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O MITO 70 anos da CLT UM ESTUDO PRELIMINAR

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O MITO70 anos da CLT

UM ESTUDO PRELIMINAR

Gustavo seferian scheffer machadoJorGe LuiZ souto maior

PauLo de carvaLho Yamamoto

coordenadores

O MITO70 anos da CLT

UM ESTUDO PRELIMINAR

R

editora Ltda. Todos os direitos reservados

Índices para catálogo sistemático:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP — BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.brAgosto, 2015

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: RLUXProjeto de capa: FáBIo GIGLIoImpressão: BARTIRA

Versão impressa — LTr 5234.0 — ISBN 978-85-361-8574-3Versão digital — LTr 8778.5 — ISBN 978-85-361-8539-2

o Mito : 70 anos da CLT : um estudo preliminar / Jorge Luiz Souto Maior, coordenador. — São Paulo : LTr, 2015.

Vários autores. Bibliografia.

1. Trabalho — Leis e legislação — Brasil I. Maior, Jorge Luiz Souto.

15-04984 CDU-34:331(81)(094)

1. Brasil : Consolidação das Leis do Trabalho : Direito do trabalho 34:331(81)(094)2. Consolidação das Leis do Trabalho : Brasil : Direito do trabalho 34:331(81)(094)

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Sumário

Apresentação ............................................................................................................................................................... 7

DO ESCRAVISMO AO LIBERALISMO

Escravidão, salariato, liberalismo ............................................................................................................................. 11João Tristan Vargas

A escravidão no Brasil e a repercussão nas relações de trabalho ........................................................................ 20Carlos Henrique Santos SouzaMiriam Ramalho Alves

A transição do trabalho escravo para o trabalho livre: do escravismo ao liberalismo ..................................... 26Aldacy Rachid Coutinho

A transição do trabalho escravo para o livre: do escravismo ao liberalismo ..................................................... 33Rita de Cássia Corrêa Marcatti

A invisibilidade das trabalhadoras domésticas na história e na legislação trabalhista brasileiras ................. 40Ana Beatriz Costa Koury

Acumulação, industrialização e germe das classes capitalista e operária .......................................................... 48Flávio Leme Gonçalves

Linhas iniciais sobre os conflitos de classe e a normatização trabalhista no desenvolvimento desigual e combinado da Primeira República (1889-1930): leituras da oposição de Esquerda e da Liga Comunista Internacionalista .......................................................................................................................................................... 52Gustavo Seferian Scheffer Machado

A CONSTRUÇÃO DO CAPITALISMO NO BRASIL

A CLT na construção do capitalismo no Brasil ....................................................................................................... 65Adriano Luiz Duarte

o capitalismo de Vargas (1930-1937): do liberalismo ao corporativismo ........................................................... 71Felipe Gomes da Silva Vasconcellos

A invenção do trabalhismo (1942), teoria da outorga e Consolidação das Leis do Trabalho — CLT (1943) .. 79Janaina Vieira de Castro

Percurso histórico da legislação trabalhista de 1945 a 1964: José Linhares, Dutra, Getúlio Vargas, JK, Jânio Quadros e João Goulart .............................................................................................................................................. 85Francisco Pereira Costa

A atuação de João Goulart ......................................................................................................................................... 93Adriana Regina Strabelli

o movimento sindical de 1930 a 1964 ...................................................................................................................... 97Giovanna Maria Magalhães Souto Maior

A fiscalização do trabalho de 1930 a 1964 ............................................................................................................... 104Mariana Benevides da Costa

CAPITALISMO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Neodesenvolvimentismo, estado neoliberal e a persistência da ditadura no Brasil ......................................... 115Giovanni Alves

Controle trabalhista e desmonte regulatório (1964 a 1968) ................................................................................... 124José Carlos de Carvalho Baboin

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A criação da Fundacentro e a política oficial sobre segurança, saúde e medicina do trabalho ....................... 130Alessandro da Silva

A legislação trabalhista no segundo período do governo militar: 1969-1979 .................................................... 137Fernando Silva de Araújo

