o município no federalismo brasileiro

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55 FÁBIO FÁBIO Maria Coeli Simões Pires é professora adjunta de Direito Administrativo da Faculdade de Direi- to da UFMG, mestre e doutora pela mes- ma universidade ributário das idéias de Hamilton, Madson e Jay 1 e da experiência ame- ricana inaugurada na Convenção de Filadélfia, realizada por iniciativa das treze colônias inglesas da América do Norte em 1787, o federalismo ga- nhou espaço como forma de Estado em contraposição à conhecida estruturação unitária da base de as- sentamento da soberania e, ao longo do tempo, sofreu adaptações, quer em razão de circunstâncias históricas e de fatores locacionais, quer em razão das concepções acerca da lógica que o anima ou da perspectiva pactual da federação. Pressupondo uma Constituição, ou mais literalmente um pacto, consoante a etimologia da palavra foedus, federa- lismo envolve essencialmente a repartição de competências entre a União e os Estados-membros em condomínio, no qual Jean Alessandro Serra Cyrino No- gueira, que colabo- rou neste artigo, é advogado da Uni- versidade do Esta- do de Minas Gerais O MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO: CONSTRANGIMENTOS E PERSPECTIVAS MARIA COELI SIMÕES PIRES 1 As idéias dos auto- res foram expostas em O Federalista, obra que contém os primeiros elemen- tos da teoria do federalismo. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 8, n. 13, p. 55-84, jan./dez. 2005

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Page 1: O Município no Federalismo Brasileiro

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O MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO:

CONSTRANGIMENTOS E PERSPECTIVAS

G . S C O T T A I K E N S

FÁBIO

FÁBIO

Maria Coeli SimõesPires é professoraadjunta de DireitoAdministrativo daFaculdade de Direi-to da UFMG, mestree doutora pela mes-ma universidade

ributário das idéias de Hamilton,Madson e Jay1 e da experiência ame-ricana inaugurada na Convenção deFiladélfia, realizada por iniciativa dastreze colônias inglesas da América doNorte em 1787, o federalismo ga-nhou espaço como forma de Estadoem contraposição à conhecidaestruturação unitária da base de as-sentamento da soberania e, ao longodo tempo, sofreu adaptações, querem razão de circunstâncias históricas

e de fatores locacionais, quer em razão das concepçõesacerca da lógica que o anima ou da perspectiva pactual dafederação.

Pressupondo uma Constituição, ou mais literalmenteum pacto, consoante a etimologia da palavra foedus, federa-lismo envolve essencialmente a repartição de competênciasentre a União e os Estados-membros em condomínio, no qual

Jean AlessandroSerra Cyrino No-gueira, que colabo-rou neste artigo, éadvogado da Uni-versidade do Esta-do de Minas Gerais

G . S C O T T A I K E N S

O MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO:CONSTRANGIMENTOS E PERSPECTIVAS

MARIA COELI SIMÕES PIRES

1 As idéias dos auto-res foram expostasem O Federalista,obra que contém osprimeiros elemen-tos da teoria dofederalismo.

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 8, n. 13, p. 55-84, jan./dez. 2005

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se reconhecem a integração de cada um e a unidade doconjunto, ou seja, uma estrutura estatal complexa assentadasobre a mesma base territorial.2

Essa idéia essencial arrima o pensamento de váriosestudiosos como Duguit, para quem a característica do EstadoFederal é a existência de dois governos num mesmo territórioe a impossibilidade de alteração das competências de cada umdeles sem a anuência de ambos; Hauriou, que reconhece nofederalismo a diversidade de leis das soberanias secundárias sobuma mesma soberania comum; Jelinek, que apresenta comotraço fundamental do Estado Federal a autonomia das unidadesfederadas salvaguardada pela Constituição; Le Fur, quecondiciona a existência da federação à integração das unidadesna formação da vontade do Estado; Kelsen, para quem o EstadoFederal se caracteriza pela existência de três ordens jurídicas:duas parciais, as dos Estados-membros e a da União, e umaglobal, a comunidade jurídica total; e Scelle, segundo o qualduas leis são determinantes e caracterizam o Estado Federal: alei da participação e a lei da autonomia.3

Vê-se que um mesmo arranjo, expresso de variadosmodos, sustenta fundamentalmente a pluralidade de esferasgovernamentais com poderes compartilhados ou, na lição deRui de Brito Álvares Affonso,4 a “coexistência de autonomiasdos diferentes níveis de governo e a preservação simultâneada unidade e da diversidade de uma nação”, o que já traz a ínsitacontradição ou paradoxo do ordenamento estatal federalista –unidade e diversidade, união e autonomia.

1. Origem e evolução do federalismo brasileiro

“República e federalismo surgiram, no Brasil, no bojode um só movimento, a revolução republicana e federalista de1889”, conforme salienta Carlos Mário da Silva Velloso.5

Com foco nessa origem comum, Geraldo Ataliba6

defende a indissociabilidade entre federalismo e república,considerando o primeiro um dos pressupostos da segunda, aoargumento de que, “pela descentralização política em que se

2 SILVA. Curso deDireito Constitu-cional Positivo. 9ed. p. 92.

3 VELLOSO. A inter-venção da União nosEstados e Municí-pios. p. 309-317.

4 AFFONSO. A Fe-deração na encru-zilhada. p. 31.

5 VELLOSO. Estadofederal e estadosfederados na Cons-tituição brasileira de1988: do equilíbriofederativo. p. 290-310.

6 ATALIBA. Repú-blica e Constitui-ção. p. 16.

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traduz a federação, melhor funciona a representatividade, e demaneira mais enfática o povo exerce as suas prerrogativas decidadania e autogoverno”.

A consagração da federação no Brasil, porém, apresen-tou-se como solução tardia, uma vez que as estratégiasdescentralizantes de há muito já se haviam implantado inter-namente, consoante lembra Maria Helena Ferreira da Câmara,ao asseverar que as dimensões continentais do País e asdiversidades regionais contribuíram desde os tempos coloni-ais para a descentralização político-administrativa, uma vezque os primeiros sistemas administrativos adotados por Por-tugal, como as feitorias, as capitanias hereditárias e, atémesmo, as governadorias-gerais, eram medidas que antecipa-vam idéias de estruturação do poder em moldes decompartilhamento.7

A aspiração federalista brasileira, porém, conquantoalimentada por propósitos internos específicos, sedimentou-se ao influxo das influências das Revoluções Americana(1776) e Francesa (1789), eventos que marcaram o séculoXVIII, difundindo a noção de Constituição e os anseios deliberdade, embora aquela não se concretizasse com fidelidadeao ideário pelos movimentos liberais.

Francisco de Oliveira mostra que, no caso brasileiro,diferentemente da alternativa política norte-americana deconstituição da Federação sustentada na crença de sua valiapara a afirmação dos direitos individuais e para o afastamentodo risco de usurpação, por um poderoso Estado central,desses mesmos direitos, a formalização da Federação, pelaRepública, “ancorava-se nas antípodas de oligarquias forte-mente antidemocráticas”, por meio dos poderes locais, cujaformação tem suas raízes na Colônia, sendo o resultado dosembates

entre tendências liberais regionalmente localizadas e oprojeto autocrático precocemente urdido entre a altaburocracia imperial, o Exército e os latifundiários,reforçado já na segunda metade do século XIX pelaemergente e poderosa burguesia cafeicultora8.

