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Departamento de Teologia 1 O MOVIMENTO (SIMBOLISMO) “RASGAR” NO EVANGELHO DE MARCOS (1,10; 15,38) Aluna: Lídia Maria Carneiro de Resende Orientador: Geraldo Dondici Vieira Introdução Conhecer com profundidade um texto bíblico, por pequeno que seja, é um processo que exige grande esforço e um estudo acurado. O presente trabalho é continuidade de um projeto de estudo e pesquisa com base no Evangelho de Marcos 1,10 e 15,38. Trata-se da pesquisa intitulada “O CÉU SE RASGA, RASGA-SE O VÉU DO TEMPLO: A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE JESUS”. Desenvolveu-se basicamente analisando os versículos de Marcos, acima citados, comparando-os com outros textos da Sagrada Escritura e da literatura antiga que também marcam o movimento de “rasgar” e outros de mesmo sentido. Ademais de retomar o trabalho já realizado, apresentamos aqui o estudo de uma possível inclusão apocalíptica (ou escatológica) de Marcos 1,10 e 15,38, fundamentada no verbo “rasgar” (σχίζω). Antes, porém, destacamos alguns elementos das sociedades da Grécia e de Roma, para melhor situar o Evangelho de Marcos no contexto histórico que o envolve. Sobretudo o contato com a religião greco-romana do primeiro século, ajuda a evidenciar o ambiente apocalíptico do qual emergem nossos textos escolhidos. Do mesmo modo, fazemos uma apresentação do Evangelho em estudo dentro do quadro dos outros escritos evangélicos, entendendo que cada um deles não é somente uma “peça” ou parte de um todo, senão que traz uma mensagem significativa e profunda para as comunidades de seu tempo e para nossos dias. (Com relação à pesquisa anterior, amplia-se esta parte da inserção de Marcos no conjunto dos evangelhos). Acrescentamos ainda uma parte de hermenêutica, para aproximação das citações bíblicas aos leitores de hoje. Eis o propósito fundamental que nos acompanha durante cada etapa de estudo e pesquisa: procurar demonstrar que o simbolismo do verbo “rasgar” (σχίζω) presente nos dois versículos (no início e no final), forma uma inclusão apocalíptica e é uma das chaves de leitura do Evangelho de Marcos. Desta forma, possibilita (aos leitores das Escrituras Cristãs) o encontro com esta chave de leitura e o enriquecimento com um assunto pouco explorado pela Exegese, favorece o crescimento da divulgação da Boa Nova hoje. Contexto histórico Sociedade Greco-romana Para melhor compreender um trabalho de exegese como é o nosso, convém conhecer o contexto histórico em que se insere o escrito. A orientação dos exegetas para o estudo de um texto bíblico é buscar o enfoque histórico, que envolve o tempo da origem do escrito, o ambiente de seu autor e dos primeiros leitores. Dito de outra forma, para obter a compreensão do texto é importante conhecer sua história contemporânea. Muitos autores acordam em afirmar que Marcos escreveu para as comunidades da Itália, ou seja, a leitores romanos (e seu próprio nome é de origem romana “servo

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  • Departamento de Teologia

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    O MOVIMENTO (SIMBOLISMO) RASGAR NO EVANGELHO

    DE MARCOS (1,10; 15,38)

    Aluna: Ldia Maria Carneiro de Resende

    Orientador: Geraldo Dondici Vieira

    Introduo

    Conhecer com profundidade um texto bblico, por pequeno que seja, um

    processo que exige grande esforo e um estudo acurado.

    O presente trabalho continuidade de um projeto de estudo e pesquisa com base

    no Evangelho de Marcos 1,10 e 15,38. Trata-se da pesquisa intitulada O CU SE

    RASGA, RASGA-SE O VU DO TEMPLO: A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE

    JESUS. Desenvolveu-se basicamente analisando os versculos de Marcos, acima

    citados, comparando-os com outros textos da Sagrada Escritura e da literatura antiga

    que tambm marcam o movimento de rasgar e outros de mesmo sentido.

    Ademais de retomar o trabalho j realizado, apresentamos aqui o estudo de uma

    possvel incluso apocalptica (ou escatolgica) de Marcos 1,10 e 15,38, fundamentada

    no verbo rasgar ().

    Antes, porm, destacamos alguns elementos das sociedades da Grcia e de

    Roma, para melhor situar o Evangelho de Marcos no contexto histrico que o envolve.

    Sobretudo o contato com a religio greco-romana do primeiro sculo, ajuda a

    evidenciar o ambiente apocalptico do qual emergem nossos textos escolhidos.

    Do mesmo modo, fazemos uma apresentao do Evangelho em estudo dentro do

    quadro dos outros escritos evanglicos, entendendo que cada um deles no somente

    uma pea ou parte de um todo, seno que traz uma mensagem significativa e profunda

    para as comunidades de seu tempo e para nossos dias. (Com relao pesquisa anterior,

    amplia-se esta parte da insero de Marcos no conjunto dos evangelhos).

    Acrescentamos ainda uma parte de hermenutica, para aproximao das citaes

    bblicas aos leitores de hoje.

    Eis o propsito fundamental que nos acompanha durante cada etapa de estudo e

    pesquisa: procurar demonstrar que o simbolismo do verbo rasgar () presente nos

    dois versculos (no incio e no final), forma uma incluso apocalptica e uma das

    chaves de leitura do Evangelho de Marcos. Desta forma, possibilita (aos leitores das

    Escrituras Crists) o encontro com esta chave de leitura e o enriquecimento com um

    assunto pouco explorado pela Exegese, favorece o crescimento da divulgao da Boa

    Nova hoje.

    Contexto histrico

    Sociedade Greco-romana

    Para melhor compreender um trabalho de exegese como o nosso, convm

    conhecer o contexto histrico em que se insere o escrito. A orientao dos exegetas para

    o estudo de um texto bblico buscar o enfoque histrico, que envolve o tempo da

    origem do escrito, o ambiente de seu autor e dos primeiros leitores. Dito de outra forma,

    para obter a compreenso do texto importante conhecer sua histria contempornea.

    Muitos autores acordam em afirmar que Marcos escreveu para as comunidades

    da Itlia, ou seja, a leitores romanos (e seu prprio nome de origem romana servo

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    de Marte?). H alguns que afirmam que escreveu para comunidades da Sria. Segundo

    a tradio, o evangelista acompanhava a Pedro em suas pregaes, traduzindo-as para o

    grego; era, portanto, seu intrprete na misso no mundo helnico.

    Porm no somente isto justifica a origem do texto de Marcos; pode ser til

    apresentar o testemunho da Tradio da igreja primitiva, fundamentado em termos que

    aparecem no prprio escrito:

    Conforme uma tradio antiga, o evangelho foi escrito em Roma. Em geral, os numerosos latinismos encontrados em Marcos podem ser excludos

    como termos militares e tcnicos de uso corrente. Em duas ocasies notveis,

    contudo, uma expresso grega explicada pelo seu equivalente latino:

    ...duas lepta (moedas gregas), isto , um quadrante (moeda romana)

    (12,42); o interior do ptio, isto , do Pretrio (15,16). Esses

    Esclarecimentos levam a crer que o evangelho foi escrito em Roma.1

    Em se tratando de um texto de literatura antiga em meio Greco-romano,

    recorremos a uma apreciao histrica sobre a realidade desses dois povos e sua

    influncia no tempo em que foi escrito o Evangelho segundo Marcos. Destacaremos

    brevemente o que nos parece mais importante sobre alguns aspectos.

    Os dois povos, segundo Fustel de Coulanges, podem ser reunidos no mesmo

    estudo porque eram dois ramos duma mesma raa e que falavam dois

    idiomas derivados da mesma lngua, tiveram tambm um fundo de instituies

    comuns e atravessaram uma srie de revolues semelhantes.2

    Percebemos no estudo histrico da Grcia e de Roma que h uma influncia

    fortssima da religio na vida da sociedade. Em outras palavras, muitos aspectos da vida

    social tm seu fundamento nas crenas e seu sustento na instituio religiosa. Era a

    religio que ordenava a vida das pessoas: lar, propriedade, herana. Parentes so aqueles

    que tm os mesmos deuses domsticos. Cada famlia tinha seu deus protetor. E mais:

    A comparao das crenas e das leis mostra que a religio primitiva constituiu a famlia grega e romana, estabeleceu o casamento e a

    autoridade paterna, fixou os graus de parentesco, consagrou o direito

    de propriedade e o direito hereditrio.

