o joão das ovelhas (variante portuguesa)
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O João das Ovelhas (variante portuguesa)
Texto
Havia um casal composto de pai, mãe e filho chamado João. Este tinha a seu cargo
guardar três ovelhas e por isso era conhecido pelo João das Ovelhas. Um dia, quando
João vigiava as ovelhas, apareceu-lhe um caçador com duas cadelas.
«João, queres trocar as tuas ovelhas pelas minhas cadelas?».
«Não, senhor. Todos os dias ordenho as minhas ovelhas e mando vender o leite,
comprando com o seu produto o pão de que eu, meu pai e minha mãe nos
sustentamos».
O caçador calou-se. No outro dia voltou e perguntou novamente se o rapaz queria
trocar as ovelhas pelas cadelas; o João deu a mesma resposta. No terceiro dia voltou o
caçador e tais foram as razões que este apresentou que o João trocou as ovelhas pelas
cadelas, com a condição, porém, de que no fim de três anos o caçador lhe entregaria
metade dos lucros que obtivesse das ovelhas e ele entregaria ao caçador metade do
que tivesse adquirido com as cadelas.
No dia seguinte fez-se João caçador, mas com tanta felicidade que caçou tanto que
arranjou muito dinheiro. Nos dias seguintes sucedeu-lhe o mesmo. Vendo-se em
poucos meses senhor de muito dinheiro e de muitas propriedades, resolveu largar o
ofício e ir correr mundo, entregando as propriedades e parte do dinheiro aos seus pais
e reservando para si um cavalo que comprou, as suas cadelas e algum dinheiro.
Depois de muito andar foi João ter a uma cidade onde toda a gente andava de luto
e muito triste. Perguntou João o motivo do luto e responderam-lhe que próximo da
cidade havia uma enorme serpente de sete cabeças que diariamente se alimentava de
uma donzela; e que naquele dia caíra a sorte sobre a princesa, a única filha do rei.
«E ela sujeitou-se à sorte?» perguntou ele. «Obedeceu à lei. Já está no lugar onde
a serpente a há-de tragar». «Qual é o caminho para lá?». «É escusado expor-se a uma
morte certa». O rapaz teimou em querer ir e por isso ensinaram-lhe o caminho.
Ele foi e viu uma princesa muito formosa, que o aconselhou a retirar-se pois tinha
a morte próximo. O rapaz teimou em ficar e pediu à princesa que consentisse que ele
reclinasse a cabeça no seu colo. Consentiu nisso a princesa e então ele pediu-lhe um
lenço, o qual estendeu ao lado, dizendo: «As minhas cadelas vão acometer a serpente
e se da luta saltar uma pinga de sangue sobre o lenço somos felizes, se saltar matéria
morreremos».
Daí a pouco ouviu-se o rojar da serpente. Então disse o rapaz: «Avancem, minhas
cadelas».
Avançaram as cadelas e lutaram com a serpente; depois de uma grande luta saltou
uma pinga de sangue para o lenço e a serpente foi morta. Ficou a princesa muito
alegre, mas sem poder proferir uma palavra; ficou muda. Então o rapaz tirou as sete
línguas das sete cabeças e desapareceu. A princesa dirigiu-se para a cidade e houve
grandes festas no palácio. No dia seguinte mandou o rei pôr um pregão que o
indivíduo que matara a serpente se apresentasse para casar com a princesa,
Casualmente passou um carvoeiro pelo sítio onde estava a serpente morta e,
ouvindo falar do pregão, cortou as sete cabeças da serpente e foi apresentar-se ao rei,
dizendo-se o matador do bicho feroz. Foi logo resolvido o casamento, mas antes
houve três dias de festas no palácio, celebrando-se três jantares.
Soube João do pregão do rei e bem assim de que aparecera o matador da serpente.
Partiu imediatamente para a cidade e mandou alugar uma casa defronte do palácio,
para onde foi residir. No primeiro jantar real, estava lá João na sua nova casa.
Chamou uma cadela e mandou ir buscar o prato da princesa. A cadela foi e apenas a
princesa viu a cadela, conheceu-a e riu-se muito. A cadela tirou-lhe o prato e safou-se;
no outro dia sucedeu o mesmo e no terceiro dia já tinha sido ordenado pelo rei que se
averiguasse onde a cadela entrava com o prato.
Espreitaram a cadela e dentro de poucos minutos recebeu João ordem de ir ao
palácio. Quando a princesa o viu, correu para ele e abraçou-o. «O que quer isto
dizer?» perguntou o rei. «Fui eu que matei o bicho», respondeu João.
«Mente», objectou-lhe o carvoeiro, «e tanto mente que conservo em meu poder as
sete cabeças da serpente». «Mas sem línguas», respondeu João. Neste momento a
princesa falou e contou a verdade toda. Já a este tempo o carvoeiro se tinha lançado
da janela à rua, morrendo da queda.
Casou João com a princesa e esta deu à luz uma criança muito formosa. Tinha a
criança nascido, vieram dizer a João que à porta do palácio estava um homem que lhe
queria falar. Foi e conheceu logo o caçador, dono das duas cadelas.
«Fazem hoje os três anos do nosso contrato, venho entregar-lhe metade do que
adquiri com as ovelhas. Agora entregai-me o que adquiriu com as cadelas». «Tudo?».
«Metade da sua mulher e metade do seu filho...». «Ó senhor! Entregar metade do meu
filho! Isso nunca! Antes leve-o todo, custa-me separar do meu filho... mas antes
perdê-lo do que vê-lo morto».
Então o caçador disse: «Basta. Tens sido sempre bom. Foste bom filho, serás bom
marido e bom pai. Recebe todas essas ovelhas, eu nada quero que te pertença, mas
entrega-me as minhas cadelas». E assim se fez.
Fui lá e não me deram nada.1
1 Francisco Xavier Ataíde de Oliveira. Contos Tradicionais do Algarve. 2ª edição. 2 vols. Lisboa:
Vega, s.d.
A Mãe Traidora (variante espanhola)
Texto
Era uma mãe que tinha três filhos. Uma vez deitaram uma coisa ao esterco e
saíram três cavalos e sete cabras. Dois filhos casaram e o mais novo ficou com a mãe.
Quando saía para o campo levava as três cabras a outros rebanhos para que
ficassem reunidas; mas acontecia que as dos rebanhos morriam e as sete ficavam
sempre vivas.
O rapaz disse à mãe que não queria tornar a levá-las a nenhum rebanho e que havia
que pôr cobro àquilo. Então, um dia, montou num dos cavalos saídos do esterco e
levou as cabras. Encontrou um homem que levava cinco cães e disse-lhe: «Você quer
trocar-me as sete cabras pelos cinco cães?».
Ele respondeu: «Está bem, troco. Os cães chamam-se Sol, Estrela, Luzerna, Sultão
e Adalid».
Quando voltou a casa, a mãe pôs-se a ralhar pelo que havia feito e ele respondeu:
«Pois agora vou caçar e trazer-lhe perdizes e coelhos para comermos». A mãe, muito
desgostada com o filho, foi a uma horta que tinha e disse ao hortelão, que era um
negro, que quando o filho voltasse, se fosse colher peras, que o matasse.
Veio o filho e, parecendo-lhe que a mãe estava mal, perguntou-lhe o que tinha e se
queria comer. E ela disse-lhe que o que lhe apetecia era umas peras da horta e que
fosse colhê-las. Foi por elas e a mãe deixou os cães fechados.
Quando ele colhia as peras, veio o negro com uma porra de ferro para matá-lo. Ele
perguntou-lhe: «O que vai você fazer-me?». «O que a tua mãe me mandou; vou
matar-te». Ele começou a chamar pelo Sol, Lua, Luzerna, enfim, por todos os seus
cães. Estes apareceram prontamente e estraçalharam o negro. Quando o rapaz chegou
a casa trazia o coração do negro, que entregou à mãe. Esta ficou muito zangada e
atirou-o à rua.
Ele pegou no seu cavalo e cães e num sabre que tinha e abalou. Indo pelo caminho,
ouviu muitos soluços e foi ver o que era. Encontrou a filha do rei, que estava ali a
chorar. Perguntou-lhe o que tinha e ela disse-lhe que todos os dias havia naquelas
paragens uma serpente de sete cabeças que tinham que alimentar com uma donzela
por dia; e que naquele dia tinha tocado a sua vez.
Então ele disse-lhe: «Não te preocupes, eu deito-me aqui a dormir com os meus
cães e tu avisas-me quando vier a serpente». Ela tentou dissuadi-lo mas ele insistiu
que nada de mal aconteceria e que o avisasse.
