o papel da intuição e dos conceitos nas teorias

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Studia Kantiana 14 (2013): 34-54 O papel da intuição e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria [The role of intuition and concepts in the Kantian theories of geometry] Julio Esteves Universidade Estadual do Norte Fluminense (Campos de Goytacazes, Brasil) Introdução Para muitos críticos de Kant, os argumentos visando provar que o espaço é uma intuição pura a priori, só concebível como tal se não for nada além de forma subjetiva de nossa intuição, e não uma determinação aderente aos objetos em si mesmos, fundar-se-iam todos exclusivamente na validade inquestionada da geometria euclidiana. 1 Como também observa Allison (2004, p. 116), para muitos críticos, a Exposição transcendental do conceito de espaço não forneceria simplesmente uma prova adicional para teses independentemente defendidas na Exposição metafísica, mas a sua única prova. Se isso estivesse correto, o aparecimento das assim chamadas geometrias não-euclidianas representaria uma refutação de facto da concepção kantiana do espaço. Diante disso, os defensores de Kant tendem a pôr em relevo a validade em si e independência que a Exposição metafísica do conceito de espaço teria relativamente à geometria euclidiana. Isso posto, assumindo também a defesa de Kant, gostaria de argumentar em sentido inverso, evidenciando a independência da geometria euclidiana relativamente às teses apresentadas na Exposição metafísica. O apoio para essa minha linha de defesa se encontra numa determinada teoria kantiana da geometria, distinta da que é usualmente discutida pelos intérpretes. Esta última é aquela teoria que pode ser depreendida de várias passagens de suas obras, em particular na Estética transcendental da Crítica da razão pura e nos parágrafos iniciais dos Prolegômenos, onde a exigência de Email: [email protected]. O presente artigo é uma versão substancialmente ampliada e revisada de um paper que apresentei no X Congresso Kant Internacional, que se encontra publicado nas atas do mesmo (Esteves, 2005, pp. 173-184). 1 Um exemplo paradigmático desse tipo de crítica pode ser encontrado, por exemplo, em Strawson (1966, pp. 62 e 277) e também em Guyer (1987, pp. 360-1).

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O papel da intuição e dos conceitos nas teorias kantianas da geometriaIntroduçãoPara muitos críticos de Kant, os argumentos visando provar que oespaço é uma intuição pura a priori, só concebível como tal se não fornada além de forma subjetiva de nossa intuição, e não uma determinaçãoaderente aos objetos em si mesmos, fundar-se-iam todos exclusivamentena validade inquestionada da geometria euclidiana.1 Como tambémobserva Allison (2004, p. 116), para muitos críticos, a Exposiçãotranscendental do conceito de espaço não forneceria simplesmente umaprova adicional para teses independentemente defendidas na Exposiçãometafísica, mas a sua única prova. Se isso estivesse correto, oaparecimento das assim chamadas geometrias não-euclidianasrepresentaria uma refutação de facto da concepção kantiana do espaço.Diante disso, os defensores de Kant tendem a pôr em relevo a validadeem si e independência que a Exposição metafísica do conceito de espaçoteria relativamente à geometria euclidiana. Isso posto, assumindotambém a defesa de Kant, gostaria de argumentar em sentido inverso,evidenciando a independência da geometria euclidiana relativamente àsteses apresentadas na Exposição metafísica. O apoio para essa minhalinha de defesa se encontra numa determinada teoria kantiana dageometria, distinta da que é usualmente discutida pelos intérpretes. Estaúltima é aquela teoria que pode ser depreendida de várias passagens desuas obras, em particular na Estética transcendental da Crítica da razãopura e nos parágrafos iniciais dos Prolegômenos, onde a exigência de construção de conceitos resulta num papel de destaque dado à intuiçãopura no procedimento geométrico, o que justamente dá origem à suspeitapor parte dos críticos. Entretanto, podemos encontrar em outraspassagens da própria Crítica da razão pura,2 em particular na seçãointitulada Disciplina da razão pura no uso dogmático, indicações de umadiferente concepção dos pressupostos da geometria, que, ainda queigualmente sustente a necessidade de construção de conceitos, concedeum papel destacado ao conceito geométrico e um papel absolutamentesecundário à intuição, sobretudo à intuição pura. Ora, se pudermosmostrar que esta última versão representa a posição consistente de Kant arespeito dos pressupostos da geometria, então teremos através dissoobtido um importante elemento para mostrar que ela é independente daconcepção kantiana do espaço como intuição pura e forma subjetiva daintuição. Como consequência lateral, teremos que, quaisquer que sejamas deficiências dos argumentos especificamente destinados afundamentar a concepção kantiana do espaço aduzidos na Exposiçãometafísica, elas não terão nada a ver com a pretensão de dar conta dascondições formais transcendentais da geometria euclidiana, a única queKant teve oportunidade de conhecer.

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  • Studia Kantiana 14 (2013): 34-54

    O papel da intuio e dos conceitos nas teorias

    kantianas da geometria

    [The role of intuition and concepts in the Kantian theories

    of geometry]

    Julio Esteves

    Universidade Estadual do Norte Fluminense (Campos de Goytacazes, Brasil)

    Introduo

    Para muitos crticos de Kant, os argumentos visando provar que o

    espao uma intuio pura a priori, s concebvel como tal se no for

    nada alm de forma subjetiva de nossa intuio, e no uma determinao

    aderente aos objetos em si mesmos, fundar-se-iam todos exclusivamente

    na validade inquestionada da geometria euclidiana.1 Como tambm

    observa Allison (2004, p. 116), para muitos crticos, a Exposio

    transcendental do conceito de espao no forneceria simplesmente uma

    prova adicional para teses independentemente defendidas na Exposio

    metafsica, mas a sua nica prova. Se isso estivesse correto, o

    aparecimento das assim chamadas geometrias no-euclidianas

    representaria uma refutao de facto da concepo kantiana do espao.

    Diante disso, os defensores de Kant tendem a pr em relevo a validade

    em si e independncia que a Exposio metafsica do conceito de espao

    teria relativamente geometria euclidiana. Isso posto, assumindo

    tambm a defesa de Kant, gostaria de argumentar em sentido inverso,

    evidenciando a independncia da geometria euclidiana relativamente s

    teses apresentadas na Exposio metafsica. O apoio para essa minha

    linha de defesa se encontra numa determinada teoria kantiana da

    geometria, distinta da que usualmente discutida pelos intrpretes. Esta

    ltima aquela teoria que pode ser depreendida de vrias passagens de

    suas obras, em particular na Esttica transcendental da Crtica da razo

    pura e nos pargrafos iniciais dos Prolegmenos, onde a exigncia de

    Email: [email protected]. O presente artigo uma verso substancialmente ampliada e

    revisada de um paper que apresentei no X Congresso Kant Internacional, que se encontra

    publicado nas atas do mesmo (Esteves, 2005, pp. 173-184). 1 Um exemplo paradigmtico desse tipo de crtica pode ser encontrado, por exemplo, em Strawson

    (1966, pp. 62 e 277) e tambm em Guyer (1987, pp. 360-1).