Ditadura, sindicatos e direito do trabalho: notas para compreensão da legalidade sob o interregno autoritário (1964-1986) ................................................................................................................................................ 143Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva

CRISE DO CAPITALISMO E NEOLIBERALISMO

A democracia racionada e o fim dos direitos .......................................................................................................... 159Lincoln Secco

Trabalhadores, ditadura e greve: uma interpretação crítica da influência do movimento operário para a transição democrática brasileira ............................................................................................................................... 168Ana Carolina Bianchi Rocha Cuevas MarquesPaulo de Carvalho Yamamoto

A legislação trabalhista no período da abertura de 1979 a 1985 .......................................................................... 175Marcos Aurélio Alberto

Pactos políticos e a Constituição de 1988 ................................................................................................................. 180Wesley Ulisses Souza

o trabalho (das mulheres) nas Constituições: de 1891 a 1988 .............................................................................. 188Regina Stela Corrêa Vieira

Crise, planos econômicos e legislação trabalhista de Sarney a Itamar (1985/1994) .......................................... 194Almiro Eduardo de Almeida

As reformas previdenciárias de FHC e Lula ........................................................................................................... 199Noa Piatã Bassfeld Gnata

SUPERANDO O CAPITALISMO

o sindicalismo recente no Brasil ............................................................................................................................... 211Ricardo Antunes

o atual governo e o direito do trabalho ................................................................................................................... 214Valdete Souto Severo

Ataques históricos à legislação trabalhista .............................................................................................................. 221Carolina Masotti Monteiro

A (re)construção do direito do trabalho no século XXI ......................................................................................... 228Tarso de Melo

Entre a centralidade do trabalho e a fragmentação social: novos movimentos sociais e o futuro do mundo do trabalho ................................................................................................................................................................... 230Daniela Muradas Reis

os sentidos da CLT ..................................................................................................................................................... 242Márcio Túlio Viana

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Apresentação

o presente livro é o resultado do esforço empreendido pelos pesquisadores do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC), durante um semestre de intensos estudos e buscas de dados sobre a origem da CLT e sua evolução em 70 (setenta) anos de história.

Para a conclusão dos estudos, foi organizado um seminário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nos dias 05 e 06 de dezembro , que contou, também, com a participação de professores cuja obra serviu de base para muitas das discussões realizadas nas reuniões do Grupo.

o livro traz as exposições realizadas por esses professores e pelos pesquisadores do GPTC no seminário referido, constituindo uma ferramenta importantíssima para a compreensão do histórico da CLT, superando abordagens históricas preconceituosas ou de pouca base documental, já que é fruto, como já dito, de muita pesquisa e muitos debates.

A análise realizada rompe uma certa tradição jurídica de abordagens históricas auto-referenciais, que têm como parâmetro apenas o dado normativo, sem levar em consideração, por consequência, o contexto social, político e econômico em que as normas foram criadas.

Em certo sentido, estudos como o que ora se apresenta, cumprem o relevante papel de permitir uma visualização mais profunda do próprio papel do direito do trabalho na realidade social, que não pode ser descolada do modo de produção capitalista.

As abordagens feitas destroem mitos que se construíram sobre o advento de legislação do trabalho no Brasil e contribuem para a formulação de uma teorização mais sólida sobre a função do Direito do Trabalho.

Fico muito feliz por ter tido a oportunidade de participar desse momento grandioso para a construção coletiva do conhecimento, que foi a preparação e a realização do seminário em questão.

Boa leitura!

DO ESCRAVISMO AO LIBERALISMO

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Escravidão, salariato, liberalismo

João Tristan Vargas(*)

O lugar da ideia de liberdade de trabalho no debate sobre escravidão e liberalismo

Em princípio, liberalismo não é incompatível com escravidão, por mais bizarro que isso possa soar. Estamos acostumados a pensar em libera-lismo como oposto a escravidão, mas isso ocorre, a meu ver, porque de modo geral se acredita que o pensamento liberal vê como um princípio fun-damental a liberdade de trabalho — e isso, por surpreendente que possa parecer, deve ser ques-tionado. Tal princípio não é um valor absoluto no liberalismo, seja este o “velho”, seja o “novo” (neo).

o que se vê como absoluto nos textos fundadores da ideia liberal (isto é, o que se vê como um prin-cípio válido em si mesmo, um princípio que não precisa ser demonstrado, um princípio que, para ser validado, não precisa ser amparado por refe-rências externas) é a liberdade de comércio, que está fundamentada no direito de propriedade. É assim nas obras de Locke, é assim no projeto de lei francês sobre as associações operárias, de 1791, de autoria de Chapelier(1).

