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o edifício vilanova artigas | um estudo sob a perspectiva do restauro auh 412 técnicas retrospectivas: estudo e preservação dos bens culturais | julho de 2009 georges boris | giselle mendonça | luisa fecchio | marcela ferreira | mariana strassacapa | stela da dalt

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o edifício vilanova artigas | um estudo sob a perspectiva do restauro auh 412 técnicas retrospectivas: estudo e preservação dos bens culturais | julho de 2009

georges boris | giselle mendonça | luisa fecchio | marcela ferreira | mariana strassacapa | stela da dalt

Este trabalho pretende apresentar os processos de intervenção pelos quais tem passado o Edifício Vilanova Artigas, sede da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, neste ano de 2009 principalmente, aprofundando-se no tema a partir de princípios da preservação do patrimônio cultural, ou seja, de uma base teórica fundamentada no tema da restauração. Assim, são estruturais as discussões em torno do tema estituídas na disciplina AUH 412, Técnicas Retrospectivas: Estudo e Preservação dos Bens Culturais, que compreenderam questões como o conceito de restauração e sua transformação ao longo dos séculos e a autenticidade e suas implicações no ramo da preservação do patrimônio cultural. Esses temas, aprofundados na disciplina cursada neste último semestre, são extremamente pertinentes para as discussões emergentes das reformas recentes do edifício da FAU, um bem tombado como patrimônio cultural pelos órgãos municipal e estadual de São Paulo. Essas reformas, propostas (e várias já iniciadas) com intervenções indevidas na medida em que não consideram a condição de patrimônio do edifício, incentivaram discussões em torno do tema, e este trabalho pretende alimentar essas discussões com bases teóricas e leituras possíveis do problema segundo a ótica da preservação. Assim, está estruturado em 3 partes básicas e complementado por um anexo:

1 Um panorama do edifício Vilanova Artigas, que implica um histórico do edifício constituído a partir da caracterização de seu projeto, de sua construção e do seu tempo de vida, procurando, com isso, entender a questão atual das reformas da FAU de uma maneira mais geral; 2 Discussões teóricas, que conta, primeiramente, com considerações terminológicas (a utilização e os problemas do termo reforma); descrição do papel dos órgãos de preservação e o encaminhamento dos processos da FAU; e considerações sobre os fundamentos teóricos da disciplina da restauração, da preservação da arquitetura moderna e da questão da autenticidade. 3 Estudos de caso, que empreende descrição, análise e críticas das propostas existentes para dois casos de intervenção no edifício da FAU, um referente às necessidades do edifício, ou seja, a cobertura, e o outro competente às expectativas dos usuários, o projeto para o piso dos departamentos.

Anexo implica o registro de uma conversa com os arquitetos Anna Beatriz Galvão e Marcos Carrilho sobre o funcionamento dos órgãos de preservação, questões do restauro hoje e o encaminhamento institucional dos processos da FAU. Como referências base e bibliografia foram consultados tanto materiais analisados no decorrer da disciplina quanto autores e documentos não previstos a priori, de forma a complemetar as questões de sala às mais referentes especificamente ao cenário atual da FAU. Dentre os temas tratados na disciplina, destacamos os seguintes: a teoria de Cesare Brandi e o restauro crítico, a preservação da arquitetura moderna, a questão da autenticidade nos textos de Françoise Choay e Raymond Lemaire e a experiência brasileira quanto aos órgãos de preservação.

introdução

O edifício da FAU da Cidade Universitária é reconhecido nacional e internacionalmente devido a sua posição de destaque no panorama da arquitetura moderna e ao seu papel no ensino de arquitetura no Brasil1. O edifício da rua Maranhão que abrigava a instituição até então não era mais compatível com as novas demandas físicas e ideológicas, que envolviam o aumento dos corpos docente e discente, a necessidade de novos espaços de pesquisa e trabalho e a adaptação ao novo programa de ensino de arquitetura. A criação do campus da USP, a Cidade Universitária, possibilitou a reunião das diversas unidades da universidade, promovendo idealmente a articulação e o encontro dos milhares de alunos da instituição. A possibilidade de se construir um novo edifício permitiu a elaboração de um projeto que traduzisse ideais da arquitetura moderna e principalmente do próprio projeto emergente de ensino. A nova FAU foi concebida como edifício-cidade, pressupondo um convívio público entre iguais e sediando a formação do arquiteto-humanista, idealizado por essa reforma do ensino de arquitetura. O espaço da FAU evidencia uma série de princípios ideológicos, como a liberdade, a igualdade e a democracia, através da proposição de cheios e vazios, da continuidade espacial, de seus espaços generosos de encontro, da integração interior-exterior, da exclusão de uma porta de entrada; enfim, entende-se que esses princípios só podem ser devidamente apreendidos por meio da vivência nesse espaço. Para traçar um breve panorama do histórico da construção do edifício da FAU, adotamos a proposta de análise desenvolvida no mestrado de Ana Clara Giannecchini, estruturada por três recortes: o projeto, a construção e o tempo-vida da obra (GIANNECCHINI, 2009: 2). Quanto ao projeto do edifício da FAU da Cidade Universitária, surpreende a insistência da mitificação de um projeto que, na verdade, é múltiplo2. Fica clara a intenção de se valorizar os ideais por trás de um edifício, por isso a tendência de concentrar as atenções em um só projeto que materializaria determinados princípios, quando, na verdade, esses ideais não estão vinculados a um desenho específico. Dessa forma, evoca-se normalmente um projeto original — que é, na verdade, uma criação dos usuários do edifício ao longo do tempo a partir de uma apropriação generalizada dos princípios que o regem. Atualmente, entendemos como projeto original, portanto, um conjunto de ideais que devem ser preservados, não tanto um desenho — esse ponto será retomado mais adiante, quando se tratar da questão da autenticidade no restauro arquitetônico. Essa confusão a respeito dos projetos se estendeu inclusive à própria construção do edifício, iniciada em 1966: o projeto foi novamente modificado na iminência da obra (em relação ao definido em 1966), imediatamente antes ou mesmo durante a obra (GIANNECCHINI, 2009: 238). Atribui-se a uma suposta paralisação das obras, à ausência do arquiteto responsável e também a descuidos, negligências e até mesmo desconhecimento quanto a especificações as várias patologias verificadas atualmente. Dentre essas, destaca-se o caso da cobertura do edifício, que se encontra comprometida devido a problemas de infiltração e fadiga e desagregação do concreto; atualmente, se verifica que foram utilizados concretos diversos — provavelmente por conta da paralisação da obra (levando a uma concretagem em duas etapas) ou mesmo pela própria não-familiaridade com a aplicação do material em situação de tamanha proporção e complexidade. Além desses aspectos, também destaca-se a falta de previsão de uma contra-verga para as vigas da cobertura, o que resultou em uma flecha de até 40 cm, deformação que constitui-se como principal causa de empoçamento na laje, que deforma junto à viga. Outro caso evidente de descuido durante a etapa da construção foi a opção por instalar somente um duto de captação de águas pluviais a cada dois módulos de cobertura, enquanto idealmente seria instalado um para cada módulo — essa redução resultou em um acúmulo inesperado de água, que acarretou diversas patologias.

