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s músicas negra e branca compõem as raízes de muitos gêneros musicais exis- tentes até hoje. A interação entre ele- mentos negros e brancos permeia a evolução da música, tornando possível a análise de um contexto comportamental e sócio-econômico a partir desse processo. A música contribui na criação de inúmeras iden- tidades, estabelecendo relação com indivíduos e grupos relativamente extensos. Segundo o mestre em musicologia Vincenzo Cambria, a música pode assumir um papel extremamente importante nos processos de elaboração e negociação de uma iden- tidade étnica ou racial. Para o estudante de música Gabriel Vabo, a análise da antropologia da música decorre da inclusão da música nas atividades sociais e os sig- nificados múltiplos desse processo. O contexto no qual determinada música está inserida ajuda a compreender seu significado. Os resultados da mistura entre música negra e música branca são as várias manifestações híbri- das que mesclam características promovendo um produto miscigenado, único e mais democrático. São considerados como estilos originados dessa fusão da música negra e branca o jazz, o rock’n roll, o blues, o rhythm’n blues(R&B), o soul, o country, o samba, o chorinho e o rap, entre outros. Estes gêneros musicais apresentam elementos negros e brancos em sua origem, além de terem gerado outros tipos de música. O rock, que virou um sucesso na década de 1950, unia um ritmo rápido com toques de música negra do sul dos Estados Unidos e de música country, além disso, unia dança negra com a música branca de origem européia. Sua vertente negra produziu o soul na América e influenciou o reggae. Por sua vez, o ritmo imortalizado por Bob Marley atingiu seu auge na década de 1970, misturando ritmos africanos, músicas folclóricas da Jamaica, ska e calipso. Por ter origem africana e ser cantado na maioria das vezes por pessoas negras, nas duas décadas anteriores, o reggae não estava muito pre- sente nas rádios, já que a maior parte era de pro- priedade de brancos que se recusavam a tocar o ritmo. O rap é outro exemplo de som híbrido. Criado nos EUA, mais especificamente nos bairros pobre s de Nova Iorque, jovens de origem negra e hispâni- ca buscavam uma sonoridade nova. No Brasil, também há a presença da associação entre músi- cas negra e branca. O f u n k , por exemplo, nasceu nos EUA, oriundo do rap n o v a i o rquino, e aqui foi ANA CAROLINA REIS, BRUNO ARRAES, EVELYN DELGADO E MYLENE CINTRA O preto e o branco na música P & B 15 Ray Charles A relação dialética entre dois ritmos e sua importância na história da música

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s músicas negra e branca compõem asraízes de muitos gêneros musicais exis-tentes até hoje. A interação entre ele-mentos negros e brancos permeia a

evolução da música, tornando possível a análise deum contexto comportamental e sócio-econômico apartir desse processo.

A música contribui na criação de inúmeras iden-tidades, estabelecendo relação com indivíduos egrupos relativamente extensos. Segundo o mestreem musicologia Vincenzo Cambria, a música podeassumir um papel extremamente importante nosprocessos de elaboração e negociação de uma iden-tidade étnica ou racial.

Para o estudante de música Gabriel Vabo, aanálise da antropologia da música decorre dainclusão da música nas atividades sociais e os sig-nificados múltiplos desse processo. O contexto noqual determinada música está inserida ajuda acompreender seu significado.

Os resultados da mistura entre música negra emúsica branca são as várias manifestações híbri-das que mesclam características promovendo umproduto miscigenado, único e mais democrático.São considerados como estilos originados dessafusão da música negra e branca o jazz, o rock’n roll,o blues, o rhythm’n blues(R&B), o soul, o country, osamba, o chorinho e o rap, entre outros.

Estes gêneros musicais apresentam elementosnegros e brancos em sua origem, além de teremgerado outros tipos de música. O rock, que virou umsucesso na década de 1950, unia um ritmo rápidocom toques de música negra do sul dos EstadosUnidos e de música country, além disso, unia dança

negra com a música branca de origem européia.Sua vertente negra produziu o soul na América einfluenciou o reggae.