Quem já leu com atenção o Segundo tratado sobre o governo (Cap. IV, “Da escravidão”), integrante de sua obra Dois tratados sobre o governo, publicada em 1690, sabe que Locke trata da escravidão como de um elemento do cotidiano sobre o qual não se opõe em princípio. o que chama a atenção nesse texto, que é um dos fundadores do pensamento liberal, é que a escravidão não era vista como um problema para o liberalismo. Locke chega aí a fazer um exercício de justificação da escravidão. Ele diz (item 23 do Segundo tratado):

“De fato, tendo por culpa própria perdido o di-reito à vida por algum ato que mereça a morte,

aquele a quem a entregou pode, quando o tem entre as mãos, demorar em tomá-la [a vida do outro], empregando-o a seu próprio serviço; e com isso não lhe causa dano. Pois, sempre que achar [que] ultrapasse o sofrimento da escra-vidão ao valor da própria vida, está nas suas mãos [do escravo], pela resistência à vontade do senhor, atrair sobre si a morte que deseja” (LoCKE, 1978, p. 43).(2)

No projeto de lei de Chapelier sobre as associa-ções operárias francesas, de 1791, a extinção delas não se defende com base num suposto princípio de liberdade de trabalho, e sim pela considera-ção de que a existência dessas associações (assim como as dos patrões) fere o princípio de igualdade entre os cidadãos, ao fazer surgir forças coletivas, que destruiriam a igualdade dos indivíduos, favo-recendo a imposição da vontade de grupos. Nem se defende a exclusão do Estado das relações entre trabalhadores e patrões — pelo contrário, prevê--se, em tese, a intervenção do Estado para amparar aqueles que não encontram meios para manter-se dentro dos padrões materiais compatíveis com a condição de cidadão — para não cair em condição similar à de escravo. Eis como o deputado francês trata da possibilidade de tal queda ocorrer:

“Sem examinar qual deve ser razoavelmente o salário da jornada de trabalho e admitindo apenas que deveria ser um pouco mais consi-derável do que é no momento [murmúrios], e o que digo neste ponto é extremamente ver-dadeiro, pois em uma nação livre os salários devem ser suficientemente consideráveis para que aquele que os recebe esteja fora desta de-pendência absoluta que produz a privação dos artigos de primeira necessidade e que é qua-se aquela da escravidão.” (IMBERT; SAUTEL; BOULET-SAUTEL, 1956, p. 279-281)(3)

(*) Doutor em História Social do Trabalho, pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Professor da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará) de 2010 a 2013 e atual professor da EPPEN (Escola Paulista de Política, Economia e Negócios) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).(1) Ver Vargas (2004).(2) O trabalho mais aprofundado sobre a visão de Locke a respeito de trabalho é o de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1993).(3) O trecho citado é do Preâmbulo ao projeto.

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Essa ação do Estado anularia uma das justi-ficativas naquele momento para a existência de associações operárias: auxiliar os que se encon-tram sem meios de vida, por desemprego ou qualquer outra razão. o que se constata é que, no texto de Chapelier, o inimigo visado, ao menos formalmente (mas a “forma” não é um elemento desprezível nem artificial), são as corporações, um elemento do chamado Antigo Regime, que se deseja extinguir.(4)