Recostou-se a dormir e passado pouco tempo apareceu a serpente, silvando. Ela
avisou-o imediatamente e ele levantou-se prontamente e chamou os cães. Daí a nada a
serpente estava morta. Então ele tirou as línguas às sete cabeças e guardou-as no
bolso, fechadas num lenço. Despediu-se da princesa e seguiu caminho. Ela pediu-lhe
que não se fosse embora e perguntou-lhe se queria casar com ela, pois o pai havia dito
que quem a libertasse poderia ser o seu esposo. Ele respondeu que não, que por agora
se ia embora, mas que se ela continuasse solteira ele voltaria um dia para casar com
ela. Então seguiu caminho e pouco depois surgiu o rei com o seu coche e escolta para
ver se a filha vivia ou se a serpente a tinha morto.
O rei ficou muito contente por ver a filha liberta, a qual lhe contou o que se tinha
passado e lhe disse que conhecia o seu libertador. O rei levou-a para casa e toda a
família se considerou completamente ditosa com a volta da princesa.
Um carvoeiro, que passava onde estava a serpente morta, cortou-lhe as sete
cabeças e foi ao palácio dizendo que a tinha salvo e lhe tocava portanto casar com ela.
Mas a princesa disse não ser verdade o que aquele jovem dizia, pois ela tinha visto
aquele que a tinha salvo, embora não o conhecesse. Então o pai disse ao carvoeiro que
se no prazo de oito dias fizesse as três coisas que lhe dizia, poderia casar com a filha.
Primeira: teria que trazer de volta três pombos que largaria a voar nessa mesma noite.
Ele respondeu que isto era impossível uma vez que não sabia aonde iriam nem os
conhecia — «Pois senão, você não casa com a minha filha». O carvoeiro tinha um
apito e de noite chamou as aves e vieram os três pombos. Três vezes aconteceu isto. O
rei disse à filha que tinha empenhado a sua palavra e que ela tinha que casar com o
carvoeiro.
Já faltava só um dia para o prazo e ela estava sentada à varanda, muito descontente
por ver que não tinha outro remédio senão casar com ele. Mas de repente viu o seu
salvador e, quando este passava sob a varanda, chamou-o e ele entrou no palácio. Ela
disse ao pai que este jovem a tinha salvo e o pai perguntou-lhe se tinha alguma prova
da verdade daquilo que a filha dizia. Ele respondeu que olhassem para as cabeças da
serpente para ver se tinham as línguas. O rei observou as cabeças e viu que estavam
sem línguas. Ele mostrou-as para comprovar o que dizia e o rei concordou que ele
casasse com a sua filha.
Ele disse que queria que chamassem a sua mãe. O rei fê-la vir e a mãe trouxe
consigo o coração do negro. Na noite do casamento disse que queria ser ela a fazer a
cama dos noivos. A mãe perguntou ao filho de que lado se ia deitar e ele disse-lhe que
era no lado esquerdo. Ao fazer a cama, ela pôs-lhe debaixo da almofada o coração do
negro.
Pouco depois de deitar-se, a princesa ouviu um ronco e encontrou morto o jovem
seu esposo. Começou a gritar e acorreu gente imediatamente. A mãe começou a
chorar ao ver morto o seu filho e não consentiu que mais ninguém senão ela o
amortalhasse. Ao levá-lo ao caixão pôs-lhe o coração do negro debaixo da almofada.
Os cães puseram-se em volta do caixão, dois à cabeça, dois no meio e dois nos pés.
Ao ver isto, as pessoas queriam tirá-los de ao pé do morto mas eles matavam quem
quer que lhes tocasse. Assim, em pouco tempo o quarto encheu-se de mortos. Quando
o levaram, os cães seguiram-no ao cemitério e ficaram ao lado da sepultura sem que
ninguém se atrevesse a expulsá-los. Quando os padres se foram e fecharam o
cemitério, os cinco cães começaram a falar uns com os outros e combinaram retirar o
seu amo da terra.
Então escavaram, chegaram ao caixão e abriram-no. Tendo cheirado a carne que
estava debaixo da almofada do morto, apanharam o coração do negro e, como este
estava podre, deitaram-no fora. Nisto começou o seu amo a voltar a si e perguntou-
lhes o que se passava. Os cães disseram-lhe que não se preocupasse porque eles
estavam ali. Então os cinco cães tornaram-se cinco homens e tiraram-no do caixão,
que ele não pôde abandonar pelo seu pé de tão fraco que estava, e levaram-no ao
palácio. Ao porem-no na porta, os cinco homens disseram-lhe que agora o deixavam,
visto ele estar salvo e eles próprios irem para o Céu. Então viu-se eles ascenderem
numa nuvem de fumo e desaparecerem no espaço.
Ele chamou ao portão e perguntaram de dentro quem era. Ele respondeu que um
morto queria entrar. Todos assustados, nenhum queria abrir. Mas a sua esposa, que
reconheceu a voz dele, foi quem abriu a porta. E ao vê-lo, caiu desmaiada nos braços
dele. Todos acudiram a socorrê-la e, quando ela tornou a si, ele contou tudo o que se
tinha passado. O rei perguntou o que queria que fizessem com a sua mãe e ele
respondeu que não queria que se fizesse nada. Mas o rei, sem que o filho soubesse,
mandou-a fritar em azeite e enterraram-na debaixo duma oliveira. Então o palácio, até
aí todo enlutado, tornou a vestir-se de cor e todos viveram felizes e contentes. E a
mim deram-me um rábano torto.2
2 C.A. Demófilo, “La Serpiente de las Siete Cabezas.” El Folk-Lore Andaluz (1882): 357–61.
Ivan filho da vaca (variante russa)
Texto
Num certo reino, numa certa terra, vivia um rei com a sua rainha. Não tinham
filhos e, após terem vivido juntos dez anos, o rei proclamou um edital dirigido a todos
os reis, cidades, nações — até mesmo à gente do povo — pedindo alguém que
pudesse curar a rainha da sua esterilidade e fazê-la gerar uma criança. Príncipes e
aristocratas, mercadores ricos e camponeses juntaram-se no palácio real. O rei deu-
lhes de comer e de beber até estarem bêbados e então começou a interrogá-los. Mas
ninguém sabia. Nenhum soube dizer como a rainha podia ser levada a ter um filho —
nenhum, à excepção do filho dum camponês. O rei deu-lhe um punhado de moedas de
ouro e disse-lhe que em três dias teria que lhe dar uma resposta.
Bem, embora o filho do camponês tivesse aceite curar a rainha, a verdade é que
não fazia ideia nenhuma daquilo que havia de sugerir. Portanto saiu da cidade e
começou a reflectir profundamente. Encontrou uma velhota que lhe perguntou: «Diz-
me, miúdo camponês, em que estás a pensar?». Ele respondeu-lhe: «Cale-se, velhota,
não me aborreça!». Mas ela foi atrás dele e disse: «Diz-me os teus pensamentos; eu
sou velha e sei tudo». Então ele pensou que talvez tivesse sido parvo em ofendê-la,
que talvez ela soubesse de facto alguma coisa. E disse-lhe: «Avozinha, eu aceitei
dizer ao rei como é que a rainha há-se fazer para ter uma criança, mas eu próprio não
sei a resposta».
«Ah! Mas sei eu! Vai ter com o rei e diz-lhe que prepare três redes de seda. No
mar, debaixo da janela do rei, há um lúcio com asas douradas que nada sempre em
frente do palácio. Quando o rei apanhar o lúcio e o cozinhar, e a rainha o comer, ela
há-se dar à luz».
O rapaz camponês foi ele próprio pescar ao mar. Quando deitou as três redes de
seda, o lúcio saltou e furou as três redes. Ele deitou novamente as redes e o lúcio
rebentou-as mais uma vez. Então o jovem camponês tirou o cinto e o lenço de seda
que trazia ao pescoço, remendou as redes e atirou-as pela terceira vez. Desta vez
apanhou o lúcio com as asas douradas; ficou felicíssimo e levou o peixe ao rei; este
ordenou que se lavasse e limpasse o lúcio e que se o fritasse e servisse à rainha. Os
cozinheiros lavaram e limparam o peixe e atiraram as tripas pela janela. Uma vaca
engoliu as tripas. Mal os cozinheiros tinham fritado o lúcio, uma criada pôs este num
prato e levou-o à rainha, mas no caminho arrancou uma asa e provou-a. Portanto, as
três — a vaca, a criada e a rainha — ficaram grávidas no mesmo dia e à mesma hora.
Um conto tece-se depressa, um acto leva mais tempo. Passado algum tempo, a
leiteira saiu da vacaria e disse ao rei que uma vaca tinha dado à luz um bebé humano.
