o espantalho e o seu criado - philip pullman

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • PHILIP PULLMAN

  • Traduo de Maria Georgina SeguradoEDITORIAL PRESENAFICHA TCNICATtulo original: The Scarecrow and his ServantAutor: Philip PullmanTraduo: Maria Georgina SeguradoCapa: Ins do CarmoComposio, impresso e acabamento: Multitipo Artes Grficas, Lda.1 edio, Lisboa, Fevereiro, 2007Depsito legal n 252 994/07

  • Para Freddie

  • 1O RAIO

  • Um dia, o velho Senhor Pandolfo, que no andava se sentindo nada bem, decidiu que chegarao U momento de fazer um espantalho. Os pssaros andavam a incomod-lo. Bem vistas ascoisas, o seu reumatismo andava a incomod-lo, os soldados andavam a incomod-lo, o tempo

  • andava a incomod-lo e at os seus primos andavam a incomod-lo. Tudo comeava a ser umpouco demais. At o seu velho corvo de estimao fugira.

    No podia fazer nada em relao ao reumatismo, nem aos soldados, nem aos primos, queeram o maior de todos os problemas. Eram uma famlia numerosa, os Buffalonis, e queriam seapoderar de suas terras e desviar as nascentes e riachos, secar os poos e montar uma indstriade fabricao de pesticida, raticida e inseticida.

    O velho Senhor Pandolfo no conseguia mais aguentar todos aqueles problemas, mas achouque, pelo menos, podia fazer alguma coisa em relao aos pssaros.

    Ento, preparou um elegante espantalho, com um nabo grande e slido no lugar da cabea eum cabo de vassoura grosso como espinha dorsal, vestiu-lhe um velho casaco xadrez e encheu-obem de palha. Depois enfiou uma carta l dentro, envolta num oleado por uma questo desegurana. Pronto disse. Assim se recordar de sua funo e tambm do lugar a quepertence. Procure ser corts, corajoso, honrado e bondoso. E que tenha muita sorte.

    Enfiou o espantalho no meio da seara de trigo, e foi para casa se deitar, porque no estava sesentindo nada bem. Naquela noite apareceu outro agricultor que roubou o espantalho por serpreguioso demais para ele mesmo fazer um. E, na noite seguinte, apareceu algum que oroubou de novo.

    Assim, pouco a pouco, o espantalho foi mudando do lugar de onde havia sido feito e ficandocada vez mais esfarrapado e rasgado, e acabou perdendo grande parte da elegncia que tivera napoca em que o Senhor Pandolfo o montara. Estava no meio de um campo lamacento e ali ficou.Mas, uma noite, houve uma tempestade. Foi muito violenta, e todos na zona estremeciam,tremelicavam e sobressaltavam-se quando os troves soavam como tiros de canho e osrelmpagos fustigavam como chicotes. O espantalho estava ali ao vento e na chuva, alheio atudo.

    E assim podia ter ficado; mas depois aconteceu uma daquelas chances de uma em ummilho que equivale a ganhar na lotaria. Todas as suas molculas, tomos e partculaselementares e outras coisas mais estavam alinhadas exatamente da forma certa para se ativaremquando o raio o atingiu, o que aconteceu s duas da manh, abrindo a silvar pela cabea de nabo,descendo pelo cabo de vassoura abaixo at a lama.

    O Espantalho piscou os olhos de surpresa e olhou sua volta. No havia muito para ver a noser um campo de lama, e pouca luz para v-lo exceto os clares dos relmpagos.

    Mesmo assim, no se avistava um nico pssaro. Excelente disse o Espantalho.Por acaso, naquela mesma noite, um rapazinho chamado Jack abrigara-se num celeiro no

    muito longe dali. A trovoada estava to prxima que acordou em sobressalto. A princpio, achouque fosse um tiro de canho e sentou-se, aterrorizado, com os olhos bem arregalados.

    No conseguia pensar em nada pior do que soldados e armas; se no fossem os soldados,ainda teria uma famlia, uma casa e uma cama onde dormir.

    Mas, enquanto estava ali sentado com o corao aos pulos, ouviu a chuvarada caindo notelhado e percebeu que o estrondo fora do trovo e no de uma arma de fogo. Suspirou de alvioe tornou a deitar-se, tremendo, espirrando e revirando-se no feno para tentar se aquecer, at queacabou adormecendo.

    De manh a tempestade passara, e o cu estava azul-brilhante. Jack voltou a acordar,

  • sentindo-se mais enregelado do que nunca, e tambm com fome. Porm, sabia como procurarcomida, e no tardou a apanhar alguns gros de trigo, duas cabeas de nabo e uma cenouramole, e sentou-se porta do celeiro, ao sol, para com-los.

    Podia ser pior comentou com os seus botes. Comeu muito devagar para fazer render,e depois ficou ali sentado, se aquecendo. No tardaria a vir algum para expuls-lo, mas nomomento estava seguro.

    Ouviu ento uma voz chamar do outro lado dos campos. Jack ficou curioso, de modo que selevantou e protegeu os olhos para observar. Os gritos vinham de algum lugar no campo do outrolado da estrada e, como no tinha mais nada para fazer, levantou-se e avanou nessa direo.

    Os gritos provinham de um espantalho, no meio do campo mais enlameado que j se vira,que agitava furiosa-mente os braos e berrava a plenos pulmes, todo inclinado.

    Socorro! gritava ele. Acudam-me! Devo estar enlouquecendo comentou Jack consigo mesmo. Mesmo assim, olhem

    para aquele pobre desgraado... vou ajud-lo de qualquer forma. Ainda mais louco do que eu.Avanou ento pelo campo enlameado e chegou ao meio, onde o Espantalho aguardava.Para dizer a verdade, Jack sentia-se um pouco nervoso, porque no todo dia que

    encontramos um Espantalho que fala conosco. Ora diga-me, meu jovem comeou o Espantalho, assim que Jack se aproximou o

    suficiente para ouvir , h pssaros por a? Corvos, por exemplo? No consigo ver atrs de mim.Esto escondidos?

    Tinha uma voz forte e sonora. A cabea era feita de um grande nabo nodoso, com uma fendalarga para a boca, uma raiz comprida e fina no lugar do nariz e duas pedrinhas brilhantes no lugardos olhos. Tinha um chapu de palha esfarrapado, agora bastante chamuscado, um cachecol del encharcado, um velho casaco xadrez cheio de buracos, e os braos, feitos com cabos deancinho, tinham luvas com dedos de palha, uma luva de couro e a outra de l. Vestia tambmumas calas pudas, mas, como s tinha uma perna, a que estava vazia pendia a seu lado. Tudotinha a cor de lama. Jack coou a cabea e olhou sua volta.

    No respondeu , no vejo corvos aqui.Nem qualquer outro pssaro. Um excelente trabalho comentou o Espantalho. Agora quero deslocar-me, mas

    preciso de outra perna. Se me arranjasse uma, ficaria muito agradecido. Igual a esta, s que parao outro lado acrescentou, e levantou a perna das calas delicadamente para mostrar um paugrosso firmemente cravado na terra.

    Est bem condescendeu Jack. Posso fazer isso. Partiu ento na direo da mata aofundo do campo e saltou pela vegetao rasteira procura do tipo certo de pau. No tardou aencontrar um e levou-o ao Espantalho.

    Deixe-me ver disse o Espantalho. Segure-o a meu lado. Isso mesmo. Agora enfiedentro da perna das minhas calas.

    A extremidade do pau estava partida e lascada, e no foi fcil enfi-la pela perna da calaencharcada e enlameada, mas finalmente Jack conseguiu subi-lo todo, e depois deu um pulo,porque o sentira vibrar na mo.

    Largou-o, e a nova perna desceu sozinha at o lado da outra, mas, assim que o Espantalhotentou se mexer, o novo p ficou preso tal como o primeiro. Quanto mais se debatia, mais se

  • afundava.Por fim parou, e olhou para Jack. Foi espantosa a expresso que conseguiu transmitir com a

    boca rasgada e os olhos de pedra. Meu jovem disse ele , tenho uma proposta a fazer. Estamos os dois aqui, voc, um

    moo honesto e prestativo, e eu, um Espantalho de iniciativa e talento. O que diria se teoferecesse o cargo de meu criado particular?

    E quais seriam as minhas funes? indagou Jack. Acompanhar-me por esse mundo, ir buscar e trazer coisas, lavar, cozinhar e atender s

    minhas necessidades. Em troca, no tenho nada para oferecer seno e-moo e glria. possvelque passemos fome, mas no faltaro aventuras. Ento, meu rapaz? O que me diz?

    Aceito respondeu Jack. No tenho mais nada para fazer seno passar fome, enenhum lugar onde viver seno valas e celeiros vazios. Por isso posso muito bem ter umemprego, e obrigado, Senhor Espantalho, aceito.

    O Espantalho estendeu a mo, e Jack apertou-a calorosamente. A sua primeira tarefa tirar-me deste atoleiro ordenou o Espantalho.Ento, Jack levantou da lama as duas pernas do Espantalho e levou-o para a estrada. No

    pesava quase nada. Para que lado vamos? perguntou Jack. Olharam para ambos os lados. Numa direo

    havia uma flores-ta, e na outra uma srie de montes. No se avistava ningum. Por ali! disse o Espantalho, apontando para os montes.

    E l se foram, com o sol a incidir-lhes nas costas, e os montes verdejantes pela frente.Numa fazenda no muito atrs deles, um advogado explicava algo a um agricultor. O meu nome Cercorelli anunciou , e sou especialista em encontrar coisas para os

    meus clientes, a distinta e muito respeitosa Companhia Buffaloni, de Bela Fontana.O agricultor ficou embasbacado. Era um sujeito preguioso e enrolado, de rosto

    congestionado, e estava com medo daquele advogado magro e melfluo, todo vestido de preto. Oh! Os Buffalonis! Sim, certamente, Senhor Cercorelli afirmou , em que posso ser

    til? Qualquer coisa! s dizer! um assunto de pouca importncia disse o advogado , mas de valor sentimental para

    os meus clientes. Diz respeito a um espantalho. Foi feito por um primo afastado do Presidente daCompanhia, e parece ter desaparecido do seu local de origem. O meu cliente, o Senhor GiovanniBuffaloni, um homem muito generoso, que d valor famlia, e gostaria de recuperar oespantalho para a sua casa original, em memria do querido primo que o fez.

    O advogado folheou alguns papis, e o agricultor passou o dedo pelo lado de dentro docolarinho da camisa e engoliu em seco.

    Bem, eu, hum... disse com voz fraca. At parece que os espantalhos tm a capacidade de se movimentar! aludiu o Senhor

    Cercorelli, sorrindo de forma sinistra. Este sujeito tem andado a vaguear. J o localizei emvrias fazendas e acabo de descobrir que se encaminhou para a sua.

    Eu... h... eu conheo o espantalho que menciona confessou o agricultor. Afanei...comprei-o de outra pessoa, que j no precisava dele.

    Oh, excelente. Podemos ir ver se ele mesmo? Bem, claro, faria tudo pelos Buffalonis, gente importante, e no gostaria de v-los

  • aborrecidos, mas...Bem, ele desapareceu. Desapareceu... outra vez? insurgiu-se o advogado, semicerrando os olhos. Sa esta manh para... h... lhe dar uma limpada, e ele no estava l. Mas ateno, a noite

    passada houve um grande temporal. Pode ter sido levado pelo vento. Oh, no. Isso profundamente lamentvel. O Senhor Buffaloni no confia em pessoas que

    no cuidam do que lhe pertence. Acho que posso afirmar que a sua desiluso ser considervel.O agricultor tremia, alarmado. Se eu souber alguma coisa do espantalho disse , seja o que for, aviso-o de imediato. Acho que seria muito sensato respondeu o Senhor Cercorelli. Aqui tem o meu

    carto. Agora mostre-me o campo de onde o espantalho desapareceu.

  • 2OS SALTEADORES

    O Espantalho e o seu criado caminhavam a um bom ritmo. No caminho, passaram por um Ocampo de couves no meio do qual se encontrava outro espantalho, mas este era um sujeitopesaroso cujos braos pendiam frouxos ao lado do corpo.