Por sua vez, o ritmo imortalizado por Bob Marleyatingiu seu auge na década de 1970, misturandoritmos africanos, músicas folclóricas da Jamaica,ska e calipso. Por ter origem africana e ser cantadona maioria das vezes por pessoas negras, nas duasdécadas anteriores, o reggae não estava muito pre-sente nas rádios, já que a maior parte era de pro-priedade de brancos que se recusavam a tocar oritmo.

O r a p é outro exemplo de som híbrido. Criadonos EUA, mais especificamente nos bairros pobre sde Nova Iorque, jovens de origem negra e hispâni-ca buscavam uma sonoridade nova. No Brasil,também há a presença da associação entre músi-cas negra e branca. O f u n k, por exemplo, nasceunos EUA, oriundo do r a p n o v a i o rquino, e aqui foi

ANA CAROLINA REIS, BRUNO ARRAES, EVELYN DELGADO E MYLENE CINTRA

O preto e o brancona m ú s i c a

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Ray Charles

A relação dialética entre dois ritmos e sua importância na história da música

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influenciado pela cultura afro-americana. Ganhouforça no Rio de Janeiro, onde era produzido e can-tado por moradores de morros e favelas, negros emsua maioria. Hoje, ele atinge a “cultura branca”,que habita a Zona Sul da cidade e de bairros “eliti-zados”. Há ainda a própria MPB, que entre os sécu-los XVI e XVIII misturou sons africanos, cantigasp o p u l a res e músicas eruditas européias. “Pos-t e r i o rmente, a MPB foi marcada pelo ritmoafricano lundu e pela modinha portuguesa. E o cho-rinho foi a mistura desses dois com a dança de salãoeuropéia”, acrescentou Gabriel Vabo.

O rock’n roll: um híbrido por excelênciaO rock nasceu do abraço das raças negra e bran-

ca. A origem do rock está na África, mas suaprimeira transformação foi nos EUA, uma vez queos escravos, proibidos de usarem seus tambores,tiveram que assimilar o instrumental da músicabranca dos colonizadores. Por meio dessa interaçãode elementos, eles construíram uma relação dialéti-ca entre ambas as músicas, dando a origem a pro-dutos musicais híbridos como o blues, que, emgeral, expressa a melancolia e é um dos gênerosmais presentes na gênese do rock.

Novos elementos foram incorporados aos ritmoshíbridos, dando continuidade a uma cadeia de ou-t ros estilos. Um dos sons derivados dessa miscige-nação musical migrou para o norte dos EUA e lá set r a n s f o rmou, ganhando uma batida simples e tensaque deu origem ao rhythm’n blues, o R & B. Outrodescendente do b l u e s é o j a z z, que trazia a bossa dasimplicidade rítmica e a experimentação melódica eh a rmônica, conquistando seu espaço tanto na cul-tura negra quanto na cultura branca. Ao mesmotempo, criava-se o c o u n t ry and western, música maisritmada, originalmente branca, na qual os violõesganhavam captadores para aumentar o som.

O guitarrista Paulo Henrique Pereira afirma que“o R&B, um derivado do blues, e o country and west-ern são os pais do rock”, uma vez que esses dois rit-mos se misturaram durante os anos 1950. Pode sedizer também que os cantos gospel das igrejasnegras protestantes norte-americanas, as harmo-nias da música branca (européia) e os estilosderivados de ambos representam as raízes do rock.

No ritmo do funk, rap e hip hopOutro ritmo oriundo da cultura negra e influenci-

ado pela cultura branca é o funk – berço de diversosoutros estilos rítmicos atuais. O funk nasceu nosEUA, na década de 1960, através da união do jazzcom a soul music e se tornou realmente difundidopelo sucesso de James Brown (cantor negro daépoca, recentemente falecido). Foi também nessemomento que surgiu o rap (rhythm and poetry) nosanos 1970, como expressão musical dos guetosnorte-americanos, sob influência direta dos imi-grantes jamaicanos da época. Desses conceitos sedesenvolveu o hip hop – ritmo que toca nas pistas dedança em diversos lugares do mundo.