O rei ficou muito surpreendido; mas, mal tinha ouvido a notícia, disseram-lhe que a
criada tinha dado à luz um bebé exactamente igual ao da vaca. E alguns minutos
depois, vieram dizer-lhe que a rainha tinha dado à luz um bebé tão parecido com o
filho da vaca como o são duas ervilhas. Eram todos rapazes maravilhosos! Cresciam
numa hora o que os outros bebés crescem num ano; em três horas eram como outros
em três anos. Quando chegaram à maioridade, sentiam em si uma força poderosa e
heróica. Vieram ter com o pai, o rei, e pediram-lhe permissão para ir à cidade ver
gente e mostrar-se ao mundo. Ele autorizou-os, disse-lhes que se comportassem com
sobriedade e como gente de paz e deu-lhes tanto dinheiro quanto eles podiam
transportar.
E assim os bons jovens partiram. Um chamava-se Ivan o Príncipe, o outro Ivan
Filho da Criada… e o terceiro chamava-se Ivan Filho da Vaca e tinha como alcunha
Burya Bogatyr, Campeão dos Campeões. E andaram e andaram, mas nada
compraram.
Então Ivan o Príncipe viu algumas bolas de vidro e disse aos irmãos: «Irmãos,
vamos cada um comprar uma bola e atirá-la ao ar; quem a atirar mais alto será
considerado o irmão mais velho». Os irmãos concordaram e tiraram à sorte quem
jogaria primeiro a bola. O primeiro lugar calhou a Ivan o Príncipe. Ele atirou alto,
mas Ivan Filho da Criada atirou ainda mais alto e Burya Bogatyr atirou a bola tão alto
que ela desapareceu da vista. Então ele disse: «De agora em diante eu sou o mais
velho!». Ivan o Príncipe ficou zangado. «O que queres dizer? És os filho da vaca e
queres ser o mais velho!». Ivan Filho da Vaca respondeu-lhe: «Deve ser a vontade de
Deus que tu me obedeças». Continuaram a caminhar e chegaram ao Mar Negro, onde
a serpente estava a chapejar. Ivan o Príncipe disse: «Irmãos, aquele que vencer esta
serpente será o nosso irmão mais velho». O Príncipe Ivan começou a gritar para
amansar a serpente, mas esta tornou-se ainda mais feroz. Então Ivan Filho da Criada
tentou amansá-la, mas também falhou. Depois Buria Bogatyrov gritou, atirou um pau
à água e a serpente desapareceu num ápice. Ele tornou a dizer: «Eu sou o irmão mais
velho». O Príncipe Ivan ficou zangado e disse: «Nós não queremos ser os teus irmãos
menores!». «Então eu deixo-vos», disse Ivan Filho da Vaca. E regressou à sua terra
natal enquanto os seus irmãos seguiram em frente.
Quando o rei soube que Ivan Filho da Vaca tinha voltado sozinho, mandou prendê-
lo numa fortaleza. Durante três dias não lhe deram de comer nem de beber. O
poderoso campeão bateu com o punho na parede de pedra e gritou com voz poderosa:
«Perguntem ao vosso rei e meu padrasto porque é que ele não me alimenta! As vossas
paredes e grades não são me podem prender. Se eu quiser posso parti-las todas com o
meu punho». Imediatamente comunicaram isto ao rei. Este veio e perguntou: «De que
estás a gabar-te, Buria Bogatyr?». «Meu padrasto, porque é que não me alimenta?
Porque é que me tem à fome há três dias? Eu não cometi nenhum crime». «Mas o que
é que fizeste com os meus filhos, teus irmãos?». Ivan Filho da Vaca disse-lhe tudo o
que tinha sucedido. «Os meus irmãos estão vivos. Estão sãos e salvos e seguiram em
frente». O rei perguntou: «Porque não foste com eles?». «Porque o Príncipe Ivan quer
ser o mais velho embora nas provas combinadas tenha sido eu o escolhido». «Muito
bem, então vou mandar chamá-los». «Ninguém excepto eu pode agora alcançá-los,
porque eles foram para a terra dos dragões — para o sítio onde os dragões de seis,
nove e doze cabeças saem do Mar Negro». O rei suplicou-lhe que fosse atrás deles.
Ivan Filho da Vaca preparou-se para a viagem, pegou na sua maça de batalha e na sua
espada de aço e partiu
Um conto tece-se depressa, um acto leva muito mais tempo. Ivan Filho da Vaca
andou continuamente até que finalmente alcançou os irmãos perto do Mar Negro,
perto da ponte de avelaneira branca. Ao lado dessa ponte havia um poste, no qual
estava escrito ser este o local onde os três dragões sempre saem do mar. «Bom dia,
irmãos!», disse ele aos seus irmãos. Eles ficaram radiantes de vê-lo e responderam:
«Bom dia, Ivan Filho da Vaca, nosso irmão mais velho». E ele disse: «Vejo que o
escrito no poste não é do vosso agrado».
Olhou em volta e viu, perto da ponte, uma cabana sobre pernas de galinha e com
cabeça de galo virada de frente para o bosque e com a parte de trás para eles. Ivan
Filho da Vaca gritou: «Cabaninha, cabaninha, põe-te com as traseiras voltadas para o
bosque e a frontaria para nós!». A cabaninha deu meia volta; eles entraram e viram
que a mesa estava posta com carne e bebida em abundância. Ao canto estava uma
cama de madeira e nela um edredão de penas. Buria Bogatyr disse: «Bem vêem,
manos, sem mim vocês não teriam nada disto».
Sentaram-se e comeram o jantar, depois deitaram-se e descansaram. Quando se
levantaram, Ivan Filho da Vaca disse: «Irmãos, esta noite o dragão de seis cabeças
sairá do mar. Vamos tirar à sorte qual de nós ficará de vigia». Tiraram à sorte e calhou
a vez a Ivan Filho da Criada. O Filho da Vaca disse-lhe: «Cuidado, que um jarrinho
vai sair do mar e começar a dançar à tua frente. Não olhes para ele, apenas cospe-lhe
em cima e esmaga-o». Quando o Filho da Criada chegou ao mar, adormeceu. Mas
Buria Bogatyr, sabendo que os seus irmãos não eram de confiança, foi lá ele próprio e
começou a andar na ponte batendo nela de vez em quando com o seu bordão.
De repente um jarrinho saltou à sua frente e começou a dançar; o Filho da Vaca
cuspiu-lhe em cima e desfê-lo em pedacinhos. Então um pato grasnou, a terra
estremeceu, o mar engrossou e saiu de dentro das ondas Chudo Yudo, um monstro
marinho. Era o dragão de seis cabeças. Este assobiou e gritou com um poderoso silvo,
num voz verdadeiramente potente: «Corcel mágico, cavalo da minha necessidade!
Vem adiante de mim como uma folha adiante da erva!». O corcel veio a correr, a terra
tremeu, medas de feno inteiras voavam sob os seus cascos e das suas orelhas e narinas
rolava fumo espesso. Chudo Yudo montou no seu cavalo e dirigiu-o para a ponte de
avelaneira branca. De repente o cavalo tropeçou debaixo dele. «Porque tropeças,
carne de cadáver?», perguntou o dragão, «cheiras um amigo ou um inimigo?». O bom
corcel respondeu: «Há um inimigo: Ivan Filho da Vaca». «Mentes, carne de cadáver!
Nem mesmo os seus ossos foram aqui trazidos numa bexiga por um corvo; e ele não
está certamente aqui». «Ah, Chudo Yudo», disse Buria Bogatyr, «nenhum corvo
trouxe os meus ossos. Cheguei aqui pelos meus próprios meios». O dragão perguntou-
lhe: «Porque vieste? Para cortejar as minhas irmãs e as minhas filhas?». Não, irmão,
vim para te defrontar em campo aberto, não para me tornar teu parente.
Combatamos!».
Buria Bogatyr brandiu a sua maça de combate e cortou três das cabeças do dragão;
brandiu-a de novo e cortou as outras três. Cortou o tronco do dragão aos pedaços e
deitou estes ao mar, escondeu as cabeças sob a ponte de avelaneira branca, prendeu o
cavalo às pernas de Ivan Filho da Criada e pôs a espada de aço perto da cabeça dele.
Ele próprio voltou para a cabaninha e deitou-se a dormir como se nada se tivesse
passado. Ivan Filho da Criada acordou, viu o corcel e ficou radiante. Montou, dirigiu-
se à cabana e gritou: «Buria Bogatyr, disseste-me que não olhasse para o jarro, mas
olhei e o Senhor deu-me este corcel». Ivan Filho da Vaca respondeu: «Ele deu-te o
corcel mas prometeu-nos mais».