    Muito bom dia, senhor! exclamou o Espantalho, acenando-lhe todo animado.Mas o espantalho no campo ignorou-o. Viu explicou o Espantalho a Jack , ali est um homem concentrado no seu trabalho.

    Est muito compenetrado. Muito bem. Que belas couves comentou Jack.Abandonou com relutncia as couves e correu para alcanar o Espantalho, que avanava l

    na frente com ar vitorioso. No tardaram a constatar que a estrada ia ficando cada vez maisngreme e os campos mais pedregosos, e por fim no havia sequer campos e a estrada eraapenas uma trilha. Fazia muito calor.

    A menos que encontremos para comer e beber muito em breve afirmou Jack , achoque bato as botas. Oh, haveremos de encontrar algo disse o Espantalho, batendo-lheamigavelmente no ombro. Tenho toda a confiana em voc. Alm disso, h nascentes,riachos e poos no lugar de onde venho. Fontes tambm. V por mim, encontraremos umanascente logo lo-o.

    Continuaram a caminhar, e o Espantalho referiu aspectos curiosos de geologia, como umarocha que parecia um pombo, e botnica, como um arbusto contendo um ninho de pisco, eentomologia, como um escaravelho que era preto como um corvo.

    Sabe muito sobre pssaros, amo comentou Jack. Dediquei a minha vida a observ-los, meu rapaz.Estou convencido de que seria capaz de espantar qualquer um. Aposto que sim. Oh! Oua! O que aquilo?Era o som de algum chorando e vinha da curva.Jack e o Espantalho apressaram-se e encontraram uma velhota sentada numa encruzilhada,

    com um cesto de provises todo espalhado no cho. Chorava e lamuriava-se a plenos pulmes. Minha senhora! exclamou o Espantalho, tirando muito cortesmente o chapu de palha.

    Que pssaro malvado lhe fez isso?A velhota levantou a cabea e engoliu ruidosamente em seco de espanto. A sua boca se abriu

    e fechou vrias vezes, mas no saiu qualquer som. Por fim, levantou-se e fez uma vnia, cheiade nervosismo.

    Foram os salteadores explicou , com sua licena, meu senhor. H um bando desalteadores terrveis que vive nestes montes, que rouba os viajantes e inferniza a vida dos pobres,e acabaram de passar a galope, jogando-me ao cho, e depois afastaram-se s gargalhadas, ospatifes covardes.

    O Espantalho ficou surpreso. Est me dizendo que isto foi obra de seres humanos? indagou ele.

  • Efetivamente, foi, excelncia respondeu a velhota. Jack, meu rapaz, diga-me que no verdade.Jack estava apanhando as coisas que tinham cado do cesto: mas, cenouras, um pedao de

    queijo, um po inteiro. Era muito difcil no ficar com gua na boca. Temo que sim, amo disse Jack. H muita gente malvada por a. Olhe... Vamos dar

    meia volta e seguir na outra direo. Nem pensar! respondeu o Espantalho com severidade. Temos que dar uma lio

    naqueles viles.Como se atrevem a tratar uma senhora desta forma vergonhosa? Olhe, minha senhora, d-

    me o brao...Foi to corts com a velhota e os seus modos to graciosos que ela no demorou a esquecer a

    sua cara de nabo nodoso e os braos de madeira toscos, e conversou com ele como se fosse umcavalheiro de carne e osso.

    Sim, senhor... desde que comearam as guerras, primeiro vieram os soldados e levaramtudo, e depois apareceram os salteadores, roubando, assassinando e levando o que queriam. Edizem que o chefe dos salteadores parente dos Buffalonis, por isso tambm tm proteopoltica. No sabemos para onde nos virar!

    Disse Buffalonis? No me agradam nada. O que so? Uma famlia muito poderosa, senhor. No ousamos aborrecer os Buffalonis. Bem, no tema mais disse o Espantalho com ar determinado. Ns vamos afugentar

    os salteadores, e eles nunca mais voltaro a incomod-la. Que bonitas mas comentou Jack, esperanoso, entregando o cesto velha. Oh, so mesmo respondeu ela. E o po tambm tem um aspecto saboroso. Se tem disse a velhota, enfiando-o com firmeza debaixo do brao. Que queijo apetitoso. Sim, gosto de um bom naco de queijo. Vai bem com um pouco de cerveja. No tem nenhuma cerveja a, no ? inquiriu Jack, olhando sua volta. No disse ela. Bem, vou andando. Obrigada, cavalheiro. E fez novamente uma

    vnia ao Espantalho, que tirou o chapu e se curvou.E l se foi.Jack suspirou e seguiu o Espantalho, que se afastava j em grandes passadas na direo do

    alto do monte. Quando l chegaram, viram um castelo em runas.Havia uma torre ainda de p, bem como parte das muralhas e ameias, mas tudo o mais rura

    e estava coberto de hera. Que lugar assustador afirmou Jack. No gostaria de meaproximar dele noite.

    Coragem, Jack! disse o Espantalho. Olha, h uma nascente. Eu no te disse? Beba vontade, meu rapaz! Era verdade. A nascente brotava das rochas ao lado do castelo e flua parauma pequena poa e, mal a viu, Jack soltou um grito de prazer e mergulhou o rosto na guagelada, engolindo, engolindo at deixar de sentir sede.

    Por fim emergiu, e ouviu o Espantalho chamar. Jack! Jack! Aqui! Olha!Jack correu pela porta na base da torre, e encontrou o Espantalho olhando para todo o tipo de

  • coisas: num canto, barris de plvora, mosquetes, espadas, punhais e lanas com ponta de ao; enoutro canto, arcas e caixas de moedas de ouro e correntes de prata e jias reluzentes de todas ascores; e num terceiro canto...

    Comida! exclamou Jack.Havia enormes presuntos fumados suspensos do teto, queijos do tamanho de rodas de

    carroas, cebolas em rstias, caixotes de mas, empadas de todo o tipo, po, bolachas, bolos deespeciarias e bolos de frutas, bolos de manteiga e bolos de mel com fartura.

    Era intil sequer tentar resistir. Jack agarrou numa empada do tamanho de sua prpriacabea, e um instante depois estava sentado no meio da comida, mastigando alegremente,enquanto o Espantalho observava com satisfao.

    Que golpe de sorte encontrarmos isto! exclamou. E ningum faz nenhuma ideia. Seao menos aquela velha senhora soubesse disto, poderia ter vindo servir-se e deixaria de ser pobre.

    Sabe respondeu Jack, engolindo um bocado de empada e pegando um bolo , no bem assim. Aposto que tudo isto pertence aos salteadores, e seria melhor partirmos depressa,porque, se eles nos apanharem, cortam nossas gargantas.

    Mas eu no tenho garganta. Bem, eu tenho, e no quero que a cortem replicou Jack. Olhe, no podemos ficar

    aqui, vamos levar alguma comida e pr-nos a caminho. Devia ter vergonha! ralhou o Espantalho, com ar zangado. Que feito da sua

    coragem? Que feito da sua honra? Vamos afugentar estes salteadores, e afugent-los de talforma que nunca mais voltem. No me surpreenderia se ganhssemos uma enormerecompensa. Ora, at poderiam fazer de mim um duque! Ou dar-me uma medalha de ouro. Nome surpreenderia nada mesmo.

    Bem disse Jack , possvel.De repente, o Espantalho apontou para um monte de palha. Oh... veja... O que aquilo? inquiriu. Havia algo se mexendo. Era uma pequena

    criatura do tamanho de um rato que rastejava debilmente num monte de palha no cho. Ambosse debruaram para observ-la.

    uma ave beb disse Jack. um filhote de coruja disse o Espantalho com ar severo. Estes pais no tm

    qualquer sentido de responsabilidade. Olhe para aquele ninho l em cima! Extremamenteperigoso.

    Apontou para um emaranhado de pequenos ramos numa fenda alta na parede. Bem, s h uma coisa a fazer disse ele. Voc fica de vigia, Jack, enquanto eu

    devolvo o beb ao seu bero. Mas... Jack tentou protestar.O Espantalho ignorou-o. Debruou-se, apanhou a avezinha e enfiou-a delicadamente no

    bolso, emitindo suaves arrulhos para acalm-la. Depois comeou a escalar perigosamente asuperfcie a pique da parede, introduzindo as mos e os ps nas fendas.

    Amo! Tenha cuidado! gritou Jack, numa ansiedade febril. Se cair, vai se quebrartodo como um pau seco!

    O Espantalho no lhe deu ouvidos, porque estava muito concentrado. Jack correu para a portae olhou sua volta. A escurido estava avanando, mas nem sinal de quaisquer salteadores.

  • Voltou correndo e viu o Espantalho l no alto agarrado parede com uma mo enquantoremexia no bolso com a outra, e depois estendeu cuidadosamente o brao para devolver aavezinha ao ninho.

    Agora fica quietinha ralhou. Nada mais de mexidas, entendeu? Se no sabe voar,no se mexa. Quando vir os seus pais, vou ter que lhes dar uma palavrinha.

    Comeou ento a descer a parede. Parecia to perigosa que Jack nem ousou olhar, mas porfim o Espantalho chegou de novo ao cho e sacudiu vigorosamente as mos.

    Achava que as aves eram suas inimigas, amo observou Jack. No os filhotes, Jack! Por quem me toma? Qualquer homem de honra preferiria ficar sem

    a perna a fazer mal a uma cria. Deus nos livre! Credo! exclamou Jack.Enquanto o Espantalho andava pelas runas observando tudo com enorme curiosidade, Jack

    pegou duas empadas, um po e meia dzia de mas e enfiou tudo num saco de couro queencontrou pendurado num gancho ao lado dos mosquetes. Escondeu-o no meio da hera quecrescia por cima da muralha exterior desmoronada.

    Entretanto o sol se pusera, e estava quase escuro.Jack sentou-se nas pedras e pensou nos salteadores. O que ser que faziam s pessoas que

    apanhavam? No eram como os espantalhos, ou os homens de honra; provavelmente seriammais como os soldados. Com certeza faziam coisas horrveis como amarrar uma pessoa e cort-la em pedaos, ou pendur-la por cima de uma fogueira, ou enfiar-lhe lacraias no nariz.Poderiam lhe tirar todas as costelas. Poderiam encher suas calas com fogos-de-artifcio.

    Poderiam...Algum lhe bateu no ombro, e Jack sobressaltou-se e gritou. Oh! disse o Espantalho, admirado , mas que bela barulheira. S ia dizer que os

    salteadores esto chegando. O qu? exclamou Jack, aterrorizado. Anda, anda disse o Espantalho. apenas um pequeno bando... no mais de vinte, eu

    diria. E tenho um plano. Vamos ouvi-lo ento, depressa! Muito bem. Aqui vai: escondemo-nos no castelo at eles estarem todos l dentro, e depois

    os assustamos, e ento eles fogem. Que tal?Jack ficou sem fala, enquanto o Espantalho irradiava alegria. Anda disse. Encontrei um local excelente para nos escondermos.Sem poder fazer nada, Jack seguiu o amo at torre e olhou por toda a volta no escuro. Onde est o tal local excelente para nos escondermos? perguntou. Ora, ali! disse o Espantalho, apontando para um canto da diviso bem vista. Nunca

    se lembraro de procurar ali. Mas... mas... mas...Jack j ouvia o rudo dos cascos dos cavalos l fora.Encolheu-se todo num canto ao lado do Espantalho, ajeitou os joelhos para evitar que

    tremessem, cobriu os olhos com as mos para que ningum pudesse v-lo, e esperou que ossalteadores entrassem.

  • 3UMA HISTRIA EM VOLTA DA FOGUEIRA

    Aqueles salteadores eram um bando disciplinado.Jack espreitou por entre os dedos quando eles entraram silenciosamente e se sentaram volta

    da fogueira. O chefe dos salteadores era um homem de aspecto feroz, com dois cintos cheios debalas cruzados sobre os ombros, outro em volta da cintura, um alfanje, duas pistolas e trspunhais: um no cinto, outro preso ao brao e o terceiro no cano da bota. S que, se perdesse todasas outras armas, ainda poderia apunhalar duas pessoas com o bigode, tendo aplicado cera naspontas compridas afiadas como um alfinete.

