o banquete, mário de andrade (1977)

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O Banquete Mario de Andrade Cn3 Livraria Cn3, Duas Cidades

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Livro sobre um banquete em São Paulo

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  • O BanqueteMario de Andrade

    Cn3 Livraria Cn3, Duas Cidades

  • E q u ip e de realizao:P ro je to g rfico de L cio G . M achado e E d uardo J. R odriguesAssessoria e d ito ria l de M ara VallesReviso de H erb ene M a tt io li e V a l ria C . Salles

    Todos os d ire ito s reservados por L ivraria Duas Cidades L td a .Rua B ento F re itas , 1 5 8 So Paulo 1 9 7 7

    1. M sica Brasil 2 . M sica F ilo s o fia e estticaI. T tu lo .

    \C IP -B ras il. C atalogao-na^onte

    C m ara Brasileira do L iv ro , SP

    A n d rad e , M rio de, 1 8 9 3 -1 9 4 5 .A 5 6 8 b O ban qu ete . So Pau lo , Duas C idades, 1 9 7 7 .

    7 7 -1 2 5 5C D D -7 8 0 .1

    -7 8 0 .9 8 1

    ndices para catlogo sis tem tico:1. Brasil : M sica 7 8 0 .9 8 12. Esttica musical 7 8 0 .13. M sica : Esttica e filo s o fia 7 8 0 .1

  • S U M R IO

    Sobre O B a n q u e te ................................................................................ 9C a p tu lo I A b e r tu ra .......................................................................... 43C a p tu lo II E n c o n tro no P a r q u e .............................................. 55C a p tu lo I I I J a rd im de In v e r n o ................................................. 71C a p tu lo IV O A p e r it iv o .............................................................. 95C a p tu lo V V a t a p .......................................................................... 117C a p tu lo V I S a la d a .......................................................................... 157C a p tu lo V I I Doce de C oco F ru ta s ..................................... 165C a p tu lo V I I I O Passeio em Pssaros ..................................... 167C a p tu lo IX Caf P e q u e n o ................................................. ... 169C a p tu lo X As Despedidas N o t u r n o .................................. 171

  • D evem os a G ild a de M e llo e Souza a sugesto de p u b lic a r esta im p o r ta n te re fle x o est tica in fe liz m e n te inacabada de M rio de A n d ra d e , at hoje p ra tica m e n te in d ita .

    Os E d ito re s

  • Sobre O Banquete

  • "P a r t ir eu p a rto . . .Mas essa m sica m e n tira .Mas p a r t ir eu p a rto .Mas eu no sei o nde v o u .

    M . de A n d ra d e L ira Pau lis tana

    S ituao d '0 B anque te

    Em m a io dv 1 9 4 3 3 ^ r io de A n d ra d e com ea a escrever c rn icas m usica is naTTo/ha da M a n h : te x to s h ebdom ad rios que vo aparecendo reg u la rm e n te s q u in tas -fe iras sob o t t u lo de M u n d o M u s ic a l" , at a m o rte do a u to r, em 1945 . M rio a dve rie desde o p r im e iro a rtig o : no se tra ta de c r t ic a p ro fis s io n a l, ligada aos a co n te c im e n to s e m an ifestaes co n te m p o r ne os e loca is ; no se tra ta de co m e n t rio s sobre a v ida m usica l pau lis ta na . E s tru tu ra m u ito m ais liv re , o M u n d o M u s ic a l" p e rm it iu a apa rio dos mais d iversos te x to s : abordagem de fe n m e n os ou p rob lem as gerais ( "D o te a tro c a n ta d o " , "P s ico lo g ia da c r ia o " e tc .) ; estudos ou re flexes sobre aspectos espe c ficos ("C la u d e D e b u ssy ", "Pe llas et M lis a n d e ", " S c a r la t t i" e tc .) ; sobre o fo lc lo re ( "C a n ta d o r" , "D a na s d ra m tic a s " e tc .) ; e m esm o p o r vezes excedendo ao d o m n io p ro p r ia m e n te m us ica l, co m o em " A r te ing lesa ", no tve l panoram a que releva a im p o rt n c ia da In g la te rra no som ente no d o m n io da m sica, mas das artes p lsticas, a rq u ite tu ra e c inem a.

    A n u n c ie m o s logo que , na m a io r p a rte dos casos, ta is te x to s no so estudos asspticos, a fastados da co n ta m in a o co n te m p o r ne a . Apesar de no se lanar nos p ro b le m a s de co nc re ta e p r x im a a tu a lid a d e m us ica l, M rio liga fre q u e n te m e n te suas re fle xe s sobre o passado, sobre as a tiv idades estrange iras, ou sobre o fo lc lo re , s ituao precisa da criao m usica l b ras ile ira , aos p rob lem as de in fra -e s tru tu ra (ens ino , pesquisa), evo luo dos a co n te c im e n to s do seu te m p o . O "M u n d o M u s ic a l" , em p r in c p io tra ta n d o de assuntos d is tan tes da rea lidade im e d ia ta de m sica e a rte , p o r essa razo mesma um m e io c m o d o de s itua r questes a tua is im p o rta n te s , de d is c u tir ca m inhos , de castigar erros.

    A lg un s desses te x to s so longos dem ais para serem tra ta d o s num a n ica p u b lic a o : po r essa razo M rio ins tau ra sries que p o r vezes so in te rro m p id a s p o r o u tro s te x to s , para serem re tom adas m ais a d ia n te : "C a n ta d o r " ," A r te ing lesa " etc.

  • O B anque te est neste caso e m esm o a m ais longa srie. E le d ife re sensive lm ente dos o u tro s te x to s p o r seu car ter de fic o : um "d i lo g o " e n tre c inco - personagens im aginrias d u ra n te um ja n ta r, co n ce b id o em dez c a p tu lo s que no ra ro sero fragm en tados , de m o d o a se adap ta r pub licao semanal. O p lano es tabe lec ido p o r M rio data de fe ve re iro de 1944 , e a p rim e ira p ub lica o de 4 de m a io do m esm o ano : um p ro je to que se destinava seguram ente p ub licao em vo lu m e , com o " A r te ing lesa " te x to alis bem m enos a m b ic io so , que aparecera em liv ro d u ra n te a v ida de M rio , fa zen do p a rte do B a ile das q u a tro a rtes. In fe liz m e n te , q ua nd o sobrevm a m o r te d o a u to r em 1945 , o p ro je to est inacabado , in te r ro m p id o na p rim e ira p a rte do c a p tu lo sexto "S a la d a ", p u b lic a d o em 2 2 -2 -1 9 4 5 , v igs im o te rc e iro "e p is d io " .

    este fra g m e n to que dam os ho je ao le ito r que se convencer co m o ns, estam os ce rtos , de seu interesse e im p o rt n c ia . Ele p e rm ite um a com preenso mais aguda d o pensam en to de M rio , e a inda p rovoca e a u x ilia a re fle x o sobre p ro b le m a s da m sica, da a rte e da criao na sociedade b ras ile ira .

    P o r que "B a n q u e te ?

    T o m a n d o este t t u lo e d a n d o obra a fo rm a de um d i log o e s t t ic o -f ilo s fic o , M rio de A n d ra d e nos rem ete ao ev iden te m od e lo p la t n ic o . questo que se im p e im e d ia ta m e n te ao e s p r ito qua l a d v id a d o te x to que tem os em mos para com a sua re fe rnc ia clssica? , podem os responder que as ligaes so lo n g nq ua s e gerais, onde fic a m d if c e is as separaes e n tre as (raras) co in c id nc ia s e as derivaes.