  • Esteves

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    construo de conceitos resulta num papel de destaque dado intuio

    pura no procedimento geomtrico, o que justamente d origem suspeita

    por parte dos crticos. Entretanto, podemos encontrar em outras

    passagens da prpria Crtica da razo pura,2 em particular na seo

    intitulada Disciplina da razo pura no uso dogmtico, indicaes de uma

    diferente concepo dos pressupostos da geometria, que, ainda que

    igualmente sustente a necessidade de construo de conceitos, concede

    um papel destacado ao conceito geomtrico e um papel absolutamente

    secundrio intuio, sobretudo intuio pura. Ora, se pudermos

    mostrar que esta ltima verso representa a posio consistente de Kant a

    respeito dos pressupostos da geometria, ento teremos atravs disso

    obtido um importante elemento para mostrar que ela independente da

    concepo kantiana do espao como intuio pura e forma subjetiva da

    intuio. Como consequncia lateral, teremos que, quaisquer que sejam

    as deficincias dos argumentos especificamente destinados a

    fundamentar a concepo kantiana do espao aduzidos na Exposio

    metafsica, elas no tero nada a ver com a pretenso de dar conta das

    condies formais transcendentais da geometria euclidiana, a nica que

    Kant teve oportunidade de conhecer.

    A parte fundamental do que estou chamando de teoria kantiana

    da geometria usualmente discutida pelos intrpretes desenvolvida na

    Esttica transcendental da Crtica da razo pura e nos pargrafos

    correspondentes no incio dos Prolegmenos. Trata-se de passagens

    fundamentais porque nelas que o prprio Kant acredita ter dado conta

    adequadamente do elemento que tornaria primeiramente possveis os

    juzos sintticos a priori produzidos pela geometria, a saber, a intuio

    pura do espao como forma pura da intuio.3 preciso fazer essa

    advertncia preliminar porque, como salientado pelos prprios

    intrpretes, segundo Kant, as condies de possibilidade do

    conhecimento geomtrico no esto ainda inteiramente dadas na Esttica

    transcendental, tendo de ser complementadas pela contribuio dada pelo

    entendimento, tal como podemos ver na Analtica transcendental.

    Contudo, os intrpretes geralmente compreendem a contribuio dada 2 Doravante citada sob a forma abreviada KrV. As referncias Crtica da razo pura so sempre ao

    texto da 1 e da 2 edies, designadas, respectivamente, como de slito, pelas letras A e B, e

    seguindo, o mais das vezes, a traduo de Valerio Rohden. A traduo de passagens de outras obras de Kant de minha responsabilidade.

    3 Como se pode verificar, por exemplo, na seguinte passagem da Exposio metafsica do espao:

    Disso se segue que, no tocante ao espao, uma intuio a priori (no emprica) subjaz a todos os conceitos do mesmo. Assim, todos os princpios geomtricos, por exemplo, que num tringulo a

    soma de dois lados maior do que o terceiro lado, jamais so derivados dos conceitos universais

    de linha e de tringulo, mas, sim, da intuio, e isso a priori com certeza apodtica (KrV, A 25/ B

    39).

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    36

    pelo entendimento, mais exatamente, a contribuio dada pelos conceitos

    puros do entendimento, sempre em vinculao com as teses da Esttica

    transcendental, ou seja, em vinculao com a concepo kantiana do

    espao como intuio pura e forma pura da intuio. Em contraposio a

    isso, em primeiro lugar, buscarei mostrar que Kant defende uma teoria

    alternativa, na qual antes especificamente o conceito geomtrico que

    recebe papel de destaque. Em segundo lugar, buscarei deixar

    suficientemente evidenciado em que medida ela completamente

    independente da Esttica transcendental.

    1. O papel da intuio pura numa das teorias kantianas da

    geometria

    O que usualmente entendido pela maioria dos intrpretes como

    constituindo a teoria kantiana da geometria tem a forma de um

    argumento analtico-regressivo, que assume a validade da geometria

    (euclidiana) e do seu peculiar modo de procedimento como algo

    condicionado, indo em busca das suas condies de possibilidade.

    Assim, Kant parte da suposio de que a geometria uma cincia que

    determina sinteticamente e com validade necessria e universal as

    propriedades do espao, perguntando-se ento pela natureza que tem de

    ter a representao do espao, de modo a tornar possvel uma tal cincia

    (Prolegmenos). Que as proposies matemticas em geral tenham

    validade necessria e universal, i.e. validade a priori, algo que Kant

    toma por indubitvel, pelo menos na medida em que nos limitarmos

    matemtica pura, cujo conceito j traz consigo que ela no contm

    conhecimento emprico, mas s conhecimento puro a priori (KrV, B 15;

    grifado no original). J o carter sinttico das proposies geomtricas,

    especificamente, seria algo que, para ele, poderia ser evidenciado tanto

    nos axiomas quanto nos teoremas demonstrados com base neles. Assim,

    pelo exame do que toma por um princpio (Grundsatz) da geometria, a

    saber, o axioma segundo o qual a linha reta o caminho mais curto entre

    dois pontos, Kant procura mostrar que se trata de uma proposio

    sinttica. Pois, escreve ele, o meu conceito de reto no contm nada de

    quantidade, mas s uma qualidade. Portanto, o conceito do mais curto

    acrescentado inteiramente e no pode ser extrado do conceito de linha

    reta por nenhum desmembramento (KrV, B 16; grifado no original).

    Contudo, o exemplo escolhido no me parece muito feliz. Kant est

    afirmando que o conceito de reta no pode conter (analiticamente) o

    predicado mais curto, porque o primeiro conteria somente uma

    qualidade, ao passo que o segundo, uma quantidade. Entretanto,

  • Esteves

    37

    preciso admitir contra Kant que ordinariamente dizemos de certas coisas

    que elas possuem a qualidade ou propriedade de serem mais curtas que

    outras. Em outras palavras, o mais curto pode ser perfeitamente

    considerado como uma qualidade, por exemplo, uma qualidade que

    atribumos reta quando a comparamos com outras linhas possveis

    passando por dois pontos dados, ainda que a atribuio daquela

    qualidade reta exija uma mensurao comparativa. Alis, poder-se-ia

    mesmo alegar, ainda contra Kant, que a qualidade a que ele se refere

    como contida no conceito de reta poderia ser expressa justamente pelo

    predicado ser o caminho mais curto entre dois pontos. No que tange

    aos teoremas, a resposta dada por Kant nas partes introdutrias

    primeira Crtica ainda menos desenvolvida e convincente. Com efeito,

    Kant tem ainda mais dificuldade em defender a tese do carter sinttico

    dos teoremas porque no desconhecia que as inferncias dos

    matemticos procedem todas segundo o princpio de contradio (KrV,

    B 14). Ainda assim, Kant sustenta que o procedimento dedutivo

    geomtrico, fundado no princpio de contradio, no transformaria as

    proposies derivadas em proposies analticas. Pois, prossegue ele,

    uma proposio sinttica pode seguramente ser compreendida segundo

    o princpio de contradio, mas somente de tal modo que se pressuponha

    uma outra proposio sinttica, da qual a primeira possa ser inferida,

    jamais, porm, em si mesma (KrV, B 14). Desse modo, Kant parece

    estar querendo dizer que o suposto carter sinttico dos axiomas de

    algum modo transmitir-se-ia para toda a cadeia de proposies derivadas

    deles de acordo com o princpio de contradio. Em suma, pelo menos

    nas partes introdutrias da primeira Crtica, Kant sustenta a tese do

    carter sinttico a priori das proposies geomtricas em geral

    exclusivamente apoiado no exemplo (insuficientemente discutido) dos

    axiomas. Como quer que seja, a questo posta por Kant tanto na Esttica

    transcendental quanto nas partes correspondentes dos Prolegmenos ser

    a de determinar qual deve ser a natureza da representao do espao, se

    ela deve se constituir como uma condio de possibilidade da geometria

    como conhecimento sinttico a priori das propriedades do espao.

    De acordo com Kant, em primeiro lugar, o espao tem de ser

    originariamente intuio, j que de um simples conceito de espao no se

    podem extrair proposies que ultrapassem o conceito (KrV, A 25/ B

    40-1), ou seja, as supostas proposies sintticas a priori geomtricas.