    Os seus olhos chisparam e reviraram-se quando olhou os seus homens, e Jack teve quasecerteza de que soltavam fascas.

    Ele vai nos ver logo logo, pensou Jack. Por isso, foi tanto o desespero como a bravata que ofizeram levantar-se e dizer: Boa noite, cavalheiros, e bem-vindos ao castelo do meu amo!

    E efetuou uma profunda vnia.Quando olhou sua volta, viu vinte espadas e vinte pistolas todas apontadas para si, e vinte

    pares de olhos, cada um como a extremidade do cano de uma pistola.O chefe dos salteadores trovejou: Quem este? Um louco, Capito disse um dos homens. Vamos ass-lo? No respondeu o chefe, aproximando-se e tocando nas costelas de Jack com a ponta da

    espada. No tem carne. s osso e cartilagem. Porm, acho que capaz de dar um bomguisado. Vire-se, rapaz.

    Jack deu a volta para um lado e depois para o outro. O chefe dos salteadores abanava acabea, cheio de dvidas.

    Diz que este o castelo do seu amo? inquiriu-lhe. Efetivamente , senhor, e sejamuito bem-vindo respondeu Jack.

    E quem o seu amo? O Lorde Espantalho esclareceu Jack, apontando para o Espantalho ao canto, que estava

    encostado parede to imvel quanto era possvel a um nabo, um casaco velho e alguns paus.O chefe dos salteadores desatou s gargalhadas, e todo o seu bando bem orquestrado deu

    palmadas nas coxas, agarrou-se barriga e berrou de gozo. Ele louco! exclamou o chefe dos salteadores. Perdeu o juzo! Efetivamente perdi, senhor redarguiu Jack. H meses que ando procura dele. Que gosto tem os rapazes loucos? perguntou um dos salteadores. diferente dos

    normais? So mais saborosos disse outro. Tm um gosto mais apimentado. No! insurgiu-se o chefe. No vamos co-m-lo. Vamos guard-lo como animal de

    estimao. Poderamos ensinar-lhe algumas habilidades. Olha... louco... d umacambalhota, vai.

    Jack deu uma cambalhota e tornou a levantar-se. rpido, no ? comentou um salteador.

  • No entanto, aposto que no sabe danar. Louco! trovejou o chefe. Dance!Obedientemente, Jack cabriolou como um macaco.Depois saltou como uma r e, a seguir, pulou como uma cabra. Os salteadores estavam bem-

    dispostos agora, gargalhavam ruidosamente e batiam palmas. Vinho! berrou o chefe. Louco, pare de danar e sirva-nos vinho!Jack encontrou uma galheta grande de vinho e deu a volta ao crculo de salteadores, enchendo

    as cornucpias que todos tinham estendido. Um brinde! props o chefe dos salteadores. Ao saque! Ao saque! gritaram eles, e beberam o vinho de um trago, pelo que Jack teve de dar

    novamente a volta e encher as cornucpias.Enquanto isso, alguns dos salteadores estavam acendendo uma fogueira e cortando nacos de

    carne. Jack olhou para a carne inquieto, mas parecia ser de vaca mesmo, e cheirava bem, semdvida, ao comear a ser cozinhada.

    Enquanto ela assava, o chefe contou as jias e moedas de ouro que tinham saqueado edividiu-as em vinte montes, um grande e dezenove pequenos; e enquanto o fazia, disse:

    Olha, louco... conte-nos uma histria.Bem, no foi tarefa fcil para Jack. No entanto, se no o fizesse estaria em grandes apuros;

    sentou-se, ento, e comeou. Houve em tempos disse , um bando de salteadores que vivia numa caverna. Eram

    cruis e malvados... oh, no conseguiriam imaginar homens mais horr-veis. Cada um deles era um verdadeiro assassino. Mas, um dia, comearam a discutir uns com os outros, e, sem se darem conta, apareceu

    um morto no cho da caverna. Ento, o chefe disse: Levem-no l para fora e enterrem-no. Est sujando o local. E eles pegaram o morto, levaram-no l para fora, abriram uma cova, puseram-no l dentro

    e jogaram paza-das de terra por cima, mas ele jogava-a de volta constantemente. Vocs nome vo enterrar!, disse ele, e saiu da sepultura.

    Oh, sim, vamos!, teimaram eles, e tentaram empurr-lo l para dentro, mas ele noqueria ir. A cada vez que o enfiavam na sepultura, ele tornava a sair, e estava morto e bemmorto. Por fim, meteram-no l e sentaram-se sete em cima dele, enquanto os outrosempilhavam pedras sobre o homem, e se resolveu o assunto.

    Ele no vai se livrar desta, disse o chefe, e voltaram para a caverna e acenderam umafogueira para preparar a ceia. Fizeram uma grande refeio, beberam muito vinho e depoisestenderam-se para dormir.

    Mas, no meio da noite, um dos salteadores acordou. Reinava o silncio na caverna e o luarincidia na entrada. O que o acordara fora um som, como uma pedra a mover-se silenciosamentesobre outra pedra, sem nenhum rudo, apenas uma espcie de raspadela. O homem ficou ali, deolhos arregalados, limitando-se a escutar com toda a ateno. Depois, voltou a ouvir a mesmacoisa.

    Os salteadores mantinham-se sentados, imveis, e fitavam Jack com receio, de olhos muitoabertos.

  • Socorro, pensou. O que vou dizer a seguir?Mas no teve que dizer nada, porque se ouviu no silncio uma pequena raspadela, como uma

    pedra a mover-se silenciosamente sobre outra pedra.Os salteadores sobressaltaram-se e soltaram um pequeno guincho de terror. E depois disse Jack , ele viu... Olhem! Olhem! E apontou aflitivamente para o canto

    onde se encontrava o Espantalho. Todas as cabeas se viraram ao mesmo tempo.Lentamente, o Espantalho levantou a cabea e olhou para eles com a sua cara de nabo

    nodoso.Os salteadores ficaram boquiabertos, incluindo o chefe.E o Espantalho esticou os braos, flexionou as pernas, levantou-se e deu um passo na direo

    deles...Os salteadores puseram-se em p e fugiram, gritando de terror. Caram, esbarrando uns nos

    outros. Aqueles que tinham cado foram espezinhados, e os que os haviam espezinhado ficaramcom os ps presos e tombaram por cima deles, sendo por sua vez espezinhados, e alguns caramna fogueira e pularam guinchando de dor, o que dispersou as toras a arder e tornou a cavernamais escura e os deixou ainda mais assustados, de modo que desataram a gritar e a berrar nomeio de um medo de morte; e aqueles que ainda conseguiam ver alguma coisa perceberam queo rosto grande e nodoso do Espantalho vinha na direo deles, e correram ainda mais para fugirdali...

    E nem dez segundos depois, os salteadores corriam todos estrada afora, gritandoaterrorizados.

    Jack ficou porta, espantado, vendo-os desaparecer ao longe. Bem, amo desabafou ele , aconteceu exatamente como o senhor tinha dito. O momento oportuno, entende disse o Espantalho. o segredo de qualquer bom

    susto. Esperei que eles se sentissem todos vontade, serenos e descontrados, sabe, depois melevantei e preguei-lhes um bom susto. Era a ltima coisa que estavam esperando. Calculo que asua histria tenha ajudado um pouco acrescentou. Provavelmente acalmou-os.

    Hmm disse Jack. Mas aposto que vo voltar, porque no chegaram a jantar. Achoque deveramos nos pr a andar daqui antes que isso acontea.

    Acredite em mim afirmou o Espantalho em tom solene , aqueles patifes nunca maisvoltaro. No so como os pssaros, entende? No caso destes, preciso voltar a assust-los todosos dias, mas para os salteadores basta uma vez.

    Bem, desta vez acertou, amo. Talvez volte a acertar. No pode contar com isso, meu rapaz! Mas sabe, no devia ter dito aos salteadores que eu

    era o dono deste castelo. No rigorosamente verdade. Sou realmente o dono do Vale daPrimavera.

    O Vale da Primavera? Onde fica? Oh, a muitos quilmetros. Muito, muito longe. Mas me pertence. Verdade? Cada palmo. A fazenda, os poos, as fontes, os riachos... tudo. Mas como que sabe disso, amo? Quer dizer, pode prov-lo? O nome do Vale da Primavera encontra-se escrito no meu corao, Jack! De qualquer

    forma, agora que j descansamos, estou ansioso para me pr a caminho e ver o mundo ao luar.

  • Talvez encontremos os pais do pobre filhote de coruja. Juro que estou ansioso para lhes pregarum susto. Leve toda a comida que quiser... os salteadores no vo precisar dela agora.

    Ento, Jack foi buscar o saco de comida que escondera antes, acrescentou uma empada e umfrango assado frio por precauo e depois seguiu seu amo pela estrada principal, que brilhavaintensamente ao luar.

    Naquele exato momento, o Senhor Cercorelli, o advogado, estava sentado a uma mesa demadeira tosca na cozinha de uma cabana, diante de uma velhota que comia po e queijo.

    Como um espantalho, diz a senhora? perguntou ele, tomando nota. Sim, senhor, horrivelmente feio, aquele monstro. Saltou dos arbustos direto para mim.

    Jesus! Pensei que tinha chegado a minha hora. Pregou-me tamanho susto que larguei o po e oqueijo todo, e s quando vi o menino Buffaloni e os seus simpticos amigos virem emperseguio dele que voltei a me sentir segura.

    E viu em que direo seguiu esse ladro de estradas que parecia um espantalho? Sim, senhor. Subiu para os montes. No me admiraria se tivesse um bando de viles

    saqueadores l em cima com ele. No duvido. E encontrava-se sozinho nessa ocasio? No, senhor. Acompanhava-o um garotinho.Um menino com cara de mau. Forasteiro, provavelmente. Um garotinho, hein? observou o advogado, voltando a tomar nota. Obrigado. Isto

    muito curioso.A propsito disse, porque no comera todo o dia , esse queijo tem um aspecto excelente. Tem mesmo retrucou a velhota, afastando-o. realmente muito bom. Um belo naco de queijo.O Senhor Cercorelli suspirou e levantou-se. Se souber de algo mais sobre este patife desesperado acrescentou , no se esquea de

    me avisar. OSenhor Buffaloni oferece uma recompensa muito generosa. Tenha uma boa noite.

  • 4OS ATORES AMBULANTES

    Depois de uma boa noite de sono debaixo de uma sebe, o Espantalho e o seu criadoacordaram D numa manh radiosa e cintilante.

    Isto que vida, Jack! exclamou o Espantalho. A estrada pela frente, ar puro eaventuras a espreitar a cada esquina.

    O ar puro est muito bem para o senhor, amo retrucou Jack, tirando folhas do cabelo, mas eu gosto de dormir numa cama. H tanto tempo que no vejo uma cama, que j nemme lembro se os lenis ficam debaixo dos cobertores ou os cobertores debaixo dos lenis.

    Vou s ali cumprimentar um colega anunciou o Espantalho.Ao acordarem, viram que estavam prximo de uma encruzilhada. Havia um poste de

    madeira no lugar onde as estradas se cruzavam, mas era impossvel ler qual a direo para ondeos quatro braos apontavam, pois anos ao sol e chuva tinham feito sumir por completo a tinta.

    O Espantalho aproximou-se do poste de sinalizao e saudou-o cortesmente. O poste ignorou-o, e Jack tambm, pois estava entretido cortando uma fatia de carne fria com o canivete, emetendo-a dentro de uma fatia de po.

    Ouviu-se ento um sonoro TRS!Jack levantou a cabea e viu o Espantalho, muito zangado, batendo com toda a fora no brao

    mais prximo do poste. Ora tome, seu patife insolente! exclamou e tornou a bater.Infelizmente, o primeiro soco deve ter soltado alguma coisa no poste, porque quando ele o

    socou pela segunda vez, os quatro braos rodaram e o mais prximo atingiu o Espantalho comtoda fora na nuca.