7 CÂMARA. O con-ceito moderno de fe-deração. p. 23 -25.

8 OLIVEIRA. A fede-ração desfigura-da. p. 5-6.

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A aludida proteção de direitos não estava aí presente econtinuou afastada do centro das cogitações doutrinárias, e, deresto, nem mesmo o “fundo doutrinário federalista, que sepoderia tomar como inspirador da república federativa” teriaprevalecido, já que a República, ao formalizar os poderes locaisnuma Federação, respondia à necessidade premente de evitarpossível implosão, nas palavras de Francisco de Oliveira.9

A par disso, não se deve perder de vista que, no Brasil,diferentemente do que ocorre com o modelo norte-america-no, o federalismo estrutura-se a partir do Estado Unitário,criado pela Constituição de 1824.

Constituindo a experiência americana de 1787 o pontode partida das opções pela forma federativa de organização doEstado, referência à Revolução Americana entre os preceden-tes da instituição de quaisquer dos Estados Federais que lheseguem é inolvidável.

O mesmo não ocorre em relação à Revolução France-sa. Bem por isso, aos que se surpreendem com a menção feitaa esta em sede da temática ora versada, torna-se oportuno omagistério de Carlos Mário da Silva Velloso, a preconizar queo Estado Federal “constitui uma técnica de governo e tambémuma homenagem à liberdade”. Para o jurista, sob os auspíciosdo art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,de 1789, a efetivação dos ideais de liberdade defendidos naRevolução Francesa torna-se indissociável da descentralizaçãofuncional e geográfica do poder, pressuposto do modelofederativo de Estado.10

Assim, sob múltipla inspiração, mas notadamente porinfluência conceptual da Constituição norte-americana de1787, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891,consagrando o Decreto n.º 1, de 15 de novembro de 1889,adotou a república como forma de governo e a federaçãocomo forma de Estado, segundo o modelo dual de estruturação.

A ordem constitucional reconheceu então aos Estados-membros elevado grau de autonomia, sendo que a evolução doideal federalista no Brasil e do modelo de estruturação do

9 OLIVEIRA. op. cit.,p. 5-6.

10 VELLOSO. A inter-venção da Uniãonos Estados. p.309-317.

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Estado esteve diretamente ligada aos contornos dessa autono-mia. Esta, sensivelmente alterada no curso da história, seja emrazão do desequilíbrio entre os Estados-membros, acentuadopela hegemonia dos poderosos, seja como decorrência dasforças centrípeta ou centrífuga do poder político em certosperíodos ou das sucessivas concepções de Estado Liberal e deEstado Social, até a presente transição paradigmática sob asluzes democráticas.

Nesse passo, a autonomia dos entes subnacionais, numprimeiro momento estruturada com base na lógica competi-tiva sugerida pelo liberalismo e ao mesmo tempo frustrada emvirtude das desigualdades dos entes federativos e de suadependência financeira em relação à União, mostra, na primei-ra fase do federalismo brasileiro, os reflexos daqueleparadigma. Com efeito, o poderio de São Paulo e de MinasGerais durante a República Velha trouxe como conseqüênciaa quebra das autonomias federativas, de resto apenas reco-nhecidas nominalmente, já que na prática revelavam-se neu-tralizadas pela prevalência das potências.

Sob o paradigma social, a Constituição de 1934, queinaugurou a 2ª República, plasmou outro tipo de federação: ofederalismo cooperativo, em substituição ao clássico, deíndole competitiva. A nova estratégia desenvolvida com aintermediação do governo federal vinha fazer face à ampliaçãoda atuação do Estado intervencionista, imprimindo novostraços à autonomia dos entes federativos.

Aos rescaldos da lógica competitiva, num primeiromomento, e da lógica cooperativa, posteriormente adotada,somam-se nítidos constrangimentos decorrentes das cir-cunstâncias de absoluto desprestígio da democracia no Brasil,os quais desencadeiam ou recrudescem o processo de centra-lização no âmbito da União, nos moldes da experiência dosEstados federais da América Latina, sujeitos a incontrastáveisautoritarismos.

O resgate do constitucionalismo brasileiro evidenciaintermitente autoritarismo, desde a Constituição que adveio dogolpe de 1937 e que apenas manteve o federalismo no plano

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nominal, com breves experiências democráticas, como a quese deu sob a égide da Constituição de 1946, que restaurou ofederalismo cooperativo, até Constituições mais recentes,como a de 1967, que, embora conservando o federalismo,contemplou significativa expansão dos poderes da União.

Confirmando a tendência de fragilidade da democraciabrasileira, em período recente, a ditadura militar de 64-84recentralizou o poder na União e, nesta esfera, nas mãos doExecutivo, especialmente por meio da obstaculização deiniciativas do Legislativo; artificializou, com processos indire-tos de escolha, as representações popular e dos Estados; ebanalizou o federalismo e a autonomia política por meio daimposição de decisões aos entes subnacionais e de reforço dadependência financeira das unidades da Federação em relaçãoao poder central, como forma de proteção dos interesses dopoder político e dos grupos dominantes. É certo também queo final dos anos 70 foi marcado por fortes demandas oriundasdos entes subnacionais no sentido da reconfiguração do pactoe de maior descentralização, o que trouxe resultados para osEstados, pelo menos em termos de descentralização tributária.

Do mesmo modo que o federalismo recebe influênciasdos regimes, a autonomia dos Municípios sofre variaçãosensível em seus desdobramentos administrativo, financeiroe político, ao longo da história do municipalismo no Brasil.

Até a Constituição de 1946, observa-se que a autono-mia dos Municípios brasileiros apresenta-se de forma predo-minantemente nominal. Durante o governo monárquico, emque pese a divisão geográfica das funções administrativas, nãose pode falar em autonomia municipal, uma vez que adescentralização governamental então existente atendia dire-tamente aos interesses do Imperador. Na Primeira República,o coronelismo sufocou toda a liberdade dos Municípios, a parde falsear o sistema eleitoral vigente, dominando inteiramenteo governo local. No período que se estende de 1930 a 1934,a autonomia do Município choca-se com o discricionarismopolítico que se instalou no País. A seu turno, a transitoriedadeda Constituição de 1934 não apenas obstaculizou a consolida-

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ção do novo regime, como também impediu que a autonomiaatribuída aos Municípios chegasse a ser exercitada. NaConstituição de 1937, com as câmaras dissolvidas e osMunicípios subordinados à interventoria dos Estados, nãohouve espaço para a atuação da esfera local.11

De fato, em momentos de recentralização política, naprevalência de regimes autoritários e de práticasintervencionistas do Estado, até os núcleos mínimos dereserva da autonomia constitucional dos Municípios, governopróprio e competências exclusivas foram alcançados, nãoobstante reforçados posteriormente em breves intervalos deexperiência democrática.

