

Fui à casa de banho, atrás da porta, aí onde ficavam pendurados os sapatos que já ninguémligava. E então vi os "quedes" vermelhos da Tchi, que ela nunca gostou muito, só tinha usado

durante uns tempos e depois ficaram ali a ganhar poeira. Limpei devagarinho a parte da frentee até um bocadinho das solas, com um pano do pó que sempre ficava ali na casa de banho.Experimentei os "quedes", confirmei o que já sabia: não me serviam bem, aleijavam-me nodedo grande e no mindinho também. Mas só o póster, ché!, até num vale a pena.

Ainda desci, pra dizer à minha mãe que tava tudo preparado.

- Meias também? - ela perguntou.

- Meias vejo já amanhã de manhã.

- E sapatos?

- Já está - mas não disse quais eram.

- Então vai ver se o teu cantil tá limpo.

Fui até à cozinha, encontrei o meu cantil antigo na despensa. Tinham dado aqueles cantissoviétivos na segunda classe, acho eu, e como eram feitos lá para aqueles frios da UniãoSoviética, eram uns cantis que em vez de manterem a água gelada, lhe aqueciam masé bué.Então nós já tínhamos desenvolvido uma técnica: enchia-se o cantil de água ou sumo, edeixávamos o cantil dormir na arca, por uma noite. De manhã, ia mesmo assim, congeladito, aderreter à medida que a manhã avançava, sempre com o líquido puramente gelado. Era umcantil verde escuro, que não dava pra confundir, era soviético mesmo, duro, resistente, quedurava anos. Fazia lembrar as "akás", que eu vi num documentário na televisão, disseram quese pode enterrar uma "aká" por 40 anos e desenterrar que ela ainda vai funcionar. E o Cláudiodisse que o primo dele, que é comando, já confirmou que isso é mesmo verdade.

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O meu pai acordou-me cedo, mais cedo do que tínhamos combinado. Matabichámos juntos,nesse momento que eu adoro: o meu pai abre as portas grandes da janela da sala, e vemos oabacateiro. Dia 1.º de Maio, dia internacional do trabalhador. Quase não havia barulho naminha rua, só alguns gatos, os guardas da casa do Jika iam-se deitar, pousavam as "akás" nochão, lavavam-se ali numa torneira no jardim de trás. E eu e o meu pai matabichavamos comtodos os cheiros da manhã. E o abacateiro, claro, espreguiçava-se para acordar também.

Vesti-me, fui lá acima, calcei os "quedes" vermelhos da Tchi. A minha mãe não tinha aindaacordado, então aproveitei e calcei mesmo assim sem meias, para não apertar tanto. Mesmoassim doía.

- É o quê? - o meu pai perguntou, quando entrei de novo na cozinha para tirar o cantil da arca.

- Nada, tou pronto - disse, contente.

Os meus primos não gostavam muito de ir ao comício do dia internacional do trabalhador. Nemera obrigatório, a camarada professora disse que só ia quem quisesse, mas eu adorava oscomícios naquela altura. Nem sei explicar bem porquê. Era tudo especial, acordarmos cedo,

fazermos formação, cantarmos o hino, e irmos juntos, mais ou menos organizados, até aoLargo 1.º de Maio, sim, o Largo chamava-se mesmo 1.º de Maio.

Cheguei à escola bem cedo. Os pés doíam-me, magoavam-me em vários pontos, até já medoía a parte do calcanhar também. Mas eu tava bem estiloso, e aguentava. Sentia umfresquinho nas costas, era o cantil completamente congelado. Bons cantis, esses soviéticos,desde que se conhecesse essa técnica de congelar no dia anterior. E fomos.

Lá, no Largo 1.º de Maio, tava uma tanta gente acumulada, bué, mas buelelé de escolas já emformação, numa curva, todos direitinhos, à espera da vez de marchar. E lá na tribuna, bem láem cima, estava o camarada presidente, duma camisa azul clara e um lenço branco a fazeradeus aos pioneiros que passavam. Chegou a nossa vez. Um camarada também aí nummicrofone tipo escondido, aquecia a multidão: "Pioneiros de Agostinho Neto, na construção doSocialismo...", e nós gritávamos, suados, contentes, meio a rir meio a berrar, "Tudo peloPovo!", e ele continuava, "Um só Povo, uma só...?", e nós de novo, "Nação!", e passámosmesmo em frente ao camarada presidente, e ainda vi a Paula Simons e o Ladislau, namoradoda minha prima Fatinha, a falarem num microfone que eles punham assim no ombro tipocarteira das meninas, tavam a gravar uma reportagem, eu sei, uma vez eu já tinha ido à RádioNacional e tinham me explicado aquilo tudo.