    O Espantalho caiu, gritando: Traio! Covardia! E depois avanou, furioso, e agarrou obrao que o atingira e arrancou-o por completo do poste de sinalizao.

    Toma, seu ladro de estradas covarde! gritou, zurzindo o poste com o brao quebrado. Lute com lealdade, ou ento renda-se!

    O problema era que, cada vez que ele batia no poste, este voltava a girar e o atingia do outrolado. No entanto, o Espantalho aguentou firme e respondeu com bravura.

    Amo! Amo! chamou Jack, acorrendo. Isso no um ladro de estradas... um postede sinalizao!

    Ele est disfarado disse o Espantalho. Cuidado... afaste-se... um ladro deestradas, sim senhor. Mas no se preocupe, eu cuido dele.

    O senhor est coberto de razo, amo. um ladro de estradas, se o senhor diz, mas achoque j teve a sua conta. Tenho certeza de que o ouvi dizer: Eu me rendo. Ouviu? Temcerteza?

    Certeza absoluta, amo. Nesse caso... comeou o Espantalho, mas parou e olhou horrorizado para o seu brao

    direito, que saa lentamente de baixo da manga do casaco. O cabo de ancinho soltara-se do cabode vassoura que era a sua coluna vertebral.

    Fiquei sem brao! exclamou o Espantalho, chocado.Na verdade, como reparou Jack, o cabo de ancinho estava to seco e quebradio que nunca

  • tivera grande utilidade, e o castigo que recebera na luta com o poste de sinalizao partira-o emvrios lugares.

    Tenho uma ideia, amo disse. O brao deste sujeito encontra-se em melhor estado doque o seu. Por que no o enfiamos a sua manga?

    Que excelente ideia! exclamou o Espantalho, ficando logo todo animado.E Jack assim fez e, tal como acontecera com o pau que viera a ser a perna dele, o brao deu

    uma espcie de puxo quando se encostou ao ombro, e encaixou-se de imediato. incrvel disse o Espantalho, admirando o seu brao novo, experimentando-o com

    movimentos rotativos e apontando para as coisas com o dedo na extremidade. Os dons quevoc tem, Jack, meu rapaz! Poderia ser cirurgio. Ou mesmo carpinteiro. E quanto a voc, seupatife acrescentou com severidade, dirigindo-se ao poste de sinalizao , que isto lhe sirvade lio.

    No creio que ele v voltar a atacar mais algum, amo disse Jack. Acho que osenhor deu um jeito nele de vez. Em que direo vamos seguir agora?

    Naquela disse o Espantalho, apontando todo confiante para uma das estradas com o seunovo brao.

    Ento, Jack ps o saco no ombro, e l se foram.Aps uma hora de caminhada enrgica, chegaram aos limites de uma cidade. Devia ser dia

    de mercado, porque as pessoas se dirigiam para a cidade com carroas cheias de legumes,queijos e outros artigos para vender.

    Um homem era passarinheiro. A sua carroa ia carregada de gaiolas contendo pequenasaves canoras como pintarroxos, cotovias e pintassilgos. O Espantalho mostrou-se muitointeressado.

    So prisioneiros de guerra explicou a Jack. Espero que estejam sendo repatriadospara o pas deles.

    No me parece, amo. Acho que as pessoas vo compr-los e mant-los nas gaiolas parapoderem ouvi-los cantar.

    No! exclamou o Espantalho. No, no, as pessoas no fariam semelhante coisa.Ora, isso seria desonroso. Vai por mim, so prisioneiros de guerra.

    Chegaram, ento, ao local do mercado, e o Espantalho olhava admirado sua volta, acmara municipal, a igreja, as bancas do mercado.

    No fazia ideia de que a civilizao estava assim to avanada comentou com Jack. Ora, isto quase se compara com Bela Fontana. Que diligncia! Que beleza! Que esplendor! Noencontraria um lugar assim no reino das aves, com toda a certeza.

    Jack reparou que algumas crianas cochichavam e apontavam para o Espantalho. Escute, amo disse-lhe , no me parece que... O que aquilo? inquiriu o

    Espantalho, todo entusiasmado.Apontava para uma tenda de lona onde um carpinteiro martelava umas tbuas para

    sustentarem um quadro de cores alegres contendo uma paisagem agreste. Aquilo vai ser uma pea de teatro explicou Jack. Chamam-se cenrios. Os atores

    vo l para a frente e representam uma histria.Os olhos do Espantalho no podiam estar mais arregalados. Encaminhou-se para a tenda

    como se fosse uma marionete. Havia um grande cartaz colorido ali perto, e um homem lia-o em

  • voz alta para aqueles que no eram capazes de faz-lo por si mesmos: A Histria Trgica deArlequim e da Rainha Di-do leu o homem em voz alta. Vai ser representada pela FamosaCompanhia de Atores do Signor Rigatelli, depois de triunfos em Paris, Veneza, Madrid e Constan-tinopla. Com Efeitos de Batalha e Naufrgio, uma Dana dos Espritos Infernais, e a Erupo doVesvio. Diariamente ao meio-dia, ao meio da tarde e ao pr-do-sol, com uma sesso noturnaespecial acompanhada de Exibio Pirotcnica.

    O Espantalho estava quase flutuando de excitao. Quero assistir a tudo! exclamou. Mais de uma vez! Bem, no de graa, amo explicou Jack. Tem que pagar. E ns no temos dinheiro

    nenhum. Nesse caso disse o Espantalho , vou ter que oferecer os meus prstimos como ator.

    Por favor! chamou. Signor Rigatelli!Saiu de trs do cenrio um homem gordo vestindo um roupo e dando dentadas num pedao

    de salame. Sim? disse. Signor Rigatelli comeou o Espantalho , eu... Caramba! exclamou o Signor Rigatelli a Jack , isso magnfico. Faa mais um

    pouco. Eu no estou fazendo nada respondeu Jack. Desculpe disse o Espantalho , mas eu... Magnfico! Brilhante! exclamou Rigatelli. O qu? perguntou Jack. Do que est falando? Ventriloquismo disse Rigatelli. Repita, vamos. Signor Rigateli disse mais uma

    vez o Espantalho , a minha pacincia no inesgotvel. Tenho a honra de me apresentar aosenhor como ator de modesta experincia mas gnio ilimitado... O que est fazendo?

    O Signor Rigatelli andava em volta do Espantalho, observando-o de todos os ngulos. Depoislevantou as abas de seu casaco para ver como funcionava, e o Espantalho afastou-se com umsalto, furioso.

    No, est tudo bem, amo, no se zangue apressou-se Jack. Sabe, que ele gostariade ser ator explicou a Rigatelli , e eu sou o agente dele acrescentou.

    Nunca vi nada assim disse o grande empresrio. No entendo sequer comofunciona. Vamos com-binar o seguinte: podemos us-lo como adereo na cena da loucura. Elepode ficar ali, na charneca maldita, quando a rainha fica louca. Depois, se ele se sair bem, podeentrar de novo em cena como um dos espritos infernais. Consegue faz-lo danar?

    No tenho certeza confessou Jack. Bem, ele pode imitar os outros. Primeira chamada dentro de dez minutos.E Rigatelli enfiou o resto do salame na boca e voltou para dentro de sua caravana.O Espantalho estava nas nuvens. Um adereo! disse. Vou ser um adereo!Tem noo, Jack, de que este o primeiro passo no caminho para uma carreira gloriosa? E j

    estou fazendo adereo! Ele deve ter ficado muito impressionado. Sim respondeu Jack , provavelmente.O Espantalho j desaparecia por trs do cenrio.

  • Amo chamou Jack , espere...Encontrou o Espantalho observando com grande interesse um ator maquiando o rosto diante

    de um espelho. Valha-me Deus! exclamou o ator, avistando subitamente o Espantalho, e pulou da

    cadeira, largando o pote com a base de maquiagem. Muito bom dia, cavalheiro cumprimentou o Espantalho. Permita-me que me

    apresente. Vou representar o papel de adereo. Seria muito incmodo se eu usasse a suamaquiagem?

    O ator engoliu em seco e olhou em volta. Depois avistou Jack. Quem esse? perguntou. Este o Lorde Espantalho disse Jack , e o Signor Rigatelli diz que ele pode entrar na

    cena da loucura. Oua, amo dirigiu-se ao Espantalho, que estava sentado olhando comenorme interesse para todos os potes de maquiagem e ps. Sabe o que um adereo, nosabe?

    um papel muito importante disse o Espantalho, pintando uns lbios vermelhos vivos naparte da frente do nabo.

    Sim, mas o que se chama de um papel mudo prosseguiu Jack. No pode se mexernem falar.

    Mas o que vem a ser isto? inquiriu o ator. Isto sou eu! anunciou o Espantalho, cheio de orgulho. Vou entrar na cena da loucura.Realou cada um dos olhos com lpis preto, e depois aplicou p vermelho nas faces. O ator

    assistia, embasbacado. Est muito bonito, amo comentou Jack , mas no pode exagerar. Acha que deveramos ser discretos? Para a cena da loucura, sem dvida, amo. Muito bem. Talvez uma cabeleira me d um ar mais discreto. Essa no disse Jack, tirando uma enorme peruca loura de caracis das mos do

    Espantalho. Lembre-se s... no pode se mexer nem falar. Farei tudo com os olhos afirmou o Espantalho, recuperando a peruca das mos dele e

    enfiando-a na sua cabea de nabo.O ator deu-lhe um olhar horrorizado e foi embora. Agora preciso de um traje afirmou o Espantalho. Este servir.Pegou numa capa escarlate e colocou-a em volta dos ombros. Jack ps as mos na cabea,

    desesperado, e seguiu o Espantalho pelos bastidores, onde os atores, os msicos e os ajudantes decena aprontavam tudo. Havia muito para ver e Jack teve que deter o Espantalho para poder lhedar as explicaes.

    Sim, amo... agora silncio... o pblico est ali fo-ra, por isso temos que ficar todoscalados...

    Ali est ela! exclamou uma atriz, zangada, e arrancou a peruca da cabea doEspantalho. Que brincadeira essa? perguntou a Jack. Como se atreve a pr a minhacabeleira naquela coisa?

    Minhas desculpas disse o Espantalho, pondo-se de p e fazendo uma profunda vnia. No que-reria aborrec-la por nada deste mundo, minha senhora, mas j to bela que no

  • precisa de melhoramentos, ao passo que eu...A atriz observava com ar crtico, enquanto colocava a peruca na cabea. Nada mal comentou para Jack. J vi muito pior. Nem sequer percebo como

    consegue mov-lo.Mas no volte a mexer nas minhas coisas, ouviu? Desculpe disse Jack. A atriz afastou-se. Quanta graciosidade! Quanta beleza! exclamou o Espantalho, ficando a olh-la. Sim, amo, mas chiu! pediu Jack. Sente-se.Fique calado.Nesse exato momento ouviram o estampido dos cmbalos e um toque de trombeta. Senhoras e senhores! chegou-lhes a voz do Signor Rigatelli. Vo assistir a uma

    representao da tragdia triste e lamentvel de Arlequim e da Rainha Dido, com efeitospictricos e cnicos nunca antes vistos, e com os interldios mais cmicos jamais exibidos empalco! Nosso espetculo de hoje patrocinado pela Empresa de Carne Seca Buffaloni,produtores do melhor salame da cidade, Um Sorriso em Cada Dentada.

    Outra vez os Bufalonis, pensou Jack. Esto metidos em tudo.Seguiu-se um rufar de tambores e o pano subiu.Jack e o Espantalho assistiram de olhos arregalados ao incio da pea. A histria no era

    grande coisa, mas a assistncia gostou de ver Arlequim fingir que perdia uma fiada de salsichas,e depois engolia uma mosca por engano e andava aos pulos pelo palco com ela a zumbir dentrode si; e depois a Rainha Dido foi abandonada pelo amante, o Capito Fanfarone, e saiu do palcocorrendo, louca de dor. Era a atriz da peruca loura.

    Ei! Rapaz! chegou-lhe um murmrio alto de Rigatelli. Faa-o entrar! a cena daloucura! Coloque-o no meio e saia rapidamente.