    Em segundo lugar, essa intuio tem que ser encontrada em ns a priori

    (...), portanto, tem que ser intuio pura e no emprica (KrV, A 25/ B

    41), j que as proposies geomtricas nela fundadas teriam validade a

    priori. Por fim, como ltimo passo no sentido de fornecer um argumento

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    38

    indireto para as teses da Exposio metafsica, Kant argumenta que s

    podemos compreender a possibilidade de determinar a priori, como o faz

    a geometria, o conceito e propriedades de objetos que so dados a

    posteriori no sentido externo, se admitirmos que o espao no nada

    alm de forma pura da nossa intuio externa, forma subjetiva da

    sensibilidade, e no uma determinao aderente s prprias coisas (KrV,

    A 25/ B 41). Com esse ltimo passo, Kant pretende explicar por que os

    clculos feitos pelo gemetra a respeito de figuras ideais e perfeitas, das

    quais no se pode encontrar nenhum exemplo na natureza, podem no

    obstante encontrar aplicao a priori em objetos reais, que se aproximam

    apenas imperfeitamente dessas figuras. Pois, segundo Kant, se o espao

    tematizado pelo gemetra no for nada alm de uma forma introduzida

    pelo sujeito no ato de conhecimento dos objetos do sentido externo e,

    portanto, uma condio de possibilidade dos mesmos aparecerem para

    ns, compreender-se- como possvel obter conhecimento a priori das

    propriedades de partes do espao e como esse conhecimento vlido

    independentemente da experincia pode encontrar uma aplicao

    necessria nos objetos da experincia.4

    Essa teoria kantiana da geometria gerou muitas objees, em

    virtude das suposies que lhe servem de ponto de partida. Assim, por

    exemplo, Kant teria tomado por inquestionvel que a geometria

    euclidiana, a nica que ele pde conhecer, exporia a estrutura necessria

    do espao, tal como seria possvel depreender da afirmao de que o

    espao s pode ter trs dimenses, mais um suposto exemplo de

    proposio sinttica a priori fornecida pela geometria (KrV, A 25/ B 40).

    Alis, em contraposio a esta ltima suposio, verifica-se hoje em dia

    uma recusa geral em considerar as proposies geomtricas como

    verdades sintticas a priori. Com efeito, ou bem se as considera como

    proposies analticas, quando se trata das geometrias puras ou no-

    interpretadas, por exemplo, ou bem como proposies sintticas a

    posteriori, quando se trata da geometria aplicada ao espao fsico. Com

    relao a esta ltima distino, Kant usualmente criticado por no ter

    tido clareza sobre as condies de possibilidade de uma geometria pura e

    as de uma geometria aplicada (Kemp-Smith, 1995, pp. 111-12). Outra

    4 Cf. Prolegmenos, 13, Observao I: Se (...) esta intuio formal [for] uma propriedade

    essencial de nossa sensibilidade, mediante a qual, unicamente, objetos nos so dados, e se essa

    sensibilidade no nos representar coisas em si mesmas, mas somente seus fenmenos, ento

    muito fcil conceber e, ao mesmo tempo, fica inquestionavelmente provado: que todos os objetos externos de nosso mundo sensvel tm de concordar necessariamente, e com toda exatido, com as

    proposies da geometria, porque a sensibilidade, atravs de sua forma de intuio externa (o

    espao), com o qual se ocupa o gemetra, torna primeiramente possveis aqueles objetos como

    meros fenmenos. Cf. tambm KrV, A 25/ B 40-1 e Prolegmenos, 6-10.

  • Esteves

    39

    objeo usual est relacionada ao excessivo peso concedido por Kant ao

    papel representado pela construo de figuras, qual ele faz aluso no

    item 3 da Exposio metafsica do espao na primeira edio da Crtica

    da razo pura (KrV, A 24), e, em decorrncia disso, intuio pura do

    espao, em sua avaliao do modo de proceder geomtrico. Com efeito,

    isso parece ser tributrio de um determinado modo de fazer geometria,

    justamente maneira de Euclides, o qual j comeara a ser superado ao

    tempo do prprio Kant com a introduo da geometria analtica por

    Descartes.5

    Contudo, como veremos mais a frente, mesmo do ponto de vista

    de uma anlise imanente dos prprios textos kantianos, possvel fazer

    objees a essa tentativa de dar conta do modo de proceder da geometria

    euclidiana mediante recurso intuio pura do espao compreendido

    como forma da intuio externa. Entrementes, procuremos aprofundar

    nossa compreenso dessa teoria kantiana da geometria. Assim, para

    efeitos de argumentao, poderamos dar por concedido que o

    conhecimento geomtrico se exprima em proposies sintticas a priori,

    perguntando, ento, em que sentido exatamente o recurso intuio pura

    a priori do espao permitiria dar conta do carter especfico dessas

    proposies. Pois, afora o remetimento sua doutrina crtica, segundo a

    qual a partir de meros conceitos de espao a geometria s poderia

    produzir proposies analticas, e no as buscadas proposies a priori

    ampliadoras do conhecimento e dotadas de certeza apodtica (KrV, B

    41), a Exposio transcendental no apresenta nenhum detalhamento

    mais preciso sobre o modo como a intuio pura do espao funcionaria

    em tal ampliao.

    Os problemas de compreenso dessa tese kantiana se colocam j

    em virtude da conhecida, mas muitas vezes esquecida, ambiguidade

    envolvida na palavra intuio, que, tal como o correlato alemo

    Anschauung, significa ora o ato de intuir, ora o contedo ou objeto do

    5 Como observa a esse respeito Hintikka (1992, p. 22), this () is the basis of a frequent criticism

    of Kants theory of mathematics. It is said, or taken for granted, that constructions in geometrical

    sense of the word can be dispensed with in mathematics. All we have to do there is to carry out certain logical arguments which may be completely formalized in terms of modern logic. The only

    reason why Kant thought that mathematics is based on the use of constructions was that

    constructions were necessary in the elementary geometry of his day, derived in most cases almost directly from Euclids Elementa. But () it was due to the fact that Euclids set of axioms and

    postulates was incomplete. In order to prove all the theorems he wanted to prove, it was therefore

    not sufficient for Euclid to carry out a logical argument. He had to set out a diagram or figure so that he could tacitly appeal to our geometrical intuition which in this way could supply the missing

    assumptions which he had omitted. Kants theory of mathematics, it is thus alleged, arose by

    taking as an essential feature of all mathematics something which only was a consequence of a

    defect in Euclids particular axiomatization of geometry.

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    40

    ato, o que intudo no ato de intuio. Ora, na Exposio metafsica,

    Kant pretendeu ter provado que o espao intuio pura a priori, e no

    um conceito, querendo dizer com isso, em primeiro lugar, que temos

    uma conscincia originria e a priori do espao como algo uno, singular

    e infinito, e, em segundo lugar, que os mltiplos espaos so

    necessariamente concebidos como partes desse nico espao. Ou seja,

    com a tese de que o espao uma intuio pura a priori, Kant est

    chamando a ateno para a natureza do objeto ou do contedo da

    conscincia que temos do espao. Ora, se for esse o sentido tambm

    empregado na Exposio transcendental, no fica claro para mim por que

    o apelo ao espao uno e infinito que abarca todos os espaos permitiria

    compreender a validade de proposies relacionadas a pequenas partes

    do espao, como, por exemplo, as proposies entre dois pontos s

    pode passar uma nica linha reta e a soma dos ngulos de um tringulo

    igual a dois retos, etc., nas quais, como alega Kant, ultrapassamos os

    conceitos de tringulo e de reta, conectando a priori com eles predicados

    que no esto contidos nos mesmos. Contudo, uma considerao de um

    trecho dos pargrafos correspondentes dos Prolegmenos (7) fornece

    alguma clareza a respeito do que ele tem em mente. Pois, segundo Kant,

    do mesmo modo que a intuio emprica torna possvel, sem dificuldade,

    que ampliemos sinteticamente na experincia o conceito que nos fazemos

    de um objeto da intuio, atravs de novos predicados que a prpria

    intuio oferece, assim tambm o far a intuio pura, s que com a

    seguinte diferena, a saber, que no ltimo caso o juzo ser apodtico e

    certo a priori, ao passo que no primeiro caso ser somente empiricamente

    e a posteriori certo (...).

