o despotismo fabril

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Elísio Estanque – O Despotismo Fabril Publicado em: Revista Portuguesa de História, nº 37 (2005). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pp 131-152. Elísio Estanque Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra O Despotismo Fabril: violência e poder numa empresa industrial do calçado Resumo: O ambiente social numa fábrica industrial do sector do calçado (em São João da Madeira) na segunda metade da década de 1990 é o contexto que aqui se retrata e caracteriza do ponto de vista sociológico. O estudo pretende, por um lado, analisar as lógicas de poder e a presença de elementos de violência no quotidiano fabril; e, por outro lado, procede a um diagnóstico das condições de precariedade do operariado português num período de crise e de mudanças profundas no nosso tecido produtivo. Para além disso, procura-se também mostrar os mecanismos de aceitação e de resistência que germinam entre a colectividade operária, na sua relação com a empresa, utilizando para tal uma perspectiva auto-reflexiva e uma metodologia de observação participante. Esse procedimento permitiu ainda questionar a complexidade da referida metodologia e a situação ambivalente do próprio investigador na sua relação com os diferentes actores sociais no seio da empresa. Quando me convidaram para escrever um artigo centrado no tema das relações laborais – para um volume temático sobre violência – de imediato me ocorreu a experiência de observação participante que vivi há cerca de dez anos atrás numa empresa industrial do sector do calçado em S. João da Madeira (SJM). É dessa realidade que aqui pretendo dar conta. Optei por um registo que recupera alguns extractos do Diário de Campo que na altura elaborei, e assume uma abordagem auto-reflexiva onde é patente a ambiguidade da posição em que se encontra o investigador. Trata-se, por um lado, de descrever e recriar o ambiente vivido no dia-a-dia da fábrica, mostrando alguns dos contornos e contradições de que se revestem os mecanismos de poder que aí em vigor. Por outro lado, dá-se conta do percurso sinuoso em que o observador se encontrava, envolvido num mundo social que lhe era estranho, e que se depara com todo um conjunto de desafios, dilemas e opções a que tem de responder nesse quotidiano (onde permaneci durante cerca de três meses).

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O Despotismo Fabril - Elisio Estanque

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  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

    Publicado em: Revista Portuguesa de Histria, n 37 (2005). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pp 131-152. Elsio Estanque Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    O Despotismo Fabril: violncia e poder numa empresa industrial do calado

    Resumo:

    O ambiente social numa fbrica industrial do sector do calado (em So Joo da Madeira) na segunda metade da dcada de 1990 o contexto que aqui se retrata e caracteriza do ponto de vista sociolgico. O estudo pretende, por um lado, analisar as lgicas de poder e a presena de elementos de violncia no quotidiano fabril; e, por outro lado, procede a um diagnstico das condies de precariedade do operariado portugus num perodo de crise e de mudanas profundas no nosso tecido produtivo. Para alm disso, procura-se tambm mostrar os mecanismos de aceitao e de resistncia que germinam entre a colectividade operria, na sua relao com a empresa, utilizando para tal uma perspectiva auto-reflexiva e uma metodologia de observao participante. Esse procedimento permitiu ainda questionar a complexidade da referida metodologia e a situao ambivalente do prprio investigador na sua relao com os diferentes actores sociais no seio da empresa.

    Quando me convidaram para escrever um artigo centrado no tema das relaes

    laborais para um volume temtico sobre violncia de imediato me ocorreu a

    experincia de observao participante que vivi h cerca de dez anos atrs numa empresa

    industrial do sector do calado em S. Joo da Madeira (SJM). dessa realidade que aqui

    pretendo dar conta. Optei por um registo que recupera alguns extractos do Dirio de

    Campo que na altura elaborei, e assume uma abordagem auto-reflexiva onde patente a

    ambiguidade da posio em que se encontra o investigador. Trata-se, por um lado, de

    descrever e recriar o ambiente vivido no dia-a-dia da fbrica, mostrando alguns dos

    contornos e contradies de que se revestem os mecanismos de poder que a em vigor.

    Por outro lado, d-se conta do percurso sinuoso em que o observador se encontrava,

    envolvido num mundo social que lhe era estranho, e que se depara com todo um conjunto

    de desafios, dilemas e opes a que tem de responder nesse quotidiano (onde permaneci

    durante cerca de trs meses).

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    1. Enquadramento

    O principal objectivo partir do registo etnogrfico para retratar o ambiente social

    da empresa, mostrando os principais mecanismos de poder que a funcionam. Uma das

    vantagens deste tipo de metodologia reside no facto de ela permitir elaborar uma espcie

    de arqueologia dos processos de estruturao social, no quadro de um microsistema de

    caractersticas sui generis. Na realidade, a fbrica industrial um mundo que, para l da

    sua aparncia rotineira, se vai revelando como repleto de dinamismos no seio dos

    prprios operrios com as suas segmentaes internas, entre o colectivo operrio e a

    hierarquia, entre a empresa e a comunidade envolvente, entre homens e mulheres, etc.

    Alm disso, as mltiplas contradies que podem ser detectadas na fbrica evidenciam

    no apenas fenmenos de mbito local mas, antes, reflectem os impactos das clivagens

    estruturais que o capitalismo global vem promovendo, no contexto da globalizao

    econmica actual. Por outras palavras, trata-se, de pr em prtica o que alguns socilogos

    designaram de mtodo de caso alargado, ou seja, trata-se de procura usar um caso

    particular para detectar relaes causais e linhas explicativas que nos ajudem a

    compreender as dinmicas estruturais do mundo social mais vasto onde ele se insere

    (Burawoy, 1979 e 1985; Santos, 1995).

    O presente texto insere-se, assim, na mesma linha de estudos anteriores que tenho

    desenvolvido sobre as relaes de trabalho, o sindicalismo e as desigualdades de classe

    em Portugal (Estanque, 2000, 2003, 2004a, 2004b e 2005). Como sabido, ao longo dos

    anos noventa, a temtica da articulao entre a indstria e a pequena agricultura

    tradicional foi apontada como um dos traos especficos das sociedades semiperifricas,

    como a portuguesa. Em especial os sectores industriais de mo-de-obra intensiva (como o

    do calado) foram assinalados como estando a sofrer processos de implantao difusa,

    onde se articulam espaos urbanos e rurais, contribuindo para desenvolver culturas e

    relaes laborais particulares, dando lugar a modelos produtivos em que o capitalismo se

    mistura com modalidades de produo simples, de matriz tradicional ou pr-capitalista

    (Santos, 1990 e 1993; Reis, 1992).

    Os processos mais recentes de fragmentao do trabalho e de precarizao das

    relaes laborais tm vindo a tornar ainda mais difcil a capacidade de resistncia do

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    movimento operrio e sindical contra a hiperexplorao de que o trabalhador volta a ser

    vtima, agora escala global. Mais de 150 anos decorridos aps a publicao do

    Manifesto e no obstante a falncia histrica da doutrina marxista-leninista alguns dos

    postulados tericos de Marx e Engels continuam a revelar grande actualidade enquanto

    instrumentos de anlise do sistema capitalista. Por outras palavras, a velha clivagem

    capital-trabalho persiste, j que, considerando essa dicotomia clssica, as grandes

    transferncias de mais-valia continuam a traduzir-se na intensa explorao da classe

    trabalhadora em favor do capital transnacional.