    Podem os co ns ta ta r a sem elhana da s ituao g loba l um ja n ta r lu xu oso o nde os conv ivas d isco rre m sobre um assunto preciso, num caso o a m o r, no o u tro a m sica. Mas M rio no se d e ixa de m o d o a lgum levar p o r o u tra s in flu n c ias m ais d e te rm in a n te s ou p r x im a s , que tra n s fo rm a ria m seu te x to num pas ticho a tu a liz a d o , a inda que som ente insp ira do pela o rgan izao fo rm a l. Em lugar de co rrespondnc ias precisas, podem os evocar um a espcie de sem elhana de ca r te r: o d isco rre r f lu e n te e fa m ilia r da narrao p la t n ica m arca-nos pela sua f le x ib ilid a d e , pela sua iro n ia e pe lo seu fra n c o h u m o r: assim o p razer de im ita r os d iscursas das personagens con tem po rneas c o m o M rio im ita r a fa la d o p o l t ic o ou a so fis tica o da g r -fina ou

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  • traos irres is tve is co m o o so luo de A r is t fa n e s ou a entrada tem pestuosa de A lc ib a d e s . Mas se essa escritu ra d 'O B anque te evocada um caso um p o u co especial na obra p la t n ic a , ao c o n tr r io a flu n c ia e h u m o r so um a das ca rac te rs ticas im p o rta n te s que se e nco n tra m na m a io r parte dos te x to s de M rio , m esm o quando tra ta de p rob lem as co m p le xo s e rduos. E, a lm disso, num a o u tra d ire o , O B anque te pau lis ta no m u ito m enos risos e vo n ta de que seu m od e lo clssico e que os escritos hab itua is de M rio . Um c lim a c o n tn u o de m al-esta r e angstia , p o r vezes in tens ss im o , envo lve os risos e as com idas que o a u to r se a tira p ro fu n d a m e n te n a q u ilo que faz suas personagens d ize rem , lanando p rob lem as para ele essenciais e para os qua is no v resposta concre ta a lgum a.

    Mas no an tec ipem os. S obre P la to a inda nos resta d ize r a semelhana acusada e n tre a ju v e n tu d e , a "g raa do c o rp o n o v o " no d ize r de M rio , o es tabanam ento , a im pe tuos idade a d m ira tiv a e en tus istica (e ao m esm o te m p o d is tan te ) que ex is te e n tre A lc ib a d e s e Pastor F id o . E resta-nos tam bm lem bra r o p ro b le m a da m sica grega. Uma das preocupaes fre q u e n te s de M rio so os e fe ito s p s ico fis io lg icos da m sica e a sua in te rveno , seu papel m u ito a tiv o na sociedade co n te m p o r ne a : esto ligados a esses prob lem as a discusso sobre as d issonncias e o inacabado nas artes (O B anque te pgs. 62 e 63) e a evocao dos "e th o s " m usica l grego:

    " o c ro m a tis m o na G rcia era s p e rm it id o aos g ra n fin osda v irtu o s id a d e , in cu lca d o de sensual e d isso lven te ,p ro ib id o aos m oos, aos soldados, aos fo r te s " .Esta lt im a questo j a tra ra bastante M rio , qual

    ded ica pginas im p o rta n te s na Pequena h is t r ia da m sica. Nesse ca m in h o , a le itu ra de P la to deve te r- lh e fo ro sam e n te interessado, mas m u ito m ais o liv ro II das Le is ou o liv ro I I I da R ep b lica que o B anque te , cu ja n ica m agra re fe rnc ia m usica l a passagem rp ida que se e nco n tra no d iscu rso de E r ix m a c o . E essa passagem poderia ser s ig n ific a tiv a com relao ao estado de in q u ie tu d e , de espera, ao se n tim e n to de inacabado d in m ic o e fe c u n d o que M rio a firm a ser ca ra c te rs tico da d issonncia , pois E r ix m a c o d iz de m od o o p o s to , que a a rte m usica l a co n c ilia o de sons d isco rdantes pelo acorde , o que p ro d u z a consonnc ia , c ria n d o um estado de "a m o r e c o n c rd ia " .1 Mas to da essa1 187 a b c , p. 1 1 9 a 121 da tradu o do p ro f. J. C ava lcan te de

    S o u za , So Paulo, D ifuso E u ro p ia do L iv ro , 1 9 6 6 .

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  • ginstica in t i l: a idia de M rio dissonncia = inqu ie tude corre as teorias clssicas da msica. Para darmos um exem plo, citem os o velho e conhecido manual de Danhauser, de 1872:

    "L es intervales dissonants (. . .) sont ceux qui fo rm e n t entre eux deux sons que Tore ille prouve le besoin de m o d ifie r, en les rem plaant par d 'autres sons; la dissonance donne une impression d 'in s ta b ilit , les sons ayant une tendence se dissocier pour a b o u tir une consonance".2Deste m odo, O Banquete de Plato se revela com o um

    padrinho de pouca ou nenhuma in flunc ia , e o te x to de M rio se insere antes numa linhagem de dilogos filos ficos , fo rm a que desde o fil s o fo ateniense pontua a h istria das idias.

    Dilogo, fo rm a adequada

    Pontuao d iscreta, porm . E lem ento essencial da filo so fia p la tn ica (no h, no Fed ro , o elogio da palavra o ra l, viva, e a c rtica da fixao escrita?), a form a dialogada, na sua h is t ria , acomodar-se- em funes menores: fac ilitao pedaggica (j Santo A gostinho a u tiliza com o m eio apropriado de ensino, com o em De musica, onde as personagens se reduzem sign ifica tivam ente a Mestre e D iscpu lo ) ou exposies de argum entao, ocasionais e secundrias, com o os dilogos de Berkeley ou Le ibn iz. Nos dois casos, en tre tan to , ela depende de um corpo filo s fic o j solidam ente estabelecido, e no fu n d o a fo rm a do d i logo no seno um m eio . . . fo rm a l. E que justam ente reaparecer, vv ida e necessria, num pensamento que se ajeita mal com tratados, que faz apelo con tinuam ente experincia para se a lim en ta r, que no gosta de fa lar abstratam ente e constru ir sistemas ridos: ser o m eio de expresso de D ide ro t, por excelncia, por vezes mesmo se d is tingu indo pouco do te x to de tea tro .

    Na msica, a fo rm a dialogada possui um grande m om en to : os escritos de Schum ann. Ele a havia inaugurado com um clebre artigo sobre C hopin , onde in terv inham qua tro personagens, F lorestan, arro jado e rfnpetuoso, Eusebius, m elanc lico e con tem p la tivo , Mestre Raro, espcie de2 T ho rie de ta M u s iq u e , Paris, ed. de 1 9 2 9 , p. 4 2 . Esse'problem a

    vem j m encionado em "Teraputica Musical'' (in N a m oro s co m a M e d ic in a , Porto A legre, L ivr. G lobo , 1 9 3 9 , p. 4 8 ) .

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  • m ediador cheio de sabedoria, e o narrador, que escreve na prim eira pessoa. Logo Schum ann fundar sua prpria revista, onde essas personagens assinaro artigos ou conversaro sobre os mais d iferentes problem as musicais, d irig indo-se contra as a titudes estreitas e demaggicas da c rftica do tem po, de intrpretes, da falsa arte, dos m odismos estrangeiros (carregando consigo o sonho da criao de uma pera alem; in tro d u z in d o com o propor tam bm M rio a substitu io dos term os expressivos ita lianos allegro, cantabile etc. por ou tros nacionais) e exaltando a criao verdadeira, honesta consigo mesma e sempre procura de um auto-u ltrapassam ento. No entan to , F lorestan, E u s e b iu s e Raro no so apenas m arionetes postias que in trigam os leitores e que fa c ilita m os debates; ao co n tr rio , so personificaes de aspectos opostos do esp rito do a u to r, das contradies de seu tem peram ento, de suas d iferentes facetas d iante de problemas que est longe de perceber com a frieza do pro fissional e que antes tom am pro fundam ente seu ser. Por vezes mesmo, sua p rpria produo musical ser assinada por Eusebius ou por F lorestan.