    Esta mesma religio, depois de ter alargado e estendido a famlia, formou

    uma associao maior e governou nela como na famlia.3

    Havia sempre um altar na casa de um grego ou de um romano. As famlias

    tinham o deus da fora, o deus da riqueza, sempre invocado sobre os filhos para que

    tivessem sade e abundncia de bens.

    No obstante, o que estas duas sociedades possuem de crenas e instituies nas

    pocas de auge e brilhantismo, exprime uma herana de um passado remoto, de muitos

    sculos antes, e at mesmo vinda de outras sociedades antigas, como a dos rias do

    Oriente.

    Os ritos sacrificais, as crenas sobre a alma e a morte, os ritos fnebres e

    cerimnias de casamento incidem na vida das pessoas. Acreditava-se que a alma era

    imortal, que a vida apenas transformada e continua mesmo aps a sepultura. Da os

    cultos e oferendas aos mortos observarem ritos tradicionais e frmulas determinadas.4

    1 HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bblia. A revelao, a Promessa, a realizao, 4. ed. So

    Paulo: Paulus, 1985. p. 453. 2 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudo sobre o culto, o direito e instituies da Grcia e de

    Roma. Lisboa: Livraria Clssica Editora, 1929. p. 5. 3 Ibid., p. 8-9.

    4 Ibid., p. 18.

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    Entre romanos e gregos era comum aceitar a deificao da dinastia. Era de

    interesse dos reis e no tiveram dificuldades em serem aceitos como deuses, ainda em

    vida. Havia muitas outras modalidades de divindades e a adorao aos elementos da

    natureza. Esta vivncia e costumes eram j combatidos pelos judeus como idolatria,

    causa de ambio e egosmo, desordens sociais e total ausncia de paz.

    No tempo em que Marcos escreve seu evangelho grande a perseguio aos

    cristos por parte do Imprio Romano. O povo vivia subjugado pela religio do imprio

    e oprimido tambm pela autoridade. Era muito problemtico para os cristos

    proclamarem a f em Jesus Cristo quando estavam sob o jugo de um imprio em que as

    pessoas adoravam ao imperador como um deus. Eram comuns os cultos ao imperador.

    Os cristos, porm, recusavam tais cultos, procurando manter sua fidelidade a Jesus

    Cristo, e por tal postura sofreram como numa tempestade. As comunidades foram

    perseguidas, impedidas de se reunir. Muitos discpulos e discpulas morreram; outros

    negaram a f (Mc 14,71), traram (14,10.45) ou fugiram (14,50), se dispersaram

    (14,27).5

    Vale ressaltar que tambm no meio judaico a sociedade girava em torno da

    estrutura religiosa, representada pelo Templo. Entretanto, os judeus se sustentavam de

    forma diferente aos gregos e romanos. Para os judeus era impossvel deixar a f em

    YHWH, e em sua vida jamais aceitavam desvincular tica e religio. Encaravam a

    idolatria como responsvel pala marginalizao do homem, geradora de uma sociedade

    que destri as relaes humanas; seguir aos dolos opor-se e rejeitar ao Deus vivo e

    verdadeiro.

    Era cada vez mais difcil a vida dos que aceitavam a Boa Nova de Jesus. Mesmo

    havendo um respeito e continuidade de alguns elementos do judasmo, h nos crentes

    em Cristo uma total mudana de critrios para a apreciao dos valores sociais, culturais

    e religiosos. Eles seguem uma inspirao que procede do prprio Cristo, pelo Esprito

    Santo.

    Resultado de um processo

    Esclarecemos anteriormente que o presente trabalho rene contedos de

    pesquisa anterior. Refere-se ao projeto inicial O CU SE RASGA , RASGA-SE O VU DO TEMPLO: A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE JESUS, sobre uma

    das chaves de leitura do Evangelho de Marcos, que a da incluso literria pelo verbo

    (rasgar) , com base nos textos 1,10 e 15,38.

    A partir desta estrutura, organizamos o contedo, realizamos alguns acrscimos,

    sobretudo a incluso apocalptica (complementando bibliografia) para dar corpo ao

    texto que temos em mos.

    conveniente retomar a referida pesquisa a partir da insero de Marcos no

    conjunto dos evangelhos. Nesta apresentao, h, portanto, acrscimos com relao ao

    trabalho anterior.

    Os Evangelhos

    Cada Evangelho, que no simplesmente descrio da vida de Jesus, provm da

    viso prpria do respectivo evangelista, querendo todos eles atingir e convencer

    determinadas comunidades. Devem, portanto, ser explicados e entendidos com base a

    esse contexto.

    5 CNBB. Caminhamos na estrada de Jesus. O Evangelho de Marcos. So Paulo: Paulinas, 1996. p. 18

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    O Evangelho segundo Marcos

    No se pode dizer que se conhece um evangelho em seu conjunto apenas por

    suas fontes e influncias. O Evangelho atribudo a Marcos, o segundo de nosso cnon,

    tem muitas formas de ser conhecido com profundidade. Porm, abordaremos aqui

    basicamente sua relao com os outros chamados evangelhos sinticos.

    H uma relao profunda da questo das fontes em Marcos com a questo

    sintica e a origem dos demais evangelhos. Do ponto de vista da dependncia literria,

    muitos estudiosos admitem a prioridade de Marcos em relao a Mateus e Lucas (e

    tambm Joo), escritos possivelmente a partir do ano 70. Os autores tratam a chamada

    questo sintica, explicada a partir da teoria das duas fontes: Mateus e Lucas

    tomam como base o evangelho de Marcos e tambm uma fonte comum que

    conheceram, qualificada como fonte Q. Cada um deles tambm trabalhou suas

    prprias fontes. Esta, como outras hipteses, sujeita a crticas.

    Eis o esquema grfico que representa a chamada teoria das duas fontes:6

    Vida e mensagem

    de Jesus

    Pregao

    dos apstolos

    Tradio oral nas

    Comunidades crists

    Colees de feitos e ditos

    de Jesus

    Evangelho

    Marcos Fonte Q

    (a.65)

    Evangelho

    Mateus Evangelho

    (a.70) Lucas

    (a.75)

    Vale salientar que Marcos e os outros evangelhos trazem no uma biografia (de

    Jesus) ou biografias (de Jesus e dos apstolos, discpulos etc), mas um anncio da

    mensagem de salvao e libertao ao povo. Refletem os problemas, a realidade, os

    desafios das comunidades em torno das quais cresce a Boa Nova, Evangelho de Cristo.

    Texto grego de Mc 1, 10 kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to.

    pneu/mawj peristera.n katabai/non eivj auvto,n\7

    6 Cf. GALDEANO, Fernando Martnez. Descubre la Bblia. Madrid: EDICEL Centro Bblico Catlico,

    2004. p. 131. 7 NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft,

    1993. p. 89.

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    Traduo

    E, logo ao subir da gua, ele viu os cus se rasgando e o Esprito, como uma

    pomba, descer at ele.8

    Anlise lexicogrfica Kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j peristera.n katabai/non eivj auvto,n Texto Classe gramatical Traduo Kai. Conjuno coordenada E euvqu.j Advrbio logo avnabai,nwn Verbo particpio presente ativo masculino

    singular

    ao subir

    Evk Preposio genitiva de tou/ Artigo definido genitivo neutro singular a u[datoj Nome genitivo neutro singular comum gua Ei=den Verbo indicativo aoristo ativo 3. pessoa

    singular

    viu

    scizome,nouj Verbo particpio presente passive acusativo masculino plural

    rasgarem-se

    tou.j Artigo definido acusativo masculino plural os ouvranou.j Nome acusativo masculino plural cus kai. Conjuno coordenada e to. Artigo definido acusativo neutro singular o pneu/ma Nome acusativo neutro singular Esprito w`j Conjuno subordinada como peristera.n Nome acusativo feminino singular uma pomba katabai/non Verbo particpio presente ativo acusativo

    neutro singular

    descendo

    Eivj Preposio acusativa sobre auvto,n\ Pronome acusativo masculino 3. pessoa do

    singular

    Ele

    Anlise ou crtica textual

    Segundo NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, em Mc 1,10, a

    expresso (sobre ele), no versculo 10c, vem precedida do sinal , indicando que neste ponto h uma incluso, isto , uma insero de palavras em um ou

    mais manuscritos. Conforme pode conferir-se em Jo 1,33, a expresso apresenta a

    variante de (e permanecer"), atestada pelas seguintes testemunhas segundo

    os tipos de manuscritos: Uncial (alef ), do sculo V; W, um dos textos bem

    considerados do Segundo Testamento, tambm datado do sculo V e pelo minsculo 33.