Quando acabou o comício, ainda nos deram um sumo bué malaico com bolachas, mas asbolachas eram muito boas, e eu não sei pra quê que levei cantil se sempre me esquecia debeber a tal água congelada no dia anterior. Depois "desmobilizamos", como a camaradaprofessora dizia. Fui pra casa. Cheguei cansado, mas foi bom, tinha me divertido, e no caminhopara casa ainda houve tempo para ouvir e aprender umas estigas novas com uns miúdos que

também voltaram para o meu bairro.

Quando cheguei ao portão, a minha mãe tava lá.

- Correu tudo bem?

- Sim, foi bem fixe, vi a Paula Simons e o Lau, com os microfones da Rádio...

- E o camarada Presidente?

- Sim, também tava lá.

- Foste com esses quedes vermelhos, filho?

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- Sim, mãe.

Pensei, não sei porquê, que ela fosse me ralhar, os "quedes" eram da minha irmã Tchissola.Mas não; ela riu, e disse para eu ir mudar a roupa que eu tava todo suado.

Tirei os "quedes" vermelhos, e tinha os dedos grandes, os mindinhos e os calcanhares todos

irritados. E cheirava muito a chulé. Eram, para dizer a verdade, uns "quedes" que não davam jeito nenhum.

Mas também acontece isso na vida de uma pessoa, pensei, gostarmos de uma coisa, e nãosaber porquê. E eu não sabia. Mesmo os comícios, também não sabia porquê que eu gostavatanto de ir aos comícios. Mas ia. Farda azul, ténis vermelhos, e o cantil soviético na mochila.Antigamente, eu ia.

As primas do Bruno Viola

para o Bruno Ferraz  

As festas na casa do Bruno Viola tinham sempre muitos bolos e salgados, música bem

alta, boa jantarada tipo feijoada ou churrasco, e muita, muita gasosa. Mas nós, os

rapazes da rua Fernão Mendes Pinto, gostávamos mesmo era das primas do Bruno. O

Bruno Viola tinha umas primas muito bonitas.

Uma tinha o cabelo assim bem liso e loiro, vinha do Bairro Azul com umas saiasbem curtas que todo mundo queria dançar slow com ela. Primeiro era o Bruno que,

mesmo sendo primo, sempre gostava de dançar apertado com as primas dele. Lembro

até hoje: os cabelos dela cheiravam a um amaciador de abacate que uma pessoa no

meio da dança até quase que ficava nas nuvens. Esse cheiro se misturava com o

perfume que era o mesmo que a mãe dela usava. A camisa era preta e branca às riscas

com um ursinho mesmo em cima da mama esquerda dela. A saia era jeans azul pré-

lavado que nessa época estava na moda. O Bruno já tinha dançado com ela, o Tibas

também. Era a minha vez e eles ficaram cheios de inveja porque puseram aquela música

do Eros Ramazzotti que durava onze minutos.

O meu nariz perdia-se entre o pescoço suado dela e os cabelos loiros, compridos.

Às vezes é só assim, um gajo apanha esse slow bem comprido que dá tempo de falar

bué com a dama. Todos a olharem para mim na minha sorte demorada, até as pernas já

me doíam do cansaço de estar a dançar tão devagarinho com a prima do Bairro Azul.

Outras primas também estavam na festa: a Filipa, que era da nossa idade; a

Eunice, mulata linda e cambaia, que tinha vindo do Sumbe; e a Lara, que era um pouco

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mais velha, já tinha as mamas grandes como as mulheres adultas, também já punha

perfume de mais-velha, e era uma moça que tinha viajado muito, acho eu, porque tava

toda hora a falar de Paris. Então foi isso: enquanto eu dançava a música do Eros

Ramazzotti, a Lara olhou para mim com um olhar bem estranho. Eu fechei os olhos, deium beijinho disfarçado no pescoço da prima do Bruno. Um sabor salgado me ficou na

boca e eu gostei.

A música acabou, abri os olhos. A prima do Bairro Azul sorriu para mim, mas eu

duvidei que aquilo significasse alguma coisa. Ela tava muito doce no sorriso dela, mas

acho que ela gostava mesmo era do Tibas. Fui buscar uma gasosa, era uma fanta

daquelas bem cor de laranja que até inchava a língua. A música tinha parado, estavam

nos preparativos do «parabéns a você». Vi a Lara olhar de novo para mim.

O Pequeno, um miúdo também da minha rua, é que imitava muito bem a voz da

Lara. Era uma voz diferente, para uma rapariga, difícil mesmo de imitar ou de explicar.