    Se compreendo bem essa passagem, no o espao uno e infinito

    enquanto tal que tornaria compreensvel a possibilidade de produzir

    proposies sintticas a priori na geometria. Com efeito, de acordo com

    a passagem citada, Kant supe que haja uma analogia entre o modo

    como a intuio emprica permite acrescentar a um conceito predicados

    que no estavam contidos nele e o modo como a geometria acrescentaria

    novos predicados aos conceitos de espao, obtendo proposies

    ampliadoras sobre o mesmo. Em outras palavras, se a inspeo visual de

    uma rosa dada numa intuio emprica me possibilita acrescentar ao

    conceito de rosa predicados que no esto originalmente contidos nele,

    como o predicado vermelho, por exemplo, ento, analogamente, a

    inspeo visual de um tringulo e de construes auxiliares traados num

    quadro-negro possibilitar-me-ia acrescentar ao conceito de tringulo

    propriedades que no estavam originalmente contidas no mero conceito

  • Esteves

    41

    do mesmo, como, por exemplo, a propriedade de ter a soma dos seus

    ngulos internos igual a dois retos. Porm, como no ltimo caso a

    proposio conhecida com validade necessria e universal, ou seja, a

    priori, seria preciso admitir que na base da intuio emprica, sobre a

    qual se d a minha inspeo visual do tringulo que tracei, existiria o

    espao como sua forma pura, no qual eu propriamente considerei o

    tringulo puro, livre das imperfeies empricas, e com o qual conectei a

    priori a mencionada propriedade. Contudo, como esse tringulo puro,

    forma daquele tringulo traado no quadro-negro, ainda assim um

    objeto singular, pode ser chamado com toda propriedade de uma

    intuio pura ou intuio formal.6 Assim, os dois sentidos em que o

    termo intuio pode ser tomado, a saber, como ato de intuir e como

    objeto intudo, acabam convergindo na explicao dada por Kant

    visando dar conta da possibilidade de juzos sintticos a priori

    ampliadores de nosso conhecimento na geometria.7

    2. O papel decisivo do conceito geomtrico e o papel secundrio da

    intuio na outra teoria kantiana da geometria

    Ora, se o que foi dito acima for uma correta exposio do ncleo

    fundamental do que os intrpretes usualmente tomam como sendo a

    teoria kantiana da geometria, teremos de admitir que a explicao dada

    na Esttica transcendental e no incio dos Prolegmenos no d conta

    nem mesmo da validade da geometria euclidiana. Isso fica claro, se a

    compararmos com a explicao alternativa dada por Kant na seo

    intitulada Disciplina da razo pura no uso dogmtico, nas partes finais da

    Crtica da razo pura. Ora, digno de nota que a teoria da geometria e

    6 Sobre o conceito de intuio formal e sua importncia para essa concepo kantiana do

    procedimento geomtrico, cf. KrV, B 161. 7 Um excelente resumo da teoria kantiana sobre as condies de possibilidade de proposies

    sintticas a priori na geometria na verso que ora estou discutindo, a qual apela para uma analogia

    com o modo como so estabelecidas proposies sintticas empiricamente vlidas, pode ser encontrado na seguinte passagem do livro sobre filosofia da matemtica de Jairo J. Silva (2007, p.

    99): Esse genial golpe de mestre de Kant a chave da possibilidade dos enunciados sintticos a

    priori. Ele nos fornece uma resposta a todas as questes anteriores. Por seu intermdio temos um meio, a saber, as intuies puras do espao e do tempo, onde levar a cabo as construes e

    verificaes matemticas, e, portanto, um correlato puro das verificaes empricas; isso responde

    como so possveis os enunciados sintticos a priori da matemtica. Ademais, como o espao e o tempo so as formas necessrias de toda experincia sensvel, e a matemtica, num certo sentido a

    ser precisado, a cincia do espao e do tempo, claro agora como possvel aplic-la aos dados

    dos sentidos, ou seja, nossa experincia do mundo sensvel. O mundo sensvel matematizvel simplesmente porque o so o espao e o tempo, e esse mundo , inapelavelmente, um mundo

    espao-temporal. Como se pode observar imediatamente, por estar comentando a concepo

    kantiana da matemtica em geral, e no somente da geometria em particular, o autor se refere no

    somente ao espao, mas tambm ao tempo.

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    42

    da matemtica em geral exposta por Kant na mencionada seo da

    primeira Crtica j tinha sido antecipada em suas principais teses na

    Investigao sobre a evidncia dos princpios da teologia natural e da

    moral, um opsculo pr-crtico publicado em 1764. Esta uma

    observao muito importante, pois significa que a teoria da geometria

    apresentada inicialmente na Investigao e depois reproduzida na

    Disciplina fora concebida num momento em que Kant ainda no

    dispunha daquela concepo do espao como intuio pura e forma

    subjetiva da intuio, que, segundo os intrpretes mais autorizados, teria

    sido antecipada somente na Dissertao de 1770. E, de fato, no que se

    segue, em contraposio ao modo de proceder usual dos intrpretes, que

    simplesmente acabam por projetar as teses da Esttica transcendental na

    Disciplina, buscarei mostrar que a teoria da geometria apresentada nesta

    ltima seo pode e deve ser lida independentemente da concepo do

    espao como intuio pura e forma subjetiva da intuio.

    Na Disciplina, tal como j o fizera na Investigao, Kant procede

    a uma comparao entre o conhecimento filosfico, que um

    conhecimento racional a partir de meros conceitos, e a matemtica, um

    conhecimento racional que procede pelo que ele chama de construo de

    conceitos. Kant esclarece que construir um conceito significa exibir a

    priori a intuio que lhe correspondente.8 preciso atentar aqui para o

    fato de que, diferentemente do que acontece na Esttica transcendental, a

    expresso a priori no usada na citao acima como um adjetivo

    qualificativo da intuio, e, sim, como um advrbio modificando a

    Darstellung, designando o modo como exibido o objeto numa

    intuio.9 Ou seja, construir um conceito exibir a priori numa intuio,

    e no exibir numa intuio a priori. E que isso de fato seja assim, no se

    evidencia por razes meramente gramaticais. Pois vrias passagens da

    Disciplina mostram claramente que, como a geometria procede a uma

    exibio a priori, pouco importa a natureza da intuio, a saber, se pura a

    priori, ou emprica, na qual tal exibio feita.10 Porm, verdade que a

    8 Cf. KrV, A 713/ B 741: Einen Begriff aber konstruieren, heisst: die ihm korrespondierende

    Anschauung a priori darstellen. 9 Alis, o emprego da expresso a priori como um advrbio designando o modo de exibio de um

    objeto ocorre em outras passagens da Disciplina, como, por exemplo, KrV, A 717/ B 745, A 722/

    B 750, A 729-30/ B 757-8. 10 Cf. KrV, A 713/ B 742: Assim, eu construo um tringulo na medida em que exibo o objeto

    correspondente a esse conceito ou bem mediante a pura (blosse) imaginao na intuio pura, ou

    bem, de acordo com a mesma, tambm sobre o papel na intuio emprica, em ambos os casos, porm, de um modo completamente a priori (...) nessa passagem, fica completamente claro que

    a expresso a priori est sendo usada como um advrbio; cf. tambm KrV, A 718/ B 746: O

    segundo procedimento, contudo, a construo matemtica e, aqui, mais exatamente, a construo

    geomtrica, mediante a qual componho (hinsetze) numa intuio pura, tanto quanto numa intuio

  • Esteves

    43

    frase que se segue imediatamente definio do que seja uma construo

    de um conceito parece desmentir essa interpretao. Pois Kant prossegue

    afirmando que, para a construo de um conceito, exigida uma

    intuio no-emprica, como se, para exibir a priori numa intuio,

    fosse necessria uma intuio a priori. Entretanto, justamente nesse

    ponto, Kant manifesta algum embarao pelo fato da intuio no-

    emprica supostamente exigida para a construo de um conceito

    geomtrico ser, ainda assim, por definio, um objeto singular, o que

    coloca o problema de saber como que ela pode expressar validade

    universal para todas as intuies possveis que caem sob o mesmo

    conceito (KrV, A 713/ B 741).