1 O prédio da FAU exprimia um brutalismo pedagógico, ou seja, informava o seu público, arquitetos e estudantes de arquitetura, como um edifício funcionava em termos estruturais e (…) salientava a importância da manipulação arquitetônica das técnicas construtivas (BUZZAR, 1996: 280). 2 O projeto concluído em 1969 difere do projeto apresentado em 1961 e das modificações deste, de 1965 e 1966, realizadas respectivamente pela Diretoria da FAUUSP e pelo escritório Artigas & Cascaldi (GIANNECCHINI, 2009: 236). Normalmente, se classifica como projeto original aquele construído e finalizado em 1969 – porém, ao longo deste trabalho, não se assumirá nenhum dos projetos como original.

panorama do edifício vilanova artigas

Os dois itens anteriores se referem a um período relativamente curto de tempo, situado no passado: são relativos à concepção e à construção do edifício. Agora, ao tratarmos da obra no tempo, tem-se a intenção de contemplar como se desenvolveram as atividades no edifício até o presente momento, abarcando transformações incitadas tanto por expectativas de seus usuários quanto por necessidades do próprio edifício (sendo a principal delas, no caso da FAU, o caso da cobertura, como já descrito anteriormente). Um exemplo expressivo dessas transformações é a construção do edifício anexo, objeto de um concurso arquitetônico, que tinha como objetivo acomodar as instalações das oficinas (LAME, LPG e Fotografia), transferidas para outro local devido à necessidade de expansão dos espaços dentro do edifício da FAU, colocada pela exigência de instalação dos laboratórios de pesquisa. Outra modificação relevante dos espaços ocupados compreendeu o fechamento da fachada leste com as instalações da diretoria e outros espaços administrativos, inibindo a visual. Um espaço bastante controverso desde a construção do edifício é o do piso destinado aos departamentos e ao ateliê interdepartamental: tanto nos projetos antigos quanto durante a vida do próprio edifício o desenho e a ocupação desse espaço sofreram constantes modificações e foram alvo de diversas discussões, inclusive competentes à atualidade. Todas essas transformações são possíveis por conta do próprio caráter do edifício, que permite, e inclusive prevê, pela flexibilização dos espaços, essa atuação dentro dele. Hoje estamos diante de uma situação em que as expectativas dos usuários da FAU e as necessidades próprias do edifício se acumularam, evidenciando um estágio limite dessa situação. Verificou-se que até então foi seguida uma cultura da neglicência, em que a manutenção não é uma prática recorrente, caracterizada por Benedito Lima de Toledo: em nosso país é hábito percorrer caminho inverso ao proposto por Camillo Boito, em 1883. No geral, começamos pela restauração e, ainda assim, quando pressentimos ruína iminente. Justificativa usual: ‘Não há verba’. Nem interesse pela cultura, poderíamos acrescentar. (TOLEDO, 2009) No decorrer do primeiro semestre de 2009 foram divulgados, após insistência da comunidade FAU, diversos projetos, alguns em andamento, outros já concluídos e ainda outros não iniciados. São eles3: Reforma de parte do edifício Vilanova Artigas (Departamentos)/ Reforma dos departamentos Reforma dos sanitários S3 (História) e S4 (Tecnologia) do edifício Vilanova Artigas/ Reforma dos banheiros Remoção de alvenaria e regularização interna dos pilares do edifício Vilanova Artigas/ Abertura dos pilares e fechamento dos shafts Estudo preliminar referente à acessibilidade vertical do edifício Vilanova Artigas (Elevador acessível)/ Substituição de elevador Regularização de salas da área administrativa do edifício Vilanova Artigas/ Setor administrativo Regularização dos Jardins e Calçadas da Fachada Frontal do edifício Vilanova Artigas/ Jardins e Paisagismo Reabitalição da cobertura do edifício Vilanova Artigas/ Tratamento do concreto, juntas e rufos/Cobertura: drenagem de águas pluviais Sobrecobertura: edifício Vilanova Artigas Esses projetos para o edifício da FAU apresentam-se como um grupo de propostas isoladas, não constituindo um conjunto coeso e articulado — um processo de restauro. Foram encaminhados separadamente para os órgãos de preservação pelos quais ele é tombado (Condephaat e Conpresp), sendo apenas parcialmente aprovados. Entendemos que um processo de restauro do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo deveria ser exemplar nos termos de metodologia, execução, participação, didatismo e rigor com relação aos princípios do restauro; entretanto, não é o que se verifica na atual conjuntura das intervenções.

3 Em itálico estão indicados os nomes dos processos como encaminhados ao Conpresp; em negrito, como apresentados em divulgação da Diretoria da FAUUSP.

É importante ressaltar o fato de que essas obras, como encaminhadas aos órgãos de preservação, são encaradas, em sua maioria, como reformas. No campo da preservação de bens culturais, contudo, a escolha de termos precisos para indicar as mais diversas intervenções possíveis em bens preservados deve ser extremamente rigorosa, e essas intervenções devem ser indicadas, a princípio, como manutenção, conservação ou restauro. Referir-se a obras a serem realizadas sobre um bem cultural preservado como reformas acaba, de certa maneira, por resguardá-las de uma esfera mais complexa de discussão e deliberação, abrindo margem a serviços irregulares que não necessariamente tenham recebido permissão dos órgãos de preservação para serem realizados — como é o caso de algumas das intervenções ocorridas no edifício da FAU em 2009. Frente a essas intervenções isoladas reclamou-se a necessidade de não apenas uma unidade com relação à divulgação e execução dessas “pequenas” obras, mas também uma unidade conceitual, o estabelecimento de diretrizes únicas metodológicas4 que dessem a ver o caráter das intervenções como um todo, pautadas essencialmente nos princípios da preservação de um bem cultural tombado (condição que parece ter sido esquecida em ocasião às reformas do edifício da FAU). A falta de estabelecimento de termos precisos para a ação de preservação, portanto, causa e acusa a inexistência de uma metodologia a ser seguida de análise, proposição e execução de intervenções; metodologia essa necessária à atuação em bens culturais, para que ocorra conforme os objetivos mais essenciais da preservação, que pretende transmitir às gerações futuras o bem cultural, e para isso respeitando a memória e seus valores simbólicos, bem como sua própria materialidade. Ações que “se esquecem” desse papel do bem cultural tendem, por meio de imprecisões terminológicas, a intervir no patrimônio de forma fragmentária, pequena:

Na prática atual [...] é possível verificar numerosas ações em bens culturais que não respeitam o documento histórico, sua configuração, seus aspectos memoriais e tampouco as especificidades e características dos materiais de que são compostos: ocorrem e não poderiam ser classificadas como ações de preservação, pois são ditadas essencialmente por razões de uso, de especulação econômica, vinculadas a certas práticas políticas, inspiradas por vaidades e ignorâncias, pessoais e coletivas. São ações de cunho pragmático, e não cultural. [...] São ações ditadas por interesses imediatistas e de setores restritos da sociedade, e não verdadeiramente voltados à coletividade como um todo, considerando o tempo na ‘longa duração’, conduzindo a resultados que vão contra os próprios princípios da preservação. (KÜHL, 2007: 82) Soma-se ainda como fator complicante à definição adequada de uma metodologia clara para a ação de preservação do edifício da FAU o fato de se tratar de um edifício moderno, referente ao Movimento Moderno do país. Tendo sido construído há menos de 40 anos, o edifício é tido como atual, dificultando o entendimento de que, apesar de recente, detém valor histórico e cultural, e que, portanto, não deve ser sujeito a intervenções imediatistas de caráter de aperfeiçoamento, de adaptação, mesmo de reforma, termos hoje amplamente utilizados para aquelas ações em que o comprometimento parece privilegiar o imediatismo das necessidades do presente, sem que seja ponderada a perenidade das obras nas sucessivas gerações, ou mesmo sem que se observem as suas qualidades intrínsecas e o significado cultural que adquiriram ao longo do tempo (GIANNECCHINI, 2009: 2).

Cabe portanto deixar aqui claro que entendemos a intervenção do restauro da forma como interpretou Francesco Doglioni, ou seja, que compete ao restauro as ações sobre um determinado bem cultural (no caso, o edifício da FAU) que procuram atender às expectativas do usuário desse bem. Entram nessa caracterização, portanto, para o edifício Vilanova Artigas, as necessidades de intervir no edifício surgidas com o decorrer do tempo, com a emergência da incompatibilidade entre a organização espacial do edifício na sua

4 Entende-se aqui essa unidade nos termos de que a restauração deve seguir princípios gerais, vinculados a uma coerência conceitual e metodológica (algo diverso de regras fixas), para as várias formas de manifestação cultural, mesmo na diversidade dos meios a serem empregados na prática para se enfrentar os problemas particulares de cada obra. (KÜHL, 2008: 79).

terminologia

concepção e o surgimento de novos programas ou mesmo sua expansão espacial, 40 anos depois. Ainda se referindo à interpretação de Doglioni, contrapostas às expectativas dos usuários estão as necessidades do edifício e as intervenções que procuram atendê-las. Assim, essas intervenções correspondem à estabilidade, às condições físicas e à integridade do edifício como construção, constituindo ações relativas à conservação. Portanto, tem-se aqui uma gradação no que diz respeito as ações de intervenção no bem cultural: a manutenção como ação rotineira, que deve garantir que não sejam necessárias intervenções maiores; a ação conservativa como aquela que compete a problemas de integridade física do edifício; e a restauração como intervenção que abarca a conservação, mas que diz respeito também a valores estéticos e históricos, fundamentando-se nos princípios de distinguibilidade, reversibilidade, mínima intervenção e compatibilidade de técnicas e materiais.