De uma maneira geral, esses ritmos sãoexpressões da cultura negra, misturando raízesn o rte americanas, jamaicanas e africanas. Afunção social desses sons afro-americanos, tão fortena época do seu surgimento, vem se diluindo àmedida em que se popularizam. Atualmente, essesritmos negros tornaram-se moda para grandes con-tingentes da população jovem em todo mundo, quedançam e cantam funk, rap e hip hop sem saberemo significado daquelas marcações rítmicas nem ocontexto que envolve a black music.

Mas essa abertura de horizontes possibilita, porexemplo, que brancos façam “música de negros” –tal como o r a p p e r n o rte-americano Eminem.Entretanto, é relevante frisar que o cantor, emboraseja branco e de olhos claros, adota a postura e ocomportamento dos rappers negros, explicitando aimpossibilidade de dissociar o ritmo da cor.

Samba: do morro para o asfaltoO samba tem origem afro-baiana com tempero

carioca. O ritmo, descendente do lundu, veio para oBrasil no início do século XX, e se instalou na Bahiae em São Paulo (Vale do Paraíba). Ele teve grande

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Pixinguinha e sua banda

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desenvolvimento no Rio de Janeiro, onde ganhounovos contornos e instrumentos.

Já no início do crescimento do samba no Rio, sepercebia a fusão do negro com o branco. A popu-laridade do gênero está na identificação de seus di-zeres com o cotidiano da gente que ocupou os mor-ros cariocas e as áreas mais simples das grandescidades, sendo fortemente marcado pela oralidadee suas implicações. Tal fato valoriza os modeloshierárquicos, a família, a religiosidade, mistura deraças, o senso comum e o contexto de onde se vive.Sua linguagem busca a compreensão imediata, amemorização e a participação da platéia.

A música Pelo telefone, assinada por Donga, fun-dou o gênero em 1917. Numa proximidade com oaparentado maxixe, outras composições aparecemmais tarde e estabelecem os primeiros fundamentosdo ritmo. Segundo o autor do livro O mistério dosamba, Hermano Vianna, nos anos 1930 e 40, o

samba e a marcha, antes praticamente confinadosaos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o paíse todas as classes sociais.

A corrente formada pelos “malandros” Al-cebíades Barcellos, Newton Bastos e Ismael Silva epor sambistas como Baiaco, Brancura e ManoEdgar, redimensiona o estilo do samba, junto comos jovens de classe média Noel Rosa e Ary Barroso.Com a explosão da era do rádio a partir dos anos1930, o ritmo ganha enorme difusão, conseguindoaté projeção internacional com a música Aquarelado Brasil, de Ary Barroso e também com CarmemMiranda.

O samba é tocado com instrumentos de percussão(tambores, surdos, timbau) e acompanhado porviolão e cavaquinho. O gênero é o marco central docarnaval, momento de comemoração da históriado povo brasileiro, de miscigenação cultural, artís-tica e racial. “Eu me orgulho de ter contribuído com

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Quando Elvis Presley cantou norádio pela primeira vez em 1954,houve um congestionamento naslinhas telefônicas da rádio por-que todos queriam saber quemera o negro que estava cantandoT h a t ’s Allright. A voz de negrocontrastava com a aparência deg a rotão branco, de olhos azuis ecabelos naturalmente loiros queforam tingidos de negros maist a rde. Elvis sempre foi ligado àmúsica negra, tinha como in-fluência os intérpretes negros doMississipi e os cânticos g o s p e l q u e

entoava na igreja e mesclavatudo isso com o ritmo c o u n t ry d ebrancos como Roy Acuff .

A grande originalidade de Elvisfoi o poder de fusão dos elementosda música negra e branca. Asgravadoras e o s h o w b i z z a m e r i-cano encontraram nele uma minade ouro: cantor branco com tre-jeitos corporais e potência vocal den e g ros. Isto acontecia de tal form a ,que muitos juravam se tratar deum cantor negro apenas ao ouviras músicas de Elvis, assim comohoje temos o exemplo das cantoras

p o p Joss Stone e Anastácia, que sãobrancas, mas se destacam por pos-s u í rem a potência vocal de can-toras negras.