    A reflexo contida nessa passagem fornece elementos para anular

    completamente o argumento regressivo da Exposio transcendental e o

    correspondente do incio dos Prolegmenos. Pois, de que adianta remeter

    para uma suposta forma pura de um tringulo construdo sobre uma folha

    de papel, numa tentativa de explicar, por exemplo, a validade necessria

    e universal da afirmao de que num tringulo qualquer a soma dos

    ngulos internos igual a dois retos? Pois a intuio formal desse

    tringulo puro ser sempre ainda uma intuio, ou seja, um objeto

    singular, com um determinado comprimento de seus lados formando

    ngulos determinados, ao passo que essa verdade geomtrica

    supostamente vlida para todo e qualquer tringulo, independentemente

    de tais particularidades, independentemente da grandeza dos lados e dos

    ngulos. Ou seja, a Disciplina parte de uma reflexo sobre algo trivial, a

    saber, que as verdades geomtricas so vlidas, por exemplo, para os

    tringulos em geral, para a triangularidade enquanto tal, acabando por

    dar um golpe de morte na teoria de que a considerao de um objeto

    dado numa suposta intuio pura, sempre particular e determinada, possa

    fundar tal validade.

    Na Disciplina, Kant fornece uma outra explicao, bem diferente

    daquela dada na Esttica transcendental. Pois, segundo ele, possvel

    construir um conceito geomtrico mesmo na intuio emprica, sem

    prejuzo da universalidade das propriedades e proposies produzidas,

    porque, nessa intuio emprica, atento apenas para a ao de

    construo do conceito ou para as condies universais de construo

    (KrV, A 714/ B 742).11 Ou seja, enquanto a Esttica transcendental apela

    emprica, o mltiplo que pertence ao esquema de um tringulo em geral, e, por conseguinte, ao seu conceito (...).

    11 Traduzo a expresso allgemeine Bedingungen der Konstruktion por condies universais de

    construo, seguindo a traduo de Valerio Rohden, em contraposio, por exemplo, a Paul

    Guyer, que a traduz por general conditions of construction.

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    44

    para uma intuio a priori de um tringulo e para sua forma pura com

    vistas a dar conta da validade necessria e universal das proposies

    referentes a essa figura, a Disciplina rejeita tal explicao dando a

    entender que o que garante essa validade o simples fato de que o que

    construdo a priori numa intuio (qualquer) o conceito (de tringulo),

    i.e. uma representao universal (KrV, A 713/ B 741), qual so

    indiferentes vrias determinaes que se referem, por exemplo,

    magnitude dos lados e dos ngulos, abstraindo-se, portanto, dessas

    diferenas que no alteram o conceito de tringulo (KrV, A 714/ B

    742). Assim, diferentemente do que se pode depreender da passagem dos

    Prolegmenos acima citada, Kant sustenta na Disciplina que se pode

    construir um conceito geomtrico mesmo na intuio emprica, porque,

    no ato de construo, o gemetra atenta para as suas condies

    universais de construo, i.e. para o conceito ou regra de construo, e

    no porque na base do tringulo construdo na intuio emprica estaria

    uma suposta intuio pura, forma daquela intuio emprica. O que Kant

    quer dizer que o gemetra procede considerando no aquela figura

    particular, a saber, um tringulo particular com lados e ngulos de uma

    grandeza determinada, mas o tringulo em geral, a triangularidade

    enquanto tal, abstrao feita dessas particularidades. Ou seja, em

    contraposio Esttica transcendental, a alegao de que o gemetra

    no estuda propriamente aquele tringulo real construdo sobre uma

    folha de papel e, portanto, dado numa intuio emprica, no visa tanto

    pr de lado as imperfeies daquele objeto real, que fariam com que os

    clculos e as proposies produzidos com base nele resultassem em

    meras aproximaes ou generalizaes indutivas. A concepo exposta

    por Kant na Disciplina nos faz ver que igualmente necessrio pr de

    lado as particularidades da figura real e determinada que, enquanto tais,

    so irrelevantes para as propriedades do tringulo em geral. Desse modo,

    a geometria pode produzir proposies com validade necessria e

    universal sobre, por exemplo, os ngulos de um tringulo, porque, desde

    o incio, o gemetra est considerando no propriamente aquele

    tringulo particular desenhado sobre o papel, mas tambm no uma

    suposta forma pura daquele tringulo particular, e, sim, os tringulos em

    geral, as propriedades da triangularidade enquanto tal, as propriedades

    do objeto do conceito de tringulo (KrV, A 716/ B 744), conceito ao

    qual jamais ser completamente adequado nenhum tringulo particular

    que possa ser construdo, quer numa intuio emprica, quer numa

    intuio pura, em conformidade com o mesmo.

    A pergunta que se coloca agora para qualquer um que tenha

    familiaridade com os textos de Kant a seguinte: se a validade

  • Esteves

    45

    necessria e universal das proposies geomtricas garantida pelo

    simples remetimento ao conceito geomtrico, s condies universais de

    construo, qual ser ento o papel que caberia intuio nessa teoria

    kantiana da geometria? Pois, se o conceito geomtrico o decisivo, por

    que Kant insiste tanto na tese de que, em contraposio filosofia, a

    geometria no pode se contentar com a mera considerao do conceito,

    tendo de sair dele em direo intuio correspondente, mesmo que,

    aprendemos agora, essa intuio seja emprica? Em outras palavras, se a

    geometria lida com a triangularidade em geral, por que ela tem de

    considerar sempre o universal em concreto (KrV, A 714/ B 742), ou seja,

    sempre num tringulo particular, muito embora o gemetra saiba que

    est expondo propriedades vlidas dos tringulos em geral?

    Como se sabe, Kant d uma grande importncia necessidade de

    construo de conceitos e ao recurso intuio correspondente por parte

    da geometria. Ele insiste sobre esse ponto tanto na Disciplina quanto j

    ao tempo da Investigao, sendo nisso precisamente que ele via consistir

    a diferena especfica da matemtica em geral relativamente filosofia,

    impedindo que esta ltima proceda more geometrico. Ora, se a

    necessidade de construo de conceitos e de recurso intuio por parte

    da geometria uma doutrina que Kant j defendia em 1764, ela no pode

    ser ento o mero reflexo do seu interesse em argumentar indiretamente a

    favor de sua concepo do espao. E, de fato, com relao necessidade

    de construo em geometria, sou obrigado a concordar com Kant,

    embora seja obrigado a discordar dele num ponto de menor importncia

    relacionado com essa questo.