Mas pode-se dizer que era uma voz grossa, muito grossa e rouca. E o Pequeno imitava

assim a Lara: «ó pá, eu já fui a Paris, pá, vocês conhecem Paris?». Ele fazia a voz

grossa e a malta toda ria, não era preciso dizer nada, todo mundo imaginava a pessoa

que falava assim.

A Lara olhava para mim, eu olhava para a Filipa, e o Tibas falava com a prima do

Bairro Azul. A Filipa, irmã da Lara, era muito bonita, e até na rua diziam que eu e ela

tínhamos de namorar mas isso ainda nunca tinha acontecido. Mas, sim, eu achava a

Filipa muito bonita, tinha uma pele escura tipo indiana dos filmes que muitos rapazes da

minha rua ficavam atrapalhados a olhar para ela. Começaram a cantar os parabéns.

Todo mundo olhava para o centro da mesa onde estava o bolo horroroso e cheio daquele

glacê adocicado que enjoa. Eu ouvi a voz, lá longe, do outro lado, perto da bomba de

água e da bananeira, a chamar o meu nome. Ouvi mesmo bem, mas fingi que não era

comigo.A voz continuava. Era uma voz grossa tipo um instrumento de tocar jazz. Primeiro

baixinho, só dum coro. Depois, naquela parte que se canta «hoje é dia de festa, cantam

as nossas almas», e todo mundo já grita bem alto, a Lara me ameaçou com a voz dela:

 – Vem cá, não tás a ouvir?

Tive que ir.

A bomba de água disparou, fez um barulho esquisito. A Lara tava sentada numas

escadas que já tinham sido invadidas por trepadeiras enormes. Fez-me sinal com a mão

para eu me sentar perto dela. Tinha as pernas meio abertas como fazem os rapazes,

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sentada uma posição que a minha avó Agnette me disse que as meninas nunca se

deviam sentar. E falou-me com a voz grossa:

 – Anda cá, senta-te aqui perto de mim.

Eu olhei lá para dentro, não consegui ver ninguém. Tava escuro e o lugar sócheirava à trepadeira e ao perfume pesado da Lara. Ela apertou-me no braço, quando eu

ia sentar, e sentou-me no colo dela. Não falou nada, ficou só a respirar perto da minha

cara. Tinha também um suor molhado no pescoço.

 – Dá-me um beijo na boca...  – ficou a olhar para mim com uma cara quieta.  – Com

a língua também.

Puseram música de novo, uma música bem animada, que nós chamávamos de

«alice stein», mas que era na verdade uma música dos Kassav. Eu transpirava, aquela já

era uma situação muito séria, a Lara era muito assanhada, até diziam que ela já tinha

feito malcriado com rapazes mais velhos. Estava bem atrapalhado eu, ela me segurava

no braço com força.

 – Dá-me lá um linguado  – ela disse com a voz mais rouca e a fechar os olhos.

Uma pessoa quando é criança às vezes não sabe que é bom ter medo e deixar

certas coisas acontecerem. Não sei como seria o tal «linguado», mas tive medo que a

Lara, com a voz dela e as mamas grandes e os perfumes franceses, tive medo que a

Lara me beijasse de um modo que eu nem sabia bem qual era.

A mãe do Bruno me chamou para eu comer o bolo horroroso com glacê e eu gritei

logo acusando o lugar:

 – Tou aqui, tia Luna.

O Tibas e a prima do Bairro Azul vieram com um pires e uma fatia enorme que eu

tive mesmo que comer. Muita gente se aproximou das escadas das trepadeiras. A Lara

sentou-se de outra maneira, endireitou o vestido e o cabelo. Do meu pires tirava pedaços

de bolo que comia muito devagar, e chupava os dedos cheios de glacê branco sem pararde olhar a minha boca.O Bruno Viola tinha primas muito bonitas e uma prima com uma voz muito grossa, comose fosse um instrumento de tocar jazz.

O Nitó que também era Sankarah para o Sankarah. para os do Mutu-Ya-Kevela. 

Na minha escola Juventude em Luta nunca mais as aulas iniciavam. Eu tinha passado para aoitava classe. A minha mãe já tava a ficar preocupada, e meteu cunha mesmo através do Nitó

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para eu ser tranferido para o Mutu Ya Kevela. Escola afamada de brincadeiras perigosas, tipo

«estátua», bem violenta só, «bacalhau», na hora do intervalo, estigas perigosas e lutas no fim

das aulas. Eu mesmo cambuta e duns óculos na cara vi o meu futuro arruinado naquela

transferência assim repentina. Mas teve de ser. E foi.