Na noite seguinte calhou ao Príncipe Ivan fazer a vigia. Buria Bogatyr disse-lhe a
mesma coisa acerca do jarro. O príncipe começou a andar na ponte e a bater nela com
o seu bordão. O jarrinho saltou e começou a dançar à frente dele. Ele olhou para o
jarro e caiu num sono profundo. Mas Ivan Filho da Vaca, não confiando no irmão,
veio cá fora. Andou na ponte e bateu nela com o seu bordão. O jarrinho saltou e
dançou à sua frente. Ivan Filho da Vaca cuspiu sobre ele e desfê-lo em pedacinhos.
De repente um pato grasnou, a terra abriu-se, o mar engrossou e de dentro das ondas
rastejou Chudo Yudo, um monstro marinho, o qual assobiou e gritou com um
poderoso silvo e uma voz verdadeiramente potente: «Corcel mágico, cavalo da minha
necessidade! Vem adiante de mim como uma folha adiante da erva!». O corcel veio a
correr, a terra tremeu. Das suas orelhas e narinas rolava fumo espesso. Perfilou-se
diante do dragão, imóvel. Chudo Yudo, dragão de nove cabeças, montou nele e
dirigiu-o para a ponte de avelaneira branca. Ao avançar para a ponte, o cavalo
tropeçou debaixo dele. «Porque tropeças, carne de cadáver? Cheiras um amigo ou um
inimigo?». «Está aqui o nosso inimigo Ivan, Filho da Vaca!». «Mentes! Nem os seus
ossos foram aqui trazidos numa bexiga por um corvo; e ele próprio não está
certamente aqui». «Ah, Chudo Yudo, monstro marinho», respondeu Buria Bogatyr,
«tenho estado a andar por aqui há já dois anos ». «Bem, Ivan Filho da Vaca, vieste
para cortejar as minhas irmãs e as minhas filhas?». «Vim para te defrontar em
terreiro, não para me tornar teu parente. Vamos juntar-nos em combate».
Ivan Filho da Vaca brandiu a sua maça de combate e cortou três das cabeças do
dragão tão facilmente como se estas fossem cabeças de couve; brandiu-a de novo e
cortou mais três cabeças; brandiu-a pela terceira vez e cortou o resto. Cortou o tronco
em pedacinhos e deitou estes ao Mar Negro, escondeu as cabeças sob a ponte de
avelaneira branca , prendeu o corcel às pernas do Príncipe Ivan e pôs a espada de aço
perto da sua cabeça. Ele próprio voltou à cabaninha e deitou-se a dormir como se
nada tivesse sucedido. Na manhã seguinte o Príncipe Ivan acordou, viu um corcel
ainda melhor que o primeiro, ficou radiante, montou-o e gritou: «Eh, Ivan Filho da
Vaca, disseste-me que não olhasse para o jarrinho, mas Deus deu-me um corcel ainda
melhor que o primeiro». Ele respondeu: «Deus deu-vos dois corcéis e, a mim, apenas
uma promessa».
A terceira noite aproximava-se e Buria Bogatyr, Campeão dos Campeões, estava
pronto para o seu turno de guarda. Montou uma mesa e acendeu uma vela, espetou
uma faca na parede e pendurou nela uma toalha, deu aos irmãos um baralho de cartas
e disse: «Joguem às cartas, rapazes, e não se esqueçam de mim; quando a vela
começar a desaparecer e sangue escorrer desta toalha para o prato, vão depressa à
ponte ajudar-me».
Buria Bogatyr andou na ponte batendo nela com o seu bordão. Um jarrinho saltou
e dançou diante de si. Ele cuspiu-lhe em cima e partiu-o aos pedacinhos. De repente
um pato grasnou, a terra abriu-se, o mar engrossou e de dentro das ondas rastejou
Chudo Yudo o monstro marinho; desta vez era o dragão de doze cabeças. Este
assobiou e gritou com um poderoso silvo e gritou com uma voz verdadeiramente
potente: «Corcel mágico, cavalo da minha necessidade! Vem adiante de mim como
uma folha adiante da erva!». O corcel veio a correr, a terra tremeu. Das suas orelhas e
narinas rolava fumo espesso, da sua boca saíam chamas. Correu para o dragão e
perfilou-se imóvel. Chudo Yudo montou nele e dirigiu-o para a ponte; quando o
corcel alcançou a ponte, tropeçou. «Porque tropeças, carne de cadáver? Cheiras um
inimigo?», gritou o dragão. . «Está aqui um nosso inimigo, Ivan Filho da Vaca!».
«Cala-te; o corvo não trouxe aqui os seus ossos numa bexiga ». «Mentes, monstro
marinho, tenho estado a andar por aqui há já três anos». «Bem, Buria Bogatyr, queres
casar com as minhas irmãs ou com as minhas filhas?». «Vim para te defrontar em
campo aberto, não para me tornar teu parente. Vamos juntar-nos em combate». «Ah,
mataste os meus dois irmãos e portanto pensas que me podes vencer também!».
«Vamos a ver qual é a vontade divina. Agora ouve, Chudo Yudo, tu tens um cavalo e
eu estou a pé. Vamos acordar que se um de nós cair ao chão o outro não o pode
golpear».
Buria Bogatyr brandiu a sua maça de guerra e cortou três das cabeças do dragão.
Brandiu-a de novo e o dragão atirou-o ao chão. Ivan Filho da Vaca gritou: «Alto,
Chudo Yudo! O nosso acordo foi de não golpear aquele que esteja caído no chão».
Chudo Yudo deixou-o levantar-se. Ele levantou-se e imediatamente outras três
cabeças voaram como cabeças de couves. Começaram a brigar amargamente; lutaram
durante várias horas, até que ambos estavam exaustos. O dragão perdeu mais três
cabeças e a maça de batalha do nosso herói partiu-se. Buria Bogatyr descalçou a bota
esquerda e atirou-a para a cabaninha, desmoronando metade desta; mas os irmãos
estavam a dormir e nada ouviram. Ele descalçou a bota direita e atirou-a também. A
cabaninha ficou reduzida a um monte de tábuas, mas ainda assim os irmãos não
acordaram. Buria Bogatyr pegou num fragmento da sua maça, atirou-a ao estábulo
onde os cavalos estavam e partiu a porta. Os cavalos galoparam para a ponte e
derrubaram o dragão. O nosso herói ficou radiante, correu para o dragão e cortou as
três cabeças remanescentes. Cortou o corpo do dragão aos pedaços, atirou estes ao
Mar Negro e escondeu as cabeças sob a ponte de avelaneira branca. Então pegou nos
três cavalos, levou-os para o estábulo e escondeu-se sob a ponte sem limpar o sangue
desta.
De manhã os seus dois irmãos acordaram e viram que a cabana tinha ruído em
bocados e que o prato estava cheio de sangue. Foram ao estábulo e encontraram lá
três cavalos; perguntaram-se sobre o que teria sucedido ao seu irmão mais velho.
Procuraram-no três dias mas não o encontraram. Disseram-se: «Eles devem ter-se
morto um ao outro e os corpos respectivos desapareceram. Vamos para casa». Já
haviam selado os cavalos e preparavam-se para voltar a casa quando Buria Bogatyr
acordou e saiu de debaixo da ponte. «Então estão a abandonar o vosso companheiro,
irmãos?», disse ele. «Eu salvei-vos da morte, mas vocês estavam a dormir e não
vieram em minha ajuda».
Então eles caíram de joelhos perante ele e disseram: «Perdoa-nos, Buria Bogatyr,
nosso irmãos mais velho!». «Deus há-se perdoar-vos!». E ele murmurou em direcção
da cabaninha: «Fica como estavas antes!». A cabaninha reapareceu exactamente como
tinha sido, cheia de carne e bebida. «Agora, irmãos», disse Ivan Filho da Vaca,
«jantem, pois sem mim vocês já teriam morrido à fome. Depois partiremos».
Jantaram e puseram-se a caminho. Quando tinham andado três quilómetros, Buria
Bogatyr disse: «Irmãos, esqueci-me da minha chibata de montar na cabaninha. Vão
andando enquanto eu volto atrás para a ir buscar». Voltou à cabaninha, desmontou do
cavalo e soltou-o no prado sagrado, dizendo-lhe: «Vai, meu bom corcel, até que eu te
chame!». Então transformou-se em mosca, voou para a cabaninha e pousou no fogão.
Passado um bocado, a Baba Yaga entrou e sentou-se no canto da frente. A sua jovem
nora veio visitá-la e disse-lhe: «Ah, mãe, Buria Bogatyr, o Filho da Vaca, matou o
vosso filho e meu marido. Mas vou vingar-me deste insulto. Vou à frente dele e
tenciono mandar-lhe um dia quente e transformar-me num prado verdejante. Neste
prado verde hei-de transformar-me em poço. Neste poço há-se flutuar uma chávena
prateada. E também me irei transformar em cama de madeira. Os irmãos hão-de
querer alimentar os seus cavalos, descansar e beber água; então hão-de rebentar aos
bocadinhos pequeninos, como sementes de papoila». A mãe respondeu-lhe: «É isso
mesmo que aqueles malvados merecem!».