    A variante testemunhada ainda por poucos manuscritos latinos que divergem do texto

    majoritrio e por uma parte dos manuscritos da verso boirica.

    A segunda variante est sinalizada por , indicando uma substituio simples

    de () por (que tambm significa sobre), testemunhada pelo uncial ,

    vrios textos do Segundo Testamento, presentes nos outros trs evangelistas, nos

    8 Cf. BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista e ampliada. So Paulo: Paulus, 2002. p. 1759.

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    Atos dos Apstolos, vrias Epstolas, manuscritos de verses latinas, pela famlia 1 da

    verso de Antioquia, pelo minsculo 33, pelo texto majoritrio ou massortico e os

    manuscritos da verso siraca.

    Uma terceira variante sugere o prprio texto a expresso ,

    testemunhada por escritos proto-alexandrinos, pelos unciais mai sculos presentes

    em vrios textos dos Evangelhos, Atos dos Apstolos e Epstolas, pela famlia do

    minsculo 13, nmero 2427, (datado aproximadamente do sculo XIV) e poucos outros

    manuscritos (de vrios sculos) que divergem do texto majoritrio.

    Contexto literrio

    A citao faz parte do chamado prlogo de Marcos (1,1-13), que consta da

    atividade de Joo Batista, o batismo de Jesus e a tentao.

    Insere-se mais precisamente no evento do batismo de Jesus, que proclama a sua

    vocao messinica. Jesus o Esperado das naes, o Messias servo e solidrio com a

    humanidade pecadora.9

    Sobre esta percope, Carlos Mesters, um dos conhecidos biblistas que atuam no

    Brasil aponta:

    [...] descreve a grande mudana que ocorreu na vida de Jesus por ocasio do batismo. O cu se abriu e ele teve uma viso. Deus Pai falou: Tu s o meu

    filho amado! Aquela experincia mudou tudo na vida de Jesus. Naquela

    hora ficou clara a sua misso, e ele a assumiu.10

    Logo no incio de seu Evangelho, Marcos apresenta a Jesus como o Filho de

    Deus. Ele no somente o ungido, o Messias, mas o prprio Filho, o primognito, o

    unignito do Pai. em si o rosto de Deus. A beleza de Deus na eternidade revelada

    em Jesus Cristo. Por Ele, podemos ver a beleza de Deus nas pessoas.

    Jesus a perfeio da verdade, da verdade das palavras, da verdade das pessoas;

    a perfeio do bem, das pessoas, da histria.

    J est presente neste incio de Marcos o que est no chamado apocalipse

    sintico (13,27): Ento vero a vinda do Filho do homem. Nesta apresentao da

    vinda de Jesus e os cus que se abrem est a certeza de Deus entre o povo.

    Em torno desta apresentao da vinda de Jesus desenvolvem-se uma srie de

    acontecimentos que testificam o que Marcos anuncia nos primeiros versculos de sua

    obra: [...]Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. (Mc 1,1).

    Os dois personagens principais do contexto em que se insere nosso texto so

    Jesus e Joo Batista. Estes dois personagens so introduzidos pela expresso narrativa

    deu-se que; aconteceu que; da; ento.

    Elementos aparentemente antagnicos descrevem as relaes entre Joo e Jesus

    na apresentao feita por Marcos: Joo marca o antes e Jesus o depois; com Joo se d a

    preparao e com Jesus a realizao, o cumprimento da promessa; Joo batiza com gua

    e Jesus com o Esprito Santo; Joo o menor, menos digno, o amigo do noivo, enquanto

    Jesus o maior, o mais digno, o noivo. Joo profeta enquanto Jesus o Filho de Deus.

    A imagem dos cus que se rasgam expressa a comunicao de Deus. Jesus

    o reflexo da sabedoria de Deus, reflexo no grau absoluto de perfeio, o mais luminoso.

    Sobre ele o cu se abre e o Esprito desce; ouve-se ainda a voz do Pai (sobre a qual

    comenta Mesters): A frase que o Pai falou era do profeta Isaas, que

    9 GARCIA RUBIO, Alfonso. Encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para nossos

    dias. 8 ed. revista e atualizada. So Paulo: Paulinas, 2001. p. 30-31. 10

    MESTERS, Carlos. Entre ns est e no o conhecemos. Crculos Bblicos. So Paulo e So

    Leopoldo: Paulus e CEBI, 1996. p. 39.

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    anunciou o Messias servidor (Is 42,1). Jesus conhecia a Bblia e, assim, descobriu

    que o Pai estava lhe indicando a misso de ser o Messias servidor de todos.11

    Jesus a imagem de Deus, em quem Deus se faz um de ns e nos revela a sua

    face. E mais: assume totalmente as nossas dores, como servo sofredor. Por Ele e nele,

    mulheres e homens reverenciam a Deus sem humilhar-se. Pelo contrrio, os crentes em

    Cristo entendem e aceitam que a reverncia a Ele os eleva e enobrece, pois servir a

    Deus reinar com Ele.

    No batismo de Jesus por Joo no Jordo so descritas vrias aes: Jesus subiu

    da gua, elevou-se; viu o Esprito Santo descendo sobre Ele. Foi ouvida uma voz: Tu

    s o meu Filho[...]12

    . Esse conjunto de aes concomitantes so unidas pelo logo,

    imediatamente (euvqu.j) partcula sempre recorrente ao longo do evangelho de Marcos.

    Texto grego de Mc 15,38: Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,tw13

    Traduo

    E o vu do Santurio se rasgou em duas partes, de cima a baixo.14

    Anlise lexicogrfica

    Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,tw

    Texto Classe gramatical Traduo Kai. Conjuno coordenada E To. Artigo definido nominativo

    neutro singular

    o

    katape,tasma Nome nominativo neutro singular comum

    Vu

    Tou/ Artigo definido genitivo masculino singular

    do

    Naou/ Nome genitivo masculino singular comum

    Santurio

    evsci,sqh Verbo indicativo aoristo passivo 3. pessoa do singular

    rasgou-se

    eivj Preposio acusativa em du,o Adjetivo cardinal acusativo

    neutro plural de grau

    dois

    avpV Preposio genitiva de A;nwqen Advrbio cima E[wj Preposio genitiva at ka,tw Advrbio embaixo

    11

    Ibid. p. 40-41. 12

    Mc 1,11. 13

    NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft,

    1993. p.145. 14

    Cf. BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista e ampliada. So Paulo: Paulus, 2002. p. 1784.

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    Anlise ou crtica textual

    Trazemos o texto grego de Mc 15,38 para facilitar a compreenso de seu aparato

    crtico: Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,tw Nesta verso do Novum Testamentum Graece, vigsima stima edio de NESTLE-ALAND, notamos a presena de , smbolo que indica que h uma incluso de avpV (preposio genitiva de) em merh que tambm tem o sentido de sair de uma parte at chegar a outra. Tal variante tem o testemunho nos Atos dos Apstolos, algumas

    Epstolas, na verso latina (parcial) e em vrios manuscritos da vulgata.

    H tambm a presena do termo em textos do Primeiro Testamento, tanto nos

    livros da Torah (Pentateuco), na literatura proftica e na obra deuteronomista de

    histria. No se encontrou registros de que ocorra na literatura sapiencial.

    Podemos dizer que se trata de uma mudana de linguagem, uma mudana entre

    as apresentaes, conservando, porm, o seu sentido.

    Essa relao entre os dois termos, encontrada em vrios textos, amplia-se e se

    clarifica em cada um deles.