    Se O Banquete de M rio no tem nenhuma pretenso em cria r uma filo so fia atravs do seu desenvo lvim ento d ia l tico , com o em Plato, ou se o d i logo no tem para ele uma funo essencialmente pedaggica ou expositiva , ele se m ostra, com o em D ide ro t, um m eio pe rfe ito de expresso para seu pensamento pragm tico, concre to : se Le rve de d 'A /e m b e rt quase tea tro , O Banquete quase um conto filo s fico . uma fo rm a que possui com o em Schum ann de m odo priv ileg iado , um poder adapta tivo aos con to rnos do real, uma incisiva maneira de com bater, de d iscu tir problemas vibrantes da atua lidade e ao mesmo tem po de cria r contradies den tro do p r p rio discurso, de no provocar polmicas diretas, lu tando por in te rm d io das suas personagens, lanando-se de m odo mais p ro fun d o na fala desses fantasmas, e neles ten tando isolar as facetas de seu p r p rio esp rito . Na sua m ob ilidade e na m u ltip lic id a d e das suas vozes, a escritura dialogada perm ite as ambivalncias.

    Um te x to sem constrang im ento

    Um dos papis essenciais do "M u n d o M usica l" e d 'O Banquete o seu carter de orientao c rtica .

    A im portncia que a inte ligncia , os conhecim entos e a personalidade de M rio de Andrade tiveram no desenvolver

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  • das artes brasileiras fo i imensa e desnecessrio lem brar o que a nossa criao arts tica lhe deve. Escrito por uma personalidade a ltam ente prestigiosa, veiculado pelo jo rna l, logo por uma publicao no especializada, acessvel e de grande penetrao, a funo pedaggica d 'O Banquete devia realm ente ter um alcance considervel. E pela sua natureza e co n te x to , as polmicas levantadas, a v iru lncia do estilo , o ardor das defesas, sempre ligadas s reflexes es.tticas mais gerais, tm esse sabor de vida que e fe tivam ente !a tax ide rm ia universitria , mais rigorosa, segura, ou o que quer que se queira, no possui.

    J vim os que n '0 Banquete a fo rm a dialogada um meio que pela sua fle x ib ilid ad e pode e xp rim ir o tim am ente um pensamento que seguiu pelos trancos e barrancos do concreto e que no se fecha num cristal sem contradies.Ora, ao carter jo rna ls tico e pragm tico se associam projees co n flitu a is interiores do au to r, que confundem a clareza dos desenvolvim entos, a preciso das intenes. Pois especialmente neste d i logo, M rio decide no dissertar, mas lanar-se com suas ambiguidades. O que acarreta forosam ente uma perturbao da pedagogia e das idias que poderiam vir claras. Mas elas no so claras, e no m om ento em que escreve, Mrio est se questionando, por vezes inseguro.N '0 Banquete no pretende colocar apenas um programa e x p lc ito ou uma direo operatria im ediata. A o con tr rio , seu te x to nasce de suas contradies. E as d ificu ldades de le itu ra comeam.

    M rio vai ten ta r exprim ir-se sem os fre ios do rigor e, por vezes, sem mesmo os fre ios da coerncia. Para isso prepara o te rreno escudando-se por trs de suas personagens, sobre as quais recaem as responsabilidades, e cu jo com portam ento ou carter explicam ou desculpam o descosido. E por eles o auto r pode descarregar seu corao.

    Logo de in c io , esse jogo de reenvios anuncia as cores de sua ambiguidade com a nota irn ica :

    "O h meus amigos, si lhes dou este re la to fie l de tudo quanto sucedeu e se fa lou naquela tarde boa, boa e tris te , no acreditem no, que qualquer semelhana destes personagens, to nossos conhecidos, com qualquer pessoa do m undo dos vivos e dos m ortos, no seja mais que pura co incidncia ocasional. E tam bm certo , certssim o, que ao menos desta vez, eu no poderei me responsabilizar pelas idias expostas aqu i. No me pertencem, embora eu sustente e proclam e a responsabilidade dos autores, nesse m undo de

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  • ambiciosas reportagens estticas, vulgarm ente chamado Belas A rte s ". (O Banquete, p. 45).Responsabilidade delegada, mas o sentido

    in tenciona lm ente con fund ido pela iron ia : "p u ra coincidncia ocasional", nestes "personagens to nossos conhecidos", e o carter s ib ilino da ltim a frase.

    Em m om entos mais agudos, tom ado pela dinm ica de seu discurso, M rio insiste na impreciso dos enunciados:

    m u ito vago, Janjo. m u ito vago. Pastor F ido . . . " (O Banquete, p. 133).No 5? ca p tu lo espanta-se:"M as incrve l com o os meus personagens j esto agindo sem a m inha in te rfe rnc ia : no consigo conter mais eles" (O Banquete, p. 122).N um te x to de pura fico, novela ou romance,

    observaes assim teriam sem problem a seu lugar. Elas seriam a apenas informaes sobre as personagens, enquanto que n '0 Banquete , te x to de pensador, elas so alertas sobre as idias que se expe. Tais precaues, mais as facilidades que lhe perm item o tom de conversa de salo, b rilhante , bem educada e bem hum orada (hum or cuja f lo r absoluta a declarao perem ptria e inesquecvel do Pastor F ido :"M o za rt o V icente Celestino do Sculo D e z o ito !") , todos esses elementos perm item tiradas e reflexes desvairadas, como a argumentao em favor da in fluncia francesa (O Banquete , pgs. 108 e 109) ou as referncias desairosas musicalidade germnica:

    "E a cu ltu ra musical germnica quadrada por demais p ro fundam ente estpida os com positores alemes so os mais burros do m undo s Haendel e Beethoven escapam disso! (. . .) Os professores m usicalm ente germanizados (. . .) no tm a m enor capacidade pra entender a msica dos ou tros pases, e m u ito menos a d if c i l r tm ica nacional. Tocam quadrado. Tocam burram ente, com uma estupidez que chega ao ang lico" (O Banquete, p. 109).E saltamos o trecho onde Bruckner e Mahler

    (comparados a Jadassohns!) aparecem com o "fo rm idve is tcnicos da msica e da estupidez hum ana!". Mas o auge do d e lr io encontra-se seguramente na constatao que Bach, " tip icam en te nas peas de rgo ", dem onstra a tristeza ps-coito, "aquela psicologia do 'an im al tr is te ', dos excessos sexuais"! (O Banquete, p. 136). Mas M rio , no seu p r p rio

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  • te x to , p isca-nos o o lh o , c ria n d o a ind ignao do p o l t ic o F e lix de C im a : "A q u e le je ito de tra ta re m M o z a rt, Bach gnios respe itados! . . . E n t o co m o que esses levianos haviam de tra ta r Deus, P tria , F am lia e o G o v e rn o !"(O B anque te , p. 101).

    R ev iravo ltas ta m b m so frequen tes : uma personagem parece ir m u ito bem no seu ra c io c n io , quando um o u tro in te rv m , e as idias do guinadas, m udam de cu rso , vo lta m atrs ou se co rrig e m . M u itas vezes o pensam ento de um a personagem se esclarece, to m a uma nova d im enso com as a firm aes d o s 'o u tro s : as reaes m tuas engendram novas d irees.

    E essa s ituao mesma que p e rm ite tam bm d ivagaes b rilh a n te s , en tre o u tras a te o ria sobre a b a tid a , anunciada p o r F e lix de C im a, e so b re tu d o a pgina sub lim e que estabelece a ligao en tre o esporte e a m o rte .