Então veio a segunda nora e disse: «Ah, mãe, Buria Bogatyr, o Filho da Vaca,
matou o vosso filho e meu marido. Mas vou vingar-me deste insulto. Vou à frente
dele e tornar-me num jardim adorável. Todo o tipo de frutos hão-de aparecer sobre a
vedação, sumarentos e cheirosos! Eles hão-de querer apanhá-los, cada qual o seu fruto
favorito; e hão-de rebentar aos bocadinhos como sementes de papoila!». A mãe disse:
«Também tu pensaste numa boa vingança!».
A terceira nora, a mais nova, veio e disse: ««Ah, mãe, Buria Bogatyr, o Filho da
Vaca, matou o vosso filho e meu marido. Mas vou vingar-me deste insulto. Vou
transformar-me numa velha cabaninha. Eles hão-de querer passar a noite nela, mas
mal ponham o pé lá dentro hão-de rebentar aos bocadinhos como sementes de
papoila».
«Bem, queridas noras, se vocês não conseguirem matá-los, amanhã eu própria hei-
de correr até eles transformada em porca e hei-de engoli-los a todos».
Buria Bogatyr ouviu estas palavras pousado no fogão e depois voou lá para fora.
Aterrou e tornou-se num bom mancebo. Assobiou e gritou com um poderoso assobio,
um potente grito: «Corcel mágico, cavalo da minha necessidade! Vem adiante de mim
como uma folha adiante da erva!». O corcel veio a correr, a terra tremeu. Buria
Bogatyr sentou-se nele e seguiu caminho. Atou um molho de fibras a um pau,
alcançou os seus companheiros e disse a estes: «Ei-la, meus irmãos, eu não consigo
viver sem esta chibata de montar!». «Irmão, valeu realmente a pena voltar atrás por
uma tal porcaria? Poderíamos ter ido à cidade comprar uma nova».
E prosseguiram através de estepes e vales. O dia estava tão quente que não
aguentavam; a sede atormentava-os. Chegaram a um prado verdejante, no qual a erva
era abundante; na erva havia uma cama de madeira. «Irmão Buria Bogatyr», disseram
os dois mais novos, «vamos alimentar os cavalos nesta erva e descansar na cama de
madeira. Há também um poço, bebamos água fresca». Buria Bogatyr disse aos seus
irmãos: «O poço está no meio de estepes e desertos; ninguém há-de tirar ou beber
água dele». Saltou do seu bom corcel e começou a castigar e a dilacerar o poço, do
qual esguichou sangue. De repente o dia ficou nevoento, o calor passou e deixaram de
ter sede. Disse ele: «Bem vêem, irmãos, quão estagnada é esta água — está como
sangue».
Seguiram adiante. Após um tempo, curto ou longo, chegaram a um jardim
maravilhoso. O Príncipe Ivan disse ao irmão mais velho: «Permite-nos colher uma
maçã». «Não, irmãos, este jardim está no meio de estepes e desertos; talvez as maçãs
estejam velhas e podres e, se vocês as comerem, uma doença há-de comer-vos.
Primeiro deixem-me ver». Ele entrou no jardim e começou a castigar e a cortar.
Cortou todas as árvores até à última. Os irmãos ficaram zangados com ele por não
fazer o que eles queriam.
Seguiram caminho e foram apanhados pela noite escura. Em breve chegaram a
uma cabana. «Irmão Buria Bogatyr», disseram os irmãos mais novos, «está a começar
a chover. Passemos a noite nesta cabana». «Não, irmãos, vamos mas é montar as
nossas tendas e passar a noite em campo aberto. Esta cabana é velha e se nela
entrarmos ainda pode cair e esmagar-nos. Deixem-me ir lá ver». Entrou na cabana e
começou a retalhá-la. Ela esguichou sangue e ele disse: «Podem ver vocês mesmos
que tipo de cabana é esta, completamente podre! Vamos adiante». Os irmãos
resmungaram mas não mostraram a sua ira. Seguiram caminho. De repente o caminho
bifurcava. Buria Bogatyr disse: «Irmãos, deixem-me tomar o caminho da esquerda».
Eles responderam: «Toma o caminho que quiseres, nós não vamos contigo». Portanto
eles viraram à direita e Buria Bogatyr foi para a esquerda.
Buria Bogatyr — Ivan Filho da Vaca — chegou a uma aldeia onde doze ferreiros
estavam a trabalhar. Aí gritou e assobiou com um poderoso assobio e um potente
grito: «Ferreiros, ferreiros, todos os que aqui estão!» Os ferreiros ouviram-no e todos
os doze correram para ele. «O que queres?». «Cintem a forja com uma folha de aço».
Num ápice fizeram isto mesmo. «Ferreiros, forjem doze varões de ferro e aqueçam as
tenazes ao rubro. Uma porca há-de vir ter convosco e dizer: «Ferreiros, ferreiros,
entreguem o culpado; se não o entregarem, eu engulo-vos a todos e mais à vossa
forja». E vocês digam-lhe: «Ah, mãe porca, leve este idiota daqui, que ele tem sido
um verdadeiro espinho na nossa carne. Para tal, só tem que pôr a sua língua na nossa
forja, que nós pomo-lo na sua língua».
Mal Buria Bogatyr tinha acabado de dar esta ordem, uma enorme porca veio ter
com eles e gritou em voz alta: «Ferreiros, ferreiros, entreguem o culpado!». Os
ferreiros responderam em uníssono: «Mãe porca, livre-nos deste idiota, há muito que
ele é um espinho na nossa carne. Queira só enfiar a sua língua na nossa forja, que nós
pomo-lo na sua língua». A porca era simples de espírito e glutona, pelo que enfiou um
bom pedaço da língua. Buria Bogatyr pegou nela com as tenazes aquecidas ao rubro e
gritou aos ferreiros: «Peguem nos varões de ferro e dêem-lhe uma boa sova!».
Sovaram-na até lhe deixarem as costelas à vista. «E agora», disse-lhes Buria Bogatyr,
«segurem-na que eu dou-lhe um tratamento especial». Pegou num varão de ferro e
desferiu um golpe, partindo-lhe todas as costelas ao meio. A porca começou a
implorar-lhe: «Buria Bogatyr, deixa a minha alma arrepender-se!». Buria Bogatyr
disse: «E porque engoliste os meus irmãos?». «Eu vomito-os já». Ele pegou nela pelas
orelhas; a porca vomitou e os dois irmãos saltaram cá para fora com os seus cavalos.
Então Buria Bogatyr ergueu-a e com toda a sua força despedaçou-a contra a terra
húmida. A porca desfez-se numa miríade de espíritos malignos.
Buria Bogatyr disse aos irmãos: «Vêm, seus idiotas, em que posição se puseram?».
Eles caíram de joelhos implorando: «Perdoa-nos, Buria Bogatyr, Filho da Vaca!».
«Vamos pôr-nos a andar. Agora nada nos parará».
Chegaram a um reino, ao rei indiano, e montaram as tendas sobre os prados
sagrados. De manhã o rei acordou, olhou através do óculo, viu as tendas e convocou o
seu primeiro-ministro, dizendo: «Vai, irmão, tira um cavalo do estábulo, dirige-te aos
prados sagrados e investiga que gente grosseira lá se instalou sem a minha permissão
e acendeu lume nos prados sagrados». O primeiro-ministro dirigiu-se aos irmãos e
perguntou: «Que género de gente são vocês, reis ou príncipes, ou poderosos
campeões?». Buria Bogatyr, o Filho da Vaca, respondeu: «Somos campeões muito
poderosos e viemos cortejar a filha do rei. Comunica ao teu rei que ele tem que dar a
sua filha em casamento ao Príncipe Ivan; e se quiser recusar, que mande um
exército».
O rei perguntou à filha se queria casar com o Príncipe Ivan. Ela respondeu: «Não,
pai, não quero casar com ele; mande um exército». Imediatamente as cornetas soaram,
os címbalos retiniram, as tropas juntaram-se e foram para os prados sagrados. Era
uma tal companhia que o Príncipe Ivan e Ivan Filho da Criada tiveram medo.