Eis, portanto, que, somente a partir da Constituição de1946, com a subseqüente vigência das Cartas estaduais e leisorgânicas, a autonomia municipal começa a ganhar foros deefetividade, não se olvidando os sucessivos retrocessos daditadura militar, até atingir a atual conformação, rompendocom a lógica da intromissão dos governos federal e estadualem assuntos eminentemente locais.12

2. Macrotendências de federalização edescentralização político-econômica

A partir dos anos 80 do século passado, o mundo vemassistindo a macrotendências de federalização de Estados,mediante o reconhecimento de entes subnacionais ou simples-mente por meio de reforço do campo autonômico das esferasfederativas já existentes, e de descentralização do poderpolítico-econômico mediante mecanismos diversos, movi-mentos que se reforçam com a queda do socialismo, com aruptura da concepção desenvolvimentista do terceiro-mundo,com a falência do Estado Social e com o fenômeno daglobalização.13

Ao mesmo tempo, vislumbra-se tendência de fortale-cimento do municipalismo a partir da concepção de ummundo multicivilizacional, assentado numa ordem interna-cional complexa, na qual figura, também, o ente local como

11 MEIRELLES. Di-reito MunicipalBrasileiro.

12 MEIRELLES. op.cit., p. 42-43.

13 AFFONSO.op.cit. p. 29-30.

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referência de cultura e cidadania, como espaço estratégico deenfrentamento da crise atual, como ator importante na salva-guarda dos valores civilizacionais e nos esforços para supera-ção das disfunções da política mundial e da virtual ameaça paraa paz.

Com efeito, conquanto se reconheça aos Estadosnacionais a posição de atores principais nos assuntos mundi-ais, não se pode desconhecer o fato de que mais e mais asinstituições internacionais opõem-lhes limitações, além deoperarem com burocracias que lidam diretamente com oscidadãos e respectivas comunidades e favorecerem a devolu-ção de poder dos Estados nacionais às entidades políticas deâmbito regional, provincial ou local.14 Não é demais lembrarque grandes eventos internacionais realizados a partir dadécada de 80 são sinais do relevante papel assumido pelascidades na ordem mundial. Nesse sentido, a Conferência deCidades Européias (Roterdã, 1986), inaugurando o movimen-to das eurocidades, consolidado na Conferência de Barcelona,de 1989; a criação do Comitê de Regiões (Maastricht, 1993),reconhecendo os governos locais como integrantes de suarede institucional; a Conferência sobre População da ONU(Cairo, 1994); a Conferência de Prefeitos, em preparação paraa reunião da Cúpula Social (Copenhague, 1995) e a conferên-cia sobre o Habitat (Istambul,1996), a chamada “La Cumbrede las Ciudades”, entre outras, destacaram o papel dasautoridades subestatais e a necessidade de tratamento dasquestões sociais – emprego, pobreza, integração socioculturale outras – em nível local.15

3. A reação interna ao centralismo e omovimento pela reconfiguração do

federalismo brasileiro

O Brasil sintoniza-se com o quadro de macromudanças:reage ao regime autoritário, dando curso a forte movimento dedemocratização; valoriza o poder local e opõe-se à concepçãocentralista da Federação, numa intensa mobilização que culmi-na com a reconfiguração institucional do federalismo brasilei-

14 HUNTINGTON, Ochoque de civili-zações. p. 36-37.

15 BORJA. As cida-des de planeja-mento estratégi-co. p. 79.

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ro na Carta de 1988, por meio de um tratamento maisavançado, quer em termos do modelo, quer em relação àdistribuição de rendas entre a União, os Estados e os Municí-pios. Além disso, utiliza estratégias descentralizadoras notocante ao poder político-econômico na forma deinstitucionalidades diversas de índole cooperativa plasmadasà luz do novo ideário democrático e federalista.

Ao mesmo tempo, o rescaldo do esgotamento domodelo desenvolvimentista nacional evidenciou de modoincontrastável as mazelas do endividamento externo, no bojode drástica crise fiscal, e as políticas econômicas passaram afazer mera cortina para anuviar o quadro de insustentabilidadedo setor público, mantido então pela espiral inflacionária darolagem de compromissos internos e externos. Tal quadrolevou a própria União a assumir a descentralização comoestratégia para se esquivar ainda mais de seus encargos, pormeio de atabalhoada transferência de responsabilidades notocante a políticas públicas, até que a vitória da proposta liberallevou à adoção de medidas exóticas de expansão de ativos doEstado e a múltiplas reformas estruturais, com amplas reper-cussões sobre Estados e Municípios.16

Nesse contexto, para além dos aspectos conjunturais,cabe indagar sobre os traços específicos da reconfiguração dafederação, sobre as perspectivas de reequilíbrio das autono-mias no âmbito do Estado Federal brasileiro ou desustentabilidade e salvaguarda da estrutura federal em facedos desafios contemporâneos e das pressões do macrocenáriopolítico e econômico que se colocam para os entes nacionais,e, por fim, sobre as estratégias de descentralização no Brasil,constrangimentos e soluções por elas potencializadas.

A descentralização será tratada ora no sentido quetradicionalmente se lhe reconhece na federalização de Estadosunitários ou na reconfiguração do federalismo como processode reordenamento político-administrativo mediante alteraçãodo respectivo pacto, ora no sentido de simples estratégia decooperação negociada entre atores que se relacionam pormeio de arranjo de delegação.

16 AFFONSO. op.cit. p. 30.

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De fato, não se deve confundir descentralização –como técnica de redesenho institucional do arranjo federativo,no plano constitucional, com vistas ao equilíbrio de forças dosdiversos entes integrantes do pacto, por meio de distribuiçãode recursos, de competências, responsabilidades e poderpolítico-econômico, com a mera descentralização mediantedelegação do poder central, ou por meio de mecanismos detransferência voluntária de encargos e prerrogativas por partede um poder estatal hipertrofiado a outros menos aquinhoadosou, ainda, por meio de instrumentos democráticos decompartilhamento da atuação estatal com a sociedade, tam-bém nesses casos em caráter de delegação ou cooperação.Não se despreza, no entanto, o fato de que a meradescentralização viabilizada por mecanismos de cooperaçãopode também ser vista como técnica de revigoramento daeficácia do federalismo e compensação de possíveisdesequilíbrios.

O certo é que, em suas múltiplas técnicas, adescentralização é defendida no Brasil sob relativo consenso,seja considerada como reforço do federalismo, seja associadapor forças progressistas à idéia de democratização, seja aindacomo estratégia de eficiência alocativa de recursos, sobideologia liberal.

4. O novo arranjo do federalismo brasileiro naConstituição de 1988 e a posição do Município

A Constituição de 1988 trouxe elementos inteiramentenovos de reconfiguração do federalismo, apresentando umarranjo nominal sui generis no tocante ao Município, o que,antes de pacificar os entendimentos nos domínios teóricos damatéria, vem alimentando polêmicas no âmbito da doutrinapátria, cada vez mais desconfortável em face da teoria geraldo federalismo e das principais federações do mundo, comoCanadá, Austrália, México, Áustria, Alemanha, Venezuela,dentre outras, que não qualificam o Município como entefederativo.17

17 HORTA. Estudosde direito consti-tucional. p. 601-602.

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Na nova ordem constitucional, erigem-se como pilaresestruturantes da federação brasileira os comandos expressosnos arts. 1º e 18 da Carta.

Na interpretação dos referidos dispositivos, especial-mente no que tange à posição do Município no quadrofederativo, os doutrinadores divergem, sustentando alguns acategórica negativa de condição de ente federativo ao Muni-cípio ou de absoluta inconsistência da tese de sua figuração naestrutura da federação, e outros, a integração da entidade localnaquela estrutura.