    O Espantalho abriu por completo os braos, enquanto Jack o transportava at o palco. Vou ser o melhor adereo que j existiu! declarou. Daqui a muitos anos, ainda se

    falar do meu desempenho.Jack colocou o dedo nos lbios e saiu do palco na ponta dos ps. Nesse momento, encontrou-

    se frente a frente com a atriz que representava a Rainha Dido, que se preparava para voltar aentrar em cena. Parecia furiosa.

    O que aquela coisa est fazendo ali? quis saber. um adereo explicou Jack. Se o fizer se mexer ou falar, esfolo-o vivo disse. Manualmente.Jack engoliu em seco e anuiu vigorosamente.O pano subiu, e Jack sobressaltou-se porque a Rainha Dido soltou um grito louco e medonho e

    passou por ele correndo para o palco. Oh! Ah! Desgraa! Infortnio! gritou e atirou-se ao cho.O pblico assistia, encantado. E o Espantalho tambm. Jack viu os olhos dele se arregalarem

    cada vez mais e segui-la enquanto se arrojava, gritava e fingia arrancar os cabelos. Ai de mim, ai de mim gemeu, e danou pelo palco, atirando beijos para o ar. Toma

    o rosmaninho, para recordar! Ai de mim, ai de mim! O Fanfarone, na verdade, no passa deum vilo! Era um apaixonado e eu a sua amada! Toma um malmequer. La, la, la!

    Jack estava muito impressionado. Parecia sem dvida uma grande representao.

  • De repente, ela se sentou e comeou a arrancar as ptalas de um malmequer imaginrio. Bem me quer... mal me quer... bem me quer... mal me quer... oh malmequer,

    malmequer, d-me a sua resposta, vamos! Oh, que o meu corao transborde e apague os fogosda minha dor! La, la, la, Fanfarone, que rico vilo me saiu!

    Jack observava o Espantalho com ateno. Via que o pobre diabo estava ficando cada vezmais preocupado e murmurou: No, amo... no de verdade... fique quieto!

    O Espantalho estava se esforando, disso no havia dvida. Movia apenas a cabea muitolentamente para acompanhar o que a Rainha Dido fazia, mas a verdade que a mexia, e uma ouduas pessoas do pblico j tinham percebido e acotovelavam os vizinhos e apontavam para ele.

    A Rainha Dido levantou-se com a mo encostada ao peito. De repente, o Espantalhopercebeu que ela tinha um punhal na mo. Estava de costas para ele e no conseguia v-lo seinclinar de lado para espreitar em volta dela, uma expresso de alarme no seu enorme rostonodoso.

    Oh! Ah! Desgraa! As pontadas da minha dor dilaceram-me a alma como ganchos embrasa! Ahhhhhh-hh...

    Soltou um longo grito de desespero, comeando pelo mais alto que era capaz de guinchar edescendo para o tom mais baixo que conseguia alcanar. Era famosa por aquele grito. Os crticostinham dito que penetrava no mago da angstia mortal, que era capaz de derreter um coraoempedernido, que ningum conseguia ouvi-lo sem que as lgrimas lhe viessem aos olhos.

    Desta vez, porm, teve a sensao de que o pblico no estava plenamente com ela. Algunsquantos at riam, e, como se no bastasse, quando se virou para ver se por acaso no estariamrindo do Espantalho, de repente ele se lembrou de representar, e ficou quieto, olhando fixamentecomo se no passasse de um nabo espetado num pau.

    A Rainha Dido deu-lhe um olhar de desconfiana furibunda e decidiu tentar mais uma vez oseu famoso grito.

    Waaahhh... aahhh... aaaahhh... lamentou-se, oscilando e tremulando de um guincho tipomorcego at um gemido que fazia lembrar uma vaca com clicas.

    E atrs dela, o Espantalho ia se movendo ao ritmo dela, e imitando a forma como ela oscilavaa cabea e agitava os braos e ia decaindo gradualmente. Foi mais forte do que ele, pois estavaprofundamente comovido. Claro que o pblico achava aquilo hilariante, e gargalhava, davapalmadas nas coxas, aplaudia, assobiava e soltava vivas.

    A Rainha Dido estava furiosa. E o Signor Rigatelli tambm. Apareceu de repente ao lado deJack e empurrou dois atores para o palco, dizendo: Tirem-no dali! Tirem-no dali!

    Infelizmente, os dois atores estavam vestidos de salteadores, e sem dvida o Espantalhopensou que eram reais.

    Seus patifes! exclamou e saltou para a frente com os braos de madeira estendidoscomo punhos. Majestade, esconda-se atrs de mim! Defend-la-ei!

    E correu pelo palco, desferindo socos nos atores.Entretanto, a Rainha Dido tivera um ataque de fria e ar-remessara a peruca ao cho antes

    de sair violentamente de cena para descompor Rigatelli.O pblico estava adorando. Fora, Espantalho! gritavam. Arreia-lhes, Nabo! Ateno retaguarda! Viva o

    Espantalho!

  • Os dois atores no sabiam o que fazer, mas continuavam a perseguir o Espantalho e depoistiveram que fugir quando ele os enfrentou.

    De repente, o Espantalho estacou, e apontou horrorizado para a peruca loura nas tbuas suafrente.

    Cortaram-lhe a cabea quando me apanharam distrado! exclamou. Como seatrevem? Pois, foi a gota dgua. Agora estou furibundo!

    E, agitando os braos de madeira como um moinho de vento, saltou sobre os dois atores ezurziu-os impiedosamente. O pblico foi ao delrio, mas os atores estavam to zangados agoraque enfrentaram, e depois o prprio Rigatelli resolveu intervir para tentar repor a ordem.

    Jack precipitou-se tambm para o palco, a fim de tentar afastar o Espantalho antes que ele semachucasse.

    Infelizmente, um dos atores agarrara-lhe o brao esquerdo e puxava insistentemente por ele,enquanto o Espantalho lhe batia na cabea; e quando Jack o agarrou pelo meio e tentou pux-lopara trs, o brao esquerdo do seu amo soltou-se por completo, e o ator que o segurava caiu derepente para trs, chocando-se com Rigatelli, derrubando-o sobre o outro ator, que se agarrou aocenrio para se salvar; mas o peso combinado dos trs foi demais para a charneca maldita, eveio tudo abaixo com um guinchar de madeira e um rasgar de lona e, numa questo de segundos,s se via um monte de cenrio pintado se agitando e praguejando, com braos e pernas que semexiam, desapareciam e voltavam a aparecer.

    Por aqui, amo! exclamou Jack, tirando o Espantalho do palco. Vamos dar o fora! Nunca! protestou o Espantalho. Nunca me renderei! No rendio, amo, mais bater em retirada disse Jack, arrastando-o dali.Todo mundo na praa do mercado soubera do que se passava, e abandonara as bancas para

    rir dos atores e do teatro a desmoronar. Entre eles estava o passarinheiro.Suas gaiolas com pintarroxos e pintassilgos brilhavam ao sol, os passarinhos cantavam o mais

    alto que podiam, e o Espantalho no conseguiu resistir. Pssaros disse com ar austero , aceito a existncia de um estado de guerra entre o

    seu reino e o meu, mas h uma coisa chamada justia. V-los aprisionados desta forma cruelpe-me o sangue no nabo a ferver de indignao. Vou libert-los, e ordeno-lhes solene-menteque vo direto para casa e no comam os cereais de nenhum agricultor pelo caminho.

    Jack no reparou no que o seu amo estava fazendo, porque avistara um velhinho sentadonuma banca que vendia guarda-chuvas. Estava atacado pelo reumatismo demais para acorrer aoteatro como todos os outros e ficou satisfeito por vender um dos seus chapus-de-chuva Jack,que encontrara uma moeda de ouro num canto do saco dos salteadores.

    Depois algum gritou: Agarra que ladro! Afaste-se dos meus pssaros!Jack deu meia volta e viu o Espantalho abrindo a ltima das gaiolas. Um bando de passarinhos

    fazia crculos ao redor da cabea dele, chilreando alegremente, e ele agitava o seu nico brao,aquele que no apontava para lado nenhum.

    Voem! gritou. Voem para longe. Vamos, amo! chamou Jack. Todos esto vindo atrs de ns agora! Arrastou dali o

    Espantalho, e os dois correram o mais depressa que podiam. Os gritos de raiva, as gargalhadas, ocanto gutural dos pssaros libertados, tudo foi desaparecendo gradualmente atrs deles.

    Quando chegaram de novo a terreno descoberto, pararam. Jack estava sem flego. O

  • Espantalho olhava para si mesmo, tentando entender o que havia de errado, e depois exclamou: Oh no! O meu outro brao desapareceu! Estou me desfazendo em pedaos! No se preocupe, amo, eu pensei nisso. Comprei-lhe um brao novo, olhe disse Jack, e

    introduziu o guarda-chuva na manga do Espantalho, com o cabo para cima. No quer chegar l! exclamou o Espantalho. Creio... acho que... sim, sim, sou capaz! Olhe para isto!Olhe s para isto, Jack!E sacudiu o seu novo brao, e o guarda-chuva se abriu. Sua grande cara de nabo, com a boca

    vermelho-viva e os olhos delineados em preto, estava radiante. No sou inteligente? comentou, maravilhado. Repare neste engenho! Sobe... desce... sobe... desce... Assim pode se proteger do sol, amo disse Jack. E da chuva.O Espantalho olhou para ele, todo orgulhoso. Voc vai longe, meu rapaz! garantiu-lhe. Eu tambm ia acabar me lembrando

    dessas coisas, mas voc se antecipou a mim. E que triunfo o nosso no palco!Vimos tudo o que se anunciava no cartaz. Porm, faltaram o Naufrgio e a Erupo do Vesvio. Oh, chegaremos l, Jack disse o Espantalho, com ar confiante. Tenho certeza que

    sim.

  • 5ALUGA-SE ESPANTALHO

    Quando o advogado chegou cidade na manh seguinte, encontrou-a cheia de estranhosrumores.

    Depois de entrevistar o Senhor Rigateli e a atriz que fazia a Rainha Dido, os quais estavamconvencidos de que o Espantalho era um autmato controlado por ondas mesmricas e que faziaparte de uma conspirao organizada por uma companhia de teatro rival, o Senhor Cercorelli foifalar com o idoso vendedor de guarda-chuvas.

    Sim, eu vi tudo disse o velho. Era um rapaz com um orangotango. J tinha visto umantes. Vivem nas rvores no Bornu. So quase humanos, mas no h como confundi-los deperto. Porque o est procurando? Ele fugiu de um jardim zoolgico?

    No propriamente respondeu o Senhor Cercorelli. Que direo tomaram? Aquela respondeu o velho, apontando. Ir reconhec-los facilmente. Compraram-

    me um guarda-chuva.O Espantalho e o seu criado fizeram uma longa caminhada naquele dia. Passaram a noite

    debaixo de uma sebe junto de um olival e, assim que acordaram, Jack percebeu que algo estavaerrado.

    Sentou-se e olhou sua volta. O sol brilhava, o ar cheirava a tomilho e salva, ouvia-se o somdos pequenos chocalhos em volta dos pescoos de um rebanho de cabras pastando ali perto, masfaltava alguma coisa.

    Amo! Acorde! Fomos roubados! gritou Jack, desesperado, assim que percebeu o quetinha acontecido. Toda a comida desapareceu!

    O Espantalho sentou-se imediatamente e abriu o guarda-chuva, alarmado. Jack levantoupedras, espreitou debaixo da sebe, correu para trs e para a frente a fim de olhar para um lado epara o outro da estrada.

    O Espantalho foi procurar na vala, fazendo um lagarto carregar o cenho. Ignorou-o. Depoisdebruou-se e olhou para algo entre as folhas.