    No entanto, e paradoxalmente, a fora crescente do mercado e do capitalismo

    neoliberal, lado a lado com a sua capacidade de coordenao escala mundial tem

    decorrido em paralelo com o aumento da debilidade da classe trabalhadora enquanto

    sujeito colectivo. O capital une-se e coordena-se enquanto o trabalho se divide e

    fragmenta cada vez mais. , pois, neste contexto de profundas mutaes scio-laborais

    que podemos dizer que recuperando novamente a referncia a Marx a luta de

    classes deixou de ser o motor da histria e perdeu significado no terreno poltico,

    muito embora se intensifiquem as desigualdades e os mecanismos de explorao1.

    A fora de trabalho hoje multitnica, sofre os efeitos da mobilidade e fluidez do

    capital transnacional, alimenta-se de movimentos migratrios e redes clandestinas de

    trfico. Apesar da globalizao e por causa dela , os sectores mais degradados, pobres

    e excludos da classe trabalhadora tendem a localizar-se cada vez mais. O velho

    operariado industrial perde peso demogrfico, as leis laborais tornam-se mais flexveis,

    os despedimentos mais fceis (o desemprego aumenta), ao mesmo tempo que emergem e

    crescem novos sectores proletarizados, sem condies de negociar ou reivindicar de

    forma organizada. Ou seja, pode dizer-se que a classe enquanto actor ou fora social

    perdeu sentido, embora se mantenha e porventura at se intensifique o efeito de classe

    enquanto barreira social, isto , enquanto factor estruturante do acesso desigual aos

    recursos (Pakulsky e Waters, 1996; Wright, 1997). So estes processos de profunda

    recomposio das desigualdades sociais que tm vindo a ser apontados para ilustrar a 1 O processo de segmentao das classes e de fragilizao dos movimentos sociais em geral e do movimento sindical em particular de tal maneira poderoso que retirou ao operariado e classe

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    formao de novas subclasses locais, a par da emergncia de um nova sobreclasse ou

    tambm chamada classe capitalista transnacional (Estanque, 2005; Sklair, 2001).

    Quer isto dizer que com a intensificao destas tendncias aperfeioou-se a eficcia

    dos mecanismos de sujeio, e aumentaram extraordinariamente o individualismo, a

    ideologia consumista, os factores promotores de aceitao, consentimento e alienao dos

    trabalhadores e dos cidados em geral. luz destes fenmenos e da sua recente expanso

    no plano global, faz sentido recuperar aqui a expresso relaes na produo, cunhada

    por Michael Burawoy (1979; 1985), que pode contrapor-se ao velho conceito de

    relaes de produo. Na verdade como a seguir se ver , quando se observa o

    fervilhar de uma fbrica industrial no seu quotidiano, mais do que o conflito de classes

    tradicional, o que salta vista todo um conjunto dinmico de processos de estruturao

    identitria entre grupos distintos, de diferentes geraes, culturas, categorias

    profissionais, sexos, etc. O prprio conceito de ideologia aqui considerado para alm do

    seu velho sentido poltico-doutrinrio, como dimenso que se enraza e mistura com

    outros factores socioculturais. S com tal procedimento possvel captar a emergncia de

    uma pluralidade de micro-ideologias e formas de aco de natureza distinta, umas

    provenientes do topo da hierarquia, outras da base, umas de sentido autocrtico e

    desptico, outras veiculando formas de rebeldia tcita, outras ainda promotoras de

    consentimento e aceitao (Burawoy, 1985; Therborn, 1980).

    2. O sector industrial do calado

    Estes pressupostos tericos mais gerais permitem explicitar alguns dos principais

    traos que tenho utilizado na anlise deste sector industrial. Vigora na industria do

    calado um sistema disciplinar que classifiquei de desptico-paternalista (Estanque, 2000

    e 2004a), isto , um sistema de controlo cujos contornos combinam elementos de

    modernidade tcnica com lgicas de gesto pr-modernas derivadas do persistente

    vnculo entre a indstria e as comunidades tradicionais da regio. Sendo Portugal um

    pas semiperifrico da Europa, pode dizer-se que esta uma regio perifrica dentro da

    semiperiferia. Os inmeros contrastes nos planos cultural e scio-econmico revelam a

    presena de fenmenos semelhantes aos vividos em pases desenvolvidos, como o Reino trabalhadora qualquer capacidade de resposta organizada. Para uma anlise aprofundada da temtica das

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    Unido, h mais de 150 anos. As desigualdades e modelos de controlo em vigor nas

    empresas recordam-nos os regimes paternalistas do capitalismo ingls mistura com

    outros traos mais tpicos do despotismo de mercado de certas regies dos EUA, ambos

    fenmenos originariamente identificados no sculo XIX (Burawoy, 1985). Sobretudo nas

    empresas de pequena e mdia dimenso, subsiste uma mentalidade empresarial

    conservadora e orientada para o lucro fcil, que se traduz em modelos de gesto de tipo

    arbitrrio e desptico, em geral misturados com traos de paternalismo. Este tipo de

    poder autoritrio pode, por seu lado, estender-se para fora da fbrica, permitindo ao

    empresrio accionar mecanismos de controlo cujo epicentro se situa na empresa mas que

    opera simultaneamente na esfera domstica e da comunidade2.

    Como sabemos, o grau de violncia ou de coero com que o poder exercido varia

    na razo directa do grau de resistncia das suas putativas vtimas, seja essa resistncia

    efectiva ou potencial. Autores to marcantes da sociologia como Michel Foucault (1977)

    e Pierre Bourdieu (1989) h muito teorizaram sobre a ligao indissocivel entre as

    dimenses fsica e simblica do poder. Assim, a violncia fsica e simblica que pauta o

    ritmo da fbrica dever ser entendida como expresso dos mecanismos de poder e formas

    de opresso que, em geral, definem as relaes sociais na esfera produtiva, e em

    particular no espao industrial.

    No caso da industria portuguesa de calado, aqui em anlise, e em especial no

    perodo nos anos 90 do ultimo sculo, as modalidades de gesto e os estilos de liderana

    que prevalecem neste sector eram facilmente perceptveis pela prpria opinio pblica,

    dada profuso de notcias relacionadas com conflitos entre os empresrios e os seus

    trabalhadores ou o sindicato. Bastar, por exemplo, atentar em alguns ttulos da imprensa

    escrita para podermos antever a violncia que impera nas empresas do sector nesta

    regio: Sindicalista esfaqueado por empresrio do calado (Jornal de Notcias,

    15/3/88); Seguranas agridem sindicalistas em fbrica de S. Joo da Madeira

    (Jornal de Notcias, 20/7/90); S. Joo da Madeira - Violncia na greve do calado

    desigualdades e do esbatimento da luta de classes, ver Estanque (2004b e 2005). 2 Por mais que uma vez percebi que quando algum trabalhador dava mostras de maior rebeldia ou que no estava a demonstrar suficiente dedicao ao trabalho, o empregador no tinha dificuldade em estar informado da sua situao familiar, ou, por exemplo, se desempenhava paralelamente outro tipo de trabalhos (para outra empresa ou para si prprio).

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    (Pblico, 1/9/93); Trabalhadores impedem sada de mquinas do interior de fbrica em

    Arouca Vigilncia no calado (Pblico, 28/10/95); Patro e seguranas

    condenados por agresso a sindicalistas (Jornal de Notcias, 15/11/96); GNR diz que

    no viu nada Sindicalistas sequestrados pela entidade patronal (Jornal da Feira,

    8/5/98); Empresa Basilius no banco dos rus Haja justia, pede o sindicato (O

    Regional, 22/01/00); Patro do calado condenado por sequestro de sindicalistas

    (Jornal de Notcias, 25/3/00).

