o legado de cousteau

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P ara quem tem mais de 40 anos, o nome Cousteau é familiar e evoca lembranças de emocionantes docu- mentários sobre a vida submarina. Jacques Yves-Cousteau morreu em 1997, aos 87 anos, boa parte dos quais de- dicados à pesquisa e, principalmente, à divulgação dessa vida submarina. Oceanógrafo por formação, ingressou na Marinha francesa e chegou a ser artilheiro durante a Segunda Guerra Mundial. Sua paixão pelo mar o motivou a inventar, juntamente com um engenheiro, o aqualung, equipamento de mergulho autônomo que substituiu os de- sajeitados escafandros. Mas o que o tornou mais conhecido do grande público foram os filmes realizados de sua célebre embarcação Calypso – a ponto de, em 1956, ter recebido um Oscar com o documentário O Mundo Silencioso. Cousteau admitiu certa vez que não tinha preocu- pações ambientais quando começou a produzir filmes. Mais tarde, no entanto, ele assumiria posições claras e se tornaria uma espécie de líder de manifestações em defesa HORIZONTE À VISTA Jean-Michel Cousteau herdou do pai a paixão pela vida submarina e a vocação para se tornar ambientalista Jacques Cousteau (à direita) com seu filho Jean-Michel. Ao fundo, o Calypso, célebre embarcação do oceanógrafo do meio ambiente em meados dos anos 70. Em 2010, ele completaria 100 anos de vida e seu legado ambientalista ganhou consistência com a atuação do seu filho, Jean- Michel Cousteau, também um apaixonado pelo mar. Ele tinha apenas 7 anos quando seu pai ofereceu-lhe cilindros para mergulhar. Aos 16, foi levado para conhecer a casa que o pai havia construído embaixo d’água. Hoje, aos 71 anos, Jean-Michel Cousteau é um dos maiores ativistas ambientais do mundo. Em 1999, fundou a Ocean Future Society, organização sem fins lucrativos que tra- balha, principalmente, com educação e preservação das águas dos oceanos. Ele esteve no Brasil para participar do seminário Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, e concedeu à HG esta entrevista exclusiva, na qual fala sobre seu pai e seu trabalho como ambientalista. HG No Brasil, nós temos enormes reservas de diferentes biomas, mas quando se trata de reservas marinhas, temos apenas 1% da região oceânica protegida. Isso significa que ainda se dá pouca importância aos ambientes marinhos? Cousteau Sim, as pessoas não se importam. Para elas, o oceano está lá longe, é estranho, assustador. Não entendem que nós todos dependemos dele. A qualidade do oceano determina a qualidade da nossa vida de muitas formas. HG – De que formas? Cousteau – A qualidade da água define a qualidade da vida. A água que bebemos é o oceano. Ela evapora do oceano, vai para o continente em forma de chuva ou neve e cria os lagos e rios. Depois, volta de novo O legado O FAMOSO OCEANÓGRAFO, QUE COMPLETARIA 100 ANOS DE VIDA EM 2010, MARCOU UMA GERAÇÃO E DEIXOU EXEMPLOS AMBIENTALISTAS PARA SEU FILHO SEGUIR de Cousteau TOM ORDWAY /OCEAN FUTURES SOCIETY AND KQED3 BATEAU LARGEUR/AFP

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O FAMOSO OCEANÓGRAFO, QUE COMPLETARIA 100 ANOS DE VIDA EM 2010, MARCOU UMA GERAÇÃO E DEIXOU EXEMPLOS AMBIENTALISTAS PARA SEU FILHO SEGUIR

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Page 1: O legado de Cousteau

P ara quem tem mais de 40 anos, o nome Cousteau é familiar e evoca lembranças de emocionantes docu-

mentários sobre a vida submarina. Jacques Yves-Cousteau morreu em 1997, aos 87 anos, boa parte dos quais de-dicados à pesquisa e, principalmente, à divulgação dessa vida submarina. Oceanógrafo por formação, ingressou na Marinha francesa e chegou a ser artilheiro durante a Segunda Guerra Mundial. Sua paixão pelo mar o motivou a inventar, juntamente com um engenheiro, o aqualung, equipamento de mergulho autônomo que substituiu os de-sajeitados escafandros. Mas o que o tornou mais conhecido do grande público foram os filmes realizados de sua célebre embarcação Calypso – a ponto de, em 1956, ter recebido um Oscar com o documentário O Mundo Silencioso.

Cousteau admitiu certa vez que não tinha preocu-pações ambientais quando começou a produzir filmes. Mais tarde, no entanto, ele assumiria posições claras e se tornaria uma espécie de líder de manifestações em defesa

HORIZONTEÀVISTA

Jean-Michel Cousteau herdou do pai a paixão pela vida submarina e a vocação para se tornar ambientalista

Jacques Cousteau (à direita) com seu filho Jean-Michel. Ao fundo, o Calypso, célebre embarcação do oceanógrafo

do meio ambiente em meados dos anos 70. Em 2010, ele completaria 100 anos de vida e seu legado ambientalista ganhou consistência com a atuação do seu filho, Jean-Michel Cousteau, também um apaixonado pelo mar.

Ele tinha apenas 7 anos quando seu pai ofereceu-lhe cilindros para mergulhar. Aos 16, foi levado para conhecer a casa que o pai havia construído embaixo d’água. Hoje, aos 71 anos, Jean-Michel Cousteau é um dos maiores ativistas ambientais do mundo. Em 1999, fundou a Ocean Future Society, organização sem fins lucrativos que tra-balha, principalmente, com educação e preservação das águas dos oceanos. Ele esteve no Brasil para participar do seminário Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, e concedeu à HG esta entrevista exclusiva, na qual fala sobre seu pai e seu trabalho como ambientalista.