Entender os processos de preservação e o próprio funcionamento dos órgãos competentes é uma questão importante a ser considerada diante da necessidade de intervir em um edifício reconhecido como bem cultural. Dessa forma, este exercício se faz necessário na discussão do restauro da FAU, sendo esse edifício parte desse universo. Em um primeiro momento deve-se esclarecer quais são os órgãos responsáveis por discutir esse edifício, ou seja, por quais órgãos ele é reconhecido oficialmente como patrimônio.

O prédio foi tombado em 1981 pelo Condephaat e tombado ex-officio em 1991 pelo Conpresp. Isso significa que instâncias tanto estaduais quanto municipais consideram o Edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, patrimônio cultural material. O tombamento é uma figura jurídica de reconhecimento de uma obra enquanto patrimônio público, prevendo, portanto, o atendimento a uma série de normas — que, por sua vez, não implica um “congelamento” da obra. Assim, o prédio da FAU, por ser tombado, precisa acionar esses órgãos ao se propor determinada intervenção. Entretanto, atualmente existe uma falta de coesão entre as instâncias de preservação no Brasil, podendo ser notadas divergências entre esses órgãos. As instâncias de preservação no Brasil atuam em três escalas: nacional, estadual e local. O Iphan é o órgão nacional de preservação que, com vinte e uma superintendências no território, é responsável pela atuação em todos os estados, que devem responder a um órgão central, com sede em Brasília. Este órgão assume políticas de preservação que tem como referência assuntos de valor nacional, sendo de sua competência, portanto, bens culturais com valor nacional. Este órgão, antes conhecido como Sphan, era único e a ele competiam os assuntos de preservação de todos os estados brasileiros. A partir de 1920, Mário de Andrade e outros representantes do recém-criado Departamento de Cultura empreendem a tentativa de criação, no âmbito do estado de São Paulo, de um órgão de preservação — iniciativa barrada por ocasião do golpe do Estado Novo. Apenas em 1969, entretanto, este órgão foi instituído, sendo denominado Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Em sua concepção, foi discutida a necessidade de não configurar-se como um órgão deliberativo, sendo, dessa forma, apenas indicativo, cabendo ao órgão nacional avaliar suas recomendações. Entretanto, como pode-se perceber por suas atuais atribuições, ao órgão estadual de preservação cabe decidir pelo tombamento de edifícios considerados patrimônio do estado de São Paulo, devido a impossibilidade destes assuntos serem discutidos pela instância nacional. Além do órgão estadual, em 1975 foi criado o DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), órgão técnico de apoio ao Conpresp, o conselho responsável pela legislação municipal de preservação. Existem, portanto, três instâncias de preservação atuantes no território nacional, que, a rigor, seguiriam a hierarquia que estabelece como órgão nacional, o Iphan. Para ilustrar tal afirmativa, pode-se dizer que um bem, se tombado pelo órgão nacional, deveria ser, necessariamente tombado pelas instâncias estaduais e municipais (se existirem), e também, se uma intervenção é aprovada pelo mesmo, esta deve ser aprovada por seus “subordinados”. Entretanto não é essa a relação existente entre os órgãos nas suas

órgãos de preservação

diversas instâncias de atuação, e um exemplo possível para análise dessa relação são os processos de intervenção para prédio da FAU. É curioso notar que os órgãos têm posições diversas a respeito dos diferentes processos (relativos a cada “ parte” da reforma), não existindo portanto um consenso, o que dificulta o andamento desse processo. Tal situação traz à luz o grave problema observado atualmente nestas instâncias, onde existe uma falta de coesão entre as decisões tomadas pelos diferentes níveis deliberativos. Seria lógico esperar que houvesse uma hierarquia de funções que os articularia, evitando sobreposições e dispendio de tempo; entretanto, não é isso que se observa. Segundo Marcos Carrilho, alguns estados aguardam o pronunciamento do órgão federal, não ocorrendo maiores conflitos de decisões. Mas em São Paulo há em algumas circunstâncias um outro entendimento, no sentido de que o órgão municipal poderia ser mais rigoroso por obedecer a uma ordem de valores mais ampla do que o órgão federal, e portanto teria legitimidade para fazer mais exigências. E nós temos convivido frequentemente com esses conflitos, dessas três esferas de poder. E de um modo geral, os interessados, aqueles que submetem as intervenções a esses órgãos, por princípio eles deveriam acatar exigências mais rigorosas; dizer que acatam exigências mais rigorosas, por princípio as demais já estariam atendidas. Mas, pode sim haver, como já dito, conflitos entre decisões dos três órgãos.

É de grande interesse expor aqui alguns referenciais teóricos do “restauro crítico”, associando-os às proposições básicas do pensamento de Cesare Brandi e às diretrizes da Carta da Veneza, de 1964: essas referências são bastante relevantes para se fundamentar qualquer discussão a respeito da prática atual do restauro, como a que se pretende com este trabalho. O restauro crítico foi formulado como reelaboração teórica, tendo em vista a crise da teoria do restauro filológico, como elaborado por Boito e reiterado por Giovannoni no início do século XX. O restauro filológico, em linhas gerais, concentrava-se no valor documental da obra, o que se mostrou insuficiente após a II Guerra Mundial, contexto no qual evidenciou-se a incapacidade da teoria de lidar com restauros em massa de cidades destruídas, cuja modernização, e inclusive reconstrução, eram urgentes; criticava-se o foco excessivo no caráter documental da obra, que, além de não responder às necessidades da conjuntura histórica, também impedia uma compreensão da realidade figurativa do monumento (KÜHL, notas de aula). Vale mencionar que a essas objeções somava-se a continuidade de alguns princípios: assim como colocada pelo restauro filológico, por exemplo, a necessidade de se vincular a teoria do restauro às ciências permanecia como princípio inquestionável — ou seja, se opunha fortemente ao empirismo e à atuação arbitrária nas obras. Porém, mais do que filiar o restauro às ciências, o restauro crítico buscava evidenciar a importância do próprio pensamento crítico na formulação de uma metodologia de atuação. Dentre os pensadores cujas formulações teóricas constituíram a base da teoria do restauro crítico nos anos 1940, destacam-se Roberto Pane, Renato Bonelli, Paul Philippot e Cesare Brandi. Quanto a este último, convém evidenciar suas três proposições fundamentais, que foram articuladas às formulações do restauro crítico, como destacadas por Carbonara: (1) o restauro é ato crítico e dirige-se ao reconhecimento da obra como obra de arte; (2) por tratar de obras de arte, a restauração deve privilegiar a instância estética quando houver conflito com a outra instância, a histórica; (3) a obra de arte é entendida na sua totalidade mais ampla e, assim, o restauro deve atentar não só para a intervenção na matéria, como também para a preservação de todas as condições ambientais que assegurem a melhor fruição do objeto5. Vê-se portanto que, associado à idéia do restauro como pensamento crítico, Brandi busca o reconhecimento da obra de arte, balizado pela dupla instância da obra, estética e histórica (privilegiando, por se tratar de uma obra de arte, a primeira). Assim, a teoria brandiana visava o restabelecimento da unidade da obra, mas também atentava para o perigo de se cometer um falso artístico ou falso histórico (BRANDI, 2004) — o que cancelaria o valor da obra. O conceito de restauração, para Brandi,