    3. O empresrio e as suas boas intenes

    O escasso nmero de empresas que responderam s cerca de trs dezenas de faxes

    que enviei para fbricas de calado localizadas na zona de SJM contribuiu para aumentar

    o meu cepticismo acerca deste patronato. O primeiro contacto com o empresrio onde

    acabei por realizar a Observao Participante foi, desde logo, ilustrativa da natureza do

    poder e da cultura empresarial que prevalece neste segmento. conhecida a fraca

    sensibilidade da generalidade dos empresrios portugueses para com as questes sociais,

    bem como a sua relativa indiferena para com as condies de trabalho e os direitos dos

    trabalhadores. Imagine-se a perplexidade de um tpico proprietrio de uma PME

    portuguesa quando confrontado perante a situao bizarra de um acadmico se dispor a

    trabalhar como operrio numa linha de montagem. Todavia, este no era, apesar de tudo,

    um tpico empresrio do calado. No obstante as relaes algo ambguas que com ele

    mantive ao longo da pesquisa, este proprietrio de uma empresa com perto de 60

    trabalhadores, sendo a maioria mulheres mostrou grande entusiasmo no acolhimento

    que dedicou ao meu trabalho e proporcionou-me todas as condies pretendidas.

    Mas, como se deve calcular, o interesse entusistico do empresrio (e Director da

    empresa) no foi inocente. Fui aos poucos percebendo que a sua estratgia se relacionava

    com objectivos que ele prprio pretendia alcanar atravs da minha presena na empresa.

    O primeiro, refere-se sua expectativa de que, ao acolher um investigador conotado com

    a universidade, isso pudesse ajudar a projectar para o exterior a imagem de uma empresa

    moderna e de esprito aberto, uma empresa que, segundo o prprio dizia, est preocupada

    em se fixar na linha da frente em termos de investimento na inovao e na motivao

    do pessoal. Um empresrio dinmico, orgulhoso de ter conseguido tudo o que tem sua

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    prpria custa. Nas nossas variadas conversas revelou-me que, na juventude, viajou

    sozinho pelo estrangeiro, onde nos anos sessenta trabalhou em hotis e restaurantes a

    lavar pratos, e envolveu-se tal como o investigador, neste caso no activismo poltico

    do perodo do ps-25 de Abril (1974-1975). Esta imagem de modernidade com que

    pretendia conotar a empresa visava atingir a concorrncia directa, bem como afirmar o

    seu protagonismo e eventualmente consolidar a sua posio no mercado. Lado a lado

    com o repetido discurso da crise, a ideia de que a empresa se debate com muitas

    dificuldades econmicas e problemas de escassez de encomendas (um discurso que

    rapidamente percebi ser mais para consumo interno, isto , para trabalhador ouvir), para

    a concorrncia era necessrio, pelo contrario, dissimular os sintomas da crise, alm do

    mais, porque isso tem, ou pode ter, consequncias junto de fornecedores, clientes, banca,

    etc. As iniciativas inovadoras so ingredientes que podem tornar-se importantes mais-

    valias e, portanto, imperioso prestar-lhes ateno. A oportunidade de ter um socilogo

    na empresa ajustava-se bem a essa perspectiva, e da a sua receptividade entusistica e o

    grande interesse que manifestou em relao pesquisa.

    A segunda vertente refere-se tentativa de tirar proveito da minha presena na

    fbrica para motivar os operrios, ou seja, da minha colaborao com a direco

    poderia resultar algum acrscimo de incentivos produtividade, sem acrscimo de custos

    econmicos. Assim, a negociao tcita entre ns passou pelo meu compromisso em

    entregar-lhe no final um diagnstico da situao social dos trabalhadores com vista ao

    desenvolvimento de novas formas de incentivo produtividade e motivao do pessoal.

    Neste campo possvel distinguir duas coisas. Por um lado, a tentativa supostamente

    genuna e sem dvida legtima do seu ponto de vista de ajudar a criar condies para

    que os operrios se dedicassem mais vida da empresa, se identificassem mais com ela,

    procurassem trabalhar melhor, aderissem mais abertamente aos objectivos patronais, etc.,

    donde resultariam consequncias positivas para ambos os lados. Por outro lado, uma

    expectativa em relao a possveis informaes que eu poderia veicular-lhe acerca das

    atitudes dos operrios e do seu empenhamento no trabalho3.

    3 Desde o incio que ficou clara a minha posio de neutralidade, assim como a defesa do anonimato em relao a quaisquer situaes de trabalho que viesse a detectar no seio do grupo operrio. Esta minha

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    A conversa informal e o bom relacionamento que prevaleceu entre ns ao longo de

    todo o perodo da pesquisa traduziram-se em repetidos convites para passar no seu

    gabinete ao fim do dia, onde se trocavam impresses, quer sobre o decorrer do meu

    trabalho quer sobre a situao da empresa e dos trabalhadores. Mantendo sempre a

    necessria postura conciliadora, porque naquele contexto o seu poder se exercia tambm

    sobre mim, no deixei de ter uma crescente sensao de que, medida que o tempo ia

    correndo, me encontrava entre uma espcie de fogo cruzado, sofrendo ataques de ambos

    os lados. No difcil imaginar-se as dificuldades que tive em ultrapassar a situao.

    Em todo o caso, devo adiantar que, a este respeito, tudo correu conforme o previsto

    e no final facultei ao proprietrio o prometido diagnstico, assinalando diversos pontos

    crticos e apontando um conjunto de sugestes destinadas a flexibilizar a estrutura

    organizacional e os canais de comunicao da empresa. No deixa, contudo, de ser

    significativa a reaco indignada do patro quando soube, semanas depois da

    concluso do meu trabalho, que eu tinha participado num debate promovido pelo

    sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na imprensa) alguns dos

    constrangimentos e prticas autoritrias de que os trabalhadores do calado so vtimas

    nas empresas. Apesar de se tratar de uma abordagem genrica sobre o sector e de o nome

    da empresa nunca ter sido divulgado, isso no me impediu de ser acusado de estar a

    fazer o jogo do sindicato, de prejudicar a imagem dos empresrios, e at de traio...

    4. Entrar no mundo fabril...

    Numa manh chuvosa de Fevereiro (1996) era ainda noite quando, cerca de 7,40h, me

    aproximei do polo industrial junto entrada sul da cidade de SJM. O intenso movimento de

    bicicletas, gente a andar a p no meio da rua, os tendeiros que acabavam de preparar as suas

    barracas de vendas, o rudo de carros e motocicletas, deram-me a sensao de estar a

    penetrar num outro mundo. Foi com este sentimento que atravessei o porto da empresa no

    meu primeiro dia de trabalho. Mal entrei, essa sensao de estranheza agravou-se ainda

    mais perante a atmosfera densa e agitada da fbrica. Um ambiente escuro, impregnado de

    odores estranhos de gases, colas e produtos qumicos, conjugava-se com os mais variados posio foi respeitada e compreendida da sua parte. Mas em alguns momentos pareceu-me bvio o seu

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    rudos do movimento das mquinas, o som das descargas de presso dos fornos e sistemas

    de refrigerao, mistura com os ecos de sons metlicos que ficavam a martelar-me nos

    ouvidos. A movimentao dos trabalhadores, tambm ela obedecia a ritmos semi-

    automticos. Ao toque da campainha, movem-se os corpos dos operrios em gestos rpidos,

    desdobrando-se em mltiplas tarefas, pegando nas ferramentas e entregando-se ao trabalho

    sem perda de tempo. Ser difcil esquecer os sentimentos contraditrios que me

    assaltaram nesse momento: ao mesmo tempo uma sensao de angstia e curiosidade, de

    apreenso e expectativa. Isto mesmo a srio, pensei.