HG – No Brasil, nós temos enormes reservas de diferentes biomas, mas quando se trata de reservas marinhas, temos apenas 1% da região oceânica protegida. Isso significa que ainda se dá pouca importância aos ambientes marinhos? Cousteau – Sim, as pessoas não se importam. Para elas, o oceano está lá longe, é estranho, assustador. Não entendem que nós todos dependemos dele. A qualidade do oceano determina a qualidade da nossa vida de muitas formas.

HG – De que formas?Cousteau – A qualidade da água define a qualidade da vida. A água que bebemos é o oceano. Ela evapora do

oceano, vai para o continente em forma de chuva ou neve e cria os lagos e rios. Depois, volta de novo

O legado O FAMOSO OCEANÓGRAFO,

QUE COMPLETARIA 100 ANOS DE VIDA EM 2010, MARCOU UMA GERAÇÃO

E DEIXOU EXEMPLOS AMBIENTALISTAS PARA SEU FILHO SEGUIR

de Cousteau

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para os oceanos. É um ciclo fechado, está tudo conectado. Gostemos ou não do oceano, temos de parar de usá-lo como lata de lixo.

HG – Como a Ocean Future Society ajuda nesse progresso?Cousteau – Somos uma instituição pequena e queremos continuar assim. Nós trabalhamos com comunicação em diferentes formas. Uma é a televisão. É massivo, mas superfi-cial. A vantagem é que alcança milhões de pessoas. Temos também a internet, por onde passamos mensagens – visuais ou de texto. A terceira forma é a educação. Buscamos alcançar especialmente jovens, porque eles absorvem a informação e a conservam. Quando eles se tornarem líderes, vão tomar decisões melhores. Como temos feito isso há anos, sabemos que funciona. Pessoas que acompanharam os nossos programas quando

crianças, hoje dizem que isso influencia as decisões que tomam. Fazemos também o que eu chamo de diplomacia, que é nos conectar com líderes de empresas e governos. Não queremos confronto. Queremos diálogo.

HG – A Ocean Future Society faz um grande trabalho de estudo e preservação de orcas. Por que dar atenção especial a esse animal?Cousteau – Orcas são para o oceano o que nós somos para o continente. É uma espécie dominante. Elas existem do Ártico à Antárti-da. Não são muitas, mas estão em todos os lugares. Têm uma sociedade complexa, com várias línguas e diferentes características – al-gumas só comem peixe, outras se alimentam de mamíferos, outras comem tudo. Como nós. Agora, as orcas estão vivendo por pouco tempo, os bebês estão nascendo doentes. Tudo porque os alimentos delas – peixes e

mamíferos marinhos – estão contaminados por substâncias que nós jogamos na água. Só que nós também comemos esses peixes e mamíferos. As orcas têm muito o que nos ensinar, é preciso conhecê-las.

HG – A carne de certos animais faz parte da ali-mentação de muitas culturas. É justo tentar acabar com esses hábitos culturais pela preservação de espécies?Cousteau – Não. Temos de deixar a cultura acontecer. Mas isso só se não for abusivo. Hoje as pessoas estão explorando a cultura para dizer o que os outros devem fazer. Sopa de barbatana de tubarão, por exemplo. Em alguns lugares da Ásia, principalmente na Chi-na, as pessoas comiam a sopa em ocasiões muito especiais e raras. Agora, todo mundo quer sopa de barbatana de tubarão todo dia. Não é assim que funciona.

HG – Você esteve duas vezes na Amazônia: no início dos anos 1980 e recentemente. Quando compara as duas ocasiões, ressalta o aumento populacional. Isso é necessariamente ruim?Cousteau – Não se os moradores souberem tirar vantagens da floresta sem a destruir. Assim, eles poderão ficar lá por muito tempo. De outra forma, terão que ir embora. Essas pessoas foram encorajadas pelo governo a ir para a Amazônia porque estavam passando fome, mas não foram educadas. Uma coisa é dizer “vá para a Amazônia”, outra é dizer “vá para a Amazônia e nós vamos te ajudar a viver em harmonia com a floresta”. HG – Quais são as áreas mais frágeis do planeta?Cousteau – A Amazônia, o Ártico e a Antárti-da. São os dois extremos: a floresta tropical e os polos gelados. São pontos críticos para a estabilidade climática do mundo. Se todo o gelo derreter ou toda a floresta sumir, isso não vai significar absolutamente nada para o planeta. Mas para nós, vai, porque queremos estar vivos e não sofrer até desaparecermos. Temos, então, a escolha de decidir se nossa espécie vai sumir como milhares de outras já sumiram. Podemos ir com eles. Mas temos duas ferramentas – nosso cérebro e nossas mãos – para dizer não, não vamos. Nossa escolha é ficar e gostar de estar aqui ou desaparecer. Eu quero ficar.

“Temos de parar de usar o oceano como lata de lixo”, diz Jean-Michel depois de observar a sujeira embaixo d’água e em praias como a da foto, na Ilha Laysan, arquipélogo do Havaí

A Ocean Future Society trabalha com a educação, principalmente de jovens. Na foto, Jean-Michel e um grupo de crianças na região amazônica de Iquitos, no Peru

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