O Bruno já tinha desaparecido. Muita gente com medo do atraso no início das aulas já tinha

mudado os filhos para outras escolas. A minha turma quase sempre junta desde a terceira

classe tinha começado a desfazer-se toda tipo uma onda rebentada nas calemas brutas de

Agosto. Não sei, parece que o tempo é mesmo uma rebentação de ondas numa praia qualquer

de esquecimento e velocidade, mesmo que seja só falar à toa foi isso que me apeteceu dizer

agora.

Esse meu primo Nitó era professor de Inglês no Mutu Ya Kevela. Eu não sabia e ele fez-me a

surpresa. Era de manhã, quase ainda cedo, eu tava num nervosismo de cólicas, já depois de

matabichar. Ele apareceu numa lambreta nova em folha para me levar à escola. A coisa já

mudava de figura.

- Adolfo - como ele me chamava em brincadeira e ternura só dele. - Sobe só, hoje vais ver

quem é o boss do Mutu.

Descaímos logo na zona verde, cortamos caminho a descer numa areia de qualquer derrapa

perigosa e esquindiva nos buracos do esgoto. Saímos quase na Maianga. Duma rapidez

esculú távamos quase a chegar ao Mutu. O Nitó me avisou:

- Aqui na escola, sou o «stôr Sankarah».

- Yá, tá fixe.

Nome dele de registo era Nilton. De família, era Nitó. Mas das damas e da escola dele, mesmo

as aulas que dava na escola portuguesa e tudo, era «stôr Sankarah». Ché, grande póster!

Entrámos no Mutu, eu numa timidez das paredes novas e um primeiro andar todo

desconhecido. O Nitó fez a banga dele: foi mesmo na sala do sub-director buscar um livro do

ponto, e ainda disse a outros professores, «este aqui é meu ndengue». Gostei. Apresentou-me

os corredores perigosos:

- Aqui é melhor não vires, principalmente no turno da tarde. Eu ia só decorando. Subimos atéao primeiro andar, era a zona das oitavas. Bateu à porta, quase sem esperar entrou na sala 2.

Espanto foi só de eu ver uma turma inteira, cinquenta pessoas, levantarem de prontidão e

respeito, «bom diaaaaa, camaradaaaaa, professooooor!». Ché!, kota Sankarah.

Falou com uma professora que tava lá. Ela sorria para ele nuns lábios de facilidade e

admiração. A sala toda me olhou. Eu seria o número cinquenta e um. A professora me mandou

escolher um lugar. Olhei em jeito de avaliação sem querer mostrar medo. O stôr Sankarah

falava com ela, num gesticular de poucas mãos. Vi um rapaz de cara mansa sentado numa

carteira sozinho. Quarto lugar na terceira fila a contar da porta. Sentei.

- Sou o Paulo - ele falou.

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- Sou o Ndalu - respondi.

Então o «stôr Sankarah» se despediu da professora. Lembro do caminhar dele nesse dia, e

agora relaciono as coisas: andava devagar e bangoso tipo filme de camara lenta, fato todo

branco, duma gravata azul escura quase veludo, assim era o dia de estréia da moto dele. E

mesmo numa de gesto discreto, ainda pra toda turma ver, piscou-me o olho e com a mão fez-

me um sinal de nenhum entendimento posterior. Código familiar ou quê. O máximo. E saiu.

Um ar de confiança me encheu o peito, enquanto os olhares e os comentários se cruzavam

todos na minha direcção quieta. Desarrumei um caderno qualquer de improviso, escrevi

também o sumário dos outros já avançados na aula. Era aula de inglês. E a professora quis me

desafiar numa de avaliação:

- So, Sankarah told me you are good in english. Is he your friend?

- No, teacher. He is my cousin.

- Ok. Welcome to Mutu Ya Kevela.

- Thank you.

Mas a conversa tinha pegado mal na atenção dos outros. Um de trás, bem bigue só, alto e

gordo, segredou num outro pra eu ouvir também:

- Hum!, temos que aquecer o novato.

Eu até pensei que estava já a ser prometido numa boa carga de porrada, mesmo sem ter tido

tempo de arranjar makas. Mas não, tavam só a falar de me «aquecer» num jogo de estátua. No

intervalo alguns vieram falar comigo. De que escola eu tinha vindo. Qual era mesmo o meu

nome. Um perguntou se eu era primo do stôr Sankarah, disse que sim.

- Ele é bem armado!