5 CARBONARA, 2004: 11-12

fundamentos teóricos

deveria ser entendido como o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão ao futuro6. Assim, a partir de meados do século XX, verifica-se um maior cuidado com os aspectos formais e de configuração da obra, em contraposição ao foco anterior em seu caráter documental. Porém um novo problema, que não deve ser compreendido negativamente, é suscitado: para que se fundamente a prática do restauro na dialética das instâncias histórica e estética, deve-se atentar para a necessidade de uma análise particular de cada obra, para se pesem as variáveis e as exigências próprias da cada edifício — ou seja, surgiria aí um juízo de valor para resolver essa dialética caso a caso, tendo sempre em vista alguns princípios básicos para que a intervenção não se torne arbitrária.7 Para atender a essa exigência de unidade metodológica, surgiram diversas iniciativas ao longo do tempo que formalizaram em documentos e cartas determinadas diretrizes para a prática do restauro; destacaremos, aqui, o caso da Carta de Veneza, formulada em 1964 e cujos princípios se aproximam da formulação teórica do restauro crítico e resultam do intenso debate acima descrito. A Carta de Veneza tem como objetivo coibir abusos e excessos por meio de uma série de diretrizes que devem ser entendidas de acordo com o espírito da carta, de pretensões universalistas, e não particularmente — tomados separadamente, muitos dos artigos podem se contradizer ou permitir interpretações falsas. Conceitualmente, ainda consideram-se válidos os princípios colocados neste documento, como a necessidade de preservação do duplo valor da obra, como obra de arte e documento histórico (ou seja, seguindo a vertente teórica do restauro crítico); a manutenção permanente como principal meio de conservação dos monumentos, evitando assim intervenções mais drásticas; a importância de conferir ao monumento um uso que assegure sua sobrevivência sem alterá-lo; entre outros. Para se pensar a restauração atualmente, costuma-se destacar três princípios fundamentais: a distinguibilidade, ou seja, assegurar que as intervenções ou eventuais acréscimos se revelem de maneira distinta da obra aos olhos do observador, sem levá-lo ao engano e evitando falsos históricos; a reversibilidade, ou ainda a re-trabalhabilidade da ação do restauro, possibilitando intervenções futuras por meio de ações que não alterem a substância da obra; e a mínima intervenção, visando a manutenção da realidade figurativa da obra e evitando desnaturar o documento histórico (KÜHL, 2004). Apesar da consolidação dos princípios expostos pela Carta de Veneza, pelo pensamento brandiano e pelo restauro crítico, a realidade da atuação do restauro atualmente revela múltiplas possibilidades e caminhos de intervenção. Constata-se a existência de três vertentes contemporâneas, mais ou menos diversas, que matizam os três princípios básicos acima colocados de acordo com objetivos próprios: as vertentes crítico-conservativa e criativa, de pura conservação e a manutenção-repristinação. A primeira delas, a crítico-conservativa e criativa, baseia-se em especial nos aspectos focados neste texto — a teoria brandiana, o restauro crítico e as diretrizes da Carta de Veneza. Essa vertente incentiva a interpretação histórico-crítica caso a caso e assume postura mais conservativa, porém propõe o uso de recursos criativos quando confrontada com os grandes debates do processo do restauro, como a questão das adições e das lacunas. A vertente seguinte baseia-se na pura conservação e retoma algumas idéias do restauro filológico de Boito e até de Ruskin, teórico inglês do século XIX, dado seu enfoque na instância histórica da obra — contrapõe-se à primeira vertente, portanto, justamente neste aspecto, já que a primeira corresponde a uma releitura dos princípios de Brandi, incluindo aquele que entende a obra por meio de sua dupla instância, tanto histórico quanto estética, privilegiando a última. A vertente da pura conservação tem como objetivo a manutenção da matéria tal como ela chegou a nós, repudiando a maioria das ações que a vertente crítico-conservativa aceita como válidas. Outra clara diferença entre as duas

6 BRANDI, 2004: 33 7 A respeito dessa questão, Kühl afirma que cada caso deve ser analisado de modo singular, pelas peculiaridades características da obra e por seu particular transcorrer no tempo; a intervenção não pode, pois, seguir colocações dogmáticas. Apesar de os monumentos serem sempre ‘indivíduos’ e de a teoria tender à generalização, a relevância da teoria reside justamente no fato de se refletir sobre o método para se alcançar o conhecimento. Dada a responsabilidade pública envolvida com os monumentos históricos (…) deve-se resolver o problema de modo que a idéia subjetiva se torne acessível a um juízo de mais objetivo e controlável, que só pode ser alcançado pela reflexão teórica (KÜHL, 2004: 316-7).

vertentes é a posição quanto a relação que se deve estabelecer entre os momentos de restauração e de conservação — para a vertente crítico-conservativa, os momentos de conservação e de transformação são concomitantes, enquanto que, para a segunda vertente, constituem-se como momentos distintos e mesmo opostos. Verifica-se ainda a existência de uma terceira vertente, chamada manutenção-repristinação, que fundamenta-se em um certo pragmatismo, com tendência a trabalhar por analogia (mas sempre de modo limitado). Essa última vertente prevê manutenções constantes, mas também as extraordinárias, e busca, através dessa atuação na obra, a retomada da forma e das técnicas do passado.8

* Até agora, procurou-se desenhar uma breve perspectiva histórica da teoria recente do restauro, porém em nenhum momento debruçou-se sobre uma distinção do próprio objeto do restauro — ou seja, levou-se em consideração as diferentes formulações teóricas a respeito do conceito de restauração e de seus princípios, mas sem problematizar a atuação específica em obras de diferentes momentos históricos. No caso estudado, do edifício da FAU da Cidade Universitária, é de extrema relevância evidenciar a distinção da atuação do restauro quando esta tem como objeto uma obra de determinado momento histórico — no caso, quando se trata de um edifício moderno. Essa questão revela-se, inclusive, como grande problemática da discussão a respeito do restauro do edifício da FAU, daí a decisão por desenvolver e apronfundar, a seguir, algumas das principais questões envolvidas neste debate. A preservação da arquitetura moderna deve ser entendida a partir dos mesmos princípios que norteiam a preservação da arquitetura tradicional. Entretanto, possui características que lhe são próprias e requer atenção especial. É necessário, então, um maior aprofundamento para que se consiga conciliar os princípios da conservação e restauração às obras do Movimento Moderno. Algumas questões que diferem as obras desse período das tradicionalmente preservadas são a proximidade temporal, a existência e disponibilidade de documentação sobre a obra, as técnicas construtivas industriais utilizadas e a própria ideologia do Movimento Moderno. A proximidade temporal em relação às obras modernas coloca uma questão de grande relevância: o pouco distanciamento histórico-crítico que se têm destas obras. O próprio início da preservação da arquitetura moderna no país dá a ver essa relação de proximidade, uma vez que as primeiras construções modernas a serem preservadas foram tombadas pouco tempo após a sua construção. A primeira obra que se enquadra nessa situação, a Igreja de São Francisco da Pampulha, foi tombada em 1947, ou seja, quatro anos após a sua construção e com seu autor ainda vivo. Caso ainda mais peculiar foi o tombamento, em 1965, do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, projetado por Roberto Burle-Marx e por Afonso Eduardo Reidy, que não se encontrava concluído na ocasião do tombamento e que teve, portanto, seu projeto tombado. Dessa forma, entende-se que desde o início a arquitetura moderna brasileira se enxergava como um momento marcante na história do país, como afirma José Pêssoa: Assim nasce a preservação do patrimônio moderno no Brasil. Filha da certeza, comungada pelos arquitetos modernos, de estarem escrevendo com suas obras a história da arquiteturado século XX, e do temor de que administradores menos criteriosos pudessem desfigurar irremediavelmente estes monumentos históricos das gerações futuras9. É evidente que hoje pode-se avaliar de forma mais distanciada as obras do movimento moderno e que a bibliografia a respeito do assunto têm ganhado porte. Entretanto, é importante evidenciar que a proximidade com essa arquitetura não é somente temporal,mas de certa forma, afetiva, uma vez que se trata de uma relação mestre-discípulo, particularmente no caso brasileiro – [a proximidade da arquitetura moderna em relação às gerações atuais] traz consigo a idéia de que não há necessidade de uma abordagem restaurativa para tais obras10. Dessa forma, esse pode ser considerado um dos motivos pelos quais tende-se a desconsiderar as modificações posteriores à construção nessas obras, sendo comumente preconizada a volta a um estágio “original” desta. A existência de documentação das obras arquitetônicas modernas, seja na forma 8 A esquematização e apresentação das teorias atuais do restauro como colocadas neste texto foram baseadas nas definições de Beatriz Kühl. 9 PÊSSOA, 2006:159 10 PINHEIRO: 2

de peças gráficas, seja na forma de fotografias, possibilita uma confrontação mais direta entre a obra no estado atual e o seu projeto. Entretanto, é importante notar que o material de documentação, principalmente as peças gráficas relativas ao projeto, não necessariamente é compatível com o edifício construído, já que é comum a ocorrência de modificações no transcurso da obra que muitas vezes descaracterizam-na, e nem sempre são registradas. Dessa forma, comumente se usa a documentação relativa à obra como um dos argumentos para propôr, num determinado processo de intervenção a volta ao estágio inicial, a retomada do “projeto original”. Pode-se citar ainda mais uma peculiaridade da arquitetura moderna que a diferencia da arquitetura tradicional, a técnica construtiva industrializada. De fato, a técnica característica da arquitetura moderna brasileira, o concreto armado, é ainda hoje utilizada e diferentemente das técnicas artesanais, não existe um savoir-faire perdido no tempo. Novamente, esse ascpecto, que parece facilitar a preservação das obras modernas, é na realidade um fator complicante, pois a proximidade entre as técnicas de hoje e do período moderno pode ser entendida como uma outra justificativa para se intervir nos monumentos sob a forma de ripristino. Além disso, reutilizar a técnica construtiva original nem sempre é tarefa fácil, uma vez que é necessário reconstituir todo o aparato industrial desenvolvido para a fabricação de um material específico.