O hibridismo musical, que con-s a g rou Elvis e que fez com que elese tornasse uma unanimidadee n t re negros e brancos, explica-sea partir da questão da pobre z a ,que acabou por unir as duasraças também na América doN o rte, fazendo com que ambosconvivessem no mesmo espaço,como acontece atualmente nasfavelas do Rio de Janeiro.

Elvis: a majestade híbrida do rock

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este espetáculo com começo, meio e fim, bem orga-nizado e bem disciplinado, que não tem atraso eque nem pode se adiar, um espetáculo onde o públi-co se sente à vontade e a alegria é de arrepiar”, dizo carnavalesco Joãozinho Trinta.

A cultura africana já se espalhava por diversosmorros e favelas do Rio de Janeiro – Mangueira,Império Serrano, Portela – de onde brotavam nomescomo Cartola, Carlos Cachaça, Paulo da Portela,entre muitos outros. O samba ganhou status deidentidade nacional através do reconhecimento deintelectuais como o músico e maestro Villa-Lobos.

Após a Segunda Guerra, a influência culturalamericana motiva o aparecimento da bossa nova,tocada pela classe média branca carioca, quedivide o fraseado do samba e agrega influências doi m p ressionismo erudito e do j a z z. Surge com forçano final da década de 1950 por meio de composi-t o res e intérpretes como João Gilberto, Tom Jobim eVinícius de Moraes, após pre c u r s o res como Johnny

Alf e João Donato. O gênero também teria todauma geração de discípulos-cultores como CarlosLyra, Roberto Menescal e os pioneiros vocais O sC a r i o c a s.

Dissidências internas na bossa geraram os afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Alémdisso, parte do movimento aproximou-se do sambatradicional, revalorizando sambistas ditos “demorro” como Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho emais adiante Candeia, Monarco e o, então ini-ciante, Paulinho da Viola.

No final da década de 1960, aparece Martinho daVila, que fez muito sucesso ao popularizar o par-tido-alto e lançar em disco o samba-enredo –ampliando sua potencialidade no mercado. A par-tir daí, a fusão do negro com o branco fica mais evi-dente. Artistas negros passam a compor músicaspara artistas brancos cantarem, e os brancos seinfiltram nessa cultura antes praticada apenaspelos negro s.

A questão da música híbrida narealidade brasileira é muito evi-dente ao se pensar a posição dof u n k na sociedade carioca, porexemplo. Essa influência da músi-ca afro-americana no Brasil ocorredesde a década de 1960, mas foinos anos 1980 que as versõesbrasileiras surgiram com força.

Esses novos ritmos nasceram

como expressões da cultura mar-ginal, sendo feitos por moradoresdas favelas cariocas e discrimina-dos pela grande maioria dasociedade. “O que eu acho maisrelevante é a importância social,as oportunidades que o f u n k d ápara essa galera marginalizada, achance de ser alguém, de se inte-grar na sociedade, é uma opção. O

f u n k é a voz dessa galera, umamaneira de eles se expre s s a re m ” ,explica DJ Marlboro em bate-papo promovido pelo site UOL.E n t retanto, assim como noâmbito mundial, esses ritmosmarginais cresceram e obtiveramimportância social suficiente pa-ra que a elite começasse a ouvir egostar, proporcionando a misturadas raízes brancas e negras emmais esse aspecto da cultura bra-sileira.

A estudante da PUC-Rio, LissaLemos, acredita que o f u n k é fort ena cultura carioca devido aostemas, independente do localonde seja feito. “O f u n k é tão con-sumido pelos jovens de todas asá reas da cidade, porque diz muitos o b re a realidade do carioca, nãoapenas da vida nas favelas”, arg u-menta Lissa. Hoje, existem diver-sos artistas brancos que traba-lham esses ritmos negros, eviden-ciando a mistura de raízes queconstrói esse cenário.

O funk no Rio de Janeiro

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Divulgação

DJ Marlboroem açãoDJ Marlboroem ação