Mas eu tava só a pensar nos meus colegas todos do Juventude em Luta. Quase uma vontade

de lágrimas me queria aparecer nos olhos, e eu não podia bandeirar. Uma rapariga com voz

esganiçada e penteado meio maluco chegou perto e disse:

- É mentira, não ligues, o stôr Sankarah é bem fixe.

Eu quis também pensar isso. Até imaginei o Nitó a descer o eixo-viário a caminho da escola

portuguesa, fato branco e gravata azul, estilo de lambreta em filme italiano a preto-e-branco. E

o sorriso dele, esse já sem ser estilo de filme tipo país mais nenhum, mas esse sorriso dele

simples, aberto, tipo angolano mesmo.

- Ndalu!, pay attention.

- Sorry, teacher.

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- How did you come to school this morning? By car or by foot?

Hum!, pausei num sorriso de magia e encantamento, coisa familiar mesmo. E ela ia acreditar

se eu lhe dissesse a verdade?

Nós chorámos pelo Cão Tinhoso

para a Isaura; para o Luís B. Honwana  

Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.

Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia

mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em

leitura silenciosa  – como a camarada professora de português tinha mandado. Era um

texto muito conhecido em Luanda: «Nós matámos o Cão Tinhoso».

Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão-de-ar, da Isaura e das feridas

penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com feridas penduradas.

Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo.

Fiquei atrapalhado.A camarada professora seleccionou uns tantos para a leitura integral do texto.

Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada. Para não demorar muito, ela

escolheu os que liam melhor. Nós, os da minha turma da oitava, éramos cinquenta e

dois. Eu era o número cinquenta e um. Embora noutras turmas tentassem arranjar

alcunhas para os colegas, aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha

escapado de ser alcunhado. E alguns eram nomes de estiga violenta.

Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o Pacaça, a Barata-

da-Sibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu. Deve ser porque eu

mesmo falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o Agostinho-Neto, a Scubidú e mesmo

alguns professores também não escapavam da nossa lista. Por acaso a camarada

professora de português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar.

Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto ainda tá naquela parte

que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução. Os nomes dos

personagens, a situação assim no geral, e a maka do cão. Mas depois o texto ficava

duro: tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso. Os miúdos

tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada

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Isaura afinal queria dar protecção ao cão. O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas

penduradas, eu sei que já falei isto, mas eu gosto muito do Cão Tinhoso.

Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era

duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentroduma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho

mais, a voz já está mais grossa, já ficamos toda hora a olhar as cuecas das meninas

«entaladas na gaveta», queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow

ficámos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos

com frio mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais

crescido na maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes

mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressão-de-ar, era como o grupo que tinha

sido escolhido para ler o texto.

Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas

foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa

professora nos manda ler este texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão Tinhoso vai

sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por

causa dos olhos do Cão Tinhoso.

O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na

minha sala de aulas, no tempo da oitava classe, turma dois, na escola Mutu-Ya-Kevela,

no ano de mil novecentos e noventa: quando a Scubidú leu a segunda parte do texto, os

que tinham começado a rir só para estigar os outros, começaram a sentir o peso do

texto. As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da

turma a despachar um parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do

próximo parágrafo, escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens, olhava para a

porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressão-de-ar a qualquer momento.

Era assim na oitava classe: ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegarao fim. Ninguém admitia isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à

voz de quem lia e aos olhos de quem escutava.

O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma

trovoada que trouxesse uma chuva de meia-hora. Mas nada.

Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na

garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho,

algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo avisou: «quem chorar

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é maricas então!» e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma

cara como se nada daquilo estivesse a ser lido.

Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou. A camarada

professora não disse nada. Ficou a olhar para mim. Respirei fundo.Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim.

Uns tinham-se virado para trás para ver bem a minha cara, outros fungavam do nariz tipo

constipação de Cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com

as bochechas todas vermelhas e os olhos também, o Olavo ameaçou-me devagar com o

dedo dele a apontar para mim. Engoli também um cuspe seco porque eu já tinha

aprendido há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de o ler em voz alta: era

aquela parte do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe

matar a qualquer momento. Mas o Ginho não queria. A Isaura não queria.

A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de mim, ficou

quietinha. Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto. Aliás,

ela já tinha dito, ao me escolher para ser o último a fechar o texto, e eu estava vaidoso

dessa escolha, o último normalmente era o que lia já mesmo bem. Mas naquele dia, com

aquele texto, ela não sabia que em vez de me estar a premiar, estava a me castigar

nessa responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar.

 – Camarada professora  – interrompi numa dificuldade de falar.  – Não tocou para a

saída?

Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava a voz e eu

nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto

e às lágrimas. Só depois o sino tocou.

Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão-de-ar nos olhos do Cão

Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada

professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do CãoTinhoso.

Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de

aulas. Fechei o livro.

Olhei as nuvens.

Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes.

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Palavras para o velho abacateiro 

Antigamente as pessoas eram pessoas de chegar. Não sabíamos fazer despedidas.  

palavras da avó Catarina 

Quando chegámos da praia, o céu estava à espera que as pessoas todas se recolhessempara poder ordenar às nuvens que começassem a largar uma grande chuva molhada, eraaté raro em Luanda naquele tempo fazer uma ventania daquelas, os baldes no quintalcomeçaram a voar à toa, os gatos nas chapas de zinco não sabiam bem onde era oburaco de se esconderem, os guardas da casa ao lado vieram a correr buscar as akásque estavam encostadas no muro e o abacateiro estremeceu como se fosse a última vezque eu ia olhar para ele e pensar que se mexia para me dizer certos segredos, não sei oque o abacateiro me disse, não soube mais entender e pode ter sido nesse momento queno corpo de criança um adulto começou a querer aparecer, não sei, há coisas que épreciso perguntar aos galhos de um abacateiro velho, cumprimentei o guarda enquantocorria no quintal a segurar os baldes que queriam levantar voo, fui fechar a porta da casade banho e da despensa, a bomba de àgua disparou e assustei-me, o vento estava a pôr-me nervoso, olhei a mangueira com mangas verdes, olhei os galhos secos doabacateiro, reparei no encarnado vivo das romãs bem madurinhas ali perto domamoeiro, olhei as uvas na videira e, enquanto olhava o céu escuro, ainda pensei queera tão estranho aquelas uvas terem um sabor tão nítido a manga adocicada, fui fechar aportinhola da casota onde ficavam as botijas de gás e ainda recolhi duas toalhas queestavam na corda, voltei a entrar na cozinha, com o corpo a pingar de chuva e suorfresco, a t-shirt estava tão molhada que voltei lá fora para deixá-la já pendurada nacorda, parei um pouco a deixar a chuva cair sobre a cabeça, fechando os olhos,escutando o ruído que ela fazia cá fora no mundo e dentro de mim também, queria verquantos pensamentos eu podia inventar - e pensar - ao mesmo tempo que ouvia aqueleruído tipo de música de uma orquestra bêbada, ri, ri sozinho quando abri os olhos e vi acadeira verde onde às vezes, mas raramente, também o camarada António gostava deensaiar um sono distraído, caiu a carga de àgua que o céu tinha prometido pela cor epelo vento soprado, enquanto a ventania diminuía de repente, a chuva caia como umembrulho gigante de redes de pesca que tivesse escorregado do armário de umpescador que estava lá muito em cima, nas alturas, era tanta água que mesmo ver a casado Jika estava difícil, o mundo parecia um deserto molhado naquela tarde, aidanconseguia ouvir, mas mal, os passos dos guardas a correr e, entre tantas cascatas deágua com a poeira da videira, do outro lado, tipo filme de western, um gato vesgo ficouparado em cima do outro telheiro a olhar para mim - seria o gato vesgo que eu tinhaacertado no olho com o chumbo da pressão de ar? -, tive um pouco de medo, lá dedentro, a qualquer momento, a voz da minha mãe podia vir me perguntar se eu eramaluco de estar ali com aquela chuva toda a pedir mesmo para ter uma crise de asmacomplicada, ali fora o gato calmo tinha ficado parado a olhar para mim, olhava mais com

o olho vesgo que com o olho que via bem, perto de mim estava um ferro abandonadodas obras do vizinho, sempre desconfiei dos gatos calmos, não me mexi, ele sim,devagarinho, saltou até perto das raízes da mangueira, parou de novo, foi a andar muitodevagar, parecia que para ele não chovia e fazia um sol que lhe causava preguiça departir, não me mexi, as mãos estavam na corda, como se eu estivesse preso com asmolas de estender a roupa, a água caiu mais forte e de tanto não ver nada tive medo queo gato voltasse às escondidas e me atacasse, decidi entrar em casa, assustei-me com avoz da minha mãe - "o pai e eu estivemos a falar sobre aquele assunto" - , o meu corpotodo molhado, pensei que a minha mãe ia me ralhar de eu estar a trazer a chuva paradentro de casa, espalhando as gotas do meu corpo pelo chão limpo da cozinha, amesma cozinha antiga que todos nós dizíamos a rir que era do camarada António, aminha mãe tinha os olhos molhados também e um grande silêncio invadiu a casaescolhendo esse espaço entre nós para ficar, eu olhava o chão pingado como se ele

fosse muito mais distante, ouvia cada gota cair no chão e ao mesmo tempo pensei quenão devia prestar atenção àquilo, pois outra coisa mais importante estava prestes aacontecer - "tu há tanto tempo que falavas nisso, nós estivemos a falar" - , a minha