Há uma contradição latente entre a preservação da arquitetura moderna e a ideologia desta: o movimento moderno não se propunha a criar obras que deveriam durar eternamente, acreditava-se que a arquitetura construída na época deveria valer para aquele período, conforme afirmou Sant’Elia: Nossas casas durarão menos tempo do que nós, e cada geração terá de fazer a sua própria11. Essa idéia não é necessariamente válida para todas as obras modernas, como no caso do edifíco da FAU, que não se propõe provisório. Deve-se evidenciar entretanto que é característico da arquitetura moderna a experimentação com o material e a utilização deste até o seu limite. No caso do edifício da FAU isso fica evidente, tanto na solução inovadora proposta para a cobertura ou na execução de grandes vãos, quanto na utilização do material aparente. Essa experimentação pode muitas vezes resultar em problemas para a edificação; a característica de inovação das soluções não prevê, como tal, um cuidado específico de execução ou uma garantia de durabilidade infinita ou ainda cuidados específicos que devem ser tomados no uso do edifício. O caso da cobertura da FAU pode, então, ser citado como um exemplo, visto que certos erros ocorridos no período de construção, que não foram tratados de forma correta posteriormente, ocasionaram grandes problemas de acúmulo de água e infiltrações. As posturas tomadas em relação à arquitetura moderna costumam variar entre dois extremos – o retorno às características originais e a intervenção de cunho pragmático. O ripristino, entendido como a volta ao estágio inicial do edifício, tem marcado as intervenções de restauração do moderno em diversos países. Está relacionado às características que particularizam a arquitetura moderna citadas anteriormente – a proximidade temporal (e afetiva), o acesso à documentação relativa à obra e a possibilidade de utilizar a mesma técnica construtiva. Essa vertente de restauração, considerada acrítica (PINHEIRO), intervém de maneira drástica na materialidade e na percepção das obras, ou seja, para reconstituir o estado anterior do edifício são normalmente necessárias intervenções invasivas e esse novo estado é em geral bastante diferente daquele até então apreendido pela comunidade. Dessa forma, essa postura se distancia dos princípios da disciplina do restauro, que entende que o refazimento de uma obra, ao ignorar as modificações posteriores, produz um certo falseamento. A outra postura extrema é marcada pelo pragmatismo e consiste em tratar o edificío com tamanha proximidade que se desconsidera sua importância enquanto monumento. Nesse caso, são executadas reformas e readequações a bel prazer, desrespeitando a integridade da obra. Conforme afirma Ana Clara Giannecchini, “Grande parte das vezes essas obras são tomadas como pertencentes apenas à atualidade, como se em constante presente histórico, prontas a serem adaptadas às solicitações atuais, prontas a serem aperfeiçoadas sem cuidados maiores. O comprometimento parece privilegiar o imediatismo das necessidades do presente, sem que seja ponderada a perenidade das obras nas sucessivas gerações, ou mesmo sem que se observem as suas qualidades intrínsecas e o significado cultural que adquiriram ao longo do tempo.” Marcada pelo imediatismo, essa postura configura-se como bastante permissiva, abrindo espaço para descaracterizações.

11 SANT’ELIA apud. PINHEIRO.

Assim, a questão da preservação da arquitetura moderna coloca-se como um tema extremamente delicado e que deve ser discutido à luz dos princípios da restauração. A discussão, evidentemente não se esgota aqui, mesmo porque a arquitetura recente coloca em debate os grandes temas da tutela, dentre os quais a autenticidade, o repeito pela materialidade da obra, o olhar crítico e comprometido com o monumento, a distinguibilidade das intervenções, a visão da obra do ponto de vista histórico e sua estratigrafia, entre outros. Por fim, é válido concluir ressaltando que esses debates a respeito da preservação do moderno surgem nos últimos tempos devido ao interesse em incluir as obras desse período no patrimônio nacional. A arquitetura moderna surge na história da arquitetura nacional e na própria história do país de forma bastante expressiva e conectada a um contexto particular. Sua proposta é de ruptura com o passado, e ao mesmo que tempo que procura se incluir num panorama universal, procura uma linguagem própria, brasileira, de forma a enriquecer a identidade nacional. É curioso notar que no caso do Brasil, o grupo dos intelectuais modernistas empenhado na produção da arte e arquitetura moderna comumente se confunde com aqueles que dão início às atividades de preservação do patrimônio nacional, dentre eles pode-se citar Lúcio Costa e Mário de Andrade.

* O debate atual a respeito da restauração de obras arquitetônicas do Movimento Moderno dá continuidade a uma discussão consideravelmente controversa que tem como tema principal a autenticidade. A questão é essencialmente terminológica, na medida em que não se consegue assumir uma definição precisa para este conceito — o entendimento do que é autenticidade varia de acordo com a cultura e, principalmente, de acordo com o objeto ao qual ela se aplica. No caso da arquitetura, o problema específico está nas mudanças inevitáveis que um objeto arquitetônico sofre com o passar do tempo. Como entender o que deve ser considerado autêntico em um edifício? As respostas, por mais que se procure na literatura existente, não são satisfatórias — o que existem são esboços de teorias que tentam compreender o significado desse conceito, sem necessariamente indicar diretrizes operativas. Nos próprios documentos e cartas oficiais não se tem clareza do que se entende por autenticidade: na Carta de Veneza assume-se o “dever de transmitir [as obras monumentais] na plenitude de sua autencidade”, porém em nenhum momento se explica a qual autenticidade se refere. Apesar da imprecisão terminológica, é consenso que a autenticidade se coloca como um dos pilares da teoria do restauro . Como reflexo dessa discussão, foi realizada uma conferência em Nara, no Japão, organizada pela Unesco com o intuito de organizar o debate a respeito do emprego do termo; porém, dela não resultaram propostas operacionais, mas sim diretrizes gerais para orientar a discussão. Um dos pontos do documento de Nara sobre a autenticidade reafirma inclusive, como notado por Henning, o valor da autenticidade como indicado na Carta de Veneza, ou seja, como “principal fator de atribuição de valores”, evidenciando a importância de se estabelecer uma conceituação clara do que se entende por autenticidade ao se realizar estudos científicos ou planos de conservação e restauração. Evidenciada a relevância de se discutir o conceito de autenticidade, pode-se passar para uma breve explanação de alguns escritos teóricos a respeito do tema, como os de Françoise Choay e Raymond Lemaire, buscando compreender as diferentes maneiras com as quais se tratou o tema até o presente momento. Choay busca em seu texto, primeiramente, elaborar uma reflexão epistemológica sobre o conceito de autenticidade, traçando um panorama histórico da utilização deste termo. A princípio, o termo autenticidade era utilizado no campo da Religião e do Direito, nos quais se tomava o sentido normativo da palavra, para conferir autoridade a determinados documentos; a seguir, passou a ser utilizado como forma de contrapor originais e falsificações na Idade Média e inclusive durante o Renascimento; e, por fim, o século XIX observou a transposição do termo para campos do conhecimento mais exatos, como a arqueologia e o restauro. Essa transposição foi realizada de forma descuidada, como indica Choay, já que desprezou três condições negativas: primeiro o fato de que a autenticidade, em seu sentido original, não é subjetiva, já que vem da noção de autoridade institucional; segundo, a idéia de que não se pode congelar o sentido da autenticidade ao aplicar esta noção a um sentido específico; e, por fim, o terceiro fator negativo corresponde à constatação de que o objeto material é modificado pelo tempo, logo não se pode fixar um suposto estado original. Da forma como enunciou Choay, observa-se que a questão da