    Por um lado, creio que Kant esteja certo em insistir na necessidade

    de construo em geometria. Pois essa insistncia no tem nada a ver

    com seu interesse em defender as teses da Esttica transcendental e,

    como veremos, nem tributria do modo euclidiano de fazer geometria.

    Ela se deve antes ao fato de que um conceito geomtrico a

    representao de um mtodo de proceder universal da imaginao, com

    vistas a fornecer a um conceito a sua imagem ou, tambm, uma regra

    de sntese, com respeito a figuras puras no espao (KrV, A 140-41/ B

    179-80). Ou seja, a insistncia por parte de Kant sobre a necessidade de

    construo decorre de uma reflexo sobre o que conceitos geomtricos

    essencialmente so. Com efeito, o que so conceitos geomtricos em

    sentido prprio seno conceitos de figuras, linhas, etc., ou seja, conceitos

    de objetos essencialmente exibveis no espao? E isso vlido mesmo

    nos casos em que nossa imaginao ou percepo se encontra submetida

    a limitaes que impossibilitam que efetivamente se construam as

    figuras correspondentes, como no famoso exemplo do conceito de um

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    46

    quiligono, i.e. de um polgono composto por mil lados, aduzido por

    Descartes nas Meditaes. Pois, devido a uma limitao da imaginao,

    no somos capazes de construir ou imaginar uma figura exatamente

    correspondente, pois ela seria indistinguvel da imagem e da figura de

    um crculo. Porm, o mesmo se passa com conceitos da aritmtica, por

    exemplo, com o conceito de um bilho. No somos capazes de abarcar

    pela percepo ou imaginao um conjunto de objetos exatamente

    correspondente a esse nmero, pois ele seria indistinguvel de um

    conjunto de objetos correspondente a um bilho e um, por exemplo.

    Entretanto, compreendemos os conceitos de quiligono e de um bilho, e

    o que a cada vez compreendemos nada mais nada menos que uma regra

    sobre como deveramos proceder para executar aes em conformidade

    de modo a exibir objetos em correspondncia, ou seja, figuras ou

    conjuntos de objetos, apesar das nossas limitaes perceptivas.12 Em

    suma, cingindo-nos ao exemplo que aqui nos interessa, quem

    compreende o conceito de quiligono, como, de resto, um conceito

    geomtrico em sentido prprio, compreende nada alm de uma regra que

    dita um modo de procedimento para produzir determinadas figuras em

    correspondncia. E, no meu modo de ver, por isso, e somente por isso,

    que a geometria tem de proceder construo de seus conceitos.

    Por outro lado, se o que foi dito estiver correto, serei obrigado a

    discordar de Kant em outro ponto. Pois ele afirma em tom polmico

    contra a tradio que a geometria se ocupa com quanta, com grandezas,

    porque seu modo de procedimento consiste na construo de conceitos, e

    s grandezas, e no qualidades, so passveis de construo a priori

    (KrV, A 714-15/ B 742-43). Entretanto, Kant, e no a tradio, quem

    toma o efeito pela causa. Pois, na geometria, como, de resto, em

    qualquer cincia, o modo de procedimento determinado pelas

    caractersticas e peculiaridades de seus objetos. Ou seja, por lidar com

    conceitos de figuras e linhas, i.e. com grandezas extensivas, que a

    geometria se v forada a adotar como parte de seu procedimento a

    exibio dos objetos correspondentes. A situao totalmente diferente

    na filosofia, como o prprio Kant salienta, porque seus conceitos no so

    regras de sntese de figuras no espao, no so regras de produo de

    intuies, e, sim, regras de sntese de intuies ou percepes possveis,

    que ela tem de esperar que sejam dadas em alguma parte. por isso que

    a filosofia no deve tentar imitar o procedimento geomtrico.

    12 Quem compreende esses conceitos est numa situao similar quela em que se encontraria um

    cartgrafo nufrago numa ilha, mas ainda de posse de seus mapas e do conhecimento necessrio

    para interpret-los. Ele est fisicamente incapaz de se evadir da ilha, mas sabe como deveria

    proceder para tal.

  • Esteves

    47

    Desse modo, deixando de lado essa pequena confuso entre causa

    e efeito, creio que Kant esteja certo ao insistir na necessidade de

    construo em geometria. De fato, com base no que foi dito acima, ouso

    afirmar que qualquer geometria que merea esse nome, e no apenas

    aquela feita maneira de Euclides, dever conter um mnimo de exibio

    de objetos correspondentes, pois isso algo inerente a um conceito

    geomtrico, est analiticamente contido no conceito de conceito

    geomtrico em geral. Na verdade, se entendo corretamente, exatamente

    isso o que sucede quando se d uma determinada interpretao ao que

    hoje em dia se denominam geometrias no-interpretadas. Pois essas

    interpretaes so nada mais nada menos que tradues de variveis e

    princpios lgico-formais em termos de pontos, retas etc., de maneira que

    eles adquiram significado geomtrico propriamente dito.13 E o mesmo

    vlido, creio eu, para as modernas geometrias crescentemente

    algebreizadas: se devem exprimir verdades geomtricas em sentido

    prprio, os clculos algbricos tm de ser interpretados, por exemplo, em

    termos de figuras, em suma, em termos de conceitos de espao. Nesse

    sentido, gostaria de corrigir a expresso empregada por Kant.

    prefervel dizer no que uma geometria proceda por, e, sim, que proceda

    a construo de conceitos. Pois, por mais que sejam crescentemente

    algebreizadas, tais geometrias no se confundem com a lgebra,

    continuam sendo sempre ainda geometrias, ou seja, cincias que

    empregam conceitos de objetos exibveis no espao. Por isso, os clculos

    algbricos altamente abstratos tm de ser interpretados em termos de

    conceitos de espao, mesmo que, em virtude de uma limitao nossa,

    no possamos de fato construir as figuras em correspondncia. Alm

    disso, expressando minha tese de um modo mais contundente, uma

    geometria que no exibisse pelo menos alguns de seus conceitos

    primitivos seria algo equivalente a uma teoria das cores produzida para

    ou por algum que fosse cego. Pois, como se trata, em ambos os casos,

    de conceitos que remetem para objetos essencialmente exibveis numa

    intuio, sem essa exibio simplesmente no se saberia sobre o que se

    est tratando. Evidentemente, a diferena importante entre esses dois

    tipos de conceitos est em que o conceito geomtrico no obtido

    empiricamente a partir das intuies dadas, sendo antes uma regra a

    priori para a produo de intuies.14

    Para aprofundar um pouco mais o que, a meu ver, Kant

    compreende por construo de conceitos em geometria, conveniente

    13 Lano mo nesse ponto das consideraes apresentadas por Stephen Barker (1976, pp. 59-63). 14 interessante notar que em certa altura da Disciplina (KrV, A 716/ B 744), Kant afirma que o que

    construdo na geometria no o conceito, e, sim, a intuio, em conformidade com o conceito.