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cabeça viajava pelo corredor escuro porque fazia esse domingo cinzento de chuva eninguém tinha ainda acendido as luzes, a minha cabeça deslocava-se devagarinho esubia as escadas espreitando primeiro a sala onde a minha irmã mais nova tinhaacabado de adormecer com o corpo todo cansado da praia e a pele cheia do sal do mar,onde tínhamos passado quase todos os sábados e domingos da nossa infância, eusubia as escadas sem fazer barulho, o meu pai podia ter decidido dormir um pouco e só

acordar mais tarde para começar com um café na cozinha e ir ver se na televisão asequipas nacionais estavam a jogar futebol, o corredor lá em cima era um mar pesado desilêncios e isto não é poesia falada, havia ali um silêncio que pesava se uma pessoa semexesse em qualquer direcção, parei, quieto, a escutar a tarde que chovia lá fora, osecos do comportamento das trepadeiras e das árvores enormes dos vizinhos, podiaquase desenhar essas árvores sem olhar para elas, a mais cambuta do lado esquerdo,na casa da tia Mambo, devia ser um abacateiro e era maior que o nosso, tinha folhasgordas e um cheiro sempre poeirento mesmo que chovesse, e do lado direito, na casa datia Iracema, havia uma árvore que imitava ou era mesmo um pinheiro muito alto eligeiramente torto onde os pássaros - não sei porquê - gostavam de fazer voo rasantequando traziam minhocas na boca para dar aos filhos que tinham acabado de nascer eficavam no telhado da tia Iracema a fazer barulho, parei, quieto, a escutar as trepadeiras,as árvores, uma buzina, algumas vozes, o cão do Bruno a ladrar tão longe e o barulho da

caneta da minha irmã mais velha a escrever os pensamentos dela de domingo à tardequando chove em Luanda, o que não se ouvia era o gritinho dos filhos desses pássarosque eu não disse mas são andorinhas, eles deviam estar a tremer de frio e de medo, todomundo sabe, as andorinhas são como os gatos, não gostam nada da chuva, se calhar épor causa do barulho dos trovões, não sei - "filho, assim a pingar ainda te constipas" -, aporta do meu quarto estava aberta e uma luz nenhuma saía dele entrando no corredor achamar-me, o mundo cinzento espreitava pela minha janela, entendi que havia umanesga aberta nos vidros e, por ali, todas as vozes da tarde, da chuva, da trepadeira, dasárvores, entravam pelo meu quarto para me dar sinais estranhos que o meu corpo nãosabia aceitar, nem a minha cabeça, uma vontade de lágrimas me visitou, cocei a pele dabuchecha que era um gesto antigo para falar com as minhas vozes de dentro, pingavamenos o meu corpo, o calção molhado deixei junto à porta, entrei no meu quarto de tãopoucos anos, fazia-me confusão entender porquê que eu vivia aquele quarto como um

espaço antigo, como se eu fosse uma pessoa também de antigamente, e não era - via-seno espelho o meu corpo magro e a pele toda esticadinha a contornar os dedos da mão,os lábios desenhados quando eu os olhava sem compreender as curvas deles, os olhosque eram mais difíceis de olhar porque me traziam aos olhos essa chuva de eles ficaremencarnados - "nós pensamos que, se é realmente o que tu queres, podes ir estudar paraoutro país" -, pensei que lá nesse país teria outro quarto, mas não este, o antigo, o doscheiros e das roupas e das músicas e dos livros e das escritas tristes e secretas, damala com os livros do Astérix, ou A náusea, ou o Cem anos de solidão , ou os"gracilianos" como eu lhes chamava, ou a camisa amarela escura com manchas pretas eacastanhadas que o meu pai trouxe de Portugal e, desde que a vi, soube que amava essetecido de acalmar os olhos que às vezes choravam em frente ao espelho daincompreensão, porque o corpo mudava, a voz mudava, as mãos no corpo mudavam,era visível que eu preferia acordar mais tarde que acordar mais cedo, era visível, para