    E n tre ta n to , as astcias que libe ram o e sc rito r co m p lica m sem d v ida a com preenso do le ito r . P orque, se d e ixa rm o s as regras d o jogo a m b g u o de lado e pergun ta rm os onde e n c o n tra r o pensam ento do a u to r, a resposta no sim ples. Para te rm o s um a idia da e s tru tu ra , p o r vezes d ia b lic a , onde M rio se d iv e rte com espelhos que se re fle te m , tom em os um e xe m p lo preciso em seu encadeam ento . M rio de A n d ra d e escreve num rodap da F o lh a de So P au lo , onde expe suas idias. Nesse rodap cria um d i lo g o , O B anque te , onde elas sero e xp rim id a s e d iscu tidas p o r personagens. Um a dessas personagens, Sarah L ig h t, te m algum as idias sobre a esttica , que d escobrim os serem notas tom adas pela personagem num curso dado por . . . M rio de A n d ra d e em 1928 ! E cons ide rando que Sarah L ig h t um a personagem que , p rim e ira v is ta , d if ic i lm e n te seria um p o rta -voz a u to riz a d o do a u to r, o le ito r s pode consta ta r que se d e ix o u am arrar c o m o um salame.

    N um a te n ta tiv a de s itua r-nos nesse la b ir in to , e xp e rim e n te m o s en to p roceder esco la rm ente , e xam in a nd o um a a um a, as personagens do te x to .

    Sarah L ig h t

    N o p r im e iro c a p tu lo , " A s apresentaes", M rio s itua as trs personagens "d o n o s da v id a " , representantes ou in s tru m e n to s da classe d o m in a n te . Na base est Sarah L ig h t, a m ilio n r ia , " p lu to c r a ta " , co m o ele a d e fin e , que o fe rece o banque te . Sarah L ig h t " is ra e lita ir re d u tv e l" , nascida em N ova Io rq u e e com isso M rio caracteriza ao m esm o te m p o

  • o ca p ita lis m o in te rn a c io n a l e a ausncia de razes Sarah L ig h t um p o u co o ju d e u e rran te sem p tr ia , adaptando-se co m o pode s c u ltu ra s o nde vive. Seu p ra to p o r excelncia a "sa lada a m e ric a n a ", fasc inan te , tra i o e ira , mas "sem c h e iro " sem um c h e iro que a d e fin a c u ltu ra lm e n te . Porm , estas co rrespondnc ias m ais gerais, que s itu am a personagem quase co m o um s m b o lo , no so to s im ples assim. Por e x e m p lo , em pregando o m esm o a d je tiv o " ir r e d u t v e l" , associa os judeus c u ltu ra ge rm n ica :

    " pndego: os m ais perigosos so ju s ta m e n te os p ro fessores sem p tr ia , os israelistas. N unca fu i con tra os judeus, Deus me liv re ! Mas no sei si p o r v irem dum a c u ltu ra m u ito ir re d u tv e l, po is so quase todos das partes ce n tra is da E u rop a , e q ua nd o no germ nicos de te rra de nascena, so p ro fu n d a m e n te g e rm a n iza do s" (O B a n q u e te , p. 109 ).T am bm e n co n tra m o s na p. 107 :"a m ilio n r ia fe rid a naque le m eigo p a tr io t is m o irre d u tv e l que faz a gente am ar pra sem pre a te rra em que nasceu".Pois Sarah ta m b m um a ca rica tu ra dos estrangeiros

    que ignora ram ou co m b a te ra m o m o v im e n to m o d e rn is ta . Na co n fe r n c ia que te m e xa ta m e n te esse t t u lo "M o v im e n to m o d e rn is ta " , de 1 9 4 2 ,3 M rio lem bra com g ra tid o da a ris to c ra c ia tra d ic io n a l, a u te n tic a m e n te b ras ile ira , que deu a "m o fo r te " aos jovens. D . O lv ia Guedes Penteado a a n ttese de Sarah L ig h t, s m b o lo (a inda) dos "a r is t s do d in h e iro " que

    "n o s od iavam no p r in c p io e sem pre nos o lh a ra m com descon fiana . N e n h u m salo de ricaos tive m o s , nenhum m ilio n r io es trange iro nos aco lheu. Os ita lia no s , alemes, os israelistas se faz iam dem ais guardadores do bom senso n ac iona l que Prados, Penteados e A m a ra is . . . " .E n fim , o p o u co que sabem os de Sarah nos a u x ilia a

    co m p re en de r que seu interesse pela m sica passe pe lo desejo fs ic o de Jan jo . p o r causa de le que , com seu d in h e iro , pode c o n s t itu ir um a d isco teca "c o lo s s a l" , m a io r d o m un do (am ericanam en te , c o m o a salada, ta m b m "m a io r do m u n d o "). D o m esm o m o d o que para o p o l t ic o e a v irtu o s e , o interesse que d m sica desonesta ca m u fla g e m : assim na pgina

    n A s p e c to s d a l i te r a tu r a b ra s ile ira , Sao Pau lo , M artin s e d ., p. 2 3 0 e 2 3 1 .

  • no tve l em que M rio traa um pa ra le lo e n tre as m sicas que ela ouve e as expe rinc ias re finadas de sua " t o i le t t e " (O B anque te , p. 7 3 ). A lis , o tem a da re lao e n tre os d iversos gneros da m sica e c o m p o rta m e n to s hum anos ca ro a M rio desde "T e ra p u tic a m u s ic a l" , o nd e o p ro b le m a aparece ligado a c o m p o rta m e n to s c o le tiv o s e no in d iv id u a is , tra ta d o de m aneira ce rta m en te m enos re finada , mas no m esm o e s p r ito . Ta l t ip o de c o n ta to co m a m sica, segundo M rio , escapa ao d o m n io da A r te , com m aiscu la . A m sica " fu n c io n a l" est fo ra dos prazeres p u ros e p ro fu n d o s , p ro d u z id o s pela m sica pura e p ro fu n d a , "e s t t ic a " , desligada do q u o t id ia n o e sacralizada num m o m e n to d e fin id o . D epo is de te r es tabe lec ido um program a de r d io que acom panhasse, da m anh n o ite as funes hum anas (p. 55 e 5 6 ), M rio c o n c lu i "T e ra p u tic a m u s ic a l" le m b ra n d o :

    " que estou p ressen tindo a ob jeo de to d o s : mas nesse caso no haver m ais lugar para c o n c e rto s ! . . . Haver sem pre co nce rto s e horas sero ta m b m de te rm inadas para que to d o s escutem um M o z a rt, um S c a r la tt i, um W agner, um H e n riq u e O sw a ld . Mas isso d o m n io da est tica e no desta n o tc ia em que tive a audcia im p erdove l de nam ora r com a m e d ic in a . . . "(p. 56).Assim Sarah L ig h t tra n s fo rm a m sica " a r t s t ic a "

    (Rarneau, Bach e tc .) em m sica " fu n c io n a l" , c o m o m o u v in te , que se inco m o d a pouco co m a a rte . E o interesse su p e rfic ia l que consagra m sica f -la in te rv ir p o u co nas discusses te rica s : seu papel resume-se fre q u e n te m e n te em co lo ca r questes sim p les que o u tro s desenvo lve ro . A ssim ela vai buscar a idia que a "e s t tica faz p a rte da p r p r ia t c n ic a " ou o e xe m p lo de S eura t que ilu s tra a q u ilo que M rio cham a " o d in a m is m o das com oes e s t tica s " (O B anque te , pgs. 77 e 8 6 ), t ira d o do curso que o p r p r io M rio fize ra no C o lg io des O iseaux. C om co n h e c im e n to s de "c u ltu ra g e ra l" , fo rn e c id o s po r um co l g io g r -fin o , a boa rep resen tan te desses "a r is t s do d in h e iro " , od iados pe lo a u to r, Sarah nem sabe que M rio de A n d ra d e escreveu M a cu n a m a . Ela de fende r a a rte c o m o p r iv il g io de classe, e nisso te r o a p o io do p o l t ic o (O B anque te , p. 9 2 ). E encontra -se c o m p ro m e tid a e com prom issada com ele tam bm , na c r t ic a fa ls if ic a d a ao poder, na pseudo-oposio ao governo (O B a nque te , pgs. 114 e 115 ).