Na primeira corrente, situam-se, entre outros, Barachoe Silva. Aduzem estes, em abono à tese, argumentos como ode que o federalismo não pressupõe o Município comoelemento essencial; o da não-participação do ente local naformação da vontade e das decisões do Senado e na prestaçãojurisdicional; o de que não se lhe reconhece o poder deapresentação de emendas à Constituição; o da ausência decontrole concentrado de constitucionalidade de leis munici-pais em face da Constituição da República; a vinculação diretados Municípios à entidade regional ou intermediária, pelapossibilidade de intervenção do Estado nos Municípios, o queafasta a vinculação dos entes locais à unidade federativaaglutinadora ou central, que é a União.18

José Afonso da Silva,19 embora reconheça que aConstituição Federal de 1988 tenha consagrado o entendimen-to de que o Município brasileiro constitui entidade de terceirograu, integrante e necessária ao sistema federativo adotado noPaís, afirma tratar-se de “tese equivocada”, uma vez que ofato de uma entidade territorial possuir autonomia político-constitucional não a torna, necessariamente, integrante doconceito de entidade federativa.

Em escólios sobre o tema, reunindo argumentos nosentido de que os Municípios constituem tão-somente divi-sões dos Estados-membros, o autor mencionado traz a lumeos seguintes questionamentos:

Em que muda a federação brasileira com o incluir osMunicípios como um de seus componentes? Não

18 BARACHO. TeoriaGeral do Federalis-mo; SILVA. Cursode Direito Constitu-cional Positivo. p.408-409.

19 SILVA. op. cit., p.408-409.

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muda nada. Passaram os Municípios a ser entidadesfederativas? Certamente que não, pois não temos umafederação de Municípios. Não é uma união de Muni-cípios que forma a federação. Se houvesse umafederação de Municípios, estes assumiriam a naturezade Estados-membros, mas poderiam ser Estados-membros (de Segunda classe?) dentro dos EstadosFederados? Onde estaria a autonomia federativa deuns ou de outros, pois esta pressupõe territóriopróprio, não compartilhado. [...] Se fossem (os Mu-nicípios) divisões políticas do território da União,como ficariam os Estados, cujo território é integral-mente repartido entre seus Municípios? Ficariam semterritório próprio? Então que entidades seriam osEstados? 20

Em posição mitigada, embora apontem contradiçãológica na solução constitucional adotada, colocam-se Bastos,Horta, Ferrari e Santana, entre outros. Sustenta o primeiro:

Desde o momento em que a Constituição brasileiraalçou o Município a entidade condômina do exercíciodas atribuições que, tomadas na sua unidade, constitu-em a soberania, não poderia, para ser conseqüenteconsigo mesma, deixar de reconhecer que a própriaFederação estava a sofrer um processo de diferencia-ção acentuada, relativamente ao modelo federal domi-nante no mundo, que congrega apenas a ordem jurídicacentral e as ordens jurídicas regionais: a União e osEstados Membros.21

Por sua vez, referindo-se ao esforço de reconstruçãoe retificação do federalismo como mérito inegável da Consti-tuição de 1988, Horta assinala que ele superou o propósito dereconstrução, para introduzir na edificação novos fundamen-tos e elementos de modernização do federalismo constitucio-nal brasileiro, ressaltando, não sem reservas, nesse quadro deinovação dos fundamentos,

a singular inclusão do Município entre os entes quecompõem a união indissolúvel da República Federati-

20 SILVA. op. cit., p.408-409.

21 BASTOS. Comen-tários à Constitui-ção do Brasil. p.232.

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va, no artigo inicial da Constituição (art. 1º). Essaeminência do Município não dispõe de correspondên-cia nas anteriores Constituições Federais Brasileiras,nem tampouco nas Constituições Federais dos EstadosUnidos, do México, Argentina, Venezuela, Áustria,Alemanha, Canadá, Índia, Suíça e Austrália. A inovaçãoda Constituição adveio da atração sugestionadora domovimento municipalista, que rompeu o quadro dalógica constitucional e erigiu o Município autônomoem componente da República Federativa.22

Ferrari,23 embora reconhecendo que o federalismo seassenta sobre duas idéias fundamentais – a autonomia dasentidades federativas e a sua participação na formação davontade dos órgãos federais e nas suas decisões –, vê nomodelo brasileiro arranjo peculiar:

[...] na Federação brasileira, conforme determina aConstituição Federal, os Municípios são unidadesterritoriais, com autonomia política, administrativa efinanceira, autonomia essa limitada pelos princípioscontidos na própria Lei Magna do Estado Federal enaqueles das Constituições Estaduais.

Na mesma linha, e embora admitindo a relevância dosargumentos contrários à tese da configuração do Municípiocomo entidade federativa, encontradiços na doutrina, adverteSantana:24

[...] o fato é que não podemos nos esquecer de que osmodelos federativos não podem ser transplantados deum Estado para outro. Enfatizamos novamente quecada Estado possui suas próprias características e,assim, tipificam sua estrutura interna. No caso brasi-leiro é de se dar grande importância a esse aspecto,porque, como sabido, todas essas particularidades queo Município apresenta são, em verdade, notasdefinidoras dos contornos da nossa fisionomia federa-tiva; são especificidades do ser-federativo-pátrio.

De fato, a Constituição de 1988 inovou o tratamento atéentão dispensado ao ente local, introduzindo significativas

22 HORTA. op. cit. p.523.

23 FERRARI. Ele-mentos de direitomunicipal. p. 62-63.

24 SANTANA. Com-p e t ê n c i a slegislativas muni-cipais. p. 40.

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alterações na fisionomia do Estado brasileiro. E, se já nãotínhamos uma federação segundo o modelo tradicional, apartir da nova ordem, ela mais se afasta daquele parâmetro,pela tonificação de suas peculiaridades e, sobretudo, pelaintensificação da diferença de tratamento dado ao Município.Ganha este relevância no Estado brasileiro, seja pelaexcepcionalidade do status a ele conferido, seja pela sinaliza-ção – pelo menos no plano constitucional – no sentido dainversão do movimento expansionista do poder central, pelaampliação do campo autonômico do Município.

Realçando a importância da solução aventada pela novaordem constitucional, lembra Horta que “a ascensão doMunicípio desfaz antigas reservas que se opunham às relaçõesdiretas entre a União e o Município.”25

Em efeito, a Carta é categórica, embora equivocada, aoexplicitar o Município na configuração da federação. Épródiga em referências ao ente local: uma leitura de seu textoevidencia a preocupação do constituinte em enaltecê-lo, quernominalmente no plano da estrutura do federalismo; quer napartilha de competências, embora seja possível verificar-se,ainda, a persistência de competências centralizadas em rela-ção a uma gama considerável de matérias; ou, ainda, noreconhecimento de seu papel como importante agente depolíticas públicas, e, especialmente, na dedicação de coman-dos básicos e preordenadores da lei orgânica municipal quedesvencilham o ente local da ordem estadual no tocante a suaorganização.

Com tal prestígio, o Município é contemplado comcompetências oriundas diretamente da matriz constitucional,não ficando à mercê do Estado-membro para a definição desua autonomia, que não pode ser dilargada ou restringida porele. Ressalva-se que a mínima sujeição do Município aoEstado-membro ocorre quanto a princípios peculiares previs-tos na respectiva Constituição, a teor do art. 29 da Constitui-ção da República, sem olvidar a competência dos Estados paraa criação, fusão e incorporação de Municípios.