    Uma pista! exclamou, e Jack aproximou-se correndo. O que , amo? Ali disse o Espantalho, servindo-se da mo que apontava para indicar algo pequeno e

    desagradvel a seus ps. O que ? Um excremento de coruja. Acredite em mim, isto foi deixado pelo culpado. No h a

    menor dvida, o ladro uma coruja. Oh disse Jack, coando a cabea. Ou uma gralha prosseguiu o Espantalho. Na verdade, agora que penso no assunto,

    deve ter sido uma gralha, e deixou o excremento de coruja s para despistar. D para acreditarna maldade destas aves? No tm um pingo de vergonha.

    No respondeu Jack. Nenhuma mesmo. De qualquer forma, ns no temos dinheiro,nem qualquer comida. No sei o que vamos fazer.

    Vamos ter que trabalhar para o nosso sustento, meu caro rapaz disse o Espantalho, todo

  • animado. somos cheios de iniciativa e os dois com tima sade. Au! Au! O que est fazendo?Suas ltimas palavras foram dirigidas a uma cabra, que viera por trs dele e comeara a

    alimentar-se de suas calas. O Espantalho virou-se e bateu na cabra com o poste de sinalizao.A cabra, porm, no gostou nada e aplicou-lhe uma forte cabeada, atirando-o ao cho antes queJack tivesse tempo de apanh-lo. O Espantalho ficou pasmo.

    Como se atreve! Que ataque covarde! protestou, tentando levantar-se.A cabra voltou a atac-lo. Desta vez o Espantalho estava preparado. Abriu o guarda-chuva de

    repente, e a cabra derrapou at parar e comeou a com-lo. Oh, francamente disse o Espantalho , isto demais!Teve ento incio uma espcie de cabo-de-guerra, com a cabra numa extremidade e o

    Espantalho na outra.As outras cabras vieram ver o que estava acontecendo, e uma delas comeou a mordiscar as

    abas do casaco do Espantalho, outra as calas e uma terceira desatou a comer a palha que lhesaa do peito.

    Vamos! Fora daqui! Desapaream! gritou Jack, batendo palmas e, relutantemente, ascabras se afastaram.

    Seria de esperar este tipo de comportamento de seres com penas afirmou o Espantalho,com ar severo , no de pessoas com cornos. Estou muito desiludido.

    Elas estavam demonstrando um interesse consumvel pelo senhor, amo disse Jack. Bem, no podemos culp-las por isso disse o Espantalho, escovando as lapelas e

    sacudindo os restos do casaco. Mas devo dizer, Jack, que elas no deviam andar solta semum pastor. No vamos deixar que isso acontea no Vale da Primavera.

    O Vale da Primavera? Oh, j me lembro. Como foi que conseguiu arranjar uma grandepropriedade, toda cheia de... o que era?... uma fazenda, riachos, poos, e coisas assim?

    Bem, um enigma, Jack admitiu o Espantalho, enquanto seguiam estrada afora. Sempre tive uma convico ntima de que era um homem de posses. Uma espcie de fidalgorural, sabe.

    E para l que vamos, para o Vale da Primavera? A seu tempo, Jack. Primeiro temos que fazer fortuna. Oh, entendo. Bem, olhe disse Jack, apontando l para a frente , h uma fazenda ali e

    um agricultor. Vamos pedir trabalho. Sempre um comeo.O agricultor estava sentado com ar muito desconsolado na frente da casa, afiando uma foice. Quer trabalho? perguntou a Jack Sabe, no poderia ter vindo em melhor hora... Os

    soldados levaram todas as minhas... h, e os pssaros esto comendo o... h assim que nasce.Instale o seu, aquilo, ele, no campo de cima, e pode pegar na matraca e trabalhar no pomar.

    O problema disse Jack , que ele est ficando um pouco esfarrapado. Se tivesse umpar de calas a mais, poderia ficar com um ar mais convincente.

    H um par de... h... voc sabe, velhas, no depsito de lenha. Fique vontade. Havercomida... h... ao pr-do-sol, e pode dormir no celeiro.

    Pouco depois, estavam trabalhando. O Espantalho enxotava todos os pssaros do milharal e,de tempos em tempos, abria e fechava o guarda-chuva, s para lhes dar uma lio. Jackperambulava pelo pomar, matraqueando intensamente sempre que avistava um tentilho ou umpintarroxo.

  • Era um trabalho rduo. O sol estava quente e havia muitos pssaros para espantar. Jack deuconsigo a pensar no Vale da Primavera e na enorme propriedade do Espantalho. O pobre diabodevia ter inventado tudo e acabara se convencendo de que era verdade, pensou Jack.

    Tinha jeito para isso. No entanto, parecia um local bonito.Ao pr-do-sol, Jack parou de matraquear, e foi chamar o Espantalho. O seu amo estava muito

    impressionado com a matraca. Formidvel exclamou quando Jack lhe mostrou como funcionava. Que arma! Acha

    que poderia us-la amanh? Bem, se o fizer, amo, no terei com que espantar os pssaros. O senhor um perito, e

    consegue-o limitando-se a olhar para elas, mas eu preciso de toda a ajuda que puder arranjar.Agora v se sentar no celeiro, que eu vou buscar a ceia.

    A mulher do agricultor entregou a Jack uma tigela de guisado e um grande naco de po, edisse-lhe que no entrasse na cozinha acompanhado daquele monstro. At podia ser um espanta-pssaros moderno, mas aquela era uma fazenda respeitvel, e no toleraria monstros mecnicosdentro de casa.

    Est certo, patroa respondeu Jack. H algo para beber? H um balde no poo indicou ela , e uma caneca de alumnio ao lado. Obrigado disse Jack, e levou a tigela com o guisado para o celeiro, fazendo uma parada

    no caminho para beber um longo gole de gua.Mas antes de entrar no celeiro, estacou l fora, porque julgou ouvir vozes. Oh, sim dizia o Espantalho , lutamos com uma dzia de salteadores, o meu criado e

    eu. Salteadores? comentou algum. Era uma voz feminina, e transbordava de admirao.Jack entrou e encontrou o Espantalho sentado num fardo de palha, rodeado de uma dzia de

    ancinhos, enxadas, vassouras, ps e forquilhas. Estavam todos encostados parede, escutandorespeitosamente.

    Pelo menos era o que parecia, at se aperceberem da presena de Jack. Voltaram ento aparecer ancinhos, enxadas e por a afora.

    Ah, Jack, a est! exclamou o Espantalho. A mulher do agricultor entregou-me uma tigela de guisado para ns dois anunciou Jack,

    olhando sua volta com ar duvidoso. Fique com a maior parte disse o Espantalho. Eu no como muito. Um pedacinho de po ser suficiente. Ento Jack sentou-se e atacou o

    guisado, que estava cheio de pimentes, cebolas e pedaos de salsicha cheios de nervos. Pareceu-me ouvir vozes, amo falou com a boca cheia. E ouviu mesmo. Estava s contando as nossas aventuras a estas damas e a estes

    cavalheiros.Jack olhou para os ancinhos, enxadas e vassouras.Nenhum se mexeu ou disse uma palavra. Ah disse Jack. Sim. Como estava dizendo prosseguiu o Espantalho , os salteadores eram um grupo

    terrvel. Todos armados at os dentes. Prenderam-nos numa caverna e... Pareceu-me ter dito que era um castelo em runas disse um ancinho.

  • Isso mesmo, um castelo em runas corrigiu o Espantalho, todo animado.Jack ficou todo arrepiado de medo. Parecia mesmo que um dos ancinhos falara, mas estava

    escurecendo, e sentia-se muito cansado. Esfregou os olhos, e sentiu que se fechavam todepressa quanto o tempo de repetir o gesto.

    Bem, afinal qual foi? quis saber o ancinho. Castelo. Prximo de uma caverna. O meu criado e eu entramos para investigar, e depois

    demos de cara com duas dzias de salteadores. Ou trs dzias, provavelmente. Escondi-me nocanto, e o Jack contou uma histria para eles adormecerem, e eu surgi como uma apario...assim...

    O Espantalho levantou os braos e fez uma cara hedionda. Algumas das vassouras maisbaixas recuaram, e uma pequena forquilha guinchou de terror.

    E os salteadores meteram o rabo entre as pernas e fugiram continuou o Espantalho. Tenho pensado no assunto desde ento, e cheguei a uma concluso. Acho que eram pssaros, es estavam disfarados de salteadores. Passares explicou. Assim do tamanho deavestruzes. Muito perigosos acrescentou.

    O senhor deve ser muito corajoso disse uma vassoura timidamente. Oh, no sei disse o Espantalho. Uma pessoa se acostuma ao perigo neste tipo de

    trabalho. Mas depois de pouco tempo, abracei uma nova profisso. Pisei o palco! Entretanto, Jackdeitara-se. A ltima coisa que percebeu antes de adormecer era que o Espantalho comeava arepresentar o papel que assumira na pea; s que parecia um papel muito mais importante doque Jack se recordava, e quando chegou quela parte em que a Rainha Dido se apaixonava peloEspantalho e o nomeava primeiro-ministro, Jack notou que tinha dormido um bocado.

    Acordou, viu que o sol lhe incidia nos olhos e o Espantalho o sacudia. Jack! Acorda! hora de trabalhar! Os pssaros j esto de p h tempos. Mas, Jack,

    preciso lhe dar uma palavrinha. Em particular.Jack esfregou os olhos e deu uma espiadela. Ns estamos sozinhos argumentou. No! Quero dizer, ainda mais sozinhos alegou o Espantalho, num murmrio urgente.

    Longe de... voc sabe...Fez um gesto por cima do ombro e inclinou a cabea para trs num gesto significativo. Ah, entendo disse Jack, que no fazia ideia do que ele se referia. D-me s um

    instante e j vou encontr-lo no poo, amo.O Espantalho anuiu e saiu do celeiro. Jack coou a cabea. Os ancinhos, enxadas e vassouras

    estavam perfeitamente imveis e em silncio. Devo ter sonhado falou Jack com os seus botes e levantou-se.A mulher do agricultor dera-lhe po com compota para o desjejum, e Jack levou-o para o

    poo, onde o Espantalho aguardava impacientemente. O que , amo? perguntou. Decidi me casar contou o Espantalho. A verdade que me apaixonei. Oh, Jack, ela

    to linda! E to delicada! No vai acreditar, mas quase me sinto desas-trado junto dela. Quegraciosidade! Que encanto! Oh, meu corao est perdido, amo-a, venero o cho que ela varre!

    Varre? estranhou Jack, de boca cheia. uma vassoura explicou o Espantalho. Deve ter reparado nela. A mais bonita! A

  • mais encantadora! Oh, adoro-a! E j lhe disse? Ah. Era o que ia te contar. Falta-me a coragem, Jack. No tenho nimo. Assim que olhar

    para ela vou me sentir como uma... como uma... como uma cebola. Uma cebola? Sim, exatamente uma cebola. Mas no consigo pensar em nada para lhe dizer. Por isso

    ter que ser voc a contar-lhe.Jack coou a cabea. Bem afirmou , no sou to eloquente quanto o senhor, amo. Provavelmente meterei

    os ps pelas mos. Tenho certeza de que ela prefere ouvir da sua boca. Bem, claro que prefere concordou o Espantalho. Qualquer um preferia. Mas eu fico

    emudecido quando a vejo, por isso ter que ser voc. No entendo por que se sente como uma cebola disse Jack. Tambm no. No imaginava que o amor pudesse ter esse efeito. Nunca esteve

    apaixonado, Jack? No creio. Se me apaixonar, provavelmente me sentirei como um nabo. Olhe, vou lhe

    dizer uma coisa, amo... J sei! Podia fingir ser um pssaro, atac-la, e eu podia fingir que vinha afugent-lo.

    Aposto que isso a deixaria impressionada. No sou to bom ator quanto o senhor, amo.Provavelmente ela ia perceber que eu no era um pssaro verdadeiro. Olhe, vamos

    trabalhar, e pode pensar nela o dia inteiro, l no milharal. Falaremos mais tarde, antes devoltarmos.

    Sim! uma boa ideia concordou o Espantalho, e afastou-se todo orgulhoso para iniciaro dia de trabalho.

  • 6UMA SERENATA

    Jack trabalhou com afinco por toda a manh. Ao meio-dia, o agricultor veio ao pomar vercomo ele estava se J saindo e olhou sua volta com ar satisfeito.