    O a u to r esm ia , a lm desses, o u tro s m ecan ism os seus, consc ien tes ou inco nsc ie n te s : os "d u e lo s " de beleza e fascina co m a ca n to ra , as f lu tu a e s de seu a m o r, cujas

    brunomacielRealce

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  • inc linaes passam de Jan jo a Pastor F id o , seus se n tim en to s e r tico s m esm o, em relao aos trs hom ens presentes. E inesperadam ente d escobrim os que Sarah "u m a grande m u lh e r , m enos s m b o lo e quase essncia fe m in in a , escapando aos caracteres de classe, p lu to c ra c ia que a d e fin e :

    Brisa do e n ta rd e ce r! ch e iro de l r io s do b re jo , in fnc ias , mes, te rnu ras , gru tas abism ais, fo ra te rre s tre q ue n te , gosto , a rro u b o de sexua lidade il im it v e l ( . . . ) A con fuso e x is tia s im , mas t o grave, to harm on iosa o se n tim e n to co m o o som , d sem pre sons h a rm n ico s que Sarah L ig h t estava extasiada, co m p le ta da , co n ve rtid a ao seu to ta l d es tin o , m u lh e r ( . . . ) E vos g a ran to que Sarah L ig h t era um a grande m u lh e r, que pena. . . T ive e te n h o in ten o de a m os tra r desagradvel, co m o de fa to . Mas nem sem pre consigo conserv-la na sua classe de p lu to c ra ta , p o rque , pessoalm ente, s vezes ela se esquece da classe e de m im , uma grande m u lh e r ! " (O B anquete , p. 127).

    F e lix de C im a"D e o rigem ita lia na e n a tu ra lm e n te fa c h is ta " (O B anquete ,

    p. 45 ), o "c a rc a m a n o " , v t im a n a tu ra l de um a certa x e n o fo b ia re inan te , pois o co n tin g e n te im ig ra t r io ita lia n o era o mais im p o rta n te em So Paulo e desse m od o o m ais am eaador.4 As te rnu ras dos "m e u s b ras ile iros lin d a m e n te m is tu ra d o s " , das " ita lia n in h a s " e c o s tu re ir in h a s ta lo -b ra s ile ira s " do C/a do J a b o ti, do ga lha rdo f i lh o de im ig ran tes , lo ira m e n te d o m a n d o um a u to m v e l" de Pau lic ia desvairada, com pensam mal o a m b guo T ie t " , ta m b m de Paulic ia que ope as "g igantescas v it r ia s " do passado bande ira n te " N ad ad o r! Vam os p a r t ir pela via d u m M a to Grosso? / lo ! M a i! . . . /(. . . ) / V ado a p ranzare con la R u th " .4 A lfre d o E llis (Ju n io r) na "R ev is ta N o v a " (d ir ig id a por Paulo P rado,

    M rio de A n d rad e e A n to n io de A lc n ta ra M a c h a d o ), lem brava em 1931 que "seria m u ito d if f ic il de p rever o resu ltado da im igrao ita liana em So Pau lo , posta em scena de u m m o d o perigosissim o para a b ras ilidade, com as avalanches annuaes, cujo to ta l sobe a 75% da populao p re e x is te n te " . Tal in q u ie tu d e p r x im a da de M rio , e a p rec ip itao em que a firm a sem ap o io c ie n tfic o m aior q ue " o ita lia n o fo i e n g u lid o , sem d e ix a r grandes vestgios de natu reza e thn ico -socio log ica da sua passagem" mais um m eio de a firm a r a fo ra da c u ltu ra a u te n tic a m e n te b ras ile ira , m in im iza n d o a c o n trib u i o dos recm -chegados. A lfre d o Ellis (Ju n io r), P o p u la e s p a u lis ta s , in "R e v is ta N o v a " , ano 1, n? 1,15 de m aro de 1 9 3 1 , p. 5 4 .

  • Realmente bem tm idas compensaes, se pensarmos no Gigante Piaim, o guloso "b o n v iv a n t" Venceslau P ietro Pietra, quase irmo gmeo de F e lix de Cima. Com o o vilo de M acunam a , este conhece bem farras, mulheres, comidas, bebidas. Apesar do "a lm de ignorante, m u ito b u rro " , Fe lix escapa da mo de M rio ao dissertar sobre os prazeres da mesa, capaz de sutilezas e lirism os sobre a caninha e o vatap: que a encontram os a palavra do a u to r, em prim eira mo. M rio "g o u rm e t" , au to r dessa obra-prim a de hum or ed ip iano-gastronm ico-au tob iogr fico que o "Peru de na ta l", j havia confessado:

    "G os to porm m u ito de arte cu linria , invento pratos e creio mesmo que se tivesse nascido noutra classe, seria algum coz inhe iro fa m o s o ".5A lm de burro e ignorante, F e lix , quase

    consequentem ente, p o ltic o . Defende as institu ies que garantem o seu ser "d e c im a ", numa am biguidade de parolagens dem ocrticas que escondem a d itadura , as falcatruas, o interesse em frear qualquer desenvolvim ento cu ltu ra l. Pois F e lix tam bm "p ro te to r " das artes, e por isso mesmo que partic ipa mesa de Sarah, que estrategicamente quer fazer Janjo entrar nas graas do governo.

    A personagem de F e lix de Cima perm ite bem ao autor fazer sobressair os mecanismos da demagogia. Ele , sem dvida, exem plar, e em certos aspectos m u ito atual. As pginas sobre a aparente c rtica ao governo, sobre os disfarces do G E LO (G rupo Escolar da L iberdade de O pin io), independentem ente do alcance que possam te r em outros m om entos da h istria do Brasil, re fle tem o instante agudo da demagogia getulista que, ten tando ganhar tem po sob as presses que lhe so fe itas, prom ete o restabelecim ento da democracia representativa. Mesmo o G ELO uma transposio caricata do antigo DIP (Departam ento de-'lm prensa e Propaganda), rgo que substitu i os silncios provocados na imprensa pela v io lenta censura.6

    claro que em realidade F e lix , do mesmo m odo que Sarah, no tem o m enor interesse pelas artes; protege-as, o

    5 Perguntas de M aca u le y e C o m p a n y e respostas de M rio de A n d ra de , in "Revista do A rquivo M un ic ip a l", C L X X X , 1 9 7 0 , p. 243 .

    6 Ver sobre o problem a Lencio Basbaum, H is t r ia S ince ra da R e p b lica , So Paulo, Fulgor, 1 968 . 3? ed.. 2*? parte, cap. 2 e 4; e tam bm Jos M aria Bello, H is t r ia da R e p b lic a , So Paulo, Cia. Ed. N acional, 1 9 5 9 , cap. 2 4 .

  • que coisa m u ito d ife ren te : consequncia de acontecim entos acidentais (entre os quais, por exem plo, uma "d iseuse" da V irg n ia ), ele criara uma cmoda imagem de mecenas. O que a arte pode trazer-lhe apenas o prazer sensual, vulgar , que se encontra no mesmo nvel das comidas e bebidas; alma "concu p isc ve l" para empregarmos a expresso p la tn ica , o d irigen te F e lix de Cima com o quadro s possui um nu "a g u ich a n t".