Capitalismo com escravos

O fim da escravidão não é uma exigência para que o capitalismo seja estabelecido. o que se observa é justamente o contrário: a escravidão foi um recurso utilizado para o estabelecimento do capitalismo. A esse respeito, parece opor-tuno lembrar as ponderações de Maria Sylvia de Carvalho Franco, uma estudiosa da área de Filosofia, que expôs uma visão absolutamente original sobre a escravidão, num artigo de 1978, mais tarde republicado (FRANCo, 1984), se-gundo o qual, quando foi montada a empresa agroexportadora colonial (como a produção de açúcar no Brasil), não havia como empregar, nos numerosos postos básicos de trabalho, outra mão de obra que não a escravizada (embora houvesse, sem dúvida, trabalhadores livres nos engenhos, em diversas funções) porque, na época, simples-mente não havia um proletariado que pudesse ser mobilizado para isso. Não havia trabalhado-res livres e despossuídos em número suficiente na Europa (ou em qualquer outro lugar), que pudessem ser levados a abandonar seus lares e fazer a longa, penosa e perigosa viagem para a América, para trabalhar nas plantações de cana ou naquelas primeiras fábricas que foram os en-genhos. (FRANCo, 1978)

As pessoas só fariam isso se fossem obrigadas, se não tivessem alternativa. Elas só o fariam se fossem constrangidas justamente pela sua “liberdade”: a liberdade que veio a caracterizar o proletariado moderno, isto é, a falta de ligação com a rede de relações baseada em obrigações recíprocas e desiguais que caracterizava a

sociedade senhorial. Essa falta de ligação, que representava um desenraizamento, se dava pela falta de direitos à terra. Estamos acostumados a pensar os camponeses europeus da época senhorial como pessoas cobertas de obrigações, mas esquecemos que essas obrigações só existiam porque, de um modo ou de outro, elas tinham uma forte ligação com a terra. Essa ligação era dada pelas normas que regulavam as relações entre senhores e camponeses. E tais normas, por muito assimétricas que fossem para um e outro lado da relação, não deixavam de apontar para uma forma de direito: o direito a permanecer na terra, a usá-la e não ser expulso dela arbitrariamente. Foi justamente esse direito a permanecer na terra que, na Inglaterra dos séculos XVI, XVII e XVIII, no movimento dos chamados cercamentos, foi sendo negado e retirado, por diversos meios, a maioria deles “legais” (isto é, com decisões tomadas pelo parlamento).(5) E foi esse movimento que tornou possível a formação do proletariado num local onde, não por acaso, como se vê, teve início a Revolução Industrial.

Apenas por certo bizantinismo classificatório deixaríamos de chamar de capitalista a empre-sa açucareira colonial no Brasil. E essa empresa capitalista era movida por mão de obra escrava. Sim, capitalismo com escravos. A partir de deter-minado momento da história do capitalismo, a escravidão passa a apresentar inconvenientes, como o fato de, em tese, ser um obstáculo para a expansão do mercado internacional. Cabe notar, contudo, que esse inconveniente foi aponta-do após a consolidação do trabalho assalariado como tipo de mão de obra utilizado nas empresas capitalistas. Isto é, a identificação desse inconve-niente é fruto do olhar de alguém que vive a face moderna do capitalismo, alguém do século XIX, XX ou XXI. E muita gente que vivia no século XIX não via incompatibilidade alguma entre atividades típicas do capitalismo, de um lado, e escravidão, de outro. Dificilmente os industriais que integravam o ramo-chave da produção bri-tânica — fiação e tecelagem — e importavam algodão produzido por escravos na América te-riam interesse no fim da escravidão(6). Não custa

(4) A respeito, ver Vargas (2011).(5) A esse respeito, é obrigatória a leitura de Thompson (1987).(6) Para Hobsbawm (1982, p. 50), “a escravidão e o algodão marcharam juntos” durante a Revolução Industrial.

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lembrar, também, que, hoje em dia, no Brasil, a es-cravidão (ou “condição similar à de escravidão”) ressurge sempre que há oportunidade e alguém disposto a aproveitá-la, por exemplo em locais de difícil acesso, onde o trabalhador esteja total-mente à mercê do patrão.