    Aquele outro sujeito disse ele , o seu com-panheiro... O meu amo respondeu Jack. Como queira. Esse. um bom trabalhador, no h dvidas. Mas... bem... entende... Oh, ele tem muito jeito para afugentar pssaros animou-se Jack. Sem a menor dvida. Mas... humm... ele um bocado, h... bem, no ? S para quem no o conhece. Verdade? Nesse caso ele ... h... no ? um personagem profundo disse Jack, espantando um melro. Ah disse o agricultor. S que, ele parece quase... bem, se eu no soubesse, diria

    mesmo... entende. Faz parte da astcia dele. Sabe, quando est trabalhando, ele nunca... esse tipo de coisa. Claro concordou o agricultor. No valeria a pena... h... Quer dizer, haveria uma quantidade de... o senhor sabe. Muito certo. Nisso tem razo. Mesmo assim, he-in? Quer dizer... Sim concordou Jack. No, seria terrvel se... h... Para bom entendedor, hein? rematou o agricultor, piscando o olho e batendo na asa do

    nariz. Jack imitou-o, caso se tratasse de um sinal particular de uma sociedade secreta. Oagricultor anuiu e afastou-se.

    Ufa, ainda bem que ele no teve esta conversa com o amo, pensou Jack. O pobre diabo noteria entendido uma palavra.

    Continuou a matraquear afanosamente por toda a tarde, e quando o sol estava se pondo, foichamar o Espantalho no campo de cima.

    Jack disse o Espantalho , estive pensando nela o dia todo, tal como sugeriu, e cheguei concluso de que, se ela no quiser se casar comigo, terei que fazer algo desesperado.

    Oh no lamuriou-se Jack. E o que seria, amo? Vou deixar isso para pensar amanh. Boa ideia. O que ser que tem para a ceia?A mulher do agricultor deu-lhes outra tigela de guisado, e deu tambm um longo olhar

    desconfiado e fuzilante ao Espantalho, que ele no viu, porque estava de olhos postos no celeirocom uma expresso embasbacada no seu nabo.

    Obrigado, patroa agradeceu Jack. No se esquea de mant-lo trancado de noite avisou a mulher do agricultor. No

    gosto nada do aspecto dele. Se der falta de algumas galinhas...Jack e o seu amo sentaram-se ao lado do poo, e mais uma vez o Espantalho deixou Jack

    comer todo o guisado, e mordiscou apenas um pedao de po. Devia se alimentar, amo advertiu Jack. Aposto que ela iria gostar muito mais do

    senhor se estivesse de barriga cheia. Pelo menos, se sentiria melhor. No, no tenho apetite, Jack. Estou definhando de amor.

  • Se tem mesmo certeza disse Jack, terminando o guisado. J sei! exclamou o Espantalho, sentando-se de repente e abrindo o guarda-chuva com o

    entusiasmo. Eu podia lhe fazer uma serenata! Bem... principiou Jack, mas o Espantalho estava entusiasmado demais para ouvir. Sim! isso! Eis o plano. Espero que escurea, depois a pego e finjo que varro o cho. E a

    trago para fora, depois a encosto na parede, como quem no quer na-da, e depois canto para ela. Bem... comeou Jack de novo. Oh, sim. Quando ela me ouvir cantar, o seu co-rao ser meu! melhor no cantar alto demais. No me parece que o agricultor ficar satisfeito.

    Certamente a velhota dele no ficar. Oh, serei muito discreto retorquiu o Espantalho. Terno, mas ardente, eis o tom certo. Parece bom disse Jack. Comeo a varrer assim que a lua banhar o terreiro. Acho que o luar me realaria, no

    acha? Talvez fosse melhor deixar-me arrum-lo primeiro sugeriu Jack, e sacudiu o p dos

    ombros do Espantalho, enfiou palha nova no peito dele e lavou-lhe o nabo. Pronto... est um mimo. No se esquea, pouco barulho.O Espantalho sentou-se do lado de fora do celeiro, e Jack foi l para dentro se deitar. Antes,

    porm, foi buscar a vassoura e colocou-a ao lado da porta, para que o amo pudesse encontr-lano escuro.

    Desculpe percebeu que dizia , espero realmente que no se importe de eu mud-lapara c. Vai perceber o motivo quando a lua aparecer.

    Ela no respondeu, mas encostou-se muito graciosamente parede. Jack pensou que talvezela fosse tmida, at cair em si e abanar a cabea.

    Ele me levou a acreditar que ela estava viva, pensou. melhor ter cuidado, seno ainda fico maluco como ele.Estendeu-se na palha e fechou os olhos. O velho burro e a vaca dormiam de p, respirando

    muito suavemente e ruminando um pouco de tempos em tempos, e reinavam o silncio e atranquilidade.

    Jack acordou quando o luar lhe incidiu nos olhos.Bocejou, espreguiou-se e sentou-se. Bem disse para si mesmo , est na hora de comear a varrer o cho. Isto uma ideia

    tola. Mesmo assim, o meu amo maravilhoso, sem a menor dvida.Pegou a vassoura e varreu o cho, empurrando toda a palha e poeira descontraidamente na

    direo da porta, por onde entrava o luar. Uma vez l fora, encostou a vassoura parede e voltoua bocejar antes de tornar a se deitar.

    E readormeceu quase em seguida. Deve ter comeado logo a sonhar, porque parecia queestava vendo o Espantalho varrer o terreno l fora, cantando para a vassoura enquanto o fazia:

    O seu cabo to esbelto,As suas cerdas to delicadas,Que o meu corao obrigado

  • A render-se aos seus encantos;Recuando, avanando,E lanando olhares furtivos,Oh, nunca pare de danarA noite inteira nos meus braos!

    Jack pestanejou e esfregou os olhos, mas no fez qualquer diferena. O Espantalho e avassoura valsavam como os danarinos mais graciosos num baile.

    O seu delicado movimentoDeixa tudo mais limpo!E eu nunca tinha vistoMenina to elegante;To graciosa, to encantadora,Completamente inofensiva,Oh que mal pode haverNum beijo casto?

    Jack pensou: Ele vai casar com ela, e depois no precisar de um criado para mais nada. Masele parece feliz. S no sei se encontrarei novamente um amo a quem preferisse servir...

    E, enquanto estava ali estendido entregue a todos aqueles pensamentos, acordou de repentecom um brado roufenho horrvel.

    Hi-h! Hi-h!Sentou-se e percebeu, primeiro que fora um sonho; e segundo, de que o velho burro no

    celeiro zurrava, raspava as patas e gerava uma confuso sem fim; e terceiro, de que l fora naeira o Espantalho gritava, uivava e berrava de raiva, ou aflio, ou infelicidade.

    Jack correu para a porta do celeiro e viu a mulher do agricultor, com um roupo at os ps,saindo disparada da cozinha de frigideira erguida acima da cabea. Atrs dela, o agricultor, decamisa de dormir comprida, carregava um bacamarte. O Espantalho agarrava a vassoura juntoao corao, e caam-lhe lgrimas verdadeiras pelo nabo.

    No, patroa! No! No faa isso! gritou Jack e correu para tentar segurar a mulher doagricultor, que se preparava para bater com a frigideira no Espantalho. No provinha qualquerperigo da parte do agricultor; mal tentou fazer pontaria com o bacamarte, todo o chumbo dadescarga saiu pelo cano e caiu sobre as lajes como granizo.

    Jack alcanou o Espantalho exatamente na mesma hora que a mulher do agricultor, ecolocou-se entre ambos com os braos bem abertos.

    No, patroa! Pare! Deixe-me explicar! suplicou. Eu lhe racho os miolos! exclamou ela. Ele vai aprender a no se por a miar no meio

    da noite, pregando um susto de morte em gente honesta que est dormindo! No, no faaisso, patroa, ele um pobre diabo que no faz mal a ningum... deixe que eu cuido dele...

    Eu te avisei! gritou o agricultor, mantendo-se em segurana atrs da mulher. Noavisei? Hein?

    Sim, avisou concordou Jack. Pelo menos disse-me qualquer coisa. Nada disto... voc sabe acrescentou o agricultor.

  • Leve essa coisa horrvel ordenou a mulher do agricultor , saia imediatamente daqui,e no me volte a aparecer!

    Com certeza, patroa respondeu Jack , e ento o nosso pagamento? Pagamento? inquiriu ela. Vocs no vo receber pagamento nenhum. Desaparea

    daqui, voc e o seu monstro!Jack virou-se para o Espantalho, que no ouvira uma palavra do que a mulher do agricultor

    dissera. Na verdade, continuava a soluar de desespero. Ento, amo, qual o problema? perguntou. Ela j est comprometida! uivou o Espantalho. Vai casar com um ancinho! Oh, isso que azar disse Jack. Mas veja as coisas pelo lado positivo... Vou tomar a atitude decente, claro prosseguiu o Espantalho, fazendo um esforo para

    controlar suas emoes. Minha cara menina disse vassoura , eu no faria nada parame interpor entre voc e a sua felicidade, se o seu corao j pertence ao cavalheiro no celeiro.Mas ele fica avisado disse, levantando a voz, e olhando para todas as ferramentas encostadas parede , bom que trate esta vassoura como a preciosa criatura que ela , e faa da felicidadedela o centro de sua vida, seno ter que enfrentar a minha ira!

    Com um ltimo soluo entrecortado, entregou a vassoura a Jack. Este levou-a para dentro doceleiro e colocou-a ao lado do ancinho.

    Quando voltou para fora, o Espantalho falava com o agricultor e a mulher. Lamento t-los acordado disse , mas no me desculpo por exprimir

    apaixonadamente os meus sentimentos. Afinal, a nica coisa que nos distingue dos animais. Louco disse a mulher do agricultor. Imbecil. V, ponha-se fora daqui, pegue a

    estrada e no volte.O Espantalho esboou uma vnia o mais graciosa-mente que pde. Bem, querida disse o agricultor , no deveramos... voc sabe. No h muitos... h,

    hoje em dia, hein? Desse tipo... Ele um louco furioso, e quero-o fora daqui! insistiu. Alm disso tambm um

    monstro horroroso, e assustou o burro. Fora daqui! repetiu, brandindo a frigideira. Vamos, amo disse Jack. Vamos procurar nossa fortuna noutro lugar. J dormimos

    debaixo de sebes antes, e est uma bela noite quente.Ento, lado a lado, o Espantalho e o seu criado partiram pela estrada enluarada. De tempos a

    tempos, o Espantalho suspirava fundo e virava-se para olhar para trs com tamanha expresso deangstia no seu nabo que Jack teve a certeza de que a vassoura abandonaria o ancinho e seapaixonaria por ele, se pudesse; mas era tarde demais.

    Oh, sim disse o agricultor , ele era sem dvida... o senhor sabe. Um louco furioso! manifestou-se a mulher. Um luntico perigoso. Forasteiro tambm. No devia andar solta. Entendo afirmou o Senhor Cercorelli. E quando foi embora? Ora, quando foi? pensou o agricultor. Por volta... h... No meio da noite disse a mulher. Afinal, para que quer saber? Est encarregado

    dele? De certa forma, sim. Fui incumbido pelo meu cliente de levar este espantalho de volta

    para o lugar onde pertence.

  • Ah disse o agricultor. Assim sendo, um caso de h..., no ? Desculpe? O senhor sabe, coisa da idade, h, por assim dizer. Hein?O Senhor Cercorelli reuniu seus papis e levantou-se. Tirou-me as palavras da boca, senhor afirmou ele. Obrigado pela sua ajuda. Vai prend-lo quando o apanhar? quis saber a mulher do agricultor. Oh, posso lhe garantir retorquiu o Senhor Cercorelli que isso o mnimo.

  • 7A CARAVANA MGICA

    Jack disse o Espantalho na manh seguinte , agora que tenho o corao destroado,acho que j deveramos pegar a estrada e procurar a nossa fortuna.

    E ento a sua propriedade no Vale da Primavera, amo? Ah, sim, com certeza. Temos que ganhar dinheiro suficiente para pr o lugar em ordem.