    Contexto literrio

    Situamo-nos no contexto da morte de Jesus. o ponto culminante da revelao,

    momento de forte intimidade (identidade) de Jesus Cristo com Deus, a ponto de rasgar

    o vu do templ. na sua inteira doao que Jesus se revela plenamente como o Filho,

    idntico ao Pai. O texto nos ajuda a entender que a cruz o lugar escolhido, a forma de

    Deus mostrar um ato grandioso por aparente insignificncia e fraqueza. Mais ainda:

    Cristo crucificado, escndalo para os judeus e loucura para os gentios15

    , a sabedoria

    de Deus que possibilita o surgimento de uma humanidade nova e uma nova ordem do

    cosmos.

    O texto antecedente a Mc 15,38, narra o ltimo momento de vida de Jesus. Ele

    est na cruz e d seu ltimo (grande) grito e expira (Mc 15,37). O que podemos dizer a

    respeito deste ltimo grito de Jesus? Pode ser o grito do inocente que sofre pelos outros,

    para que aqueles por quem sofre que vivem aflitos por seu sofrimento sejam

    aliviados de sua aflio. o brado de libertao de todo sofrimento, dor e agonia; o

    grito de entrega total em favor da humanidade. o grito solidrio de Jesus com os gritos

    de todo o povo que sofre e, como o povo de Deus que vivia a aflio e a escravido no

    Egito clamou e foi ouvido (Ex 3,7), grita por mais justia e pelo fim da opresso.

    Pelo sangue derramado na cruz, Cristo nos resgatou16

    , alcanou a reconciliao

    de todo gnero humano e a pacificao de todo o universo. (cf. Cl 1,20). o total dom

    de si. J no possvel entregar mais, pois no existe amor maior que dar a vida (cf. Jo

    15,13).

    John L. Mckenzie fala da morte salvfica, j conhecida na filosofia e na poesia

    dos gregos. Encontramos na lenda e na histria gregas relatos de homens que morreram

    defendendo seu povo, sua cidade. No difcil recordar este tema nos poemas de

    Homero, que tm uma mstica de morte e de batalha que refletem a tmpera da idade

    herica. Sente-se esta mesma mstica no Arco do Triunfo, no monumento de guerra de

    Edinburgh ou no cemitrio de Gettysburg.17

    Para a literatura grega, e, sobretudo para a filosofia, tem muita importncia a

    morte de Scrates, considerada injusta, sobretudo para os filsofos como Plato, que a

    15

    1Cor 1,23. 16

    Cf. 1Cor 7,23; 1Pd 1,18-19. 17

    MCKENZIE, John L. Os grandes temas do Novo Testamento. Petrpolis: Vozes, 1972. p.111.

  • Departamento de Teologia

    9

    conta de forma comovedora. a morte de um filsofo que exemplo porque se

    conserva com o esprito sereno diante de uma sentena injusta que lhe aplicada.

    Entre os romanos tambm h lendas de mortes hericas.

    Na literatura do Primeiro Testamento pouco se entrev desse herosmo, a no ser

    na morte de Sanso.

    A morte de Jesus s pode ser entendida dentro de sua misso de libertao numa

    perspectiva de f. Do contrrio, desprezvel e sem valor; a reduo do homem

    decadncia e ao fracasso.

    Posterior nossa citao, temos a referncia ao oficial romano que havia visto

    Jesus expirar e disse: Verdadeiramente este homem era filho de Deus! (Mc 15,39).

    Quem se encontra de p junto da cruz de Jesus um pago. Ele ouve o seu

    grito. V como expira. Diante do fato, ele reconhece em Jesus o Filho de

    Deus.Verdadeiramente!

    Para Gerard S. Sloyan, diante da proclamao da morte de Jesus, todos (tambm

    os gentios), devem chegar a um ato de f, a ter essa mesma atitude do centurio.18

    A

    afirmao de Jesus como Filho de Deus est logo no incio do Evangelho de

    Marcos, escrito em meio Greco-romano, em meio pago. o ttulo dado a Jesus

    desde o comeo. Por ela Marcos intitula seu escrito evangelstico. Ela revela a

    verdadeira identidade de Jesus.

    Elementos simblicos de Mc 1,10 e 15,38

    Sem dvida nosso trabalho sobre o simbolismo em Mc 1,10 e 15,38, d-se

    sobretudo a partir do verbo rasgar (). No entanto, convm tratar tambm dos

    outros dois principais smbolos a que o verbo se refere nas duas citaes: o cu e o vu

    do templo.

    O cu Smbolo reflexo de uma experincia humana universal e necessria: Deus se

    revela ao homem atravs da sua criao toda. A Bblia distingue perfeitamente o cu

    fsico da mesma natureza que a terra e o cu de Deus. Em outras palavras, o cu

    como fenmeno natural e como fato teolgico.

    A origem e o significado so incertos no hebraico (smayim). Na LXX

    encontra-se geralmente no plural e no Segundo Testamento tanto no singular como no

    plural e pode significar: o cu das estrelas e das nuvens.

    Da mesma forma que para ns, para o hebreu o cu uma parte do universo, em

    contato com a terra, embora diferente dela. No livro do Gnesis (1,1) e em Mt 24,35,

    fala-se do cu e a terra.

    H no israelita uma sensibilidade ao esplendor do cu; anda em busca de sua luz

    e admira profundamente sua transparncia (Ex 24,10). para ele impressionante o

    firmamento ser slido e inabalvel (Gn 1,18). Parece ser constitudo como a terra, com

    fundamentos, colunas que o sustentam firmemente (cf. J 26,11 e 2Sm 22,8).

    Fala-se se das janelas dos cus, atravs das quais cai a chuva (Gn 7,11; 2Rs

    7,2.19). dos cus que YHWH manda os ventos, a neve e o granizo, quando

    necessrios. Vrios textos falam dos cus como a morada de Deus.19

    Alguns ressaltam

    que h uma profunda ligao entre o cu e os santurios da terra. A f do povo hebreu

    que Deus escuta do cu a orao que seus filhos fazem na terra:

    Que teus olhos estejam abertos dia e noite sobre esta casa, sobre este lugar

    18

    Cf. SLOYAN, Gerard S. Evangelho de Marcos. So Paulo: Edies Paulinas, 1975. p. 99. 19

    Gn 11,5; 19,24; Dt 10,14; 1Rs 22,19; Sl 11,4; 148,4; J 22,13ss; Is 63,19; Mt 5,16.45; 6,1.

  • Departamento de Teologia

    10

    do qual disseste: Meu nome estar l. Ouve a prece que teu servo far

    neste lugar.

    Escuta as splicas de teu servo e de teu povo Israel, quando orarem neste

    lugar. Escuta do lugar onde resides, no cu, escuta e perdoa.20

    O cu um smbolo universal; representa universalmente os poderes superiores.

    O fato de situar-se acima tem equivalncia a ser poderoso. o trono do Rei, de Deus.

    smbolo direto da transcendncia.21

    O profeta Elias arrebatado de entre os vivos e levado aos cus; privilgio

    nico no Primeiro Testamento, relatado em 2Rs 2,1.11:

    Eis o que aconteceu quando Iahweh arrebatou Elias ao cu no turbilho:

    Elias e Eliseu partiram de Guilgal,[..] E aconteceu que, enquanto andavam

    e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos de fogo os separaram

    um do outro, e Elias subiu ao cu no turbilho.22

    O cu, como a terra, possui extremidade. Assim nos testifica um dos versculos

    do Segundo Testamento, situado dentro do chamado apocalipse de Marcos: Ento ele

    enviar os anjos e reunir seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra

    extremidade do cu (Mc 13,27).