25 HORTA. op. cit. p.523.

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CONSTRANGIMENTOS E PERSPECTIVAS

Em face do status privilegiado do Município, afirma-se,na doutrina, a caracterização de uma federação trina no Brasil,do que se deduzem potencialidades e constrangimentos.

5. O federalismo brasileiro e a lógica cooperativa-competitiva. Perspectivas do neolocalismo

Sob a perspectiva reconstrutiva do federalismo, aConstituição de 1988 redefine as bases da autonomia, reforçasoluções cooperativas mediante relações diretas entre a União,os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, consoante oarranjo de competências adotado e sobretudo conforme odisposto no art. 23, parágrafo único, ao mesmo tempo queacena para a conciliação dessa lógica com a de competição nosmoldes da tendência americana.

Paulo Ferreira, coordenador do Grupo de Trabalhosobre Descentralização e Federalismo do IPEA, critica, po-rém, a solução apresentada pela Constituição:

Apesar do avanço no reconhecimento da autonomiados entes federativos, o Texto Constitucional é, po-rém, falho no que diz respeito a uma definição clara decompetências dentro da Federação. (...) a indefiniçãode perfil da estrutura cooperativa dentro da Federaçãoe a imprecisão das fronteiras de competência faz comque a União dificulte esse processo de descentralização,interferindo na autonomia dos outros níveis de poder.26

Não obstante as imprecisões, o certo é que omunicipalismo no Brasil, sob a égide da Constituição de 1988,passa a ser defendido sob enfoques diferentes e sobre basesideológicas distintas: como princípio democrático e comoprincípio de engenharia administrativa, com vistas à cons-trução da eficiência na prestação do setor público. Essasidéias, segundo Marcos André B. C. Melo, constituem onúcleo de sustentação do consenso em torno da idéia doneomunicipalismo.27

O autor sustenta, contudo, ser meramente aparenteessa unidade em torno do municipalismo, colocando sob foco

26 FERREIRA. O modelofederativo brasileiro:evolução, o marco daConstituição de 1988e perspectivas.

27 MELO, MarcosAndré B. C. de. Omunicípio na fede-ração Brasileira ea questão da auto-nomia. p. 65.

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o aparente consenso relativo à autonomia municipal que,segundo sua advertência, escamoteia um dissenso muitoprofundo. Para ele, o neomunicipalismo brasileiro ou oneolocalismo, como discurso recorrente, há de ser apreendi-do segundo as conotações que lhe emprestam os núcleosfilosóficos subjacentes, os quais, por sua vez, inscrevem-seem genealogias intelectuais distintas:

Na realidade, a idéia de descentralização é hoje lugarcomum tanto em uma agenda neoliberal quanto emuma agenda histórica, identificada com a social-demo-cracia [...]. Dentro de uma tradição neoliberal, a idéiada descentralização, da devolução de funções e compe-tências a entes subnacionais, equivale a uma estratégiamaior de retirada de parcela do poder do Governocentral. Este é o Leitmotiv da idéia da descentralização.

Da mesma forma, dentro de uma agenda social demo-crática, histórica, a idéia de descentralização é inteira-mente diversa; aqueles que propugnam peladescentralização e pela autonomia local, em últimainstância, estão postulando a democratização da gestãoe a ampliação do controle social.28

O certo é que a descentralização como arranjo políticoé mecanismo de reequilíbrio de poder por demanda ou pormecanismo inverso, contando especialmente com o Municípiocomo elemento neutralizador das profundas dissintonias entreUnião e Estados e do processo de articulação de forçasreciprocamente oponíveis no contexto da federação. Sob oenfoque da teoria econômica, a descentralização pode ser feitapara o mercado como mecanismo alocativo e contraponto dopoder estatal, na perspectiva de incorporação de métodos,alternativas e recursos privados. Sob a ótica da democratizaçãoda gestão, a estratégia de descentralização das decisões assegu-rada pela participação do cidadão é condição de equilíbrio darelação Estado-sociedade, conquanto não suficiente.29

Sob essa perspectiva plural, em contexto de verdadeirarevolução tecnológica e de complexidade de demandas eprestações, são igualmente importantes a reconstrução formal

28 Ibidem, p. 63.

29 Ibidem, p. 63.

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e material do federalismo de vocação cooperativa com oincremento de institucionalidades dessa índole e a defesa daampliação do campo autonômico do Município como instân-cia de superação de crises; a concepção democrática deEstado, como fator de fortalecimento da sociedade e da esferamunicipal de governo e da sociedade; e a estruturação demecanismos seguros de extensão de responsabilidades para omercado, sob inspiração de ruptura com as práticassegregadoras e egoísticas que historicamente marcam osetor, por longo tempo, tomado como antitético da esferapública.

6. A descentralização de políticas públicas

O constituinte de 1988, acolhendo as reivindicaçõesdos movimentos organizados, firma compromisso com aefetivação da igualdade, reconhece garantia de acesso doscidadãos aos serviços públicos sociais, consagra auniversalização dos benefícios da seguridade social, entreoutros, e traça diretriz de participação da sociedade naconcepção, na execução e no controle das políticas públicas,com vistas a transcender o patamar de materialização dedireitos para buscar a construção da igualdade, sobretudo pormeio de mecanismos de integração dos cidadãos na política ena processualidade administrativa, como forma de garantircrescente legitimidade às decisões.30

Como conseqüência do agravamento do quadro sociale daquela mobilização, a máquina pública é impactada pelademanda cada vez mais densa e diversificada de benefícios,o que põe em realce as esferas estadual e local, notadamenteesta, tendo em vista principalmente a diminuição da capacida-de de investimento do Governo Federal na prestação direta deserviços ou no financiamento das políticas e a proximidade doMunicípio em relação às questões do quotidiano das necessi-dades.31

A resposta evidente seria a criação de mecanismoscooperativos consistentes entre as diversas esferas de gover-no, conjugados com arranjos entre o Estado e o setor privado,

30 FERREIRA. op. cit.p. 9.

31 Ibidem.

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ou entre aquele e a sociedade, em caráter supletório para oenfrentamento das questões relacionadas com emprego, segu-rança, acesso a equipamentos básicos, já que o poder públiconão dispõe de todos os recursos e modos de gestão para oatendimento das demandas sociais. É dizer: o poder públicodeve esgotar seu esforço de sinergia no âmbito da esferapública estatal, mas deve também integrar a sociedade noprocesso de desenvolvimento, bem assim o próprio mercadoem soluções para o asseguramento de oportunidades a todos,de modo a favorecer a construção da igualdade.