    Uma tal personagem no coisa nova na obra de M rio : ele existe com o consequncia da reform a do gosto que a transform ao dos crit rios a rts ticos da prim eira metade deste sculo imps, reform a e transform aes das quais M rio ardente pa rtid rio . A c rtica de valores que lhe parecem ultrapassados e falsos fa m ilia r, mesmo em sua poesia. Essa c rtica atinge o auge de sua verve custica na srie A rte em So P au lo ", aparecida em 1927 no D irio N ac iona l,1 e tom a um carter de v io lenta denncia na Campanha contra as temporadas lr icas , de 1928, quando o d inhe iro e os poderes pblicos se com prom etem com manifestaes que M rio acusa de fa ls ificao cu ltu ra l, num tom no m u ito d istante do que encontram os por vezes n 'O Banquete :

    "In ic iou -se on tem , por mais uma vez, essa bon ita festa de ricao decorada com o t tu lo de Tem porada L rica O fic ia l ( . . . ) . O povo est abo lido , a arte est abolida. Uma ou outra manifestao mais legtim a no passa de hipocrisia pra enganar a realidade. H ipocrisia do governo da cidade que mantm uma comisso pra vigiar a elevao arts tica da tem porada. H ipocrisia duma comisso arcaica, absolutam ente desprovida de ideal le g itim ve l".8Por trs de textos com o estes, j est pairando a sombra de

    Fe lix de Cima. Assim , n '0 Banquete, sua apario a cristalizao numa personagem dos descaminhos da p o ltica a rts tica brasileira, que M rio conhecia to bem e de longa data.

    Quanto s idias do ita liano , sobre a arte, so m insculas o gosto por Respighi e Ravel (que M rio pensa, de uma certa fo rm a, acadmicos), a ideiazinha do "b e lo h o rrv e l" que M rio combatera j em 1921, no Prefcio In teressantssim o" de Paulicia desvairada.

    7 In M rio de A ndrade, T a x i e C rn icas n o D i r io N a c io n a l, So Paulo, L ivr. Duas Cidades, 1976.

    8 M rio de Andrade, M sica d oce m s ica . So Paulo, M artins Ed., 1 963 (em particular a seco "Msica de pancadaria"), p. 193.

  • Evidentem ente seu programa de proteo s artes sumrio e desastroso: ho rro r s manifestaes contem porneas mais ousadas (s quais associa o ep te to ento co rren te de "a rte bo lchev ique"), desprezo s manifestaes nacionais,9 proteo a rb itr ria e im becil a estrangeiros: bem claro que essa noo m oralizadora da A rte que deve ser servida, to cara M rio, impenetrvel em tal cabea que traduz um m undo estpido, opo rtun is ta e irrem ediavelm ente desonesto.

    Siomara Ponga

    "C anto ra virtuose ce lebrrim a", de origem espanhola, Siomara Ponga com ple ta o tr io das personagens pertencentes classe dom inante . Mas artista de form ao perfe ita , consciente de seus meios e possibilidades, excelente in trprete, seu esp rito um pouco menos m esquinho: a partic ipao esfera da arte com o que a eleva, e M rio por vezes nos faz assistir contradies, remorsos, tentaes, de se deixar levar por uma fide lidade arte que pratica. No entanto tais dores de conscincia so logo escamoteadas, pois Siomara tra i o que poderia ser seu destino verdadeiro:

    "O s senhores conhecem o verbo 'pongar'? irresistvel, Siomara Ponga era uma virtuose clebre, co itada, 'pongava' todos os bondes com o os meninos da rua, ia para onde os ventos sopravam, desde que os ventos fossem pblicos ( . . . ) . Mas do a lto da sua grandeza, da sua cu ltu ra , da sua beleza, e tam bm da sua escravido de virtuose, se ela no aderia, ela conced ia" (O Banquete, p. 160).Desse m odo a questo que se pe com a personagem

    uma questo m oral, uma questo de a titude d iante da arte: sua inteligncia, sua tcnica impecvel, suas interpretaes notveis s se colocam ao servio de si p rpria , de sua vaidade:

    9 Felix de Cim a por vezes se embaraa todo com opseudo-nacionalismo que era uma das palavras de ordem governamentais da poca. Assim:

    "N o jornal do G overno, a crtica musical feita por um moo m uito distinto que estudou na Europa. A t estrangeiro de nascena e eu sou contra os estrangeiros que vm nos ensinar. M entira tpm tudo e no precisa de estrangeiros. Ns precisamos nacionalizar M entira , como esto fazendo no Brasil e na Argerui.na, esses que esto bem orientados" (O B a n que te , p. 104). *

  • "E o v c io da sua destinao, o ex te rio r que escolhera, eram to fo rtes sobre ela que, por mais que o seu esp rito cu ltivado e o seu gosto espontneo recalcitrassem, todos os aspectos imoderados da tr iun fa lidade a encantavam " (O Banquete, p. 160).M rio considera que a vaidade um trao p rinc ipa l e

    constante da psicologia dos artistas: "m onstros pela va idade".E a vocao sacrific ial que percorre sua vida e obra f-lo exasperar-se contra isso, inda mais quando o artista (com o o caso de Siomara) tem meios para fazer outra coisa com sua arte que contentar-se em ser "v irtu o se ce lebrrim a". E sabido: aqu ilo que chamamos "vocao sa c rific ia l" levou o autor d " 'A m editao sobre o 1 ie t " ao com bate e luta pela arte de seu tem po e de seu pas, incessantemente. E esse ideal que acusa e denuncia as concesses da cantora:

    "M as a (vaidade) de Siomara era 'in conceb ve l', justam ente porque a cu ltu ra que alcanara a deveria levar a esse processo de superao da vaidade, de d ign ificao da vaidade, que a fecunda, e a transform a num orgu lho mais til. Como o dos virtuoses que se dedicam sistematicamente educao do seu pb lico , ou dos que travam batalha pela msica do seu tem po (. . . ) " (O Banquete, p. 50).Desses, M rio tinha o exem plo perfe ito , oposto a

    Siomara: o de Helsie Huston, que ta n to fizera pela msica brasileira, e qual, no m om ento de sua m orte , M rio dedicara um artigo no "M u n d o M us ica l", onde nos lega um admirvel re tra to da can to ra .10

    No casual o fa to que M rio tenha justam ente dado a Siomara o dom do canto . Ele denunciara vrias vezes a "p ia n o la tr ia " brasile ira, e com um fim po lm ico a virtuosidade pianstica poderia perfe itam ente caracterizar Siomara. Mas se escolhe o canto , que isso traz mais im ediatam ente baila o problem a da msica nacional, de um m odo diretam ente ligado a esforos seus.

    Em 1938, sob sua direo, o D epartam ento de C ultura da Prefeitura de So Paulo prom overa um Congresso da Lngua Nacional Cantada, que estabelece normas de pronncia, debruando-se sobre problemas tcnicos de interpretao, de escritura musical etc., ligados arte do canto brasile iro . Os anais desse Congresso, que fo ram publicados, fo rm am e x trao rd in rio ins trum ento tcn ico no

    10 "Helsie H u ston", de 10 de junho de 1943.

  • encontrando equivalente algum na h istria de nossa msica. Abandonando o esforo de cantar b rasile iro (O Banquete , p. 51), Siomara abdica de uma carreira que expressasse a msica nacional em plena construo que daria um sentido de u tilidade pro funda sua arte. "A m a nsa ra " com o ela d iz de si mesma, contentando-se de um convenciona lism o que M rio abom ina:

    "O fazer bem e ce rtinho lhe sossegava uma conscincia fc il, o con fo rm ism o dom esticado, a subservincia s classes dom inan tes" (O Banquete, p. 53).Suas audcias derrisrias no vo mais longe que um

    extravagante vestido amarelo do qual, alis, a idade chegando, comea a te r medo.