autenticidade se coloca primeiro como um problema epistemológico e, segundo, como um conflito metodológico; Choay, ao completar seu raciocínio, conclui que o termo autenticidade não tem, realmente, valor operacional no campo de atuação do restauro quando entendido de forma mitificada, ou seja, como a defesa de um original fictício — o que, evidentemente, conduziria a falsos históricos e falsos artísticos (idéia já apresentada, embora formulada de maneira diversa, pelo restauro crítico). Já Lemaire procurou elencar os diversos sentidos do conceito de autenticidade quando aplicado a campos diferentes, tais como os da literatura, da música e das artes plásticas, no que diz respeito à relação que se estabelece entre a mensagem e o receptor — relação que deve ser autêntica na medida em que a mensagem seja transmitida sem sofrer alteração. No campo da literatura, Lemaire evidencia que para um escrito ser considerado autêntico não se faz necessário seu suporte material, ou manuscrito, original. Quanto à música, o conceito de autenticidade se mostra atrelado ao conceito de “interpretação”, dado que, para que a mensagem seja transmitida, deve haver um intermediário que interprete a partitura. Por fim, quando aborda o campo das artes plásticas, Lemaire afirma a diferença de interpretação que se impõe para esse campo, em oposição aos campos da literatura e da música: nesses dois últimos, a expressão se encontra no tempo, enquanto no domínio das artes plásticas, a manifestação se dá no espaço. Quando se trata das artes, não há um intermediário entre a forma e o receptor da mensagem; desse modo, a autenticidade se dá na manutenção de um estado original. Entra aqui a questão, já colocada no início, da ação do tempo nas obras de arte, que inevitavelmente altera a forma do objeto e, conseqüentemente, sua mensagem (ainda que possa haver níveis diferentes de modificações); porém, Lemaire não deixa de destacar que as próprias marcas do tempo são autênticas se entendidas como testemunhos da história. Esse debate leva, enfim, à formulação de uma questão cuja compreensão se faz essencial para a discussão a que se propõe esta pesquisa: a questão do significado e da mensagem, conceitos que não devem ser confundidos, apesar de, por vezes, estarem intimamente ligados. O significado de uma obra seria um conceito mutável, ou seja, com o passar o tempo o símbolo da obra pode, ou não, se transformar; porém, deve-se considerar que o significado inicial estaria associado à cultura e à vida social do momento de criação da obra, sendo relevante sua preservação. Segundo Lemaire, “a salvaguarda daquilo que poderia ser preservado do significado inicial constitui, pois, uma obrigação tão fundamental quanto a salvaguarda da autenticidade formal ou histórica da obra pois é uma parte integrante dela” — resta, portanto, identificar este significado inicial para verdadeira compreensão da obra. Quanto à mensagem de uma obra, Lemaire destaca que, ao contrário do significado da obra, a mensagem necessariamente se modifica. Existiriam assim diversas mensagens sobrepostas, acumuladas com o tempo, porém todas autênticas em certa medida. Para hierarquizar caso a caso essas “autenticidades”, deve-se então considerar a dupla instância da obra de arte, como destacada pelas formulações teóricas de Brandi: a estética e a histórica. Assim como Brandi, Lemaire também conclui que a instância a ser privilegiada é a estética: “a autenticidade artística prima, evidentemente, sobre aquela da fonte de conhecimento histórico ou do símbolo”. Para justificar sua afirmação, Lemaire coloca que o valor histórico de uma obra não corresponderia ao objetivo inicial de seu criador, sendo, portanto, de natureza “acidental”, ou um aspecto que foi somado à obra; enquanto a instância estética e formal constituiria a própria essência do objeto, por se tratar de uma obra de arte — “a primeira autenticidade de um monumento”, como registrou Lemaire, “se situa na verdade da função e das formas dadas com esse fim ao edifício por seu autor”. Esse ponto de vista difere, portanto, do restauro filológico, que presava o valor documental da obra, e até, retrocedendo ainda mais em uma perspectiva histórica, das formulações de Viollet-le-Duc, cujo ponto principal era a recuperação de uma suposta autenticidade histórica. É importante evidenciar, porém, que a identificação das duas instâncias de uma obra não se revela tão claramente ao observador em termos práticos, já que muitas vezes são “inexoravelmente entrelaçadas na materialidade das obras de arte”. Apesar desta constatação, Lemaire não deixa de provocar-nos, evidenciando que, apesar de ser mais fácil realizar uma restauração tendo como prioridade a autenticidade histórica, devemos sempre questionar “o que procuramos, de fato, nas obras de arte: sua mensagem artística ou sua história?”

Dentre os projetos de reformas que foram realizados ou estão em desenvolvimento atualmente para o edifício da FAUUSP, escolhemos os casos dos departamentos e da cobertura para um maior aprofundamento e discussão de possíveis soluções. Selecionamos a cobertura por sua grande polêmica tanto dentro da faculdade quanto no âmbito público, além da grande diferença entre as várias propostas, que vão desde o tratamento do concreto e impermeabilização até possíveis sobrecoberturas. Já a escolha dos departamentos se deu por sua discussão no meio interno, levando em conta um programa de necessidades que precisa ser atendido procurando não comprometer os princípios seguidos pelo edifício. Esses dois casos foram escolhidos por serem emblemáticos, do ponto de vista conceitual, uma vez que a cobertura diz respeito a uma necessidade do edifício, já que a integridade física do edifício corre riscos se os problemas encontrados não forem solucionados, e por isso, é um caso que deve ser considerado de conservação. Os projetos para os departamentos por sua vez dizem respeito aos usuários do edifício, e por isso correspondem às expectativas destes e como já foi dito, a um programa, sendo relacionado à restauração. Esses exemplos trazem a tona questões teóricas como a adequação de uma construção a novas demandas e como realizar modificações tanto de conservação quanto de restauração sem deixar de lado os valores expressos pelo edifício.

os departamentos A área dos departamentos, indissociável ao ateliê interdisciplinar e aos sanitários da história e da tecnologia, é uma região da faculdade que passou por diversas modificações de uso e desenho tanto durante o desenvolvimento do projeto quanto após a construção da FAUUSP. Seu alinhamento foi alterado inadequadamente diversas vezes ao longo do tempo. No momento atual, os departamentos se encontram em obras, que estão paralisadas aguardando a aprovação dos órgãos de preservação. As divisórias existentes anteriormente foram retiradas, sendo colocados tapumes, e o concreto da laje superior foi lixado. O projeto apresentado para o Conpresp no início de 2009 é de autoria do arquiteto Paulo Bruna e propõe a recuperação do alinhamento contínuo de todo volume dos departamentos e a redistribuição das divisórias internas, as quais previam a localização das pequenas salas de professores ao longo da fachada nordeste e dos espaços comuns voltados para o interior do edifício. Essa proposta é considerada um avanço por esse órgão em relação à situação um tanto caótica que existia até o início de 2009, no entanto, assim como informa o parecer do Conpresp sobre essa reforma, existem pontos que deveriam ser revistos, a serem desenvolvidos a seguir. Um ponto importante é o deslocamento do limite dos departamentos em direção às rampas, o que acabaria por obstruir a passagem para o acesso aos sanitários, comprometendo as soluções volumétricas e conceituais características de todos os banheiros. Fato esse que só pôde ser notado pelo órgão quando este uniu os dois projetos (departamentos e sanitários) encaminhados separadamente para aprovação. Essa ocorrência só evidencia o tipo de problema que é gerado quando se realiza planos isolados para cada parte da construção e não um projeto que constitua um todo coeso e coerente. A solução apresentada pela diretoria para esse problema apontado, não mais realizado pelo arquiteto Paulo Bruna, modificava completamente a concepção dos sanitários, perdendo o acesso pelas rampas contrapostas. Além disso, acabaria com o piso elevado somente nas áreas necessárias para a passagem da tubulação de água e esgoto, deixando o sanitário de acessibilidade visível para quem caminha ao longo do piso. Dessa forma, perderia-se a visão das empenas que constituem os limites do edifício, característica bastante marcante na concepção da FAU: exemplifica-se aqui o comprometimento da mensagem12 transmitida através desse aspecto formal — a possibilidade de apreensão global do espaço pelo observador. Outro ponto criticado pelo orgão foi a localização das salas, com divisórias opacas

12 Ver referencial teórico de Lemaire, desenvolvido anteriormente.

estudos de caso

e espaçamento a cada dois módulos, ao logo da fachada nordeste. Essa distribuição acabaria com a homogeneidade que o caixilho propicia, uma vez que seria observável do exterior a compartimentação e a personalização de cada sala, inviabilizando um espaço livre e contínuo característico da FAUUSP. Por isso, é sugerido que a disposição entre as salas e a área comum seja invertida. Quanto aos sanitários o Conpresp recomenda que seja adotada a solução já aprovada em 2007, no entanto respeitando as posições originais dos banheiros masculinos e femininos e mantendo os box de acessibilidade universal dentro de cada um dos banheiros. Já no que diz respeito ao alinhamento dos departamentos, recomenda-se o retorno à distância de 2,75m da parede dos banheiros, como se encontra nos desenhos “originais”, mas considerando razoável uma segunda proposta do arquiteto Paulo Bruna que coloca essa distância com 1,2m.