Nessa linha, o quadro de múltiplas demandas e o apelode participação forçaram a precipitação dos processos dedescentralização e de cooperação, que têm conduzido, nosúltimos anos, à formação de várias políticas setoriais, sob novosmoldes, alimentadas também por tendências internacionais: oSUS, que teve sua matriz na Reforma Sanitária Italiana de 1978;e as políticas de controle social, que têm sua inspiração naFrança socialista, são exemplos dessa orientação.32

Na toada da improvisação brasileira, esses processosde descentralização e de cooperação desenvolveram-se se-gundo lógica autoritária no traspasse dos serviços sociais,sem os pressupostos das negociações políticas, o que levouà traumática incorporação de ações, serviços e equipamentos.Entre os fatores negativos que pressionaram as medidasdescentralizantes, citem-se: a insuficiência das bases decooperação federativa nos planos constitucional einfraconstitucional, enfatizando-se a ausência da lei comple-mentar preconizada pelo art. 23 da Constituição da Repúblicacomo sério dificultador da desejável interação, ou óbicemesmo do federalismo cooperativo, na realidade; a ausênciade pactos sociais legitimadores, já que a condução do vetor daparticipação popular se fez pelo caráter mais emblemático doque conseqüente, sem propiciar a discursividade democráticae sustentar instrumentos efetivos de controle.33

Assim, na prática de descentralização de políticaspúblicas, não se tem verificado a sintonia entre os entesfederativos, o que acarreta irracionalidade de gastos públicose prejuízo na qualidade da prestação, com os gravames sobre

32 MELO. op. cit. p.66

33 FERREIRA. op. cit.p. 10.

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a cidadania. De igual modo, as parcerias entre o setor públicoe o privado, por ausência de tradição na realidade, fragilizam-se em razão do comprometimento do interesse público e daprevalência do móvel de socialização de ônus e privatizaçãodos benefícios. Por fim, a participação popular, apesar dosavanços já conquistados, ainda não alcançou o estágio deefetivo fator de controle social.

Demais disso, a nova ideologia municipalista há de seassentar, sim, sobre os pilares da participação, da democratiza-ção da gestão, da eficiência do setor público na prestação deserviços públicos e da parceria. Isso, entretanto, não basta, eisque não pode perder de vista os fatores que desafiam acriatividade e o arrojo das cidades, espaços referenciais deidentidade e locus estratégicos para os consensos primários, notocante a alternativas de superação da crise contemporânea.

Nesse sentido, deve-se acreditar, como José LuizQuadro de Magalhães, que, à luz dos paradigmas do EstadoDemocrático de Direito, na perspectiva da construção doEstado Constitucional, novo tratamento há de ser dado aopoder local, projetando-lhe força proativa da mudança doEstado na relação com a sociedade e com outros atoresimportantes.34

7. Particularidades do federalismo eda descentralização no Brasil.

Potencialidades e constrangimentos

A rediscussão do federalismo e da descentralização noBrasil traz à tona condicionantes estruturais e conjunturais queos peculiarizam.

Entre as primeiras condicionantes, é de se realçarema origem histórica do federalismo brasileiro, a ideologia queo inspirou, o modelo sui generis de sua estruturação, comrepercussão no arranjo de competências e de autonomia, ea disparidade socioeconômica entre as unidades federadas.Tais condicionantes influenciam igualmente outras estraté-gias descentralizadoras.

34 MAGALHÃES.Poder Municipal:paradigmas parao Estado Consti-tucional.

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Na perspectiva de constrangimentos decorrentes dapeculiar posição do Município na ordem federativa, porexemplo, pode-se registrar o fato de que a exacerbação daautonomia municipal interfere nas soluções de caráter metro-politano, consoante se pode registrar. A Constituição apresen-ta, no art. 25, § 3º, topicamente inserido no título “DaOrganização do Estado”, as bases normativas de cooperaçãointergovernamental, a partir do critério de funções públicas deinteresse comum no âmbito de regiões metropolitanas, aglo-merações urbanas e microrregiões. Desse modo, ao adotartais formas organizatórias de funções de interessetransmunicipal, o Estado vincula compulsoriamente os Muni-cípios na relação, sem que isso represente obrigatoriedade decompartilhamento do Município no órgão de gestão regionale exclua instrumentos de cooperação intergovernamental decaráter voluntário, como consórcios e convênios.

Na prática, porém, o discurso municipalista e a exage-rada defesa da autonomia municipal acabam por desestimulariniciativas do Estado voltadas para problemas que transcen-dem a territorialidade local ou passam a compor discurso doEstado de proposital afastamento da gestão metropolitana.Isso constitui, nos últimos anos, motivo nominal para umdéficit de presença do Estado-membro nas questões desseâmbito, a refletir o abandono da política de desenvolvimentourbano que, especialmente na década de 70, atraiu a atençãode estudiosos e maciços investimentos públicos.

E não há como negar a imprescindibilidade da presençada União e dos Estados-membros na solução dos problemasmetropolitanos, tamanhos os desafios que se colocam nesseplano, consoante evidências que se colhem dos dados doIBGE: a absurda concentração de cerca de 51% da populaçãobrasileira em área de 1,8% do território nacional, compondoum quadro metropolitano caótico que alia a maior acumulaçãodo PIB nacional às mais profundas deseconomias de escala doPaís. Sem a presença suficientemente forte do Estado noâmbito da unidade regional administrativa, por ele mesmotitularizada e ao mesmo tempo subsidiária da ação municipal,não se vislumbram perspectivas de reversão dos desequilíbrios

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e desenvolvimento de uma gestão integrada e eficaz defunções públicas de interesse comum.

Na mesma linha, a partilha de competências na Consti-tuição peculiariza o federalismo, uma vez que é feita segundouma complexa matriz que associa múltiplos critérios de repar-tição. Nesse sentido, o condomínio dos poderes estatais rege-se por competências privativas da União, com a possibilidadede que os Estados recebam, mediante delegação da ordemcentral, parcela de poder originalmente atribuída àquela (art. 22da CF); competências comuns da União, dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios (art. 23 da CF); competênciasda União, dos Estados e do Distrito Federal para legislarconcorrentemente (art. 24 da CF); competências enumeradasexaustivamente para a União (arts. 21 e 22 da CF); competênciaprevista indicativamente para Municípios, a partir do mote dointeresse local e distendida pela possibilidade deferida ao Muni-cípio para suplementar a legislação federal e estadual, no quecouber (art. 30 da CF); competências remanescentes paraEstados e para o Distrito Federal ( art. 25, § 1º, da CF). Omodelo de distribuição de competência, ao mesmo tempo queembasa a construção jurídica da cooperação dos entes federa-tivos, sustenta a centralização do poder no âmbito da União,tendência, de resto, confortável na cultura interna, alimentadapela consciência da unidade nacional.

Sabe-se que, no Brasil, o desequilíbrio regional – emespecial, o dos entes subnacionais isoladamente considerados– é o mais acentuado da América Latina, realidade que trazdesdobramentos nos planos interpessoal, inter-regionais eintra-regionais, que particularizam o federalismo brasileiro.Esse quadro de hierarquização de regiões, embora componhaum substrato que desafia a cooperação na perspectiva deequalização do todo, com a intermediação da União, gerasobretudo efeitos perversos sobre o federalismo, projetandopermanente ameaça ao equilíbrio das relações.35

Francisco Oliveira lembra que a renúncia dos direitosde soberania dos Estados em favor da Federação atrai paraesta deveres para com as unidades federadas; entre outros, o

35 AFFONSO. op.cit. p. 32.

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de partilha do poder federal, o de distribuição eqüitativa dasriquezas produzidas pela formação federal e o de defesa decada uma das partes. Adverte, na linha dos constrangimentos,que, na medida em que se frustram as expectativas deequalização das diferenças inter-regionais e de participaçãodas unidades na riqueza produzida pelo conjunto, perderelevância a relação de pertinência e de integridade no âmbitoda ordem federativa.36