    Mas a preocupao em comear no me deixou mais tempo para reflexes. Fui de

    seguida apresentado ao encarregado da linha de montagem (FI), que me conduziu at ao

    meu posto e me explicou a tarefa que tinha de efectuar, mostrando ele primeiro como se

    fazia. Aps uma rpida explicao e introduo ao meu colega de posto: ... vai ficar aqui

    ao p do sr. Antnio a arrancar pregos. Eu vou-lhe explicar como se faz. Foi buscar o

    arrancador, que uma espcie de chave de fendas com a ponta em curva e com uma

    pequena fenda, que tem de se encostar cabea do pequeno prego para faz-lo sair,

    segurando o sapato (sandlia, neste caso) com a mo esquerda e manuseando a ferramenta

    com a outra. Comecei o meu trabalho.

    O calado surgia do meu lado esquerdo, com os pares enformados e colocados na

    posio invertida (com as solas para cima), nas aberturas prprias entre os tubos cilndricos

    dos carros da linha de montagem. No incio vinham dois pares em cada carro, mas por

    vezes apareciam trs. Retirava uma sandlia com a mo esquerda e segurando-a contra o

    peito, procurava os dois pregos e, com algum esforo e as dificuldades iniciais, arrancava-

    os com a ferramenta da mo direita. Voltava a colocar a sandlia no mesmo stio. Por vezes

    era difcil encontrar os pregos, porque eram pequenos e a cor confundia-se com a da

    palmilha e, alm disso, como esta estava coberta de cola, os pregos no saltavam primeira

    tentativa. Tendiam a ficar agarrados ferramenta ou sandlia. Isto obrigava a mais um

    movimento com os dedos para os retirar para o cho, sem perda de tempo. A atrapalhao

    crescia quando, mesmo assim, os pregos teimavam em ficar colados aos prprios dedos.

    desejo de saber mais acerca do que dizem e do que pensam os trabalhadores.

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    Mas com este modelo de sandlia (de Vero), como tinha as palmilhas bastante maleveis,

    era fcil arranc-los, apesar de tudo.

    O pior era a cadncia que tinha de ser imprimida. No paravam de chegar mais carros

    com os tabuleiros cheios. Logo a seguir ao meu posto, o calado entrava num forno que se

    fechava automaticamente e por isso o tempo e o espao de manobra eram muito pequenos.

    As dificuldades aumentaram ainda mais quando, com o rpido andamento da linha, os do

    posto anterior (os montadores ou tambm chamados pregadores) se atrasavam nessa

    tarefa e vinham depositar os pares nos carros (depois de pregados na palmilha) quando estes

    j estavam prestes a entrar no forno. Nesse caso no dava tempo para fazer tudo. Ouvi ento

    os primeiros desabafos de protesto da parte do tio Antnio: ele no v que isto est

    atrasado?; com ar chateado, nervoso e encolhendo os ombros: se no vem desligar a

    mquina e parar isto, deixa-se seguir tudo pr' frente!!. O meu companheiro de trabalho

    revelou desde logo ser um incorrigvel falador. Perguntou-me se era amigo do FI (o

    encarregado); eu disse-lhe que no e que estava ali para aprender a fazer sapatos porque me

    interessava conhecer melhor aquele sector; adiantei que iria ficar apenas por um perodo

    curto, de dois ou trs meses. Deu-me alguns conselhos, ensinou-me a posio correcta das

    mos, para ter cuidado com os dedos e para no me preocupar, que isto quem no sabe,

    aprende. Cerca de uma hora depois de iniciado o trabalho, o encarregado geral chamou-me

    para falar mais um pouco comigo, procurando pr-me a par dos problemas da produo e

    querendo saber mais alguma coisa do meu trabalho. Tanto ele como o encarregado da

    montagem mostraram-se bastante colaborantes para comigo.

    5. Violncia psicolgica, e fsica...

    Num dos meus primeiros dias na fbrica assisti logo a uma discusso

    particularmente violenta entre o encarregado da montagem e o tio Antnio. Como eu

    estava perto, mas do outro lado da linha, pude observar a cena sem que se apercebessem

    da minha proximidade apesar do enorme o rudo no me deixar ouvir todas as palavras.

    O motivo foi uma sandlia mal riscada4. O encarregado berrava que s o trabalho

    bem feito que se quer, mal feito no vale a pena!. A cara vermelha e nervosa do meu

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    companheiro a gritar igualmente para o seu chefe e virando-lhe as costas, com o outro a

    gritar que olhasse para ele, enquanto o tio Antnio continuava a falar e a esbracejar numa

    expresso de rebeldia ostensiva e descontrolada. Fiquei a meditar naquela cena passada a

    cerca de um metro de distncia. Um adulto com 62 anos e perto de trinta de experincia

    operria a reagir irritado mas com os olhos no cho, como uma criana intimidada. O

    mesmo homem que dias antes tinha oferecido ao outro, que agora o humilhava, uma

    garrafa do seu vinho caseiro. Pedira-me a mim para lha entregar, certamente porque

    temia que os colegas dessem conta desse gesto e o vissem como um acto de graxice.

    Agora, ali estava ele, irado mas numa postura submissa a responder quase contorcido,

    tentando defender a sua dignidade daquela maneira. Segundo mais tarde me revelou,

    respondeu que no s aqui que se ganha dinheiro! Na baixa tambm se ganha

    dinheiro!!. E com isto invocava a sua debilidade fsica e denunciava a falta de

    reconhecimento pela sua dedicao ao trabalho e empresa. Como quem diz, se a firma

    no me quer c, se j no presto, posso meter baixa em vez de estar aqui a aturar-vos.

    Este caso ilustra bem a dimenso simblica que o trabalho pode representar na vida

    de uma pessoa. No apenas uma necessidade de subsistncia, uma vez que com a

    explorao agrcola do pequeno terreno, somado ao trabalho da mulher (trabalha de tarde

    a fazer limpezas numa quinta), permitia-lhe amealhar algum dinheiro e justificar uma

    eventual reforma antecipada antes do limite de idade (dada a sua sade precria), que

    seria suficiente para o casal sobreviver sem grandes aflies. Mas, a ligao actividade

    fabril era j muito longa e profunda. Precisava de estar ali para se sentir til e activo. A

    partilha, o convvio dirio e o respeito e amizade dos colegas compensavam o esforo

    fsico que tinha de despender. Por outro lado, foi interessante verificar que se invocava a

    situao de baixa como se ela representasse algum privilgio, ideia que, alis, parecia

    estar presente em alguns sectores da fora de trabalho, nomeadamente quando se ouviam

    comentrios contra os abusos de quem metia baixa muitas vezes (porventura sem

    justificao).