Nesse momento Buria Bogatyr estava a cozinhar papa para o pequeno-almoço e a
mexê-lo com uma colher. Saiu e com um só golpe de colher derrubou metade do
exército. Voltou para dentro, mexeu a papa, tornou a sair e deu outro golpe de colher
que derrubou a outra metade, deixando só um zarolho e um cego. «Digam ao vosso
rei», disse-lhes ele, «que tem que dar a sua filha, a Princesa Maria, em casamento ao
Príncipe Ivan. E se recusar, que mande vir outro exército e que venha ele próprio a
comandá-lo». O zarolho e o cego chegaram ao rei e disseram: «Vossa Majestade,
Buria Bogatyr mandou-nos dizer-vos que tendes que dar a vossa filha em casamento
ao Príncipe Ivan. Ele estava pavorosamente zangado e dizimou as vossas tropas com
uma colher». O rei suplicou à sua filha: «Minha amada filha, por favor casa com o
Príncipe Ivan». A filha disse: «Não temos escolha, tenho que casar com ele. Mande
uma carruagem buscá-lo».
Assim, o rei mandou uma carruagem e ficou à espera frente ao portão. O Príncipe
Ivan veio com os seus dois irmãos. O rei recebeu-os cortesmente e amavelmente, com
música a tambores, e sentou-os em mesas de carvalho coberta com toalhas aos
quadrados, nas quais se encontravam doces carnes e fortes bebidas. Então Buria
Bogatyr sussurrou ao Príncipe Ivan: «Atenção, Príncipe Ivan, quando a princesa pedir
licença para se ausentar uma hora, diz-lhe: “Podes ir mesmo se for durante duas
horas”». Passado um bocado, a princesa veio dizer ao Príncipe Ivan: «Príncipe Ivan,
permita-me ir ao outro quarto mudar o meu vestido». O Príncipe Ivan deixou-a ir. Ela
foi rapidamente para os quartos e Buria Bogatyr seguiu-a discretamente. A princesa
bateu contra a soleira da porta, transformou-se em gaivota e voou para o mar. Buria
Bogatyr bateu no chão, transformou-se em falcão e voou atrás dela. A princesa
chegou à beira-mar, aterrou, transformou-se numa bela donzela e disse: «Avô, avô,
barba dourada, barba prateada, deixai-me falar convosco!». O avô dela emergiu do
mar azul e disse: «Minha netinha, o que queres?». «O Príncipe Ivan está a cortejar-
me. Eu não quero casar-me com ele, mas todo o nosso exército está dizimado. Avô,
dai-me três pêlos da vossa barba. Eu hei-de mostrá-los ao Príncipe Ivan e pedir-lhe-ei
que adivinhe de que raiz vem esta relva».
O avô deu-lhe três cabelos; ela tocou no chão, transformou-se em gaivota e voou
para casa. E Buria Bogatyr tocou no chão, tornou-se na mesma bela donzela e disse:
«Avô, avô, vinde cá fora outra vez; quero falar convosco, esqueci-me de vos dizer
uma coisa». Mal o avô pôs a cabeça fora da água, Buria Bogatyr pegou nela e
arrancou-a. Depois tocou no chão, transformou-se numa águia e voltou ao palácio
antes ainda da princesa. Chamou o Príncipe Ivan à entrada do palácio e disse-lhe:
«Príncipe Ivan, toma esta cabeça. A princesa há-de mostrar-te três pêlos e pedir-te-á
que adivinhes donde vem essa relva; como resposta, mostra apenas esta cabeça».
Um pouco mais tarde, a princesa veio ao Príncipe Ivan, mostrou-lhe os três pêlos e
disse: «Príncipe, adivinha de que raiz vem esta erva. Se adivinhares, eu caso contigo;
senão, não me leves a mal a recusa». O Príncipe Ivan tirou a cabeça de dentro do seu
casaco e pousou-a na mesa, dizendo: «Eis a tua raiz». A princesa pensou para si
mesma: «Eles são cavaleiros valentes!». E então disse: «Por favor, Príncipe Ivan,
deixa-me mudar de vestido noutro quarto. O Príncipe Ivan deixou-a ir. Ela foi à
soleira da porta, tocou o solo, tornou a transformar-se em gaivota e voou de novo para
o mar. Buria Bogatyr tirou a cabeça ao príncipe, foi ao pátio, bateu com a cabeça na
soleira e disse: «Onde estavas antes, fica agora também». A cabeça voou, chegou ao
local antes da princesa e reintegrou o corpo.
A princesa parou na orla do mar, bateu no chão, transformou-se numa bela donzela
e disse: «Avô, avô, saí cá fora e falai comigo!». O avô apareceu dizendo: «Minha
netinha, o que me queres?». «A vossa cabeça não estava no nosso palácio?». «Não
sei, neta, eu estava profundamente adormecido». «Não, avô, a vossa cabeça estava
lá». «Então deve ter sido arrancada na última vez que vieste aqui falar comigo». Ela
tocou o chão, transformou-se em gaivota e voou para casa. Mudou de vestido e
sentou-se ao lado do Príncipe Ivan.
No dia seguinte foram à igreja para casarem como deve ser. Após terem
regressado, Buria Bogatyr levou o Príncipe Ivan para o seu quarto. Mostrou-lhe três
paus — um de ferro, um de cobre e um de estanho — e disse-lhe: «Se quiseres ficar
vivo, deixa-me deitar-me com a princesa em teu lugar». O príncipe consentiu. O rei
conduziu o jovem casal para a cama nupcial. Nesse momento Buria Bogatyr tomou o
lugar do príncipe, deitou-se e começou a ressonar. A princesa pôs uma perna em cima
dele, depois outra, e começou a abafá-lo com uma almofada. Buria Bogatyr saltou de
debaixo dela, pegou no pau de ferro e começou a espancá-la. Bateu-lhe até ter partido
o pau. Depois pegou no de cobre e também o partiu. Depois começou a bater-lhe com
o pau de estanho. A princesa começou a implorar-lhe e jurou juras solenes em como
nunca mais tentaria tal coisa. Na manhã seguinte Buria Bogatyr levantou-se, foi ter
com o Príncipe Ivan e disse: «Agora, irmão, vai ver como eu domei bem a tua mulher.
Os três paus que preparei estão partidos. Doravante vivam felizes juntos, amem-se e
não se esqueçam de mim».3
3 Afanas'ev, Aleksandr. Russian Fairy Tales. New York: Pantheon, 1980.
Tiago e Guilherme (variante irlandesa)
Texto
Era uma vez um rei que andava muito triste por não ter um filho, até que
finalmente decidiu consultar o seu conselheiro principal. E este disse-lhe: «É bastante
fácil desde que façais o que vos vou dizer. Mandai alguém a tal lugar apanhar um
peixe. E quando este for trazido, dai-o a comer à rainha vossa esposa».
O rei seguiu o conselho e o peixe foi apanhado e trazido. Deu-o ao cozinheiro e
pediu-lhe que o grelhasse, mas com muito cuidado para não suscitar nenhuma bolha
no peixe. Mas é impossível grelhar um peixe sem que a pele empole. Assim, sucedeu
que uma bolha apareceu na pele. A cozinheira pôs lá o dedo para a acamar e depois
levou o dedo à boca para o arrefecer, pelo que provou o peixe. Depois mandou-o à
rainha, que o comeu. E os restos foram deitados para o pátio, onde havia uma égua e
um galgo que os comeram.
Antes do fim do ano a rainha teve um filho, a cozinheira teve outro, a égua teve
três potros e o galgo teve três cachorros. Os dois jovens foram mandados por um
tempo ser criados noutro lado e, quando voltaram, eram tão parecidos que era
impossível dizer qual era o filho da rainha e qual o da cozinheira. E a rainha andava
vexada com isto e convocou o seu conselheiro principal e disse-lhe: «Diz-me alguma
maneira de eu saber qual é o meu próprio filho, já que não quero dar da mesma
comida e bebida ao filho da cozinheira e ao meu». Respondeu o conselheiro: «É fácil
saber isso se fizerdes o que vos vou dizer. Ide para dentro e ficai junto da porta pela
qual eles entrarão. Quando vos virem, o vosso filho fará uma vénia mas o da
cozinheira apenas rirá».
Portanto ela fez isso mesmo e quando o filho lhe fez a vénia os criados puseram-
lhe uma marca, para que ela o conhecesse doravante. E quando depois estavam todos
sentados a jantar, disse ela a Tiago, que era o filho do cozinheiro: «É já tempo de te
ires embora, pois não és meu filho». E o próprio filho, ao qual chamaremos
Guilherme, disse: «Não o mande embora, não somos nós irmãos?». Mas Tiago disse:
«Há muito tempo que me teria ido embora se soubesse que esta casa não pertence aos
meus pais». E nada do que Guilherme lhe pudesse dizer o demoveu. Mas antes de
Tiago partir, estavam ambos perto dum poço no jardim e ele disse a Guilherme: «Se
algo vier a acontecer-me, a água no topo deste poço ficará em sangue e a água
debaixo ficará mel».