Consoante adverte Francisco de Oliveira, paradoxal-mente, o desequilíbrio entre a renúncia de poderes e ascompensações é argumento a que se apegam também algumasunidades subnacionais mais desenvolvidas, com participaçãomais efetiva na produção de riquezas, pretensamente prejudi-cadas no concerto federativo, por suportarem ônus do sub-desenvolvimento de outras. Sustentando sua auto-suficiên-cia, sobretudo para conectar-se diretamente ao processo deglobalização — apesar da ausência de evidências de ganhosnessas estratégias de ligação à revelia dos Estados nacionais,conforme afirma o autor —, não encontram compensaçõespor sua renúncia de direitos de soberania em favor daFederação, vista, então, como estorvo.37 Rui de Brito ÁlvaresAffonso, à sua vez, discutindo as dissimetrias nas relaçõeseconômicas no Brasil, mostra que, longe de um equilíbrioentre renúncia de soberania e compensações, as tensões delasdecorrentes conformam um pacto federativo baseado em umintricado e pouco explícito mecanismo de trocas entre esferasde governo e entre regiões.38

No bojo desses mecanismos de troca com vistas àatenuação das desigualdades fiscais e econômicas inter-regionais, colocam-se, de modo paliativo, as medidas detransferência de capitais de regiões mais desenvolvidas paraas de economia mais deprimida, as transferências fiscais eparafiscais de caráter compensatório e, ainda, as transferên-cias voluntárias para execução de determinadas políticaspúblicas. Nesse sentido, por exemplo, regiões menos desen-volvidas são mais bem aquinhoadas com transferências dereceitas disponíveis, se comparadas com as mais desenvolvi-das, que lidam com receitas próprias significativas. Tais

36 OLIVEIRA. op. cit.p. 8.

37 OLIVEIRA. op. cit.p. 7.

38 AFFONSO. op. cit.p. 35.

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medidas, contudo, a par de deixarem intocadas as disparidadesentre grupos sociais, em larga medida se distanciam dopropósito de verdadeira equalização do todo, para se presta-rem ao reforço da dependência de determinadas unidades emrelação às mais poderosas e ao governo central, seja pelaimposição de condições para acesso aos benefícios, seja pelamanipulação política das transferências, sendo de se ressaltara tendência mais recente de redução do grau de condicionalidadedas receitas transferidas, conforme registra Rui de BritoÁlvares Affonso.39

Pelo caráter paliativo, as medidas não se revelamsuficientes para a superação da crise do federalismo brasileiro,cujo revigoramento, na linguagem de Rui de Brito ÁlvaresAffonso, apresenta “caráter inconclusivo e conflitivo”.

Segundo o autor, o diagnóstico dos desafios maiscontundentes nas relações no âmbito da federação, tendo emvista, sobretudo, o fator das desigualdades, revela múltiplasdistorções. Nesse sentido, chama atenção a disputa entre aUnião e os governos subnacionais por competências sobregastos públicos e receitas, com a tentativa da União de sefortalecer mediante a ampliação de receitas não compartilha-das, por meio da elevação da carga tributária, e dodesvencilhamento de vinculação de gastos imposta pela Cons-tituição de 1988. Na mesma linha, devem ser enfatizadas asdisputas entre Estados e entre Municípios, no âmbito dachamada guerra fiscal, como forma de atrair investimentospara superar a diminuição de transferências voluntárias daUnião e para compensar a retração dos investimentos federaise a ausência de planos regionais de desenvolvimento. Estraté-gia semelhante desenvolve-se a partir de emancipação deMunicípios, como forma de reordenar a distribuição do Fundode Participação dos Municípios e de outras receitas, como ado Valor Agregado Fiscal, relativo ao ICMS, estimulando aopção por políticas segregadoras e isolacionistas por parte degovernos locais. Compõem ainda o diagnóstico a inconsistên-cia de uma política de cooperação para fazer face às disparidadessocioeconômicas regionais, articulada ao influxo das pres-sões do sistema eleitoral que impõe a lógica da intermediação

39 AFFONSO. op. cit.p. 34.

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política para repasse de recursos aos entes subnacionais; e,por fim, a participação dos Estados e dos Municípios na crisefiscal, respondendo por gastos elevados, especialmente parafazer face a dívidas externas e internas, em posição defragilidade nos processos de renegociação de débitos edescentralização de políticas sociais.40

Vê-se, pois, que o fator das desigualdades associado aoda carência de motivação dos entes subnacionais para aalimentação processual do pacto federativo, em razão dodesequilíbrio entre renúncia de direitos de soberania e com-pensações redistributivas, militam ao mesmo tempo contraum federalismo competitivo, já que o suposto deste é a própriaigualdade entre os entes federativos e a motivação pelapertinência ao conjunto, e contra um federalismo cooperativoeficaz, que se deve apoiar em mecanismos institucionais econtratuais de trocas equilibradas mediadas pela União. Poroutro lado, tanto a competição quanto a cooperação só sãoeficazes se inseridas em arranjos de controle de que partici-pem em posição ativa as unidades do conjunto, arranjos queserão meramente nominais em um quadro de fortesdesequilíbrios e de descompromisso com o pacto federativo.

Outros fatores de caracterização da opção brasileiradevem ser acrescidos, tais como o relativo ao seudistanciamento da idéia de uma Federação voltada para opropósito de defesa dos interesses dos indivíduos e doscidadãos contra pretensões centralizadoras.

As circunstâncias que envolvem a formalização daalternativa brasileira influenciam as soluções nos planos ideoló-gico, estrutural e gerencial do Estado Federal.

A opção brasileira acaba por deixar flancos às investidasda União sobre a autonomia de Estados e Municípios, sem acontrapartida da resistência organizada no âmbito da própriacidadania. Veja-se o exemplo recente representado pela ediçãoda Lei Complementar n.º 101, de 5 de maio de 2000, sobreresponsabilidade fiscal, como verdadeira panacéia contra aprática corruptiva da administração pública e instrumento deconsecução de desenvolvimento econômico e social do País.

40 AFFONSO. op.cit. p. 36.

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Nela, em franco desrespeito à matriz constitucional, que,ademais, amplia a responsabilidade do Estado como garanti-dor do exercício dos direitos individuais, sociais, coletivos edifusos assegurados exemplificativamente na Constituição(arts. 5º, 6º e 7º), o legislador elege o equilíbrio de contas comoum fim em si mesmo, isto é, prioriza o corte de déficitsprimários e o aumento de receita, em prejuízo das prestaçõespositivas do Estado para fazer face à demanda de efetivaçãode direitos e de oportunidades para a consecução da cidadaniaplena e emancipada. Com efeito, desconhecendo a amplitudeda responsabilidade do gestor, traduzida por enfáticos dispo-sitivos, sejam os inseridos no capítulo da AdministraçãoPública (art. 37), sejam os deduzidos dos direitos (arts. 5º, 6ºe 7º), sejam os dos arts. 170, 174, 182, 194, 203, do 215 eoutros, o legislador ateve-se a um conceito restrito de respon-sabilidade para estabelecer drásticas limitações ao gestor, asquais importam em verdadeira quebra do pacto federativo,chegando a prever suspensão de transferências voluntáriasaos entes subnacionais por infração da legalidade fiscal, e acaracterizar tipos penais severamente sancionados, mesmoem situações de extrapolação em função de uma eficiênciaresponsável e respeitosa aos direitos individuais, sociais,coletivos e difusos. O quadro redunda na inação dos adminis-tradores e no desestímulo às vocações para a gestão pública,com sanções aos próprios cidadãos.