É claro que a universalização do trabalho assalariado era vista como um passo à frente por muitos — mas esses muitos eram, na imensa maioria, pessoas de esquerda, pessoas que, como Marx, viam a máxima expansão e aquilo que foi chamado de “amadurecimento” do capitalismo como condição para a construção do socialismo. Em vão procuraríamos um empresário industrial de qualquer ramo, ou um negociante, recla-mando da existência da escravidão na época. Certamente Robert owen, o industrial-socialista, era contra a escravidão; mas ele via a escravidão em suas próprias empresas, ele constatava que os seus operários permaneciam escravos. E, obvia-mente, esse é um caso totalmente excepcional. Até onde sei, empresário nenhum ficava sonhan-do com o dia em que ex-escravos iriam comprar as suas mercadorias. o fato é que, em todas as situações históricas em que a escravidão mo-derna foi modificada por leis ou “abolida”, isso ocorreu devido à pressão de movimentos sociais, mo-vimentos dos próprios escravos e/ou de outros grupos não dominantes na sociedade. A presen-ça de empresários (ou que outro nome se queira dar para quem detém a propriedade de meios de produção e os transforma em capital) nesses movimentos foi sempre excepcional e frequente-mente de caráter oportunista, como foi o caso, no Brasil, de alguns cafeicultores de S. Paulo, que só aderiram à ideia de abolição nos últimos momen-tos, quando já se percebia que não haveria outra opção, e ainda assim cheios de reservas para ga-rantir o direito à indenização dos proprietários de escravos.

Trabalho, pessoa e cidadania

Em suma, o convívio com a escravidão, o uso da escravidão por parte de empreendedores não é algo excepcional, uma excrescência, um apêndice teratológico na sua atitude. Trata-se de uma opção que, de um lado, está na origem do capitalismo como uma condição necessária para a sua constituição e, de outro, tem, como

fundamento, pressupostos comuns àqueles que fundamentam o próprio trabalho assalariado, como se argumentará a seguir.

Trabalhadores escravizados foram usados durante séculos em atividades lucrativas, que integravam mercados nacionais e o mercado internacional, atividades que conviveram e se articularam, a partir de certo momento, com outras, nas quais se usava o trabalho assalaria-do. o uso desses trabalhadores foi determinado pela configuração das sociedades humanas no momento em que se expandia o mercado inter-nacional de mercadorias na época das Grandes Navegações, quando grandes oportunidades de lucro se apresentavam para quem conseguisse entrar diretamente na produção das mercado-rias mais valorizadas. Esse uso de trabalhadores — e a palavra “uso” aqui é proposital — nesses longos séculos merece uma ponderação, cujas implicações se estendem para o período em que o trabalho assalariado se tornou a opção hege-mônica. Essa ponderação se coloca na esfera do direito.

Apenas em anos recentes a expressão “recur-sos humanos”, quando usada para designar a seção ou departamento de uma empresa encarre-gada dos assuntos relacionados à gestão da mão de obra, começou a ser substituída por “gestão de pessoas”, em alguns locais de trabalho (o que exatamente concorreu para que essa substitui-ção ocorresse é de interesse para a história do trabalho e mereceria maiores pesquisas). A ex-pressão “recursos humanos” é análoga à que é usada para outros tipos de recursos, como “recursos financeiros”, “recursos tecnológi-cos”, “recursos naturais” etc. Todos têm como pressuposto a ideia de que é legítimo usar algo — força, habilidades ou conhecimentos huma-nos, dinheiro, artigos tecnológicos, elementos extraídos dos ambientes naturais e assim vai. Dificilmente algum empresário consideraria se-riamente a hipótese de não existirem pessoas constrangidas a trabalhar para outrem — todos simplesmente trabalham com esse dado, visto como algo próprio da condição humana. ocor-re que ser constrangido a trabalhar e a ideia de que isso é legítimo, e mais, de que isso é natural, é a essência das relações de trabalho caracterís-ticas do mundo moderno, tanto na escravidão propriamente dita como no trabalho assalariado.

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Foi, aliás, como dissemos antes, a possibilidade de constranger pessoas a trabalhar que ensejou a formação do capitalismo industrial na Europa. Esse traço das relações de trabalho é comum a ambas as situações: todo empreendedor trabalha com a expectativa de usar alguma mão de obra, um “recurso” que com frequência é disputado no mercado. Busca-se usar o recurso com o menor custo possível: apenas excepcionalmente as em-presas apresentam aos trabalhadores condições de trabalho, remuneração etc. a que não sejam obrigadas por lei, pela fiscalização do Estado ou pela pressão direta dos trabalhadores.