Então pegou num dos cachorros e num dos dois cavalos nascidos de a égua ter
comido o peixe. E o vento que vinha atrás dele não o conseguia apanhar mas ele
apanhou o vento que ia à frente. E seguiu até chegar à casa dum tecelão; aí pediu
alojamento, que lhe foi concedido. Depois seguiu viagem até chegar à casa dum rei e
bateu à porta para perguntar: «Precisa dum criado?». O rei respondeu: «Só preciso
dum rapaz que leve as vacas a pastar todas as manhãs e as traga de volta à noite para
serem ordenhadas». «Farei isso para si», disse Tiago. Portanto o rei contratou-o.
De manhã Tiago foi mandado com vinte e quatro vacas. O lugar para onde o
mandaram não tinha uma única folha de erva pois estava cheio de pedras. Portanto
Tiago começou a procurar um sítio onde houvesse melhor erva. Passado um bocado,
viu um campo cheio de boa erva que pertencia a um gigante. Então atirou abaixo um
pedaço de muro para que as vacas pudessem entrar, entrou também e trepou a uma
macieira, começando a comer as maçãs. Então o gigante chegou ao campo. «Fi-fó-
fum», disse ele, «cheira-me ao sangue dum irlandês. Já te estou a ver aí em cima da
árvore. És demasiado grande para comer duma só vez, mas demasiado pequeno para
duas porções. Assim, acho que só me resta fazer de ti rapé para o meu nariz».
Respondeu Tiago do alto da árvore: «Podias ser tão generoso como és forte». «Sai
daí, anãozinho», disse o gigante, «ou terei que te arrancar mais à árvore». Portanto
Tiago desceu. O gigante perguntou-lhe: «Preferes que enterremos facas tintas de
sangue no coração um do outro, ou que nos combatamos sobre chão duro vermelho de
sangue?». «Bem, lutar sobre chão duro vermelho de sangue é aquilo a que estou
habituado na minha terra», disse Tiago, « os teus pés imundos hão-de enterrar-se e os
meus pés hão-de subir». E começaram a lutar. Amoleceram o chão que era duro e
endureceram o que era mole e fizeram fontes brotar através do chão verde.
Continuaram nisto pelo dia fora, nenhum conseguindo sobrelevar o outro, até que um
passarinho poisou num galho ao lado de Tiago e lhe disse: «Se não acabares com ele
até ao pôr do sol, ele acaba contigo». Então Tiago usou toda a sua força e obrigou o
gigante a ajoelhar-se. «Poupa-me a vida», disse o gigante, «que eu dou-te as três
melhores dádivas». «O que são elas?». «Uma espada invencível, um fato que quando
se veste se pode ver toda a gente sem que ninguém nos veja e um par de sapatos que
fazem correr mais depressa que o vento». «Onde estão?» perguntou Tiago. «Naquela
porta vermelha na colina». Então Tiago foi buscá-las. «Onde é que hei-de
experimentar a espada?», disse Tiago. «Experimenta-a naquele tronco de árvore velho
e feio», disse o gigante. «Não vejo nada mais feio e preto do que a tua cabeça», disse
Tiago. E, dizendo isto, cortou com um golpe a cabeça do gigante, a qual foi pelo ar;
então apanhou-a na ponta da espada e rachou-a em duas metades. «Foi bom para ti
que eu não me tenha tornado a juntar ao corpo», disse a cabeça, «ou nunca mais terias
conseguido cortar-me de novo». «Não te dei hipótese», respondeu Tiago. E levou
consigo o grande fato.
Portanto à noite levou as vacas de volta a casa e toda a gente se maravilhou com o
leite que elas deram nessa noite. E quando o rei estava sentado ao jantar com a
princesa e os outros, disse: «Acho que esta noite só ouço dois urros dali em vez de
três».
Na manhã seguinte Tiago foi de novo com as vacas e viu outro campo cheio de
relva e derrubou o muro para deixar as vacas entrarem. Tudo se passou como no dia
anterior, mas o gigante que veio tinha duas cabeças. Lutaram e o passarinho veio e
falou com Tiago como no dia anterior. E quando Tiago tinha feito o gigante ajoelhar-
se, este disse-lhe: «Poupa-me a vida, que eu dou-te a melhor coisa que tenho». «O que
é isso?» perguntou Tiago. «É um fato que podes pôr e ver toda a gente, sem que
ninguém possa ver-te. «Onde está?». «Está dentro daquela porta vermelha na colina».
Portanto Tiago foi lá e trouxe o fato. E depois cortou as duas cabeças do gigante e
apanhou-as na queda e fez delas quatro metades. E elas disseram que era bom para ele
não lhes ter dado tempo para reintegrar o corpo. Nessa noite as vacas, quando
voltaram para casa, deram tanto leite que todas as bilhas ficaram cheias.
Na manhã seguinte Tiago tornou a sair e tudo sucedeu como antes. Desta vez o
gigante tinha quatro cabeças e Tiago fez delas oito metades. E o gigante tinha-lhe dito
que fosse a uma portazinha azul na colina e aí ele arranjou um par de sapatos que
quando se os calçava se andava mais rápido que o vento. Nessa noite quando as vacas
voltaram para casa deram tanto leite que não havia bilhas suficientes. Assim, deram
leite aos rendeiros e aos pobres que passassem pela estrada e o resto foi deitado pela
janela fora. Eu própria estava a passar por lá e provei o leite.
Nessa noite o rei perguntou a Tiago: «Porque é que as vacas andam a dar tanto
leite? Andas a levá-las a outros pastos?». «Não», disse Tiago, «mas tenho um bom
cajado e de cada vez que elas querem parar de pastar ou deitar-se eu dou-lhe
cajadadas para que pulem e saltem sobre paredes, pedras e regos. É assim que se faz
vacas darem muito leite». Nessa noite, o rei disse ao jantar: «Não ouço urros
nenhuns».
Na manhã seguinte o rei e a princesa foram à janela observar como Tiago procedia
ao chegar ao campo. Como Tiago sabia que eles estavam a vê-lo, arranjou um pau e
começou a bater nas vacas, que começaram a pular e a saltar sobre pedras e muros e
regos. «Tiago disse-nos a verdade», disse então o rei.
Havia naquele tempo uma enorme serpente que aparecia de sete em sete anos e
tinha que obter uma filha de rei para comer, a não ser que houvesse algum bom
homem que combatesse por ela. E daquela vez era a princesa da casa onde Tiago
estava que tinha que ser oferecida. E o rei tinha andado a alimentar um rufia debaixo
da terra durante sete anos e podem crer que este obtinha o melhor de tudo o que havia
para estar pronto para combatê-la.
Quando chegou o tempo, a princesa saiu e o rufia foi com ela para a costa e quando
lá chegaram, o que fez ele senão atá-la a uma árvore, para que a serpente pudesse
comê-la facilmente e sem demoras, enquanto ele próprio se refugiou num arbusto de
azevinho. Tiago sabia o que se passava, já que a princesa lho tinha dito e lhe tinha
pedido ajuda
antes do fim do ano, mas ele tinha recusado. No entanto, agora saiu e vestiu o fato que
tinha obtido do primeiro gigante e chegou ao sítio onde a princesa estava. Mas esta
não o reconheceu. «Estará bem que uma princesa esteja atada a uma árvore?»
perguntou Tiago. «Não, não está», disse ela. E contou-lhe o que se tinha passado e
como a serpente vinha tomá-la. «Se me deixardes dormir um bocado com a cabeça no
vosso colo», disse Tiago, «podeis acordar-me quando ela chegar». Portanto ele fez
isto mesmo e ela acordou-o quando viu a serpente a vir. E Tiago, levantando-se,
combateu-a e expulsou-a de novo para o mar. Então cortou a corda que a atava e foi-
se embora. Consequentemente, o rufia desceu da árvore e levou a princesa ao rei, a
quem disse: «Hoje pedi a um amigo que viesse combater a serpente, estando eu um
pouco timorato depois de ter passado tanto tempo debaixo da terra, mas amanhã eu
próprio a combaterei».
No dia seguinte tornaram a sair e a mesma coisa aconteceu — o rufia atou a
princesa onde a serpente pudesse chegar a ela facilmente e foi ele próprio esconder-se
no azevinho. Então Tiago pôs o fato que tinha tirado ao segundo gigante e saiu e a
princesa não o reconheceu mas disse-lhe tudo o que se tinha passado no dia anterior e
como um jovem que ela não conhecia tinha vindo salvá-la. Então Tiago perguntou-lhe
se podia estender-se e dormir um pouco com a cabeça no colo dela para que ela
pudesse acordá-lo. E tudo se passou como no dia anterior. E o rufia entregou-a ao rei
e disse ter trazido outro dos seus amigos para lutar por ela nesse dia.