As divisórias apresentadas primeiramente foram especificadas como de alvenaria de blocos de concreto de piso ao teto, alternando com segmentos apenas com vidro, também de piso a teto e incluindo portas e ‘guichês de atendimento’, além de outros trechos em que a alvenaria iria até 2,10 m de altura, complementada dali para cima com vidro até a laje13. O segundo projeto mostrado incluía painel de concreto celular autoclavado tipo painel parede esp. 15cm, com a mesma alternância entre cheios e vazados e uma armação interna da divisória que, segundo o desenho, perfura a laje do piso, apoiando dentro da laje caixão perdido e atingindo as vigas. Consideradas inadequadas, e a segunda muito invasiva, o Conpresp recomendou o uso de divisórias leves (drywall) que permitem mobilidade na formação dos ambientes. Além disso, foi aconselhado a uniformidade de materiais e a não utilização de planos verticais semi-transparentes, uma vez que a linguagem do prédio assume planos verticais totalmente opacos ou com total transparência. Evidencia-se aqui a intenção de respeitar a linguagem do edifício, de forma que a intervenção não a comprometa, isto é, que não sejam conflitantes.

É válido, portanto, ressaltar os princípios que norteiam a resposta do DPH, e que deveriam ser seguidos num processo de restauro do edifício da FAU. Quando se coloca a recomendação de que todas as paredes do projeto proposto para a área dos Departamentos deverão ter caráter reversível e ser construídas com painéis leves e removíveis do tipo dry-wall, não sendo permitidas paredes de alvenaria nem perfurações profundas nas superfícies das lajes, com chumbadores ou similares fica evidente que a intervenção deve seguir o princípio da reversibilidade/re-trabalhabilidade e que não deve ser invasiva a ponto de alterar a obra de forma irrecuperável — um dos princípios basilares da teoria do restauro hoje. Já a proposta de tornar uniformizada a linguagem e a especificação de materiais a serem introduzidos no edifício — texturas, cores, acabamentos, detalhes construtivos — de modo a caracterizar claramente a intervenção atual corrobora com o princípio da distinguibilidade da ação contemporânea. Ainda que esse aspecto seja mais delicado no caso das obras modernas, procura-se no mínimo caracterizar a intervenção como una, e não como um conjunto de partes independentes, sem consistência suficiente para serem identificadas como um conjunto. Pode-se depreender, ainda, o tema da autenticidade do trecho seguinte: Recomenda-se o agenciamento, se possível, das salas de professores dos três Departamentos de maneira a ficar distante da caixilharia nordeste, evitando o seccionamento dessa fachada envidraçada com painéis divisórios que posssam ser vistos a partir do exterior, portanto, evitando o comprometimento visual da proposta de continuidade espacial do edifício. Verifica-se aqui a intenção de respeitar uma mensagem transmitida pela obra, resumida por um dos autores: o prédio da FAU, como proposta arquitetônica, defende a tese da continuidade espacial14. Cabe discutir aqui, a questão da autenticidade da mensagem15, como colocado por Raymond Lemaire em De uma mensagem de uma riqueza e de uma

13 OFÍCIO No. 0433/CONPRESP/2009. 14 ARTIGAS apud. PINHEIRO: 4. 15 Coloca-se aqui o termo mensagem entendido como uma intenção, em oposição a um significado, que como depreendido do texto de Lemaire, estaria mais ligado a valores sociais e culturais do contexto da criação da obra. Entretanto é importante notar a existência de uma sobreposição desses conceitos ao se estudar o caso da FAU.

complexidade muito amplas, pertencendo totalmente ao domínio imaterial, nós percebemos apenas o interesse da estrutura e da forma materal. A alma, o conteúdo espiritual ou intelectual, que são sua essencia e justificação, nos escapam completamente. E, pela mesma razão, uma parte essencial da autenticidade da obra, pois a verdade é que a forma sem o conteúdo se torna desprovida de sua mensagem essencial: aquela que está na base da própria existência da obra. Entendemos, portanto, que a questão dos departamentos anteriormente descrita explicita o debate da preservação da mensagem frente a uma intervenção: fica claro que o projeto proposto, e inclusive a situação em que se encontrava o piso, negligenciam a mensagem original (a tese da continuidade espacial), em prol de uma adequação meramente funcional. Pode-se, dessa forma, concluir que a mensagem da obra, tal qual transmitido por Artigas no trecho citado, deve ser prioritariamente considerada, sendo imprescindível rejeitar propostas de intervenções que interfiram nesse princípio.

a cobertura

A maior polêmica entre as reformas e talvez o problema mais grave do edifício da FAUUSP, a cobertura, foi alvo de vários estudos e propostas. Dentre estes, serão aqui tratados quatro projetos, dois que envolvem recuperações da cobertura já existente (desenvolvidos pelo arquiteto Paulo Bruna e pelo arquiteto Paulo Helene) e outros dois que propõem sobre-coberturas (desenvolvidas pela diretoria e pelo arquiteto Pedro Paulo Saraiva).

Em 2005/06 foi contratada a empresa PhDesign Consultores que realizou uma inspeção na cobertura e constatou que já se teria passado 80% de sua vida útil e que ela apresentava uma série de patologias graves. Entre elas foram observadas: o rompimento do sistema atual de impermeabilização em determinados pontos, a falta de caimentos em muitos trechos da laje, o que faz com que ocorra acúmulo de água, a indevida sobreposição de camadas de mais de um sistema de impermeabilização (ao todo 22 cm), presença de água no caixão perdido, existência de eflorescências na parte inferior da laje (manchas e estalactites esbranquiçadas), armadura exposta na superfície inferior devido à corrosão, corrosão generalizada da armadura das vigas invertidas, além da agressividade macro-ambiental e da falta de contra-flecha, maior fator de empoçamento de água. Foi observado que o problema da infiltração, ocorrido devido ao acúmulo da água na laje, se dava por quatro caminhos principais: pelas fissuras de flexão (com o hidróxido de cálcio do concreto), pelas juntas de concretagem entre a mesa superior da laje da cobertura e a mísula de sustentação do domo, pelas juntas de concretagem inclinadas formadas pelas juntas das vigas ortogonais e pela intersecção das vigas invertidas com as cabeças dos pilares e a deficiência da instalação e estanqueidade dos ralos de coleta e tubos verticais de águas pluviais. Concluiu-se então, a partir desses estudos, que deveria-se reabilitar e proteger a superfície inferior da laje, reparar e reabilitar as armaduras corroídas, realizar um novo sistema de impermeabilização, reabilitar as juntas de movimentação e revisar o sistema de coleta das águas pluviais. A obra teste ocorreu entre o segundo semestre de 1994 e janeiro de 1995 nos domus sobre a sala 801. Ela foi realizada pela empresa Xavier & Haddad – Projetos e Construções Ltda a qual foi responsável pela recuperação do concreto na parte interna, pela limpeza, tratamento de tricas e ferragens, pela proteção da laje com argamassa de recuperação, além da impermeabilização. Também foram realizados alguns furos em vigas para o escoamento da água acumulada nos caixões perdidos. A partir da consultoria feita ao professor Aluízio Fontana Margarido foi proposto que as camadas de impermeabilização fossem removidas, além das lajes horizontais entre as abas dos domus, de forma que a madeira e a água do caixão perdido pudessem ser retiradas. Após essa etapa seria realizada uma nova laje concretada in situ, com a ajuda de uma forma. Segundo o Grupo Executivo da Gestão dos Espaços Físicos da FAUUSP, em 2002, após a recuperação de 20 módulos, os problemas reincidiram, mas com menor intensidade. Já a proposta do professor Paulo Helene previu, além da reabilitação estrutural da laje com o reparo da estanqueidade das juntas e dos sistemas de drenagem, 3 opções de impermeabilização: manta de PVC, silicato de sódio e revestimento de base poliuréia. Esse projeto teria vida útil de 50 anos, sendo necessárias manutenções periódicas. Os