    O prprio Evangelho de Marcos ainda nos fala do cu como a morada de Cristo

    ressuscitado. Atesta que o Senhor Jesus foi arrebatado ao cu e sentou-se direita de

    Deus (Mc 16,19).23

    Fora da perspectiva bblica tambm encontramos a apresentao simblica do

    cu: Ouranos se acha no Gr de Homero em diante, com o significado de

    abbada celeste, o firmamento. Visto como tudo que aquilo abrange,

    ouranos divino. Em Plato, o cu pode ser equacionado com o -> tudo,

    o cosmos (-> Terra). Os cus estrelados, considerados como habitao

    dos deuses, ficaram sendo o ponto da partida para a investigao da

    existncia e do conhecimento absoluto. 24

    O vu do Templo

    Tomando o verbete de um dos dicionrios bblicos disponveis que nos pareceu

    claro a respeito deste smbolo importante em nossa pesquisa, destacamos: (traduo

    prpria)

    Havia no templo (e no tabernculo) dois vus ou cortinas: um, entre o trio e o templo (o tabernculo; hebr. msk: Ex 26,26s; 40,33, etc.);

    outro, entre o hekal e o debir ( prket, incidentalmente msk: Ex

    26,31-35; 40,21, etc.). O primeiro no tinha importncia alguma no

    culto: o segundo, interior, se aspergia em algumas ocasies com sangue

    dos sacrifcios. 25

    20

    1Rs 8, 29-30. 21

    Cf. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. Rio de Janeiro: Jos

    Olympio, 2009. p. 227. 22

    Cf. BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista e ampliada. So Paulo: Paulus, 2002. p. 508. 23

    Esta referncia encontra-se tambm em At 3,21; Ef 1,20, Hb 8,1; 1Pd 3,22. 24

    BROWN, Colin; LOTHAR, Coenen (orgs). Dicionrio Internacional de Teologia do Novo

    Testamento. Traduo Gordon Chown. 2. ed. v.1. So Paulo: Vida Nova, 2000. p. 341. 25

    HAAG, H.; BORN, A. van den; AUSEJO, S. de. Diccionario de la Biblia. Barcelona: Editorial

    Herder, 1966. p. 1993.

  • Departamento de Teologia

    11

    Com o que nos apresenta este verbete surge uma questo que convm comentar:

    o Templo dos judeus, construdo por Salomo (como tambm o tabernculo) tinha dois

    vus: um exterior e outro interior. O primeiro, que ficava na porta, entre o trio e o

    tabernculo (cf. Ex 40,33), em hebraico chamado de msk, e no tinha valor cultual.

    Apenas separava o Santo dos ambientes externos, sendo, desta forma, visvel por todos.

    Este vu era feito de prpura violeta, prpura escarlate, carmesim e linho fino

    retorcido, obra de bordador (cf. Ex 26,36). O erguiam cinco colunas de accia

    recobertas de ouro e cinco bases de bronze fundido (cf. Ex 26,37).

    No interior do Templo achava-se outro vu (em hebraico, prokt; algumas

    vezes usa-se o mesmo termo msak), confeccionado de prpura violeta e escarlate,

    carmesim e linho fino retorcido bordado com querubins. Suspendiam-no quatro

    colunas de accia recobertas de ouro e com bases de prata. Este era muito importante e

    tinha um significado cultual, posto que separasse o Lugar Santo do Santo dos Santos

    (cf. Ex 26,31-35; 40, 21 etc). Como bem nos esclarece o verbete citado, na realizao

    dos sacrifcios, algumas vezes este vu era aspergido com o sangue dos animais.

    Somente o atravessavam os sacerdotes que entravam no Santurio do Senhor para a

    oferta do incenso (cf. Lc 1,9).

    Na tentativa de responder questo de qual dos vus do Templo se tratava: o

    exterior ou o interior, que separa o Santo do Santo dos Santos, admite-se que, pelo

    termo grego (katape,tasma), ambas so possveis.

    [...] opinam muitos exegetas que o vu do templo (katape,tasma) que segundo Mt 27,51, se rasgou de cima a baixo morte de Jesus, o

    vu interior. Outros notam, com razo, que somente o rasgar-se o

    somente o rasgar-se o vu exterior podia ser manifestao divina visvel

    para o povo.26

    No entanto, constatamos que em se tratando do vu interior, o simbolismo

    mais acentuado. Por este e outros motivos consideramos a este em nosso estudo.

    Simbolismo do verbo

    O verbo tem uma fisionomia prpria para ser identificado nas duas

    citaes desta pesquisa (Mc 1,10 e 15,38), o que j se pode perceber pela apresentao

    dos outros dois smbolos a que se refere.

    Tal como aplicado em Mc 1,10, relaciona-se com o - abrir (os

    cus) de Isaas 63,19. J Mc 15,38, com - rasgar (as vestes) de Gn 37,34

    e similar em 2 Sm 1,11 e J 1,20, conforme tentamos demonstrar anteriormente.

    H esta possibilidade de 1,10 inspirar-se particularmente em Is 63,19: Oxal

    fendesses o cu e descesses; porm o termo uma traduo do hebraico qr.

    O entendimento que se tem do verbo na parte essencial do batismo de Jesus em

    Marcos (1,10) o cu que se rasga que se refere a uma revelao escatolgica, um

    testemunho de que Deus favorvel ao seu povo, atravs de seus mensageiros e,

    sobretudo, seu Ungido. Assim se mostra nas vises do cu que se abre, conforme Ez

    1,1; At 7, 56; 10,11; Ap 4,1; 19,11.

    Deus, sendo o que Ele , o puro amor, o amor gratuito, quis se revelar. Manda

    seu Filho, o mais humano dos humanos. Verdadeiro homem no sentido de perfeitamente

    humano: tem a maneira humana de atuar, de sofrer, de chorar diante da morte do amigo

    26

    Trata-se do mesmo verbete do Diccionario de la Biblia acima citado. Podemos aplicar ao nosso texto

    de Mc em lugar de Mt.

  • Departamento de Teologia

    12

    e diante da cidade de Jerusalm que no quer se converter. Ele fala ao corao de todos,

    sobretudo dos mais pequeninos. Se rasga de amor pelo humano.

    O verbo indicando o rasgo do vu do Templo pode ser a forma

    encontrada pelo evangelista para descrever a manifestao do novo, de que em Jesus

    acontece algo inesperado. Jesus se choca com as falsas religies. Cria uma

    incompatibilidade entre a gente que buscava outra forma de Deus. Ele a novidade

    plena do Pai apresentada ao mundo para a salvao universal. Ele Deus se revelando.

    Nele, Deus se manifesta efetivamente no tempo, intervm na histria e

    permanece identificado com aqueles de quem sempre foi amparo e proteo. Em Jesus,

    realiza sua obra de maneira antes nunca vista, nunca esperada, como jamais foi ouvido

    (cf Is. 64,3). Revela-se a beleza de Deus faz tudo por amor. Como prova deste grande

    amor, seu prprio Filho se entrega at o extremo. E o rasgar-se o vu uma revelao

    de sua glria.

    Incluso apocalptica de Mc 1,10 e Mc 15,38

    No primeiro momento de nossa pesquisa investigou-se a possibilidade das duas

    citaes (acima apresentadas) formarem uma incluso literria, o que afirmou-se ser

    possvel pelo seu teor simblico. O cu que se rasga e o rasgar-se do vu do Templo

    constituem um evento que pode ser entendido simbolicamente. Analisando as duas

    citaes do Evangelho de Marcos percebemos a evoluo que se d ao movimento de

    rasgar. Os cus se rasgam para que se manifeste a salvao que vem de Deus. Tudo o

    que Deus faz para manifestar sua misericrdia infinita, que vem ao encontro da

    fragilidade humana. Esta verdade assim descrita pela Igreja:

    Te louvamos Pai Santo, porque s grande... tua imagem criaste ao homem...

    E quando por desobedincia perdeu tua amizade,

    no o abandonaste ao poder da morte:

    seno que, compadecido, estendeste a mo a todos

    para que te encontre o que te busca.

    E tanto amaste ao mundo, Pai Santo,

    que ao cumprir-se a plenitude dos tempos,

    nos enviaste como Salvador a teu nico Filho27

    Depois que os cus se abrem, o Evangelho dirige um constante apelo

    converso e f. Com a morte e ressurreio de Jesus, rasga-se o vu e nos so

    abertas as portas do Reino por ele anunciado: de paz, justia, igualdade e amor. Ele nos

    inaugura o novo cu e a nova terra (Is 65,17; Ap 21,1).

    Basicamente desenvolve-se daqui por diante o segundo aspecto do mtodo.

    Refere-se a um aprofundamento do tema do simbolismo ou movimento de rasgar

    dado pelo verbo , trazendo o elemento da incluso apocalptica.

    Para a compreenso e interpretao de um escrito bblico, muito importante

    saber a que gnero literrio pertence.28

    Cada um deles, como a profecia, historiografia, a

    poesia, a apocalptica, exprime de modo prprio o que querem transmitir. Deve-se fazer

    ateno a esse aspecto ao estudar, analisar tanto os livros do Primeiro Testamento

    quanto os do Segundo.