    O mesmo responsvel da seco de montagem, relatou-me aspectos bem ilustrativos

    dos cuidados que presidem relao de poder que mantinha com os operrios. Sublinha

    4 Riscar consistia em fazer um risco em redor da palmilha, colocada no exterior, na parte de baixo do sapato (ainda enformado), de modo a saber-se quais os limites at onde se devia colocar a cola para mais tarde fixar a respectiva sola.

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

    12

    a sua preocupao em que tudo saia bem feito, mas tambm as dificuldades em levar os

    trabalhadores a fazer as coisas segundo o mtodo correcto. Reconhecia que o operrio

    que j est no seu posto h vrios anos tem geralmente uma experincia muito grande,

    mas referiu tambm as dificuldades com que se deparou para combater os vcios.

    Sublinhou, com nfase, que os operrios tentavam sempre fazer as coisas maneira

    deles: por vezes da maneira mais difcil, at para eles. E isto porque, acrescentou,

    alm de se cansarem mais, rendem menos.

    Falou dos primeiros tempos como encarregado em que, afirmou, alguns lhe

    tentaram fazer a vida negra (). Estavam sempre a apalpar o pulso. Se sentiam que era

    mole abusavam logo () Havia coisas em que ainda tinha pouca prtica, mas sempre fui

    procurando melhorar, at saber fazer bem, como hoje, qualquer operao na linha de

    montagem. Quando preciso mostrar, sento-me ao lado do operador e mostro-lho como

    se deve fazer (). Reconheceu que, por vezes, embora as coisas no sassem

    exactamente como ele queria, deixava passar. E, para concluir, afirmou: Ainda hoje isso

    acontece, mas eu apercebo-me!, (). Eles pensam que no, mas eu se fecho os olhos

    porque quero ().

    A propsito dos gritos que por vezes dirigia a esta ou quela operria, avanou a

    seguinte explicao: dantes eu costumava chegar ao p delas e chamar a ateno. Dava

    a volta pelos diferentes postos e controlava as coisas. Mas comecei a perceber que elas

    me queriam trocar as voltas. Quando eu me ia dirigir a alguma que estava a conversar ou

    a fazer asneira, elas percebiam e nessa altura mudavam de lugar. Outras vezes eram as

    outras que ficavam atrs de mim que me chamavam quando eu me encaminhava para um

    certo posto (). Esta aco de resistncia ou, nas suas palavras, de boicote ao papel

    do responsvel, levou-o nessa altura a fazer uma reunio com todos os trabalhadores

    (dos acabamentos e montagem) em que anunciou as novas regras: A partir de agora

    ningum sai do seu posto de trabalho sem minha autorizao. Se vejo algum fora do

    posto sem motivo, vai imediatamente l para fora. Outras afirmaes suas que me

    foram mais tarde transmitidas, durante uma reunio com todos os encarregados so bem

    reveladoras da viso que tinha do seu prprio papel e dos operrios que chefiava. Usando

    sempre um tom irrefutvel e paternalista explicou: preciso ter uma linguagem tcnica

    para toda a gente dizer da mesma maneira (...). No se pode dar a entender ao

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

    13

    subordinado que ele tem razo, porque se ele pensa que sabe mais, perde o respeito (...).

    Se ele incorrecto, preciso ser firme e no dar parte de fraco (...). Eu sou um

    encarregado! E como encarregado [nfase], como profissional que sou, ensino como se faz! No se pode mostrar fraqueza, se apalpam e sentem que mole (...)!

    6. Os jogos de poder do colectivo operrio

    Situar a forma como se configuram as relaes de poder entre os operrios e os

    encarregados reconhecer que os operrios tm poder. Ou seja, reconhecer que eles

    esto longe de ser meras peas da mquina produtiva ou meros repositrios de um poder

    unidireccional que sobre eles exercido. Na linha de Michael Burawoy (1979, 1985 e

    2001), podemos assumir a ideia de que o taylorismo nunca conseguiu, na prtica,

    consumar por completo a separao entre concepo e execuo. Os responsveis da

    gesto, embora tenham chamado a si o controle do conhecimento tcnico, no

    conseguiram nunca monopoliz-lo. Trata-se assim de reconhecer uma nova oposio

    entre o conhecimento apropriado pela Direco e o conhecimento dos trabalhadores. a

    parte que lhes cabe do seu saber-fazer que lhes permite pr em prtica processos mais ou

    menos subtis que tendem a contrariar as regras da hierarquia e, de certo modo, recriar a

    unidade entre concepo e execuo. O processo de produo capitalista no se limita,

    portanto, a estruturar objectivamente uma classe. Do mesmo passo, modela

    subjectivamente as identidades colectivas e individuais atravs da experincia vivida

    pelos trabalhadores no processo de produo. As relaes na produo, alm de no

    serem uniformemente determinadas pelo modo de produo capitalista, traduzem-se em

    experincias especficas, em jogos informais que podem assumir-se como formas

    ideolgicas ou, digamos, micropolticas, cujo efeito pode ser o de conciliar as relaes

    de produo, dando lugar ao que Burawoy designou de fabricao do consentimento.

    Porm, neste caso, tal consentimento no totalmente conseguido. Autores como

    Michel de Certeau (1984), Mikhail Bakhtin (1984) ou John Fiske (1993) h muito

    chamaram a ateno para a importncia das tcticas de resistncia, das aces de

    perverso carnavalesca e das tcnicas de farsa a que se dedicam os indivduos

    sobretudo quando sujeitos a formas de opresso e excluso social. O espao produtivo

    deve olhar-se como no circunscrito ao seu contedo meramente econmico. Mesmo

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

    14

    num contexto fabril de tipo desptico conseguem-se esculpir alguns espaos de liberdade

    (Crozier e Friedberg, 1977) com base no saber tcnico, nas regras do jogo que se

    aprendem a dominar, na subtileza da pequena sabotagem, etc., ou seja, os trabalhadores

    recusam a ser tratados como mquinas, procurando por diversos meios estender as

    chamadas zonas de incerteza (Bernoux, 1985), em que a relao de poder se inverte

    pontualmente. De algum modo, pode dizer-se que a prtica repetida do jogo informal

    se transmuta na necessidade dos subordinados aceder a uma certa forma de liberdade

    (Burawoy, 1985). Podemos, assim, reconhecer que na fbrica, como noutros contextos,

    os actores em posies de subordinao nunca so totalmente dependentes. Como

    assinalou h uns anos um outro conhecido socilogo, h uma dialctica de controle que

    d lugar a constantes desequilbrios, viragens e cedncias que alteram continuamente a

    distribuio do poder (Giddens, 1982: 32).

    Estes so contornos e dimenses de que se revestem as relaes sociais em

    contextos particulares muito diversos, mas que, como pretendo a mostrar neste texto,

    proliferam no espao fabril. Na empresa onde trabalhei, estas diferentes formas de aco

    pareciam operar numa espcie de zona de penumbra, em que s procurando os gestos

    mais subtis e a sua repetio ao longo do tempo se podem detectar neles algum contedo

    subversivo. As formas de jogo que a interaco adquire na empresa so visveis

    sobretudo na relao entre o grupo operrio e as chefias directas. Mas, a estrutura de

    poder insere-se, naturalmente, num quadro mais abrangente. Remete sobretudo para o

    vrtice da pirmide social da empresa.