Fatores conjunturais também devem ser levados emconta. Nesse sentido, cabe lembrar, por exemplo, que oreforço do federalismo brasileiro, de um lado, e a meradescentralização do poder político-econômico, de outro,voltados para o propósito comum – tão bem lembrado por Ruide Brito Álvares Affonso – de “atender à multiplicidade dedemandas territorialmante diferenciadas, ou seja, de enfrentaro desafio de articular o geral com as particularidades na gestãopública”, decorrem de circunstâncias específicas.41

Apesar de ganhar relevância no bojo do processo dedescentralização da América Latina, a estratégiadescentralizante no Brasil, pelo menos na sua deflagração,destoa de experiências como as da Colômbia, da Venezuela e

41 AFFONSO. op. cit.p. 31.

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da Bolívia, capitaneadas pela União em busca de maior eficáciadas ações do governo central no âmbito dos Municípios, derestabelecimento da governabilidade ou de superação decrise.42 Internamente, decorre de pretensões dos Estados eMunicípios, especialmente no campo tributário, a partir dofinal dos anos 70, em face da emergência da crise econômicae, ainda, de iniciativa das unidades subnacionais em estratégi-as de afirmação no bojo do processo de redemocratização, nadécada de 80. No âmbito desse movimento, o Estado centralfoi posto em xeque, prevalecendo a crença em que o trespassede encargos e receitas da União Federal a Estados e Municí-pios era condição de fortalecimento do federalismo.

É de se ver assim que, diferindo dos processos latino-americanos mais eloqüentes, no Brasil, a descentralização nosúltimos anos apresentou-se como estratégia alheia aos interes-ses do governo central, caracterizando-se como por deman-da, embora posteriormente tenha sido assimilada como estra-tégia da União para enfrentamento da crise.

Demais disso, as perspectivas de revigoramento dofederalismo, com a descentralização fiscal e aredemocratização, verificaram-se no curso de acentuadacrise do próprio modelo de desenvolvimento e encontramclima de completa frustração no contexto da desestruturaçãodo Estado, imposta pela filosofia liberalizante do governofederal que, a partir da década de 90, contraditoriamentecompromete o pacto federativo com as diversas reformas emedidas de desestatização.

Assim, refletindo, num primeiro momento, a posturareativa da União e as perplexidades das entidades subnacionaise da própria população, sobretudo em face da lógica detratamento das políticas públicas e, posteriormente, dasdisputas entre o paradigma liberal e o democrático, o processode descentralização no Brasil revelou múltiplas dificuldades,impasses e constrangimentos. Esse quadro de dificuldadescompreende desde a ausência de planejamento adequado porparte da União das alternativas de transferência das atribuiçõesaté então a seu cargo, passando pela impropriedade demétodos de implementação e de controle das medidas

42 Ibidem, p. 33.

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descentralizantes, pelas superposições e lacunas, pelasdisfunções decorrentes de soluções massificadas, pelodesequilíbrio entre encargos e receitas, até a insuficiência dosarranjos institucionais, para darem suporte a diretrizes epráticas inovadoras de gestão, com os paradoxos inevitáveis.

Entre tantos atropelos, é de se realçar a ausência deplanejamento. Sabe-se que a descentralização responsável depolíticas públicas pressupõe processos preparatórios de sele-ção daquelas passíveis de transferência para outros níveis,avaliação de aptidão dos receptores para se desincumbirem denovos encargos. Em outras palavras, a adoção de estratégiademanda estudos de viabilidade técnica e política, de modo aevitar efeitos perversos. A ausência desse planejamento e dedefinição clara de responsabilidades no processo afeta a lógicacooperativa e opõe dificuldades à coordenação e à articulaçãodos esforços por parte do governo central, com prejuízo paraa eficácia dos novos arranjos e do atendimento dos cidadãosde um modo geral.

Igualmente, embora se perceba a potencialidade dasestratégias descentralizadoras, não se pode olvidar a impro-priedade de soluções uniformes para contextos tão dísparesdo municipalismo brasileiro, seja no tocante às condiçõesfísicas, econômicas e sociais, seja em relação à capacidadetécnico-administrativa, financeira e fiscal para a garantia degestão adequada. Na descentralização, impõe-se a defesa decerta flexibilidade dos arranjos institucionais e contratuaispara que possam responder às especificidades das experiên-cias e dos contextos de sua aplicação.

Na mesma linha, deve-se afastar o equívoco dasimplificação estruturada no binômio democracia edescentralizacão, já que não basta tratar-se de esfera localpara que se tenha favorecida a prática daquela. Com efeito,a democracia depende da concorrência de outros fatores,tais como os econômicos, financeiros, culturais, institucionaise especialmente políticos, sejam relacionados com os canaisde participação direta, sejam com o perfil das instituiçõesrepresentativas.

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Desse modo, pode-se afirmar que o movimentodescentralizante mais recente, num primeiro momento, levouao reforço do federalismo na Constituição de 1988, sobretudosob a perspectiva da cooperação intergovernamental, tendoem vista a reconformação da partilha fiscal, a partir de basenormativa de sustentação do aumento de arrecadação própriae de receita disponível para Estados e Municípios, muitoembora a política tributária da União, que prestigia a criaçãode contribuições entre as categorias tributárias, deixe à mar-gem do aumento de receita os entes subnacionais. De qualquerforma, o arranjo tributário da Constituição de 1988 colocou oBrasil em posição de relevo na América Latina e em face defederações desenvolvidas, como Alemanha e Estados Unidos,conforme registra Rui de Brito Álvares Affonso.43

Esse quadro de potencialidades e de dificuldades evi-dencia a tensão do federalismo brasileiro entre descentralizaçãoe recentralização, vislumbrando-se, no atual cenário, a ten-dência de crescente concentração do controle da economia edas finanças nas mãos do governo da União, com vistas aoatendimento das exigências da economia globalizada, e, aomesmo tempo, a transferência de agigantados encargos aosEstados-membros e Municípios, notadamente nas áreas desaúde e educação.

8. CONCLUSÃOO federalismo brasileiro, do ponto de vista da concep-

ção estrutural, tem como inspiração a experiência americanada Convenção de Filadélfia de 1787.

Pelo viés histórico, no entanto, percebem-se distintas asrazões que propulsam a formação da federação brasileira, sendocerto que a ambigüidade resultante da associação de fatoresconceptuais e históricos e a realidade interna marcada poracentuadas disparidades socioeconômicas e por pressões políti-cas dão cunho praticamente nominal à forma de Estado adotada.

Na linha do nominalismo, o Constituinte de 1988 optoupor consagrar, em artigo inaugural, a “união indissolúvel dosEstados e Municípios e do Distrito Federal” como arranjo

43 AFFONSO. op. cit.p. 35.

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basilar do Estado Democrático de Direito, desenvolvendomodelo de distribuição de competências estruturante de amplacooperação jurídica.

Uma tal exortação, ideologizada pela bandeira municipalista,e uma sofisticada matriz de repartição dos poderes no âmbito doterritório nacional não elidem os constrangimentos operados porsucessivos movimentos de centralização e descentralização queameaçam o federalismo brasileiro.

Daí por que as potencialidades inerentes a tal forma deEstado em sua peculiar configuração interna devem serconcretizadas, tendo como força motriz sobretudo a densida-de da autonomia posta no plano normativo, para fazer face àsinvestidas da União, pautadas, não raro, por interesses políti-cos e conjunturais cuja persecução coloca o federalismo àmercê de lógicas cambiantes.

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