    Considerando no Evangelho de Marcos nossas duas citaes (1,10 e 15,31)

    como parte da literatura apocalptica, faremos a tentativa de explicar e aprofundar esse

    gnero.

    27

    Cf. Conferencia Episcopal Espaola. Orao Eucarstica VI. 7 EGB, p. 69-71. 28

    Cf. Papa Pio XII. Divino afflante Spiritu

  • Departamento de Teologia

    13

    Temos que O adjetivo apocalptico derivado do termo apocalipse, uma

    traduo prxima do termo grego apokalypsis, o qual quer dizer literalmente

    desvelamento (o qual tambm o sentido literal da palavra latina revelatio, do

    qual o termo ingls revelation derivado).29

    Uma vez exposto este prembulo, faz-se necessrio deter-nos um pouco sobre o

    termo revelao e sua aplicao como tema referente a Jesus.

    A Revelao

    Diz um vocabulrio bblico que revelao quando a viso direta do mistrio

    de Deus substituir nos homens o conhecimento de f.30

    Neste estudo jogamos com as palavras apocalipse e revelao, para melhor

    explicar o sentido do que queremos transmitir.

    A revelao de Jesus Cristo

    A revelao concentrada em Jesus Cristo no Segundo Testamento completa a

    comeada no Primeiro. Nele que tem sua consumao final. Agora ela no mais

    transmitida por mltiplos intermedirios, mas revelada pelo prprio Filho de Deus, ao

    mesmo tempo autor e objeto da revelao.

    Em Cristo Jesus, a revelao se d pelos fatos, pelas palavras e por sua prpria

    pessoa.

    A Revelao pelos fatos se d pela existncia histrica de Jesus e o coroamento

    desta por sua morte e sua ressurreio. Em Cristo se d a consumao final do que era

    evocado s em figuras. Nele cumpre-se plenamente o que antes fora prometido. Ele

    quem realiza nos fatos o conhecimento do contedo real da promessa feita aos pais.

    Quando falamos da Revelao pelas palavras nos referimos a que se proclamam

    as coisas escondidas desde o comeo do mundo (Mt 13,35). Se no se explicasse por

    palavras o sentido dos atos de Jesus e de sua vida, a revelao pelos fatos ficaria

    incompreendida. Pelas palavras Jesus transmite claramente o mistrio do Reino (cf. Mc

    4,11), revela o sentido oculto das Escrituras. graas a Ele que a revelao chega sua

    plenitude: Nada h de oculto que no venha a ser manifesto, e nada em segredo que

    no venha luz do dia (Mc 4,22).

    Na Revelao pela pessoa de Jesus o mistrio de Deus atinge aos homens:

    Transcendendo as palavras e os fatos da vida de Jesus, os homens chegam at o centro misterioso de seu ser; a que encontram afinal a revelao divina.

    Jesus no s contm em si mesmo o Reino e a salvao que anuncia, seno

    que ele a revelao viva de Deus. Sendo o Filho do Deus vivo(Mt 16,16),

    s ele que conhece o Pai e pode revel-lo (Mt 11,27). Por outro lado, o

    mistrio da sua pessoa chega aos pequenos por uma revelao do Pai.

    As relaes ntimas do Filho com o Pai das quais o AT no tinha

    conhecimento, constituem o ponto culminante da revelao trazida por

    Jesus[...]31

    Se no Primeiro Testamento permanecia envolto em sombras o conhecimento do

    plano de Deus, de sua promessa, o evento Cristo o que agora rasga os cus e o vu,

    29

    Cf. DE BOER, Martinus. Escatologia apocalptica judaica e o Novo Testamento. Revista Estudos

    de Religio, So Bernardo do Campo. UMESP. n.19, p. 86, dez. 2000. 30 LON-DUFOUR, Xavier (dir). Vocabulrio de Teologia Bblica. Traduo de Frei Simo VOIGT, O.F.M. 4. edio. Vozes, Petrpolis, 1987, p. 905-906. 31

    Ibidem.

  • Departamento de Teologia

    14

    dissipando toda ambiguidade e apagando toda sombra; j no uma presena velada

    sob smbolos, mas que revela plenamente o plano divino.

    Alguns autores seguem e desenvolvem a hiptese de que a apocalptica judaica

    foi a matriz que possibilitou intercmbios religiosos e simblicos entre judeus e cristos

    mesmo aps a chamada separao entre sinagoga e igreja ou igreja e sinagoga. A

    espiritualidade comum entre os dois grupos possvel pela linguagem e a escatologia da

    apocalptica, quando considerada verdadeiramente como matriz de espiritualidade e no

    somente como um sistema de interpretao da histria.

    Ao olharmos o material da literatura crist primitiva, percebemos grande

    quantidade de escritos na perspectiva da apocalptica judaica. No somente no

    Apocalipse de Joo, como tambm na experincia de comunidades como a de Marcos,

    no cristianismo ps-paulino, a apocalptica crist encontrada de forma determinante

    nas primeiras compreenses cristolgicas acerca de Jesus de Nazar.32

    Os apocalipses trazem grandes princpios espirituais, que do profundidade

    vida das pessoas que tm acesso aos mesmos. necessria uma anlise em sua

    totalidade e no voltar a ateno apenas aos detalhes que os formam.

    A apocalptica enquanto constituda pela experincia religiosa exttico-

    visionria nos serve de pano de fundo para a compreenso de nossas duas citaes de

    Marcos (1,10 e 15,38). Nos dois textos o que acontece algo notrio, visto, revelado

    diante dos olhos da f, da experincia religiosa. Quando na primeira citao est claro

    que ele viu os cus se rasgando e a segunda declara firmemente que o vu do

    Santurio se rasgou, se nos apresentam dois momentos de uma mesma verdade: Deus

    veio habitar conosco e tem um grande poder de amor manifesto plenamente em Jesus

    (desde a encarnao), no batismo e mesmo na cruz, preldio de ressurreio.

    A crtica textual da Bblia de Jerusalm sobre Mc 15,39 traz:

    Lc faz o centurio dizer: verdadeiramente este homem era justo (23, 47). Ele, portanto viu em Marcos 15,39 uma aluso ao texto de Sb 2,18: Se o justo

    filho de Deus, ele o assistir e o libertar das mos de seus adversrios.

    anncio velado da ressurreio[...]. A profisso de f do centurio forma

    incluso com a proclamao da voz celeste por ocasio do batismo de Cristo

    (1,11+; cf. 1,1+). 33

    As primeiras palavras do evangelho segundo Marcos anunciam que Jesus o

    Messias, o Filho de Deus. O que aconteceu antes da Pscoa anunciado luz do

    mistrio pascal. Jesus que, pregado na cruz, rasga o vu do Santurio do Templo, o

    mesmo anunciado por Marcos ao comear seu evangelho. Porm, desenvolve-se em

    Marcos o segredo messinico; no escrito deste evangelista tpico Jesus evitar o ttulo

    de Messias e proibir a divulgao de seus feitos messinicos. Parece querer deixar como

    algo misterioso aquilo que, como que ultrapassando suas atividades terrestres, possa

    revelar que Ele o mesmo que ressuscitar como juiz do mundo Filho do Homem,

    ttulo muito querido pelo Jesus de Marcos.34

    Vrios biblistas estudiosos do tema, trataram esta questo. Em seus trabalhos,

    tentaram mostrar que o carter escondido do messias pertencia s ideias apocalpticas do

    tempo de Jesus. Reconhecem que importante colocar-se primeiramente a questo de

    Jesus ter ou no se apresentado como messias. o prprio acontecimento messinico

    32

    Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Apocalptica e as origens crists. Revista Estudos de

    Religio, So Bernardo do Campo. UMESP. n.19, p. 7 (apresentao), dez. 2000. 33

    Cf. Nota b da BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista e ampliada. So Paulo: Paulus, 2002. p.

    1784. 34

    Cf. Mc. 2,9; 8,31.36; 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,22a e b.41.62.

  • Departamento de Teologia

    15

    que d origem ao segredo messinico. De qualquer modo, no parece haver nenhum

    obstculo que impea de afirmar que, em Marcos, Jesus o Messias.