    O patro parecia observar e registar atentamente qualquer gesto que lhe parecesse

    sinal de facilitismo na linha de montagem. Se notava que em algum posto havia tempos

    mortos, no se esquece mais tarde de atirar ao chefe do respectivo sector que h pessoal

    a arranjar as unhas, forma curiosa de denunciar o trabalhador que aproveitou algum

    subterfgio momentneo para abrandar o ritmo. Esta dependncia d algum crdito aos

    que afirmam que os berros do encarregado se fazem sentir em especial quando o patro

    est por perto. Isto permite-nos ainda reforar a ideia de que no se trata tanto de um

    poder arbitrrio pessoal, mas de toda uma lgica disciplinar fundada num regime de tipo

    autocrtico onde o ritmo produtivo tem de se traduzir na constante transpirao do

    operrio. Na verdade, as chamadas sweat shops e os Mc Jobs associados globalizao

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    econmica expandiram-se bastante desde os anos 80 do sculo passado. Mas, aqui ao

    nosso lado, em SJM, o cansao, o suor e a violncia quotidiana na linha de montagem so

    uma constante desde h vrias dcadas, com a agravante de que, ao contrrio de outros

    sectores da nossa indstria, nas PMEs do calado nunca existiu um regime fordista de

    produo. Ou seja, trata-se de um tecido empresarial onde a legislao e os direitos

    laborais raramente ou nunca foram realmente levados a srio pelos empresrios5.

    Os mtodos autoritrios em vigor na linha de montagem foram repetidamente por

    mim presenciados. As raparigas mais jovens eram as vtimas preferenciais. Embora fosse,

    at certo ponto, compreensvel que por serem mais inexperientes pudessem errar mais,

    pareceu-me claro que havia a uma selectividade calculada. tambm notrio neste

    sector continua a s-lo que o poder masculino se sobrepe ou se articula com a

    dominao de classe, mantendo a mo-de-obra feminina como a parte mais precarizada

    da fora de trabalho. por esse motivo que, conforme pude testemunhar durante a minha

    observao, o autoritarismo dos encarregados assumia sempre formas mais arrogantes

    quando era dirigido s mulheres. O grito de longe era o mtodo mais frequente: vem c

    contar-me essa que eu tambm queria ouvir!; ento o que que eu sou aqui afinal?...

    Aquilo que eu digo para se fazer ou qu?!. Tal como com estas raparigas jovens

    conhecidas na fbrica pelo pessoal de Alvito assisti a outras situaes de grande

    violncia, sempre dirigidas a trabalhadores de menores recursos. Um dia, o chefe da

    montagem chamou uma das operrias e pediu-lhe para desenformar umas botas (das

    chamadas amostras6) quando ela se encontrava junto das embalagens. Como naquele

    momento estava a acabar outra tarefa respondeu: j vou. Pouco depois, e como no

    visse a sua ordem seguida de imediato, o encarregado foi junto dela e gritou-lhe: mas o

    que que eu estou aqui a fazer?!. Numa fria crescente, que para mim era at ento fora 5 Importa aqui recordar que grande parte das unidades produtivas do calado eram nesta altura, e continuam a ser, predominantemente microempresas, a maioria delas sem estatuto formal/ legal (aquilo que na gria se designa por empresas vo-de-escada). Acresce que as caractersticas de economia subterrnea e a estreita articulao entre as unidades industriais e a produo domstica (muitas vezes alimentada por trabalho infantil, bastante denunciado nos 1990 em Portugal), funcionando em regime de subcontratao, com encomendas de tarefas especficas do calado, em geral pagas pea, so factores que tm nas ltimas dcadas favorecido o crescimento de mltiplas situaes de precariedade, em particular porque se trata de um sector de trabalho intensivo, vivendo de mo-de-obra barata e sem qualificao. Da que, como tenho referido noutros artigos, o sector do calado possa ser referido como um exemplo onde vigora o modelo ps-fordista, mas que, no entanto, nunca passou pelo fordismo (Estanque, 2004a e 2005).

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    do comum, gritava: queres ir l para fora? Queres?!. Ir l para fora uma forma de

    punio que vigora na empresa. Uma trabalhadora pode ser mandada para a rua durante

    um perodo de tempo varivel, sendo-lhe depois descontado esse tempo no ordenado.

    O tio Antnio (o meu companheiro de posto de trabalho) e a Rosa so exemplo

    disso. Em ambos os casos, o encarregado mostrava-se particularmente irritado com o

    facto de olharem para o cho quando lhes dirigia alguma reprimenda. Vi-o a gritar para o

    meu colega de posto: Olhe para mim! Olhe para mim carago! Porque que no olha

    para mim?. O caso da Rosa semelhante. So ambos trabalhadores sem qualquer

    instruo escolar e cujas marcas de ruralidade saltavam vista. A sua postura corporal

    perante a posio de poder com que eram confrontados imprimia-lhes no rosto uma

    expresso semelhante de crianas desprotegidas e envergonhadas quando repreendidas

    em pblico.

    Estes casos eram o oposto da atitude dos jovens mais qualificados e instrudos que

    trabalhavam na linha de montagem. Enquanto que estes evidenciavam sinais de

    segurana, indiferena e at de autoridade inerentes ao capital educacional e s

    qualificaes tcnicas que possuem , os primeiros demonstravam embarao, retraimento

    e medo. Mas, apesar de disso, por vezes tambm o tio Antnio se mostra revoltado com o

    chefe. Quando o andamento da linha era demasiado violento, explodia: ele no v que

    isto est atrasado?!. Chateava-se, ficava vermelho de irritao e protestava: se no vem

    desligar a mquina e parar isto, deixa-se seguir tudo pr frente e pronto! (). Noutras

    ocasies, tanto o tio Antnio como os outros, adoptavam uma atitude deliberada de

    deixa andar. Se viam que o encarregado no tomava ateno excessiva velocidade da

    linha, como sabiam que no ganhavam nada em protestar abertamente e tambm no

    queriam ser cooperantes em excesso, abrandavam o ritmo de propsito e ficavam nas

    calmas, como que a assobiar para o ar, fingindo que no percebiam o que se estava a

    passar. Notava-se o prazer que sentiam quando viam o encarregado em apuros. Esta

    constitui, evidentemente, uma forma de resistncia comum generalidade do trabalho

    operrio. Mas aqui assume traos muito prprios.

    6 Pares de calado que eram produzidos em nmero limitado e em geral com um design mais arrojado , destinados a ser exibidos nas feiras internacionais desta indstria.

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    Ele sabe a quem as faz!, comentava o Paulo a propsito da lgica selectiva que

    preside aos comportamentos despticos do seu chefe. Com os homens, de um modo

    geral, no existem atitudes ostensivamente arrogantes. As excepes que pude constatar

    foram o tio Antnio e o Pedro, sendo este acusado pelos seus colegas de dar confiana

    demais ao encarregado. Os pequenos desentendimentos e situaes de tenso com os

    meus ex-colegas pregadores assumiam em geral contornos bastante mais subtis. Essas

    situaes quase sempre se deviam a problemas tcnicos do processo de fabrico. Como j

    disse, o facto de os pregadores ocuparem um posto decisivo, o facto de serem homens,

    ainda jovens, com alguma qualificao, e sem dvida tambm por no mostrarem medo

    na relao com o chefe (usando a sua linguagem, no lhe dar confiana), so aspectos

    que contribuem decisivamente para que a relao com o encarregado assumisse de facto

    uma forma diferente.