testes foram realizados com a manta de PVC e o silicato e também furos nas vigas vazadas para o escoamento das águas e a abertura de caminhos preferenciais. Atualmente a cobertura se encontra em estado tão grave que foi necessária a instalação de lonas para impedir que pedaços de concreto caíssem sobre os transeuntes. Diante dessa situação e da pressão da imprensa e dos freqüentadores a diretoria consultou especialistas para apresentar novas soluções para o problema. A proposta mais recente elaborada pela diretoria, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, foi a de uma sobre-cobertura temporária e individual para cada módulo. Essa opção teria a vantagem de ser 30% mais barata que a impermeabilização do tipo Hypalon. O projeto como um todo, incluiria a recuperação do concreto e a remoção das camadas de impermeabilização, de modo a deixar a laje livre para a colocação de uma cobertura leve de policarbonato, a qual não sobrecarregaria a cobertura atual, com um sistema de drenagem conectado ao já existente. Além disso, a proposta também trataria da recuperação do concreto, juntas de dilatação dos rufos e dutos de águas pluviais. Essa solução no entanto apresenta problemas, como já foi indicado no mestrado de Ana Clara Giannecchini, quando coloca que a sobrecobertura também possui uma vida útil e portanto, se criaria uma necessidade de manutenção de dois sistemas distintos sobrepostos. Além do que, caso a proposta falhe, a água encontrará uma cobertura desprotegida, sem impermeabilização, podendo gerar um estrago ainda maior. A proposta mais recente de sobre cobertura foi realizada pelo arquiteto Pedro Paulo de Melo Saraiva a pedido do diretor da FAUUSP, Sylvio Sawaya. Seu projeto é constituído basicamente por duas etapas: a primeira se refere ao revestimento com chapas de cobre natural da cobertura que se encontra exposta às intempéries; a segunda etapa diz respeito à sobrecobertura. Esta última composta por membranas tensionadas que cobrem 4 dos domus originais. Elas seriam presas por 8 pontos em 2 alturas diferenciadas, promovendo estanqueidade, iluminação, ventilação, proteção solar e drenagem, além de não sobrecarregar a cobertura já existente. Ao observar todo o processo pelo qual passou a cobertura fica evidente que o principal motivo para o preocupante estado atual da cobertura foi a manutenção inadequada por toda sua vida. Fato que se não tivesse ocorrido poderia evitar a atual polêmica para a resolução das inúmeras patologias que ela apresenta. Pode-se entender que a discussão em torno da cobertura pode ser fundamentada por alguns argumentos de ordem teórica. Parece ser consenso o desejo de intervir nesse sistema de forma a garantir sua estabilidade e estanqueidade. A grande questão é como intervir; as opções (ao menos as apresentadas até hoje) dividem-se em duas categorias: a que propõe uma sobrecobertura e a que procura recuperar a cobertura do edifício Vilanova Artigas. A proposta de sobrecobertura é defendida com base nos argumentos de eficácia, custo e rapidez. Nesse caso, trabalha-se independentemente do material, insere-se como um novo elemento no edifício. De fato, essa solução parece ser mais rápida por não exigir um cuidado especial com a própria contrução existente, já que parte de um outro sistema. Independente do projeto de sobrecobertura, é necessário e emergencial a recuperação do concreto da cobertura em si, totalmente degradado e comprometido, como já mencionado anteriormente. É curioso que talvez sem a intenção essas propostas tenhas respeitado um dos princípios básicos do restauro, a distinguibilidade da ação contemporânea, através de materiais e formas claramente diversos da matéria original, não pretendendo mimetizá-la. Entretanto, essa divergência não é reconhecida ao observador, por não ficar exposta — talvez por isso não seja possível aplicar esse princípio a essa intervenção. De qualquer maneira, entendemos essa solução como uma postura imediatista, que apenas enxerga o produto final, ignorando o próprio significado dessa intervenção. Entende-se que esse é um representante da questão já levantada por Beatriz Kühl em: um problema que se coloca com muita gravidade hoje em dia é que muitas vezes essas intervenções desrespeitosas são julgadas somente pelo resultado final. O fato de se apreciarem apenas os êxitos da obra concluída (de seu novo uso, de sua nova configuração), desconsiderando que no processo, de maneira injustificada, houve desrespeito à composição e aos aspectos documentais e materiais da obra, é equivalente a afirmar que ‘os fins justificam os meios’.16 O segundo grupo de propostas, relativo à recomposição do sistema da cobertura da FAU, procura justificar-se pela urgência de se recuperar o concreto e reestabelecer a funcionalidade desse sistema. Assim, de maneira mais, ou menos invasiva insistem na

16 KÜHL, 2008: 82.

solução original. De fato, esse trabalho é muito mais criterioso e delicado do que a proposição de um elemento novo pois deve lidar com um problema ainda muito recente — o restauro das obras de concreto armado. Entendemos que essa linha deve ser colocada como prioritária, e que a proposta de sobrecobertura seja tida como o último dos recursos, visto que decreta a falência da funcionalidade da cobertura. Se analisarmos o caso sob a perspectiva da dupla instância da obra, como proposto por Brandi, pelo restauro crítico e reafirmado por Lemaire e pela vertente contemporânea crítico-conservativa, podemos concluir que a instância estética seria gravemente afetada pelo grupo de projetos que propõe a instalação de uma sobrecobertura. É evidente que, ainda que não se veja a cobertura proposta, não se cumpre a preservação dos aspectos formais do edifício que, no caso da cobertura, são essenciais para a manutenção de diversas mensagens que se queria inicialmente passar. Dessa forma, privilegia-se uma solução que não seja pautada pelo imediatismo, mas pelo respeito ao material e à autenticidade da forma, que no caso do edifício da FAU envolveria um projeto de recuperação do sistema da cobertura.

A partir das considerações teóricas entorno do tema da preservação e do estudo do caso específico das intervenções recentes no edifício da FAU é possível esboçar algumas conclusões.

Com relação ao encaminhamento dos processos de reforma do edifício cabe indicar uma imprecisão metodológica grave, que se apresenta desde o início com a utilização do termo reforma para definir as intervenções propostas, contrariando o rigor necessário à atuação sobre um bem cultural. Além disso, a forma segmentada com que esses projetos foram desenvolvidos e encaminhados indica a negligência com que foi tratada a questão, reduzida a “pequenas” obras com caráter de adaptação. Por outra parte, a elaboração de um projeto único, ou com diretrizes globais, não deve ser pautada sobre suposições a partir de um “projeto original” do edifício, mas sim sobre um conjunto de mensagens próprias a sua concepção original. Seguindo o colocado por Lemaire, acreditamos que a autenticidade do edifício como obra seria mantida na medida em que haja continuidade com relação à transmissão das mensagens originais. Acrescenta-se a isso a necessidade de se formar uma equipe interdisciplinar para a elaboração de metodologia de projeto de restauro, evitando que esse projeto seja formulado por um técnico sem vinculação normativa ou que se perca com o decorrer das diferentes administrações. O caso da FAU revela enorme dificuldade quanto à aplicabilidade das formulações teóricas, já que entendemos que exista uma sobreposição de conceitos (mensagem/significado, instâncias histórica/estética), e não uma clara distinção. Essa confusão fica ainda mais evidente quando se considera a materialidade do edifício e, mais especificamente, o uso do concreto armado — representante do movimento moderno, correspondente a um momento histórico bastante característico, imbuído de um reconhecimento estético próprio. Entendemos então que deve-se enfrentar a arquitetura moderna não mais como tempo atual mas sim como objeto de estudo e atuação do campo do Restauro. Para esse novo debate é necessário confrontar as questões teóricas estabelecidas em busca de diretrizes operacionais, relendo os princípios que regem atualmente a disciplina do restauro. Um desses debates operacionais que se pode estabelecer é aquele do restauro do concreto armado como símbolo e matéria do movimento moderno a uma só vez.

conclusão

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