A complicação é que esse “recurso” não se dissocia da figura humana, não se separa dos seres humanos, das pessoas cujo trabalho se quer usar. E o caso é que, de modo geral, essas pessoas, ou esses seres humanos que se pretendem pessoas (cabe lembrar que o termo “pessoa” remete intuitivamente à ideia de direitos(7)) teimam em não entregar seu trabalho sem alguma contrapartida. No período da escravidão no Brasil, o direito ao pecúlio por parte do escravo, por exemplo, previsto na Lei do Ventre Livre (1871), representou a cristalização em lei de uma demanda e uma prática dos próprios escravizados, como demonstrou o historiador Sidney Chalhoub (1990). Isto é, mesmo no contexto da escravidão, os indivíduos constrangidos a trabalhar como escravos procuravam e encontravam maneiras de pressionar ou negociar certos itens de sua condição. Pelo fato de, por um lado, ser considerado natural, legítimo, o uso do trabalho alheio e, por outro lado, a possibilidade de usar esse trabalho decorrer de um constrangimento — direto, na escravidão, ou econômico, no trabalho assalariado — não surpreende que industriais e outros empreendedores tivessem — e, em muitos casos, ainda tenham — uma visão escravista do uso da mão de obra. É que, num aspecto essencial, esse uso pode ser visto, mesmo, como de caráter escravista. Cabe lembrar que escravos e “livres” trabalharam lado a lado em estabelecimentos fabris no país, em variadas proporções, até as últimas décadas do século XIX.

Durante a Primeira República (1889-1930), na imprensa operária, eram frequentes as denúncias de patrões “escravocratas”, que tratavam seus operários como tratariam a escravos.

Mas a ideia de que o trabalho, em vez de um recurso a ser usado, é algo fornecido por uma pessoa, isto é, por alguém que tem ou deve ter direitos, se efetivamente reconhecida, de fato impõe uma modificação importante nas relações de trabalho, que, em si mesmas, tendem a adquirir um caráter escravista. Em outras palavras, a constituição, o fortalecimento e o enriquecimento de uma esfera de cidadania que abranja as relações de trabalho é a condição para que o aspecto escravista dessas relações seja minimizado ou mesmo eliminado quanto a algumas de suas implicações práticas na vida do trabalhador.(8)

A história das relações de trabalho num longo período, o iniciado com a Revolução Industrial (o qual ainda vivemos) pode mesmo ser vista como a história da expansão da esfera da cidadania. As lutas por direitos de trabalho permearam todo esse período. Com isso não queremos dizer que essa expansão fosse vista unanimemente pelos trabalhadores como um objetivo a ser atingido. Os grupos identificados com o anarquismo, nas suas várias modalidades, não se identificavam com tal objetivo. E a presença desses grupos foi muito forte no meio operário desde pelo menos a última década do século XIX no Brasil. O aspecto escravista das relações de trabalho era encarado como tal, sem admitirem-se mediações que pudessem modificar-lhe o sentido — e a alternativa só poderia ser a abolição dessa escravatura, a abolição do salariato. Em outras palavras, os patrões eram vistos pelos anarquistas como escravocratas porque boa parte deles se comportavam de fato como proprietários de escravos, mas também porque não havia como, coerentemente, dentro de sua concepção de sociedade, vê-los de outra maneira, pois o direito, entendido como fundamento de cidadania, a rigor não tem lugar nessa concepção.

(7) Essa relação entre ser pessoa e ter direitos esteve no centro de uma das raras polêmicas públicas na historiografia brasileira, que se deu entre o final de 1990 e o início de 1991, pelas páginas do jornal Folha de S. Paulo, a partir da publicação de um livro de Jacob Gorender (1990), que criticava as novas produções da área de história da escravidão. Sidney Chalhoub (1990) e Silvia Lara (1991) saíram em defesa destas. (8) Uma rica abordagem das relações de trabalho na escravidão e do trabalho “livre” pode ser encontrada na obra organizada por Lara e Mendonça (2006).