    7. Uma irreverncia surda e corrosiva...

    A dada altura detectou-se que as sandlias estavam a sair com as gspeas

    assimtricas e o FI mandou desmontar algumas delas, instruindo os operrios para

    manterem os ponteados da parte direita e esquerda do extremo das tiras da frente

    mesma distncia da palmilha. Como era costume, ficaram a olhar para a obra que

    tinham nas mos, aceitando a soluo proposta, mas pareciam desconfiados acerca da sua

    eficcia. A aura de certeza que o chefe colocava quando dava a sua opinio contrastava

    claramente com a falta de confiana que os outros apontavam nas suas competncias. No

    caso dos homens da montagem (os pregadores atrs referidos) era opinio unnime que

    ele entendia pouco de cada operao em particular. Com isso pretendiam, evidentemente,

    afirmar a sua prpria competncia tcnica, ou seja, o domnio em relao a um posto

    que era o seu, aquele onde trabalhavam todos os dias.

    Eis uma situao ilustrativa: Um dos pregadores tentava executar as instrues

    recebidas. Mais um pequeno retoque, com o encarregado ao lado, este disse: est bom;

    enquanto o primeiro acenava com a cabea num gesto concordante balbuciando, pouco

    convicto: est bom. Aps o outro virar costas, ao passar ao meu lado com a sandlia na

    mo para a colocar no carrinho, acrescentou: est uma merda, mas enfim. Minutos

    depois, os trs operrios comentavam entre si que aquilo assim estava ainda pior, dizendo

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    que o problema era do molde que estava mal feito, pois, pregando as extremidades das

    tiras horizontais mesma distncia ficava a tira vertical (do meio da gspea) descentrada.

    O Pedro era o que falava mais alto com desabafos de contrariedade e protesto e isso

    acabou por chamar novamente a ateno do encarregado, desencadeando assim mais uma

    reprimenda: quando se d uma ordem para se cumprir! No para se ficar a

    discutir!. Quando o FI se aproximou j os outros dois pregadores (Joo e Paulo) estavam

    ao largo, sentados nos seus postos. Apercebi-me que enquanto o chefe ralhava com o

    Pedro, estes dois trocavam sorrisos e olhares cmplices entre si. Explicou-me um deles

    mais tarde que quando querem criar confuso arranjam uma forma de atiar aquele

    colega contra o encarregado. Ns comeamos a pic-lo, fazemos soltar as cachorras7 e

    pronto quando as cachorras comeam a rosnar est a confuso armada!

    As cachorras rosnaram, o domador apareceu, deu dois berros e, pouco depois, j

    se podia ver o Pedro a trabalhar sossegado. Minutos depois olhou para mim de longe e

    esboou um sorriso como que a dizer: no h nada a fazer. Se ele diz que assim, assim

    se far. Mas no ficam convencidos. Mais tarde ainda voltaram a especular se amanh

    ou depois no os mandariam desfazer a obra e fazer tudo de novo. Muitos detectavam

    erros, mas no chamavam a ateno porque achavam que no ganham para isso. Os

    desabafos repetiam-se: ele no liga nada; ele agora quer duma maneira mas daqui a

    bocado se lhe der na cabea j quer outra coisa (). s vezes por causa duma cagadela

    de mosca faz para a um barulho do carago! Agora aparecem as palmilhas neste estado,

    com uma bela merda de trabalho e no dizem nada!!!.... Esta revolta surda, bem como as

    atitudes de boicote e de chacota eram expresso da convico dos operrios de que o

    encarregado, apesar dos seus ares de conhecedor era de competncia duvidosa.

    Sintoma disso era o prazer que sentiam ao relatar episdios como este: um sapato no

    estava bem acabado, o chefe pediu a um dos operrios para dar um jeito e este disse:

    est bem, deixe ficar. Passado algum tempo mostrou-lhe novamente o mesmo sapato

    que supostamente estaria arranjado mas que, em rigor, no alterou absolutamente nada,

    ao que o encarregado respondeu: est bem assim, mete na linha, manda pr frente!. E

    divertiam-se imenso com isso.

    7 Significa isto, lev-lo a protestar e a irritar-se contra o encarregado.

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    Estes casos revelam bem o significado simblico das cumplicidades e da rebeldia

    tcita dos trabalhadores face lgica da empresa. O papel do trabalho na construo das

    identidades de grupo passa muito por situaes deste tipo. Os momentos de tenso, de

    resistncia e de transgresso exprimem o carcter dinmico das relaes de poder e

    mostram que no estamos perante uma atmosfera de total passividade ou de mera

    aceitao por parte do trabalhador. Trata-se, antes, de um jogo em que cada um dos

    actores se faz valer dos mais diversos meios para marcar pontos face ao adversrio.

    Nomeadamente, no caso dos operrios, visvel uma atitude aparentemente passiva, mas

    que na verdade uma estratgia que passa por dissimular a aceitao. Pode, no fundo,

    considerar-se isso como uma forma de defesa face a possveis represlias e ao mesmo

    tempo uma forma de disfarce tendente a enganar o adversrio. Assim se procura

    resguardar para os prprios uma certa margem de manobra, dando ao mesmo tempo

    sequncia a um processo em que objectivamente se define e redefine tanto a

    identidade do grupo como o prprio sentido de dignidade individual do operrio.

    Paralelamente surgem situaes e momentos em que a relao de poder parece inverter-

    se, em que a posio dominante pode pontualmente comutar com a posio subordinada.

    J se sabe que os trabalhadores detm um certo poder, na medida em que a empresa

    e as chefias precisam deles, no apenas para estarem presentes no posto de trabalho mas

    para que, em maior ou menor grau, se dediquem efectivamente e apliquem as suas

    capacidades e talentos no processo produtivo. Tratando-se de uma empresa onde no

    existiam instrumentos formais de negociao, isto , onde o trabalhador no possui

    nenhum meio de afirmar abertamente os seus interesses, as suas respostas podem surgir

    como uma docilidade resignada ou assumir uma forma de rebelio contida. No

    contexto aqui abordado as duas situaes parecem misturar-se e alternar-se. O

    retraimento controlado ao longo do tempo pode conduzir a situaes explosivas ou de

    descontrolo, como se viu, enquanto que noutras ocasies assume contornos mais

    corrosivos onde a transgresso , como disse, marcada pela subtileza.

    Como atrs j referi, embora de passagem, a desigualdade sexual ocupa tambm um

    lugar central na dinmica da empresa. Convm, pois, assinalar esta questo. A fora

    fsica, a coragem, a capacidade de enfrentar a dureza da vida, constituem ingredientes que

    fazem parte do discurso e do imaginrio masculinos, na base de uma lgica que simboliza

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    a posio dominante do homem tanto perante o trabalho como perante a mulher. Apesar

    da presena maioritria de mulheres na indstria do calado, as relaes na produo so

    manifestamente caracterizadas pela masculinidade. Por outro lado, as desigualdades de

    gnero, quer no que respeita ao acesso a posies qualificadas quer mesmo no caso dos

    nveis salariais so particularmente evidentes, e at chocantes, neste sector especfico da

    indstria portuguesa, vigorando duas tabelas salariais, em que na prtica uma se destina

    aos homens e outra s mulheres no obstante essa discriminao objectiva ser objecto de

    algum disfarce formal (Estanque, 2000)8. A hegemonia do discurso masculino, a rudeza

    das relaes entre os trabalhadores, o jogo sexual e a linguagem de ndole machista

    constituem caractersticas bem presentes nesta empresa. Alm disso, existe uma

    demarcao de espaos entre ambos os sexos dentro e fora da produo, diga-se e, em

    certa medida, as prprias mulheres entram nesse mesmo jogo sem o alterarem

    substancialmente9. Em todo o caso, estas reaces de aparente desrespeito podiam ser

    toleradas no s por serem excepes, mas porque o esforo produtivo e a capacidade dos

    seus diferentes intervenientes tendia a sobrepor-se disciplina formal, em particular

    porque situaes como aquela anunciam a importncia das relaes informais e a sua

    inevitvel interferncia na cadeia hierrquica.