    Sua interpretao impessoal ela procura revelar os artistas "na sua permanncia, na sua mensagem " (O Banquete, p. 129). E M rio recusa essa eternidade da arte, prope uma relao personalizada que revele a reao do artista num m om ento tra n s it r io d iante da obra. Ele prefere a febre de entregar-se to ta lm en te a uma apresentao pessoal e desse m odo, atual da obra in terpretada. "M ilag re de a m o r", com o dissera uma vez de Magda Tag lia fe rro , num artigo que j em 1924 colocava nos mesmos term os a questo.11

    E n tre tan to a personagem de Siomara no nem to simples, nem unicam ente negativa. Ela possui conhecim entos musicais p ro fundos e uma cu ltu ra slida e vasta: o bem seguro profissional no seu esplendor, do qual mesmo o com pos ito r Janjo teme a "fo ra in te le c tu a l" . Com isso, pode d iscorrer in te ligentem ente e em m uitas coisas podemos reconhecer M rio , que alis p ro je ta na cantora mesmo um episdio au tob iog r fico : o caso da natureza m orta de Donato Bosi e do Hom em A m are lo de A n ita M a lfa tti (O Banquete, p. 90). Tam bm podemos supor que o re tra to fe ito por P ortina ri e re fe rido pela cantora, "d e dois azues e m u ito diversos de co lo rao", representando um "ro s to quente m u ito amorenado do h om em " (O Banquete, p. 87) seja o p rp rio re tra to de M rio. E o au to r mesmo se d ive rte intrigando-nos com uma relao obscura que parece m anter com a personagem, irrom pendo numa observao isolada do te x to por parnteses e que compreendem os m al. quando Siomara d iscorre sobre a comoo esttica, especffica, em oposio colaborao fo rte do esp rito nas outras emoes.11 "O caso Magda Tag liaferro . in M . Batista, T . Lopez e Y . L im a

    B ra s il: 19 te m p o m o d e rn is ta 1 9 1 7 /2 9 D o c u m e n ta o , So Paulo, I.E .B ., p. 321 e seg.

  • Contra estas ltim as, possvel reagir elas se a lo jam no esp rito . Contra as emoes estticas impossvel, pois elas dependem do ob je to a rts tico d iante de ns: ela no con tnua , se o ob je to no nos estim ula, ela desaparece. A virtuose conc lu i:

    A o passo que possvel reagir contra o am or, o dio e mesmo a excitao sexual, no s com o afetos, mas com o com oes".A frase tem seu lugar no discurso de S iomara, e

    podemos mesmo crer que to d o esse desenvolvim ento no seja desaprovado por M rio , que tan to se interessava pelas reaes dos espectadores, ouvintes, d iante das emoes da arte e da vida. Mas ele evoca tam bm a personagem fria , assexuada, sacrificando paixes e alma, que a cantora fizera de si mesma. E bem a que a voz do au to r intervm

    " (A h ! p e rfil du ro , p e rfil duro . . . Hoje, mesmo quanto te con tem p lo , parece impossvel recobrar o passado a ressentir tanta ventura irrealizada que so fri . . . Mas . . . mudaria o Natal ou m udei eu? . . . Bom) (O Banquete, p. 89).As dissertaes de Siomara sobre as sensaes estticas

    no ca p tu lo III esto ligadas a interesses do p r p rio Mrio. Assim , o desenvolvim ento sobre a relao a rte /tcn ica , que parte de uma de fin io do autor e de uma reflexo sobre "O artista e o arteso" (exp lic itam ente mencionados no te x to ), um pro longam ento, uma afinao do problem a.M rio alis fora provavelm ente levado a faz-lo em consequncia de uma polm ica com Srgio M illie t, que o acusara de com p lica r inu tilm e n te os dados do problem a com defin ies desnecessrias.12 E sobre as reaes psicofisiolgicas d iante do ob je to a rts tico , encontrar-se-o desenvolvim entos da mesma natureza em "D o desenho",13 ou na "Teraputica m usica l" (op. c /t.) . Por vezes, o te x to uma ten ta tiva de defin io esttica, sente-se uma necessidade no auto r de precisar suas prprias idias, ao mesmo tem po que nos oferece as chaves de seu pensam ento: assim a reflexo sobre o r itm o (O Banquete, pgs. 84 a 86), a relao entre a comoo esttica de um e rud ito e de um ignorante (O Banquete, pgs. 91 e 92). No f im do c a p tu lo , Siomara to M rio que Sarah L ig h t obrigada a chamar sua ateno, lem brando (de m odo ind ire to ,

    Cf. "E squerzo", in 'M un do M usical".In A spec tos das a rte s p ls ticas n o B ra s il, So Paulo, M artins Ed.,1965.

  • mas logo c larificado pelo p o ltico ) que o gozo das artes um p riv ilg io de classe, e provocando um remorso desanimado na grande virtuose (O Banquete, pgs. 91 a 93).

    Qual o interesse de tais reflexes? Um p rim e iro , essencial: elas nos perm item com preender os pontos de referncia dos mecanismos do pensamento do au to r. No im porta que por vezes o te x to parea pouco o rig ina l, ou pouco rigoroso, o interessante , ao co n tr rio , saber com o M rio sentia, u tilizava, resolvia suas preocupaes. E no esforo por vezes confuso de se s itu a r,14 M rio levanta coelhos im portantes: por exem plo o problem a da cu ltu ra popular d iante da cu ltu ra "e ru d ita " fenm eno de distncia que ele situa a p a rtir do sculo X IX e que comea apenas agora a aparecer nas preocupaes de h istoriadores da arte com o B ertho ld H inz e T. J. C lark. Mas o au to r mesmo coloca em questo tudo o que d iz atravs da voz de S iomara Ponga: as discusses estticas no resolvem problemas concretos, im ediatos e essenciais:

    "O tem po passara e eles m u ito entre tidos naquele lero-lero esttico. No tinham com binado nada a respeito do co m p o s ito r" (O Banquete, p. 93).Antes da in terrupo d e fin itiva do te x to , Siomara ainda

    in terv ir , de m odo im portan te , numa longa exposio sobre a m orte e o am or (O Banquete, p. 133), por vezes sendo a personagem, por vezes sendo m u ito M rio : na m elancolia da evocao do esporte ,15 nos meandros brilhantes da reflexo

    14 Confuso que se acrescenta de um problem a. A legendria cultura de M rio indiscutivelm ente vasta e universal. Ela entretanto autodidata, e um universitrio, por exem plo , poder assustar-se com os saltos com parativos e abusivos que ligam artes e artistas de perodos e regies m uito distantes: Siom ara associa Bach a Rafael, M ichelangelo, Veronese e T ic iano, afastando-o de T iepolo ; e mesmo coloca coisas sem sentido ou, no lim ite , falsas, como a ausncia de conscincia individualizadora na pintura do sculo X V I italiano (Rafael, M ichelangelo, T ic iano , Veronese e Da V in c i), oposta "vontade de especificao pessoal" da pintura "flam enga" do sculo X V I I (incluindo Hals e Rem brandt ao lado de Rubense Teniers!). Que lacunas sejam assim por vezes preenchidas com referncias rpidas e pouco srias, em bora aparentem ente brilhantes, inegvel, mas elas representam tam bm um m eio que perm ite s idias motoras e fecundas avanar. E no podemos esquecer que, ao lado desses malabarismos, M rio produziu estudos de rigor e valor indiscutveis j que estamos no d o m n io das artes plsticas, lembremos apenas o perfeitssim o trabalho sobre o Pe. Jesuno do M onte Carm elo.

    15 N um registro prxim o, M rio j pensara a questo em "Brasil x A rgentina" de 1 939 , in Os f ilh o s da C a n d in h a , So Paulo, M artins Ed., 1963.

  • sobre a sincopa e o am or. Tais textos en tre tan to no apagam a impresso de frieza, de desperdcio estril que escapa da cantora. Siomara uma "acadm ica". A ela em contraste se colocar Janjo, o sincero criador.