No dia seguinte ela foi trazida para a costa como anteriormente e muita gente
juntou-se para ver a serpente que ia levar consigo a filha do rei. E Tiago vestiu as
roupas que tinha trazido do terceiro gigante. Ela não o reconheceu e falaram como das
outras vezes. Mas quando ele adormeceu desta vez, ela pensou que iria assegurar-se
de poder tornar a encontrá-lo. Com uma tesoura cortou uma madeixa de cabelo dele e
enrolou-a e guardou-a. E fez uma outra coisa, que foi tirar-lhe um dos sapatos.
E quando ela viu a serpente a vir, acordou-o. Ele disse: «Desta vez vou pôr a
serpente de tal maneira que ela não há-de comer mais filhas de rei». Portanto tirou a
espada que havia obtido do gigante e espetou-a na parte detrás do pescoço da
serpente, de tal modo que sangue e água se elevaram e entraram oitenta quilómetros
pela terra adentro, e acabou com ela. E então foi-se embora e ninguém viu para que
lado é que ele foi. E o rufia trouxe a princesa ao rei e disse tê-la salvo. E foi ele o alvo
de todas as atenções e tornou-se o braço-direito do rei.
Mas quando foi preparada a festa do casamento, a princesa tirou para fora a
madeixa de cabelo que tinha e disse que só casaria com o homem cujo cabelo se
ajustasse àquela. E também mostrou o sapato e disse que só casaria com aquele cujo
pé também se ajustasse àquele sapato. O rufia tentou pôr o sapato, mas nem o dedo
grande do seu pé lá cabia, nem o seu cabelo correspondia nem de longe ao pedaço que
ele tinha cortado do homem que a tinha salvo.
Então o príncipe deu um grande baile para juntar todos os notáveis do reino e
tentar ver se o sapato se ajustaria a algum. E todos começaram a ir a carpinteiros e
endireitas cortar pedaços do pé a ver se conseguiriam calçar o sapato, mas em vão;
nem um conseguiu calçá-lo.
Então o rei foi ao seu conselheiro principal e perguntou-lhe o que podia fazer. E
este aconselhou que se desse um outro baile, aberto aos pobres como aos ricos.
Portanto deu-se o baile e muitos foram os que a ele compareceram, mas o sapato não
servia a nenhum. E o conselheiro principal disse: «Estão aqui todos os da casa?». O
rei respondeu: «Estão todos aqui menos o rapaz que se ocupa das vacas; mas eu não
gostaria que ele comparecesse aqui».
Tiago estava nessa altura no pátio abaixo, ouviu o que o rei disse e ficou muito
zangado. Pegou na espada e correu pelas escadas acima para cortar a cabeça ao rei.
Mas o homem que guardava o portão interceptou-o antes que ele pudesse chegar ao
rei e acalmou-o. Quando Tiago chegou ao topo das escadas a princesa viu-o e gritou e
caiu-lhe nos braços. Ele experimentou o sapato, que lhe serviu, assim como se viu que
o cabelo dele era igual à madeixa que havia sido cortada. Pois então eles casaram-se e
foi dada uma grande festa durante três dias e três noites.
Ao fim desse tempo, um veado com campainhas a tocar veio até à janela e
chamou: «Aqui está a presa; onde estão o caçador e o seu cão?». Portanto, quando
Tiago ouviu isto pegou no seu cavalo e no seu cão e foi caçar o veado. Quando este
estava no vale ele estava na colina; quando ele estava na colina estava Tiago no vale.
Isto continuou durante todo o dia e, quando caiu a noite, o veado foi a um bosque.
Tiago seguiu-o para dentro do bosque e só lá viu uma cabana de terra. Ele entrou e
viu lá uma velha com cerca de duzentos anos, sentada sobre o fogo.
«Viu um veado passar por aqui?» perguntou Tiago. «Não», disse ela, «mas agora é
demasiado tarde para perseguires um veado, portanto pernoita aqui». «O que faço
com o meu cavalo e o meu cão?», perguntou Tiago. «Aqui tens dois fios de cabelo»,
disse ela, «ata-os com eles». Portanto Tiago saiu e atou o cavalo e o cão. Quando
tornou a entrar, a velha disse: «Mataste os meus três filhos e agora vou eu matar-te».
Pôs um par de luvas de boxe, cada uma com um peso de nove pedras e cheias de
pregos protuberantes de quarenta centímetros cada. Começaram a lutar e Tiago estava
a perder. «Socorro, cão!», chamou Tiago. «Aperta, cabelo», chamou a velha. E o fio
de cabelo em torno do pescoço do cão estrangulou-o. «Socorro, cavalo!», chamou
Tiago. «Aperta, cabelo», chamou a velha. E o fio de cabelo em torno do pescoço do
cavalo estrangulou-o. Então a velha acabou com Tiago e atirou-o para fora da porta.
Voltemos a Guilherme. Este estava no jardim um dia e olhou para o poço e viu
água no topo com mel em baixo. Portanto entrou de novo em casa e disse à mãe:
«Não tornarei a comer duas refeições à mesma mesa ou a dormir duas noites na
mesma cama até saber o que aconteceu ao Tiago».
Então pegou no outro cavalo e cão e partiu, passando por colinas onde nunca o
galo canta nem a trompa soa nem o Diabo faz soar a sua corneta. E finalmente chegou
à casa da tecelã e quando entrou esta diz-lhe: «Sê bem vindo e posso dar-te agora
melhor tratamento que o que te dei da última vez que passaste aqui», porque ela
pensava estar a falar com Tiago, de tal modo eles eram idênticos. «Óptimo», disse
Tiago para si próprio, «Tiago passou por aqui». E deu à tecelã uma boa quantidade de
ouro antes de seguir caminho de manhã.
Depois seguiu em frente até chegar a casa do rei. Estando ele à porta, a princesa
veio a correr pelas escadas abaixo. «Sê bem vindo de novo». E todas as pessoas
diziam: «É de espantar que se tenha ido embora caçar três dias após o seu casamento
e que tenha ficado tanto tempo longe». Portanto ele ficou nessa noite com a princesa,
que nem por um momento duvidou que estivesse com o seu marido.
E de manhã veio o veado com campainhas a tocar e chamou: «A presa está aqui,
onde estão o caçador e os cães?». Então Tiago levantou-se e pegou no seu cavalo e no
seu cão e seguiu o veado por montes e vales até que chegaram a um bosque, no qual
viu apenas a cabana de terra e a velha sentada perto do fogo. Ela sugeriu-lhe que
pernoitasse ali e deu-lhe dois cabelos para atar os seus animais. Mas Guilherme era
mais esperto do que Tiago e, antes de sair, atirou à socapa os cabelos para o fogo.
Quando entrou a velha disse: «O teu irmão matou os meus três filhos e eu matei-o e
agora vou-te matar também». E pôs as luvas e começaram a lutar.
Então Guilherme chamou: «Socorro, cavalo». «Aperta, cabelo», disse a velha.
«Não posso, estou no lume», disse o cabelo. E o cavalo entrou e deu-lhe um coice.
«Socorro, cão», disse então Guilherme. «Aperta, cabelo», disse a velha. «Não posso,
estou no lume», disse o segundo cabelo. Então o cão ferrou-lhe o dente e Guilherme
derrubou-a e ela pediu clemência. «Poupa-me a vida e eu digo-te onde podes tornar a
encontrar o teu irmão e o seu cavalo e o seu cão». «Onde é isso?» perguntou
Guilherme. Vês essa varinha em cima do fogo?», disse ele. «Retira-a e vai lá fora,
onde verás três pedras verdes. Bate-lhes com a varinhas, pois elas são o teu irmão e o
seus cavalo e o seu cão, que hão-de tornar à vida». «Vou, mas antes disso faço de ti
uma pedra verde», disse Guilherme enquanto lhe cortava a cabeça com a espada.
Depois saiu e bateu nas pedras; e aí estavam Tiago e o seu cavalo e o cão, sãos e
salvos. E começaram a bater noutras pedras em redor e saíram delas homens que
tinham sido transformados em pedras, centenas e milhares deles.
Então foram para casa, mas pelo caminho tiveram alguma altercação ou alguma
discussão juntos, pois Tiago ficou furioso quando soube que Guilherme havia passado
a noite com a sua mulher e bateu neste com a varinha, tornando-o numa pedra verde.
E voltou para casa, mas a princesa viu que ele andava a magicar alguma coisa e então
ele confessou: «Matei o meu irmão». Então ele voltou atrás e devolveu-o à vida e
viveram felizes para sempre. Tiveram crianças às carradas e atiravam-nas fora às
pazadas. Uma vez eu ia a passar por lá e eles convidaram-me a entrar e deram-me
uma chávena de chá.4
4 Yeats, W. B. The Celtic Twilight. London: A. H. Bullen, 1902.