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    48

    retornar ao conceito de quiligono. Esse conceito foi por mim

    intencionalmente aduzido acima justamente porque os intrpretes tendem

    a encar-lo como um exemplo de conceito que no seria passvel de

    construo, de acordo com a teoria kantiana, uma vez que no possvel

    produzir uma imagem do objeto correspondente. Assim, Gottfried

    Martin (1969, p. 25) afirma que, para Kant, a noo de construo

    introduz uma restrio no que pode ter direito de cidadania em geometria

    e que, por isso, um matemtico jamais vai querer ou poder construir

    um quiligono.15 Esse caso sobretudo interessante porque discutido

    por Kant em sua polmica contra Eberhard. Este ltimo parte da

    suposio de que, se, para Kant, todo objeto do qual no possvel

    fornecer uma imagem sensvel teria de ser considerado um objeto do

    entendimento puro, ento o quiligono estudado pela geometria serviria

    como um contra-exemplo da doutrina crtica, ou seja, como exemplo da

    possibilidade de se obter conhecimento legtimo de uma coisa em si ou

    de um objeto puramente inteligvel. Kant responde em tom sarcstico

    que, seguindo a linha de raciocnio de Eberhard, um pentgono seria um

    objeto sensvel, um quiligono seria um objeto puramente inteligvel e

    um enegono (polgono de 9 lados) estaria a meio caminho entre o

    sensvel e o supra-sensvel, pois, se no conferirmos os lados com o

    auxlio dos dedos, dificilmente poderemos determinar seu nmero com

    uma simples inspeo de vista. (Kant (3), 1983, p.325). O que est

    subentendido nessa resposta algo que tem escapado aos intrpretes

    quando afirmam que, segundo Kant, s tm direito de cidadania em

    geometria aqueles conceitos passveis de construo, ou seja, cujos

    objetos podem ser exibidos numa intuio. Como recordamos acima, a

    palavra intuio encerra uma ambiguidade, significando ora a ao

    subjetiva de intuir, ora o contedo do ato, o objeto intudo. Ora, sem

    dvida, um quiligono no passvel de construo, se se entende por

    isso a possibilidade de produzir subjetivamente uma imagem particular.

    Porm, como fica claro na resposta dada por Kant a Eberhard, o que

    determina se um objeto sensvel ou inteligvel e, portanto, objeto de

    conhecimento possvel, no a nossa incapacidade ou limitao

    subjetiva, ao tentar abranger com a vista, por exemplo, os lados de um

    enegono. Assim, para Kant passvel de construo e inteiramente

    legtimo todo conceito geomtrico cujo contedo no se choque com as

    condies objetivas da intuio. por isso que o quiligono passvel

    de construo, ao passo que o bingulo no o . Pois, com efeito, o

    bingulo no um autntico conceito geomtrico no porque no

    15 Tambm a esse respeito, vide Schirn, (1991, p. 3).

  • Esteves

    49

    possamos fazer subjetivamente uma imagem correspondente, mas

    porque ele entra em choque com as condies do espao e da

    determinao do mesmo (KrV, A 220-21/ B 268), ou seja, porque o

    espao (euclidiano) no se deixa objetivamente determinar numa figura

    composta de duas retas. Mas o conceito de quiligono no contm notas

    que entrem em choque com as condies de determinao do espao,

    pois o espao, objetivamente falando, passvel de ser determinado

    numa figura de 1000 lados, e, por conseguinte, esse conceito tem pleno

    direito de cidadania na teoria kantiana da geometria.

    Consideraes finais

    Vimos acima que a concepo kantiana das condies de

    possibilidade da geometria apresentada na Disciplina da razo pura no

    uso dogmtico permite invalidar o argumento regressivo desenvolvido

    por Kant tanto na Esttica transcendental quanto nos pargrafos

    correspondentes nos Prolegmenos. Pois, de acordo com a Disciplina, de

    nada adianta apelar para uma suposta intuio pura, por exemplo, de um

    tringulo particular, para dar conta da validade universal e necessria de

    proposies que dizem respeito aos tringulos em geral,

    triangularidade enquanto tal. Ainda de acordo com a Disciplina, a

    validade necessria e universal das proposies geomtricas deve-se

    antes inteiramente ao fato de que, no ato de construo daquele tringulo

    particular, o gemetra dirige sua ateno para as condies universais de

    construo do mesmo, ou seja, para o conceito ou regra universal que

    preside a sua construo. Isso posto, gostaria de finalizar este artigo com

    algumas consideraes que a meu ver se colocam muito naturalmente

    como decorrncia dessa diversidade de concepes dos pressupostos da

    geometria no interior da filosofia de Kant.

    Em primeiro lugar, poder-se-ia perguntar se e em que medida a

    concepo dos pressupostos da geometria apresentada na Disciplina

    pode ser interpretada sem recurso Esttica transcendental, mais

    exatamente, sem recurso s teses da Exposio metafsica do conceito de

    espao, como havamos anunciado na Introduo a este artigo. Em outras

    palavras, poderamos perguntar em que medida a teoria kantiana da

    geometria defendida na Disciplina se sustenta independentemente de

    qualquer recurso concepo do espao como forma pura da intuio e

    intuio pura, defendida por Kant na Esttica transcendental. E, nesta

    altura, para responder a essa questo, no basta fazer referncia ao fato

    histrico de que a teoria da geometria encontrada na Disciplina havia

    sido esboada num opsculo pr-crtico, redigido e publicado muito

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    50

    antes de Kant ter concebido o espao como forma pura subjetiva da

    intuio externa. Com efeito, ao fazer anteriormente referncia a esse

    dado histrico, eu pretendia apenas dar plausibilidade inicial minha

    proposta de interpretao. Pois poder-se-ia replicar que somente com a

    concepo do espao caracterstica da fase crtica, tal como

    apresentada na Esttica transcendental da primeira Crtica, aquela teoria

    da geometria esboada no perodo pr-crtico teria chegado a sua

    completude e perfeio.

    O que podemos concluir da concepo encontrada na Disciplina

    que, qualquer que seja a natureza do espao em que se constri uma

    figura, a validade necessria e universal dos clculos e proposies feitos

    com base nela estar necessria e suficientemente garantida pelo

    remetimento s suas condies universais de construo. Eis por que

    desenhos toscos feitos por Scrates na areia foram suficientes para levar

    o igualmente tosco escravo de Mnon compreenso do modo como se

    constri um quadrado com o dobro da rea de um quadrado

    originalmente dado. Scrates teve que desenhar figuras ou, em termos

    kantianos, exibir na intuio espacial objetos correspondentes ao longo

    do processo de demonstrao daquele teorema, simplesmente pelo fato

    de que o que estava em questo era justamente um teorema em

    geometria, necessariamente relacionado a conceitos de objetos

    essencialmente exibveis no espao. Por ser uma pessoa nada habituada a

    lidar com questes abstratas, o escravo de Mnon precisaria repetir os

    passos da demonstrao algumas vezes, desenhando novas figuras na

    areia, at que por fim chegasse ao discernimento de que no seria mais

    necessrio repetir o procedimento desenhando outros quadrados,

    compreenso de que a validade daquele teorema estava estabelecida de

    uma vez por todas, evidentemente, no em virtude daqueles desenhos

    toscos, mas inteiramente em virtude dos conceitos (de espao) e dos

    objetos correlatos dos mesmos, no caso, os conceitos de quadrado e de

    diagonal.16

    Contudo, se a validade necessria e universal dos teoremas e das

    proposies geomtricas pode ser adequadamente explicada

    exclusivamente pelo remetimento aos conceitos em questo, o que dizer

    da sinteticidade dessas proposies? Com efeito, justamente o suposto

    carter sinttico (a priori) das proposies geomtricas que fez com que

    16 Parece ser exatamente assim que Plato interpretava a situao, como se pode ver na seguinte

    passagem da Repblica, 510 d: And do you not also know that they further make use of the

    visible forms and talk about them, though they are not thinking of them but of those things of

    which they are a likeness, pursuing their inquiry for the sake of the square as such and the diagonal

    as such, and not for the sake of the image of it which they draw?