    A observao desta empresa comprova bem a relativa fluidez do sistema e mostra

    que os trabalhadores no so nem meros suportes do modo de produo nem

    simplesmente lubrificantes de uma estrutura imutvel. Os elementos de rigidez e de

    maleabilidade do sistema de controle so duas faces da mesma moeda. Todas as partes

    participam activamente no jogo de poderes interno. Assim, se um primeiro olhar, mais

    superficial, poderia dar-nos a iluso de uma absoluta estagnao, uma observao mais

    atenta no deixou de revelar como os diferentes intervenientes participaram activamente

    na estruturao das relaes de trabalho num processo vivo e dinmico composto de

    mltiplas rupturas e continuidades. Essa dinmica ficou bem visvel na anlise das

    relaes de poder entre as chefias intermdias e os trabalhadores desta fbrica.

    8 Veja-se em especial os Anexos do meu livro Entre a Fbrica e a Comunidade (Estanque, 2000), onde se apresentam essas duas tabelas salariais (A e B) e tambm a estrutura das categorias profissionais do sector distribudas segundo o sexo. 9 exemplo disso o relato do romance na fbrica, na obra citada. Vale a pena ainda referir a observao das diversas brincadeiras entre rapazes e raparigas, bem como a demarcao de espaos, tambm evidentes durante os intervalos. Veja-se Estanque (2000: 309-315, pginas mpares).

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

    21

    Os encarregados pareciam evidenciar o desconforto de quem caminha na fronteira.

    A clivagem incontornvel entre quem pertencia ao grupo operrio, ou com ele era

    identificado, e quem estava do outro lado, obrigou a opes claras. E se algum, por

    fora das coisas, tinha de manter-se na ambiguidade, via-se na necessidade de fazer uso

    de uma ginstica constante. O responsvel da seco de costura (AB) disse-me um dia

    que um chefe sempre visto como lacaio do patro, revelando perceber bem a lgica

    dominante, mostrou at o seu sentido crtico face aos mecanismos de explorao em que

    est inserido. AB mantinha relaes de alguma proximidade com os operrios, muito

    embora tal no acontecesse com os seus subordinados directos. Um dos trabalhadores que

    lhe era mais prximo confidenciou-me que, quando estava junto do seu sector a sua

    postura se altera totalmente, procurando salvaguardar as distncias perante os seus

    subordinados (que eram sobretudo mulheres). Outro aspecto curioso e sintomtico foi o

    facto de AB no almoar no prprio balnerio junto dos outros operrios, mas num

    espao lateral e algo escondido. Segundo me explicou, no se sente bem a comer no

    refeitrio em frente s operrias. Na sua opinio, elas reparavam em tudo e comentavam

    tudo: se um tipo come com o garfo ou com a colher, se come sandes ou comida quente,

    etc. (). No se pode dar muita confiana. Prefere suportar o isolamento e o mau

    cheiro pois o balnerio fica na mesma diviso dos WCs a ter de enfrentar os olhares,

    ou seja, a partilha do espao de informalidade e de descompresso que o refeitrio na

    hora de almoo.

    Concluso

    A partir da observao directa no contexto especfico de uma empresa de calado

    foi possvel verificar como a esfera laboral de facto um mundo cheio de contradies.

    conhecida e identificada como caracterstica da sociedade portuguesa a elevada margem

    de tolerncia que os subordinados admitem relativamente ao exerccio da autoridade por

    parte dos seus superiores hierrquicos. Quem ocupa posies de destaque e lugares de

    chefia exige uma dedicao sem limites por parte dos subordinados, enquanto os prprios

    subordinados, ou por falta de alternativas ou porque esperam da retirar algum retorno,

    no raro deixam-se enredar numa lgica de resignao, alimentada por sentimentos de

    lealdade incondicionais, amplificando assim os recursos de autoridade dos seus

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    superiores. Da que, quando esses laos de afinidade e dependncia se quebram e a parte

    mais fraca comea a invocar direitos se assista muitas vezes a reaces violentas, mais

    abertas ou mais subtis, dando lugar a fenmenos de violncia psicolgica e de assdio

    moral no trabalho, quando no de violncia fsica, como mostrei neste texto (Estanque,

    2003 e 2004b).

    As divises existentes na sociedade portuguesa so expresso das barreiras sociais

    instaladas e do dfice de participao democrtica quer na esfera pblica em geral que no

    campo laboral em particular. Persistem na nossa sociedade fortes contradies de classe,

    mas a importncia crescente da precariedade, ao lado de todo um conjunto de fenmenos

    associados ao consumismo, liberalizao da economia e fora do mercado tendem

    a minar as capacidades de resistncia organizada da fora de trabalho. Isto impede que

    tais contradies estruturais assumam hoje um significado poltico relevante, seja

    enquanto estmulo para a aco colectiva e reivindicativa, seja enquanto capacidade

    negocial ao nvel da empresa. No actual panorama, quando a relao salarial cada vez

    mais precria, o trabalhador sabe que pode a qualquer momento ser descartado. O

    conhecido exrcito de reserva continua a ser uma enorme fora dissuasora. E perante

    isso o sindicalismo portugus tem-se revelado totalmente impotente. Da, o retraimento,

    os mecanismos subjectivos de fuga, de evaso mental, o medo de retaliaes, etc., que,

    apesar de alimentarem em geral um forte sentimento de contrariedade no trabalho, se

    traduzem na recusa em participar no activismo sindical ou noutras formas de interveno

    associativa.

    Em suma, a observao apresentada, retratando o contexto de um operariado

    precrio e ainda semi-rural (sobretudo em meados dos anos 1990, altura em que decorreu

    a observao), permitiu visualizar uma multiplicidade de formas, jogos, tenses e

    processos sociais que tm lugar no quotidiano da empresa. A complexidade que

    caracteriza uma pequena unidade industrial como a que aqui foi analisada permitiu

    identificar e revelar alguns dos impactos locais das estruturas socioeconmicas da

    sociedade portuguesa e do prprio capitalismo global. Com o operariado a precarizar-se

    cada vez mais e a implodir enquanto classe capaz de se organizar colectivamente, ao

    mesmo tempo que o sindicalismo se fixa nos (poucos) sectores com emprego

  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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    relativamente estvel e seguro, poderemos estar beira de um cenrio que a prazo corre o

    risco de tornar-se desastroso em termos de conflitualidade social. Espera-se, portanto, que

    quer o panorama econmico de crise internacional, quer a eficcia das polticas

    governativas, quer ainda a capacidade de aco dos parceiros e actores sociais no seu

    conjunto, possam conjugar-se favoravelmente para que o trabalho, a coeso social e a

    justia social recuperem dignidade, importncia e viabilidade no horizonte de uma

    sociedade mais democrtica, mais justa e mais desenvolvida.

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  • Elsio Estanque O Despotismo Fabril

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