mim, que ouvia barulhos e sentia cheiros que não podia dividir com ninguém, e a avóAgnette continuava a partilhar as noites comigo, contando, inventando, alterando asestórias todas, as de antigamente, as do presente e as outras, como se o tempo fosse osaco de ar com bolinhas que ela gostava de rebentar, como se, às 2h da manhã - entrerisos de cumplicidade, olhares de fascínio que acendiam a madrugada, ternuras faladascomo se fossem verdades de ofertar - ela me dissesse, devagarinho, com a voz convictae os factos arrumados caoticamente, que o futuro não era uma coisa invisível quegostava de ficar muito à frente de nós mas antes - ela dizia como frase deadormecimento mútuo -, antes um lugar aberto, uma varanda, talvez uma canoa onde épreciso enchermos cada pedaço de espaço com o riso do presente e todas, todas asaprendizagens do passado, que alguns também chamam de antigamente - "assim apingar, ainda te constipas" -, a minha mãe disse com chuva nos olhos bem encarnados,o corpo dela encolhido a dar marcha atrás na cozinha, no trajecto que ela tinha feito para

vir devagarinho falar comigo, sem me ralhar por eu estar a molhar a cozinha, sem mefalar da asma e dos brônquios, sem quase olhar para mim, eu também sem quase saber

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como olhar para ela, como dizer - a ela e a mim - que essa viagem, essa partida de irembora, de repente me chegava fora do tempo, num terreno que ia muito além da dor edas lágrimas, num lugar que nenhum escrito meu podia ter conseguido explicar nemnenhuma lágrima conseguiria apagar, a minha mãe retirava devagar o corpo da cozinha,fiquei com os olhos postos nas gotas tombadas no chão, sem poder saber, nunca mais,o que era gota o que era lágrima, como se eu fosse um cego e naquele momento todos

os cheiros e todas as dores da infância me pesassem no corpo, e isso estava bem, eranormal, mas um peso me fechou os lábios e eu não soube o que dizer à minha mãe,talvez as frases dela trouxessem pedido de resposta, talvez se eu tivesse falado nessetempo fora do meu corpo ela me tivesse dito, ou mostrado com os olhos, que aquele era,de qualquer modo, o tempo deles, dos meus pais, aí talvez os meus lábios dissessemque esse tempo de sabermos o momento de partir tinha acontecido fora do meu própriotempo, e que nos últimos anos eu havia estado perdido, triste e confuso, num espaçotão grande que afinal eram apenas duas cadeiras de tecido encarnado, uma secretária, oarmário embutido, o sofá-cama encarnado que eu mesmo tinha escolhido e usado essapalavra, "encarnado", e riram porque era uma palavra de antigamente na boca de umacriança, esse espaço, com esse sofá-cama, com esse colchão fininho, com essas molasfracas, onde eu dormi tanto tempo com a avó Agnette, onde ela me ensinou madrugadase deu todas as estórias e o desdobrar de todos os tempos que quis dar, esse espaço

enorme assim tão pequinino era apenas um quarto, com a enorme janela virada para atrepadeira, que estava perto da poeira dela, que estava perto das flores, que estava pertoda botija de gás vazia, que estava perto do contador de água, que estava perto da relva,que estava perto do cacto, que estava perto dos caracóis, que estavam perto daslesmas, que estavam perto da baba, que estava perto do portão pequeno, que estavaperto da caixa de correio branca sem cartas, que estava perto da rua, que estava pertode mim - "se tu queres ir para outro lugar, nós também achamos que é melhor".  Deixei os braços pousarem na madeira inchada e húmida, abri um pouco a janela apensar que isso de olhar a chuva de frente podia abrandar o ritmo dela, ouvi lá embaixo,na varanda, os passos da avó Agnette que se ia sentar na cadeira da varanda a apanharfresco, senti que despedir-me da minha casa era despedir-me dos meus pais, dasminhas irmãs, da avó e era despedir-me de todos os outros: os da minha rua, senti querua não era um conjunto de casas mas uma multidão de abraços, a minha rua, que

sempre se chamou Fernão Mendes Pinto, nesse dia ficou espremida numa só palavraque quase me doía na boca se eu falasse com palavras de dizer: infância.  A chuva parou. O mais difícil era saber parar as lágrimas.  O mundo tinha aquele cheiro da terra depois de chover e também o terrível cheiro dasdespedidas. Não gosto de despedidas porque elas têm esse cheiro de amizades que setransformam em recordações molhadas com bué de lágrimas. Não gosto de despedidasporque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizemsegredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido decriança. Desci. Sentei-me perto, muito perto da avó Agnette. Ficámos a olhar o verde do jardim, as gotas a evaporarem, as lesmas a prepararem oscorpos para novas caminhadas. O recomeçar das coisas. - Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.  

- Vão para casa, filho. - Tantas vezes de um lado para o outro?  - Uma casa está em muitos lugares - ela respirou devagar, me abraçou. - É uma coisaque se encontra.