  • Esteves

    51

    o Kant da fase crtica recorresse concepo do espao como intuio

    pura e forma pura da intuio, de modo a tornar possvel uma analogia

    com o modo como so estabelecidas as proposies sintticas a

    posteriori. Assim, interpretando o Mnon luz da Esttica transcendental

    e das passagens iniciais dos Prolegmenos, teramos que admitir que, ao

    atentar para as figuras desenhadas por Scrates na areia ao longo da

    demonstrao daquele teorema, o escravo estaria, contrariamente ao

    diagnstico do prprio Scrates, aprendendo algo novo, a saber,

    acrescentando sinteticamente ao seu conceito de quadrado e de diagonal

    algo que no estaria originalmente contido nele e, no obstante, vlido a

    priori, o que s seria possvel pelo fato de que na base daqueles desenhos

    toscos estariam quadrados perfeitos e puros a priori, que seriam as

    formas dos primeiros.

    Entretanto, se, como reza a concepo da Disciplina, a validade

    necessria e universal, i.e. a priori, daquele teorema no pode depender

    de nenhum quadrado particular e mesmo singular, seja ele dado numa

    intuio emprica na areia, seja ele dado numa suposta forma pura de um

    quadrado desenhado na areia como correlato de uma intuio pura, ento

    estaremos diante das seguintes alternativas: 1) ou bem as proposies

    geomtricas seriam sintticas e, por conseguinte, exigiriam algo mais

    que a mera considerao dos conceitos envolvidos, a saber, o recurso a

    alguma intuio, mas, com isso, ficaria inexplicada a sua validade

    necessria e universal, mesmo que se admita que essa intuio pura a

    priori; 2) ou bem a validade necessria e universal das proposies

    geomtricas pode ser suficientemente estabelecida inteiramente pelo

    exame dos conceitos peculiares nelas envolvidos, a saber, conceitos de

    espao, o que faz delas proposies analticas. Buscarei mostrar em

    outro lugar que a concepo das proposies geomtricas como

    proposies analticas, implicitamente presente nos escritos pr-crticos

    em que Kant est ainda muito prximo da influncia de Leibniz, ,

    paradoxalmente, aquela consistente com os princpios da filosofia crtica

    terica kantiana e, em particular, com a assim chamada revoluo

    copernicana.

    Por ora, podemos responder da seguinte maneira questo

    colocada acima. A teoria kantiana esboada na Disciplina e herdada do

    perodo pr-crtico sugere uma concepo de geometria no como uma

    cincia que determina sinteticamente e mesmo assim a priori as

    propriedades do espao, como diz Kant na Esttica transcendental

    (KrV, A 25/ B 40), mas como um conjunto de proposies analticas

    inteiramente obtidas da anlise de nossos conceitos de espao, de acordo

    com o princpio de contradio. Por conseguinte, uma vez que tenhamos

  • O papel da intuio e dos conceitos nas teorias kantianas da geometria

    52

    levado a cabo uma anlise completa da teoria kantiana da geometria

    apresentada na Disciplina, veremos que ela inteiramente independente

    da Esttica transcendental, mais exatamente, da Exposio metafsica do

    conceito de espao. Desse modo, como foi dito na Introduo a esse

    trabalho, o que temos aqui um importante elemento para evidenciar

    essa independncia e livrar Kant de repetidas crticas feitas por seus mais

    autorizados intrpretes. Alm disso, em analogia com o que faz o prprio

    Kant por ocasio do argumento regressivo na Exposio transcendental

    do conceito de espao (KrV, A 25/ B 40), a anlise completa da

    concepo dos pressupostos da geometria na verso da Disciplina ter de

    perguntar: o que deve ser a representao do espao, e no o espao

    fsico em si, para que seja possvel um conjunto de proposies

    analticas estabelecidas a partir de construes de conceitos de espao?

    Em outras palavras, teremos de perguntar: o que deve ser a

    representao do espao para que seja possvel construir nossos

    conceitos de espao, ou seja, exibir a priori objetos correspondentes aos

    nossos conceitos de espao? Alm disso, ainda em analogia com a

    Exposio transcendental, teremos de perguntar: como possvel que

    esse conhecimento analtico a priori obtido a partir de nossos conceitos

    de espao tenha aplicao a objetos dados na experincia?

    Outra questo que no pode passar sem algum comentrio a da

    contraposio entre o mtodo da geometria e da matemtica em geral e o

    da filosofia, que j havia sido estabelecida por Kant no opsculo de 1764

    e que retomada e desenvolvida mais tarde na Disciplina. Com efeito, as

    interpretaes usuais dessa contraposio estabelecida por Kant

    geralmente pem o acento no papel representado pela intuio pura na

    matemtica (Crawford, 1962, pp. 257-268). De acordo com essa linha de

    interpretao, exatamente a possibilidade de recurso intuio pura faria

    com que somente na matemtica sejam possveis demonstraes feitas a

    partir de axiomas e definies. Isso no deveria ser imitado pela

    filosofia, onde no possvel esse recurso intuio pura, em oposio

    ao que pretendeu fazer, por exemplo, Spinoza, com sua tica more

    geometrico. Ora, se, como pretendi ter mostrado, o suposto recurso

    intuio pura no de modo algum o elemento decisivo no procedimento

    geomtrico, mas, sim, o recurso ao conceito (geomtrico), ento coloca-

    se muito naturalmente a pergunta sobre o que distingue essencialmente a

    matemtica da filosofia, na medida em que a matemtica

    inegavelmente um conhecimento racional e a prpria filosofia definida

    por Kant como um conhecimento racional a partir de conceitos.

    Buscarei desenvolver detalhadamente essa questo em outra ocasio,

    mas por ora, remeto o leitor para um artigo de minha autoria j

  • Esteves

    53

    publicado, no qual pode ser encontrado o essencial de minha resposta a

    esse problema (Esteves, 2010, pp. 68-76).

    Referncias

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    Resumo: O exame dos textos de Kant permite distinguir duas teorias distintas

    sobre os pressupostos da geometria. A primeira e mais discutida pelos

    intrpretes aquela que exige a construo dos conceitos da geometria

    euclidiana, a nica com o qual Kant pde ter tido familiaridade, na intuio pura

    a priori do espao, como uma condio de possibilidade das proposies

    sintticas a priori no conhecimento geomtrico. Desse modo, essa teoria dos

    pressupostos da geometria forneceria uma prova indireta da Exposio

    metafsica na Crtica da razo pura. Ora, com o aparecimento de geometrias

    no-euclidianas, ambas perderam muito em fora de convico nos dias de hoje.

    Em defesa de Kant, eu gostaria de mostrar que ele entretm outra teoria, em

    oposio primeira, que tambm exige a construo de conceitos geomtricos,

    mas na qual o conceito geomtrico desempenha o papel principal, enquanto a

    intuio, sobretudo a intuio pura a priori do espao, desempenha um papel

    secundrio. Se isso estiver correto, esta ltima teoria revelar-se-ia independente

    da Exposio metafsica.

    Palavras-chave: intuio pura, conceito geomtrico, construo de conceitos,

    espao

    Abstract: The study of Kants texts allows us to disentangle two distinct

    theories of geometry. The first and more discussed by the interpreters is that one

    that requires the construction of the concepts of the Euclidian geometry, the

    only one with which Kant could have been acquainted, in the pure intuition a

    priori of space, as a condition of possibility of the a priori synthetic propositions

    in the geometrical knowledge. Thus, this theory of the presuppositions of

    geometry would provide an indirect proof of the Metaphysical exposition in the

    the Critique of pure reason. Now, since the non-Euclidian geometries arose,

    both have no appeal nowadays. In Kants defense, I would like to show that he

    entertains another theory, in opposition to the former, that equally requires the

    construction of geometrical concepts, but in which the geometrical concept

    plays the main role, while the intuition, above all the pure intuition a priori of

    space, plays a secondary role. If so, this theory would turn out to be independent

    from the Metaphysical exposition

    Keywords: pure intuition, geometrical concept, construction of concepts, space

    Recebido em 23/04/2013; aprovado em 30/05/2013.