    Depois voltaremos para cuidar dele.Espero que haja bastante comida l, pensou Jack.O Espantalho caminhava cheio de energia, e Jack saltitava ao lado dele. Havia muito para ver

    e, apesar do Espantalho ter o corao destroado, a sua curiosidade em relao ao mundo nofora afetada.

    Por que ser que aquele edifcio queimou? ia perguntando, ou: Por que aquelasenhora idosa estar subindo numa escada de mo? , ou: Sabe, Jack, extraordinrio, mash horas que no ouvimos um pssaro. Por que ser, me diga!

    Acho que os soldados passaram por aqui respondeu Jack. Provavelmenteincendiaram a casa, e levaram todos os trabalhadores rurais, por isso que a senhora idosa temque consertar o telhado. Quanto aos pssaros... ora, os soldados devem ter comido tudo e nodeixaram nada para eles, nem sequer um gro de trigo.

    Hmm disse o Espantalho. Soldados, hein?Eles fazem esse tipo de coisa? So o pior tipo de gente do mundo, os soldados respondeu Jack. Piores que os pssaros? Muito piores. A nica coisa a fazer quando os soldados aparecem nos escondermos e

    ficarmos bem quietinhos. Qual o aspecto deles? Bem...Mas antes que Jack pudesse responder, algo despertara a ateno do Espantalho. Olhe! exclamou, apontando todo entusiasmado. O que aquilo?Vinha uma caravana na direo deles, puxada por um cavalo muito velho e to escanzelado

    que se podiam contar todas as costelas. A caravana estava coberta de estrelas, luas e smbolosmsticos pintados, e sentado no banco, segurando as rdeas, estava um homem quase toescanzelado quanto o cavalo, usando um chapu comprido pontiagudo e uma tnica com maisestrelas e luas.

    O Espantalho olhava para tudo aquilo com enorme admirao.Assim que os viu, o homem acenou e sacudiu as rdeas para obrigar o cavalo a parar. O

    pobre animal bem que agradeceu o repouso. O homem desceu do banco e precipitou-se para oEspantalho.

    Muito bom dia, cavalheiro! Muito bom dia, meu senhor! saudou, fazendo uma profundavnia e puxando a manga do Espantalho.

    Um bom dia para o senhor, cavalheiro respondeu o Espantalho. Amo interveio Jack , no creio...

  • Mas o desconhecido com suas vestes msticas agarrara a mo do Espantalho que fora feitacom o poste de sinalizao e inspecionava-a com ateno.

    Ah! disse ele. Aha! Ha! Vejo grande fortuna nesta mo! Verdade? inquiriu o Espantalho, impressionado. Como que sabe? Atravs da caravana mgica! Oh! admirou-se o Espantalho. Jack, temos que arranjar uma caravana mgica!

    Igualzinha deste senhor. Depois, tambm poderamos saber das coisas.Poderamos traar o nosso destino e encontrar o caminho at o Vale da Primavera e lev-la... Disse o Vale da Primavera, cavalheiro? Acaso no seria membro da famosa famlia

    Buffaloni, meu senhor? Acho que no retorquiu o Espantalho. Ah! Entendo! Chamaram-no como consultor, para se encarregar pessoalmente do assunto.

    Ouvi dizer que os Buffalonis esto fazendo coisas esplndidas no campo da indstria. Secandotodos aqueles poos e nascentes e construindo fbricas maravilhosas! Sim? No?

    Vendo que o Espantalho estava confuso, o astrlogo prosseguiu melifluamente: Mas deixe-me ler o seu horscopo e olhar fundo na bola de cristal. Diante do poder do meu olhar, o vu dotempo se afasta e os mistrios do futuro so revelados.

    Entre na minha caravana para uma consulta! Amo segredou Jack , isto vai nos custar dinheiro, e ns no temos. Alm disso, ele

    um velho trapaceiro... Oh, no, meu rapaz, est equivocado disse o Espantalho. Sou um excelente juiz, e a

    mente deste cavalheiro est acima de qualquer trapaa. Os seus pensamentos residem nodomnio do sublime, Jack!

    Tem toda razo, cavalheiro! um pensador profundo e perspicaz! afirmou o mago,chamando-os para que entrassem na caravana, e descobrindo uma bola de cristal em cima deuma mesinha.

    Depois sentaram-se todos. Agitando os dedos de forma misteriosa, o astrlogo espreitou asprofundezas da bola de cristal.

    Ah! disse. Era o que desconfiava. As iluminaes planetrias so negras e obscuras.A nica maneira de desclarificar o astroplasma traar o seu horscopo, meu caro senhor, o queposso lhe fazer por uma modesta quantia.

    Bem, ento est decidido disse Jack, levantando-se porque ns no temos umcntimo conosco. Bom dia...

    No, Jack, espere! pediu o Espantalho, batendo na cabea. O que est fazendo, amo? perguntou Jack. Pare... ainda vai se machucar! Ah... aqui est! exclamou o Espantalho, e caiu uma pequena moeda de ouro da fenda

    de seu nabo.Jack e o mago precipitaram-se imediatamente, mas o mago chegou primeiro. Excelente disse, colocando a moeda entre seus compridos dentes de cavalo. Por

    uma extraordinria coincidncia, esta exatamente a quantia certa. Vou consultarimediatamente as estrelas.

    De onde veio aquela moeda, amo? inquiriu Jack, surpreso. Oh, est ali dentro h muito tempo respondeu-lhe o Espantalho.

  • Mas... mas... se... se... disse Jack, puxando os cabelos.O Espantalho ignorou-o. Observava o astrlogo, que tirou um livro empoeirado de uma

    prateleira e o abriu, podendo ver-se tabelas e colunas de nmeros, e passou rapidamente umdedo por elas, murmurando com ar de entendido.

    V o que ele est fazendo? segredou o Espantalho. Isto inteligente, Jack, isto muito profundo.

    Ahhhhh! soltou o astrlogo num longo gemido trmulo. Vejo grande fortuna nasestrelas!

    Continue, continue! pediu o Espantalho. Oh, sim disse o mago, lambendo um dedo sujo e passando vrias pginas. E h

    mais! Est vendo, Jack. Que bom termos encontrado este cavalheiro! comentou o Espantalho.De repente, o astrlogo ficou com a respirao suspensa, observando os smbolos no seu livro.

    E o Espantalho tambm. Sustiveram-na por muito tempo, at que o astrlogo a soltou numprolongado assobio. E o Espantalho tambm.

    Depois, como se fosse um fardo pesado demais pa-ra suportar, o astrlogo levantoulentamente a cabea.

    Os olhinhos escuros do Espantalho estavam arregalados, a palha em p, a fenda enorme queera a sua boca pendendo aberta.

    Nunca vi um destino to estranho e profundo como este afirmou o astrlogo em vozbaixa e trmula.

    A elptica paranmica da clavcula de Salomo, multi-plicada pela influncia solar notrgono do catanastomide zaforstico, dividida pelo meridiano do azimute vernal e composticadapelo diafragma de Ezekiel, revela...

    Sim? Significa... Sim? Sim? Prediz... Sim? Sim? Sim?O mago fez uma pausa momentnea, e os seus olhos deslizaram para Jack e depois voltaram

    ao Espantalho. Perigo disse em tom solene. Oh no! exclamou o Espantalho. Seguido de alegria... Sim! E depois de apuros... No! Conduzindo glria... Sim! Transformada em tristeza... No, no, no!O Espantalho estava mortalmente assustado.O astrlogo fechou lentamente o livro e afastou-o do alcance de Jack. Depois, o seu lbio

  • superior retraiu-se to subitamente que Jack at deu um pulo. Sorrindo como um crocodilo comar de santinho, o velho anunciou: Mas o sofrimento ser coroado de sucesso...

    Hurra! exclamou o Espantalho. E as lgrimas terminaro em triunfo... Ainda bem! Ainda bem! E ter sade, riqueza e felicidade enquanto viver! Oh, estou to contente! Oh, que

    alvio! exclamou o Espantalho. Est vendo, Jack, este cavalheiro sabe o que est dizendo,no haja dvida. Oh, cheguei a ficar preocupado! Mas no fim tudo se comps. Obrigado, senhor!Mil obrigados! Podemos seguir o nosso caminho confiantes e fortalecidos. Valha-me Deus, queexperincia.

    O prazer foi todo meu respondeu o mago, efetuando uma profunda vnia. Tenhacuidado ao sair.

    Os degraus so traioeiros. Bom dia!Deu um olhar desconfiado a Jack que por sua vez o retribuiu. Pense s, Jack disse o Espantalho com uma voz amedrontada e abatida enquanto a

    caravana se afastava lentamente. Estivemos dentro de uma caravana mgica e ficamossabendo os segredos do futuro!

    Esquea isso, amo afirmou Jack. Tem mais algum dinheiro dentro da sua cabea? Deixe-me ver respondeu o Espantalho e bateu vigorosamente no nabo. Depois sacudiu-

    o com fora. Hmm disse , chocalhou alguma coisa. Deixe-me ver...Virou a cabea de lado e abanou-a. Caiu algo que saltou para a estrada.Os dois debruaram-se para ver o que era. uma ervilha constatou Jack. Ah, sim retorquiu o Espantalho com modstia. o meu crebro, sabe.Mas antes que qualquer um deles conseguisse apanh-la e voltar a coloc-la l dentro, um

    melro desceu, apanhou a ervilha com o bico e levantou voo, indo se empoleirar num ramo.O Espantalho sentiu-se ultrajado. Agitou o poste de sinalizao, abriu e fechou o guarda-

    chuva e bateu o p em fria. Seu patife! Seu ladro! bradou. Devolva meu crebro!O melro engoliu a ervilha, e depois, para espanto de Jack, disse: Vai-te catar. Eu a vi

    primeiro. Como se atreve! gritou o Espantalho em resposta. Nunca vi comportamento mais

    vergonhoso! No grite comigo retrucou o melro. cruel, sim. Tem uma cara horrvel e cruel.

    Ponho a lei atrs de voc se voltar a gritar comigo. No justo.Furibundo, o Espantalho abriu e fechou o guarda-chuva vrias vezes, mas, de tanta raiva, no

    conseguiu encontrar quaisquer palavras, por isso as coisas que disse saram assim: Rrrol... nnhnrrr... eeee... mnmnm... nnnmm-ggrrnnnggg.. bbrrr... ffFf... ssss...

    gggrrrssschhttt!O melro ficou todo eriado e, soltando um chiado fraquinho, afastou-se dali. Jack coou a

    cabea. Eu sabia que os papagaios falavam, amo, mas no os melros comentou.

  • Oh, todos eles falam, Jack. Devia ouvir a forma insolente como se dirigem a mim quandopensam que mais ningum est ouvindo. Naturalmente este jovem ma-landro achou que voctambm era um espantalho, e que conseguiria levar a melhor.

    Bem, estou constantemente aprendendo coisas novas disse Jack. Seja como for, meparece, amo, que enquanto no lhe arranjarmos um crebro novo, vai ter que se virar sem um.Conseguimos arranjar braos novos, lembra-se?

    O Espantalho continuava a pular, furibundo, mas parou e olhou para Jack quando o ouviu dizeraquilo, e acalmou-se de imediato.

    Acha que conseguiramos encontrar outro? perguntou. No deve ser muito difcil respondeu Jack. Primeiro vamos ver como se sai sem ele. Pode at nem precisar de nenhum. Como o

    apndice. Mas muito pessoal disse o Espantalho em tom de dvida. Haveremos de arranjar alguma coisa, no se preocupe. Ah, Jack, meu rapaz, dar-lhe emprego foi a melhor deciso que j tomei. Posso passar

    muito bem sem um crebro, mas no creio que pudesse dispensar o meu criado. Bem,obrigado, amo, mas no sei se vou conseguir passar sem comida. Espero que possamos arranjaralgo para comer em breve.

    Como no havia nada ali, partiram de novo estrada afora. Mas era uma zona um tanto desertae erma; as nicas fazendas por onde passaram tinham sido incendiadas, e no se via uma spessoa.

    No h pssaros comentou o Espantalho, olhando sua volta. curioso, Jack, masno me agr