    Para a cosmoviso crist, o evangelista serve-se da expresso rasgar os cus

    que aprece no primeiro versculo trabalhado (Mc 1,10) para significar a disponibilidade

    de Deus que quebra ao silncio e se manifesta. O rasgar o vu brota desse mesmo

    sentido. Jesus, pela sua encarnao, misso e morte, veio desmistificar o que estava nas

    mos de poucos.

    H entre os judeus quem diga que este vu interior do Templo tinha 30

    centmetros de espessura e vrias juntas de bois no conseguiriam romp-lo. No

    entanto, rasgou-se de cima at embaixo quando Cristo morreu.

    Esta a opinio de muitos exegetas: que na morte de Jesus, rasgou-se de alto a

    baixo o vu (xatapetasma) interior do templo de Herodes (Mc 15,38). O vu que podia

    ser ultrapassado apenas pelos sacerdotes e os sumo sacerdotes, pessoas puras e

    habilitadas para adentrar o Santo dos Santos, se rasga, e ao povo revelado o que o vu

    escondia.

    Conforme vimos o vu do tabernculo encobria, ocultava da vista o santo dos

    Santos. Em Hb 10,20, o passar atravs do vu (que servia para esconder do povo o que

    se passava no Templo) para o Santo dos Santos comparado com o caminho da vida do

    cristo, o qual, pela virtude da encarnao de Jesus (vu=carne), penetra no santurio

    celeste ou a glria de Deus. por Jesus, sacerdote e vtima, que se abre o caminho para

    o Santo dos Santos (cf. Hb 10,19).

    H um ponto comum entre o rasgar-se o cu e o rasgo no vu do Templo como

    revelao: em Jesus Deus se revela plenamente, entregando-se humanidade. Jesus que

    se revela no batismo e na morte de cruz entrega sua vida como livre oferta na fidelidade

    a Deus, para garantir mais vida criao inteira. Estes sinais da revelao de Deus

    ajudam a conhecer melhor a Jesus Cristo, que vem para estar no nosso meio e

    manifestar, por sua Palavra e seus feitos, uma presena amiga, ao mesmo tempo

    incmoda, provocadora, convocadora para a misso.

    No instante da morte de Jesus rasga-se o vu do templo de alto a baixo. Esse

    rompimento de cima para baixo revela que quem o realizou foi Deus e no o homem.

    S de Deus podem vir atos como este. Os homens so apenas instrumentos nas mos de

    Deus para que possa realizar atravs deles seus propsitos. No havia poder humano

    nenhum sobre Jesus. Unicamente o poder de Deus que fez da morte de seu Filho um

    sacrifcio divino.

    Somente na morte de Jesus que o vu se rasgou. E no foi um rasgo pequeno.

    Rasgou-se em dois, de alto a baixo, dando a todos os seres humanos uma abertura direta

    ao Santo dos Santos (cf. Hb 10,19-20). Cristo a via de acesso ao Pai. Ele o

    caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,6). Tem a vida em si mesmo para que por Ele

    possam viver todos aqueles que o ouvem, ou seja, que obedeam sua voz, sua palavra

    (cf. Jo 5,25-26). A crucificao e morte de Cristo no do ao cristo razo para

    desanimar da caminhada. Sua carne rasgada, como sua vinda, rasgou para ns o cu

    para nele podermos adentrar. Depois da morte h a ressurreio. E por sua morte e

    ressurreio que Cristo nos reserva no simplesmente o perdo dos pecados, seno que

    por Ele nos transmitida toda a plenitude de Deus (cf. Ef 3,19 e Cl 2,10). por causa

    dele que quem cr deve encher-se de esperana e continuar perseverante na vida

    comum, na intimidade com Deus, no fazer o bem (cf. Hb 10,21-25) e ter a confiana de

    chegar ao trono da graa (Hb 4,16).

    Jesus d um grande grito e expira. E o vu do templo se rasga. atravs da

    infuso da natureza do Filho de Deus nos demais filhos, que estes so conduzidos

    presena do Pai (cf. Hb 2,10). No h outra maneira de elevao do homem plenitude

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    da vida seno por meio de Jesus (ver Ef 1,23). E assim, na morte de Jesus se d o

    paradoxal acontecimento do vu que se rasga se divide para nos unir, por Ele, ao Pai

    e ao Esprito.

    O Vu rasgado supe a revelao do que estava velado no judasmo do

    Primeiro Testamento, o que estava oculto aos olhos do povo, mente e corao de

    alguns. A morte de Jesus, marco em sua obra de redeno, reabre a todos a casa de

    Deus.

    Outra lio que tiramos do acontecimento do vu que o Templo j no

    suficiente para esconder nada, ou melhor, j no se pode ocultar da vista do povo o que

    l acontecia. No h espao para camuflar, para esconder a corrupo, a limitao de

    uma instituio que se voltava mais explorao do povo que defesa de sua vida.

    Com o vu, a religio aparente abafava a corrupo reinante nos seus dirigentes. At o

    ltimo instante Jesus denuncia; mais ainda: desvela completamente e faz aparecer de

    forma clara a verdade escondida atrs das estruturas:

    A morte de Jesus inaugura outro templo, outro sacerdcio e outro culto superior ao existente. Para os cristos, o templo dos judeus perdeu o

    sentido e a lei ficou submissa leitura e interpretao feitas por Jesus,

    assim, esse rasgo que se faz na cortina do templo, decreta a falncia

    deste tipo de culto e inaugura uma religio de comunidades e comunho

    (At 2,42-46; 4,32-36). 35

    O rasgar-se o vu do templo marca no apenas o rompimento de uma velha

    estrutura religiosa e a abertura e revelao a todos do que antes estava oculto, mas a

    vitria decisiva de Jesus contra as foras do mal. Se em Marcos podemos falar de um

    desenvolvimento messinico, na cruz que o Messias de Deus se revela por completo.

    A cruz e ressurreio de Jesus o pice apocalptico, a plenitude de toda a revelao.

    o grande claro para as testemunhas das atividades de Jesus ao longo de sua vida. Mas

    no somente: o cumprimento de toda a justia, justia e todo o bem para todas as

    pessoas, para toda a criao. a plenitude da misso daquele por quem se rasgou o cu.

    Da mesma forma que o cu se rompeu para trazer a Deus entre os homens, rompe-se o

    vu da morte para dar lugar ao aparecimento da plena vida. E Jesus o protagonista

    destes acontecimentos.

    Podemos entrever a dimenso apocalptica tambm neste escrito de So

    Jernimo a respeito do texto (E, logo ao subir da gua, ele viu os cus se rasgando...):

    Tudo isto, que foi escrito, foi escrito para ns, pois antes de receber o batismo,

    temos os olhos fechados e no vemos as coisas celestes.

    E ainda no acrscimo: Ns mesmos, que nos encontramos aqui, vemos os cus

    abertos ou fechados segundo a diversidade de nossos mritos. A f plena tem os

    cus abertos, mas a f vacilante os tem fechados.36

    O rasgo do vu vem libertar Israel do ritualismo da antiga aliana representada

    pelos objetos guardados no lugar santo e dar-nos acesso direto junto ao Pai (cf. Ef 2,18).

    o prprio Jesus o novo Templo. Nele h o encontro entre Deus e o ser

    humano.

    H um forte simbolismo em Mc 1,10 e 15,38; mas ao teor simblico dos textos,

    une-se o racional, a afetividade; corpo-universo. Os elementos simblicos so uma

    35

    MAZZAROLO, Isidoro . Evangelho de Marcos. Estar ou no estar com Jesus. Rio de janeiro,

    Mazzarolo editor, 2004.p 49. 36

    SAN JERONIMO, Comentrio al Evangelio de San Marcos, Biblioteca de patrstica. Madrid:

    Editorial Ciudad Nueva, 1995, , Espaa, pp 34-35

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    indicao da atuao divina na realidade terrestre e incluem o movimento de ir de

    encontro ao transcendente.

    Ainda assim, o mistrio do Filho fica velado sob uma

    aparncia humilde: a do Filho do Homem chamado a sofrer (Mc 8,31). Mesmo aps sua

    ressurreio, Jesus no se manifestar ao mundo na plenitude de sua glria.

    No contexto de perseguio e sofrimento das comunidades marcanas, o

    apocalipse uma forma de reavivar a esperana de seus membros e encoraj-los para

    que se mantenham fiis, perseverantes na f. Jesus vivia em poca apocalptica sem ser

    apocalptico. Ele anunciava a Boa Nova em tempo de catstrofe, de desgraa.

    Hermenutica

    H uma conexo entre o acontecimento salvfico atestado no batismo e na cruz

    de Jesus com a histria do mundo em que vivemos.

    Consideradas do ponto de vista teolgico, como a nossa f nossa teologia. H

    no ser humano de hoje e de todos os tempos a necessidade de uma vida humana, de uma

    vida tica autntica, de uma vida religiosa.

    Aceitar o apocalipse de Deus que rasga os cus comporta primeiramente uma

    viso de beleza de nosso olhar para Deus, um verdadeiro sentido de Deus, uma

    compreenso de que Deus desde o comeo, que est aqui e agora, mais dentro de

    cada pessoa que ela mesma. H o convite de abrir o corao e pensar amorosamente em

    Deus.

    importante partir no apenas de uma ideia, mas de um sentido vivido de Deus;

    no como todo poderoso, juiz, que considera tudo para ver o que est errado... A

    prioridade que Deus amor. Porque ele assim, que existe tudo para ns.

    Se os cus se rasgam e rasga-se o vu do templo, Deus deve ser nossa

    primeira preocupao em matria religiosa. Deus sempre presente em cada um, sempre

    presente em si mesmo e no outro, como luz que ilumina a vida. Pode-se ter devoes na

    medida em que conduzam a Deus. A grande fraqueza da Igreja que no se d a

    devida prioridade a Deus em tudo e no se tem esse profundo sentido de Deus como a

    beleza e que conduz na volta para Ele (Cardeal Chuni, arcebispo de Paris nos anos 50.

    O sentido de Deus). Ver em Deus a beleza e a luz que o centro de tudo e para onde

    convergem todas as perfeies. Diante de todas as dificuldades, Deus espontaneamente

    se volta para os homens e mulheres.

    mister o ser humano entrar na teologia apocalptica para sempre ver a Deus

    como beleza suprema, como a suma perfeio para a qual toda a perfeio converge.

    A verdade de que Deus eterna glria deve ser proclamada.

    A glria divina da Trindade resplandece na Cruz. a luz da f dentro da noite.

    A grandeza de Deus a glria revelada em seu Filho que se faz visvel para ns

    da maneira mais humana que viver amando e morrer de amor.

    Neste momento a palavra absoluta a unidade: um s Deus, um s Cristo, um s

    homem, uma s Igreja, uma s f. Este ponto decisivo. Podemos avanar nele

    deixando de lado as objees e superando as reservas de muitos tipos.

    Jesus Cristo , portanto, a nossa esperana, a certeza da existncia de Deus,

    do grande amor que tem pela humanidade. Por Ele, h uma esperana necessria e a f

    na vida eterna, argumentada pela justia. A nova vida, o retorno de Cristo, so

    necessrios para restabelecer a justia.

    S com Deus podemos ter esperana. A justia s pode vir de Deus que rasga

    os cus. E nossa f nos diz que Ele faz justia. A imagem do vu que se rasga deve ser

    esperana para ns. No nos deve impor medo, pois Deus graa. Chama-nos, sim,

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    responsabilidade, a abrir os nossos olhos para as necessidades dos outros, para o dilogo

    e a tolerncia.

    H o apelo a tornar-se prximo, no minimizando nossas pertenas coletivas,

    no perdendo nossa identidade, mas abrindo-nos cada vez mais s mltiplas

    possibilidades de encontro, de rompimento das distncias e afastamentos cotidianos.37

    Quando Deus Trindade, comunidade de amor, rasga o cu e vem ao nosso encontro,

    rasgando tambm o vu da centralidade religiosa na autoridade, na instituio,

    certamente nos faz um apelo: sair do nosso individualismo e buscar espaos de

    fraternidade, encontros dialogais, formar comunho (koinonia), construir comunidades

    onde possam se desenvolver relaes realmente humanas e humanizadoras.38

    A grande filosofia de Hegel mostrar que o esprito se manifesta na histria. A

    beleza de Deus em si: Pai, Filho e Esprito Santo ser um Deus amor, Deus da

    intimidade com a gente, que nos transforma. Amor que transforma a pessoa amada no

    Amado (So Joo da Cruz).

    O verbo rasgar usado para desmistificar, no para banalizar. Porm as coisas

    no ficaram diferentes automaticamente. Jesus se envolve na comunidade humana para

    que esta se sinta valorizada em suas capacidades e perceba a importncia de caminhar

    partilhando da presena de um Deus que doao, amor e servio. A abertura do cu

    mostra um peregrino que vem visitar a todos os povos. Jesus a porta. Nada mais h de

    escondido. Para o evangelista Joo o que ele chama de verdade. Em Marcos,

    significa que o amor de Deus foi rasgado (aberto plenamente) aos nossos olhos.

    Como o vu do templo de Herodes foi rasgado, rompeu-se tambm o vu de

    separao entre o lugar da glria de Deus e o homem pecador (cf. Lv 16, 2).

    Quem determinou que as relaes da convivncia humana se regulem pela

    ordem que Ele mesmo estabeleceu foi o prprio Deus criador, solcito de tudo. O

    anncio de sua Boa Nova hoje misso da comunidade.

    Concluses A pesquisa ofereceu bases bibliogrficas que permitiram atender s exigncias

    do seu objeto de estudo: mostrar que no sem sentido que Marcos abre e fecha o seu

    evangelho com a utilizao do verbo grego (rasgar), presente em 1,10 e 15,38.

    Esta uma importante chave de leitura.

    Pontuou, ao mesmo tempo, a incluso apocalptica (ou escatolgica) de Marcos,

    fundamentada no mesmo verbo acima citado (com uma evoluo da pesquisa anterior

    que oferecia as duas citaes e, sobretudo o verbo (rasgar) como possibilidade

    de incluso literria. Em Marcos, este rasgar uma imagem (cone) da revelao

    definitiva de Deus e para toda a humanidade. Esta a certeza crist.

    Com o estudo de vrias fontes foi possvel apontar algumas relaes entre os

    dois textos: relaes de ordem sinttica, ou seja, ligao de elementos lingusticos iguais

    ou parecidos; relaes de ordem semntica (so as mais evidentes, so as relaes de

    contedo lexical e teolgico) e relaes de ordem pragmtica (interligaes entre as

    funes comunicativas dos dois textos). A comparao de termos buscando estas

    relaes ajuda a compreender a atuante mensagem salvfica de Jesus a partir de Marcos.

    Nele, Deus manifesta uma palavra a ser ouvida e feita realidade em todos os sculos da

    histria: no haja barreiras de separao entre as pessoas. Com a vida, morte e

    37

    Cf. THEOBALD, Christoph. Transmitir um Evangelho de liberdade. Traduo Joo Carlos Nogueira.

    So Paulo: Edies Loyola, 2009. p. 138. 38

    GARCA RUBIO, Alfonso; PORTELLA AMADO, Joel (orgs.). espiritualidade crist em tempos de

    mudana. Petrpolis: Editora Vozes, 2009. p. 94-95.

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    ressurreio de Jesus, todos so atingidos pela graa que supera injustias e cria

    fraternidade e comunho.

    A pesquisa ressaltou a linguagem, cultura e teologia dos cristos do mundo

    grego do primeiro sculo da EC.

    encaminhada a partir de alguns meios didticos para o ensino tanto do grego

    como da pedagogia da transmisso de valores humanos, como espiritualidade, tolerncia

    e dilogo interreligioso.

    Ressalta ainda a importncia de tomar os escritos apocalpticos como mensagem

    para a vida e no unicamente como enigmas difceis de decifrar ou simplesmente

    palavras que nos servem de remdio imediato contra as vicissitudes de nossos dias.

    Aponta para um desafio questo tica: solidariedade para com os outros,

    abertura para a histria de vida pessoal e grupal. Apresenta o convite aos homens e

    mulheres de hoje serem apaixonados por esse mundo onde Deus habitou. Para esse

    mundo Ele rasgou o cu e o vu.

    O presente projeto de pesquisa de relevncia para a sociedade e o nosso

    momento atual, pois contribui e para uma melhor compreenso dos textos sagrados

    antigos, que esto na base dos valores ticos da sociedade ocidental e para o dilogo

    inter-religioso, fundamental para a construo de uma sociedade de paz.

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