    Janjo

    A virtuosidade, mais que um problem a puram ente tcnico, prope um problem a m oral. Tem-se a impresso que o in t rpre te " t i l " no Brasil de 1944 pode fac ilm en te saber seu cam inho, que essencialmente a colaborao de um estilo que se associa s especificidades da criao nacional, e a divulgao de obras dessa criao. A funo do in trprete parece bastante precisa, e no fundo pouco prob lem tica : sua a titude de base d iante da arte brasile ira, ao mesmo tem po de servio e colaborao, no faz dvida para M rio e os modos dessa relao no so nem com plexos nem ambguos. Para o artista criador, o problem a no m om ento em que M rio escreve m u ito menos c la ro : ele no est "d ia n te " de alguma coisa, com o o in trpre te , mas cabe a ele, numa situao geral que ta teante e com plicada, cons tru ir a estrutura do e d ifc io a p a rtir de pontos de referncia que se em brulham , confundem-se, enganam.

    Na base est o que poderam os chamar de fide lidade ao ideal de uma criao que progride sempre. Um exem plo um pouco sim blico e que marcara m u ito M rio, transparecendo n'O Banquete e em outros escritos, o caso de Carlos Gom es.16 O grande com posito r brasile iro partira para a It lia e tivera um "sucesso fu lm in a n te " com O Guarani. Na sua pera seguinte tenta ir mais adiante e com um sentido dram tico notvel precede as solues de Carmen, interessa-se pelas proposies de Wagner e faz da adm irvel Fosca uma obra que am biciona ir "u m pouco alm do pon to em que jazia a ita lianidade sonora do te m p o " {Fosca, op. c it., p. 252 ). Mas Fosca fo i quase um fracasso e o medo de perder sua popularidade f-lo escrever "em lngua de p b lic o " Salvator Rosa , vo ltando atrs e reencontrando o sucesso perdido. O com pos ito r vendera sua alma ao d iabo.

    Aplogo do artista que tra i seu ideal da verdadeira A rte pelo sucesso, a h istria de Carlos Gomes advertncia. Mas a16 M rio de A ndrade Fosca, in "Revista Brasileira de M sica",

    nm ero especial consagrado ao 1? centenrio do nascimento de A. Carlos Gomes, 1 9 3 6 , p. 251 e seg.

  • "verdadeira A r te " no sempre fac ilm en te identificve l e a situao do artista pouco segura. Janjo, no ca p tu lo II anuncia claram ente: as orientaes tericas no levam "verdadeira A r te " , elas constituem direes cmodas, mas por a mesmo conform istas. Nada de teorias precisas e claram ente organizadas: o artista deve te r uma "estesia" palavra mais ambgua, mas que contm nela o d inam ism o e o estm u lo de um fazer c o n tn u o :

    " A arte uma doena, uma insatisfao humana: e oartista com bate a doena fazendo mais arte, outraa rte " (O Banquete , p. 60).No se tra ta no entanto de uma produo que se

    repete; trata-se desse "faze r m e lho r to essencial para M rio. Se no fo r assim o artista ser con fo rm is ta ou p io r, um " fo lc l r ic o " . Neste pon to colocam-se as relaes entre o artista e a produo popu la r: passagem d if c i l que M rio resolve mal. A arte do povo o que chamamos fo lc lo re , e est ligada a condies de classe e a com portam entos sociais especficos: ignorncia (analfabetism o) e conservadorism o.Est latente a noo, embora o auto r no a u tilize nem a leve s consequncias, que o "p o v o " possui uma cu ltu ra que tende a desaparecer com o progresso "c iv il iz a d o r" . Em todo caso h uma distncia irreparvel entre os artistas "e ru d ito s " e a cu ltu ra popular. No se pode fazer arte para o povo.Como ele d iz, "te o ria c u r ta " .^Q ual ento a funo do artista? m elhorar a vida. A arte, porque no con fo rm is ta , uma "p roposio de fe lic id a d e ": soluo atravs de um conce ito vagussimo, que se consola e se refugia na sua generalidade mesma.

    M elhorar a vida significar fazer arte de com bate, "a rte p ro le t ria ", "a rte socia l"? No; e arte social no significa arte de com bate, arte "enga jada" com o d iram os hoje e mesmo re fle tin d o sobre as funes sociais da arte (que no caso de M rio so antes psicossociais) que se pode passar a uma etapa mais p ro funda dos deveres do artis ta . Pois a reflexo sobre o problema da funo social da arte no somente levaria o artista a in te rv ir em fatores mais exteriores com o a concepo do assunto, mas de um m odo mais n tim o , da p rpria tcnica.

    Siomara Ponga d iscu tir questes prxim as, na ausncia do com pos ito r (O Banquete, p. 77). Mas enquanto a cantora fica em consideraes gerais e exteriores, numa espcie de d ile tan tism o esttico, teorizando apenas, Janjo traz tais problemas sua proporc central a a titude do artista d iante da vida. Assim , a arte social o leva a uma concepo

  • que opef "tcn icas do acabado" e "tcn icas do inacabado" as prim eiras, a firm ativas e dogmticas, ind iscutve is; as segundas, insatisfe itas, "m a ltra ta m , excitam o espectador e o pem de p ", prestes para o combate. H artes abertas (desenho,17 teatro ) e tcnicas "abe rtas" assim, por exem plo,0 problem a da dissonncia. J vim os que sua idia de dissonncia = insatisfao vem da teoria clssica; M rio a pro jeta no passado (antiguidade grega, "A rs N ova") para apoiar o argum ento que a dissonncia uma tcnica do inacabado, d inm ica e vio lenta . Desse m odo, h meios especficos imanentes arte, p rprios para a produo de com bate:

    "T o d a obra de circunstncia, p rinc ipa lm ente a de com bate, no s perm ite mas exige as tcnicas mais v io lentas e dinm icas do inacabado" (O Banquete, p. 62). in til d iscu tir aqui a "ve rdade " dessas proposies: o

    que conta o exem plo de busca de elementos que sirvam com o meios no conform stas da produo a rts tica , penetrando in tim am ente na "n a tu re za " da arte (mesmo se sabemos, distncia do te x to , que essa "n a tu re za " em realidade circunstancia lm ente ligada noes de tem po).

    O artista en tre tan to deve se recusar a uma arte de com bate "ao alcance do p ovo ", se isso significa concesso ou h ipocrisia em face de si mesmo:

    "E u sou de form ao burguesa cem por cento , voc esquece?" (O Banquete , p. 63).Mas a conscincia aguda da aristocracia ind iv idua l do

    artista (um pouco com o no D elacro ix da m aturidade: "o homem que faz a 'sua' m ora l, s aceita a 'sua' verdade, numa libertao ind ife ren te a quaisquer . . . representaes co le tivas" (O Banquete, p. 63), o leva a um "e levado senso m o ra l" e a uma "verdade co le tiv a ": respeitando a liberdade pessoal na sua "e v id n c ia ", ela "d ita uma verdade e uma m oral que co incidem necessariamente com o Bem e a V erdade" a conscincia da prpria ind iv idua lidade e da prpria liberdade leva a uma sabedoria que im p lica a conscincia da Liberdade. Mas claro, nesse m om ento comeam as contrad ies: a conscincia exige o empenho.Que fazer? E M rio re to rna , violentando-se, arte de combate que recusara antes Janjo au to r de obras que so populares "co m o concepo do assunto, exaltando as formas proletrias da v ida ". E justifica-se num entregar-se consciente1 7 Cf. M rio de A ndrade, " D o desenho", op. c it.

  • a essa produo de um certo m odo h ip c r ita " deixa-se m anipu lar, faz-se boneco, mas a consciente: "T u d o est em ser boneco consciente da sua bonequice". E supera a noo da aristocracia ind iv idua l do artista com a constatao de que todo artista verdadeiro um fora da le i, est fora dos com partim entos propostos pela sociedade que produz riquezas, seu o lhar tem uma posio priv ileg iada:

    "P orque sendo 'o u t law ', extra-econm ico por natureza, sem classe por natureza, sem povo por natureza, sem nao, o artista no deixa por menos: o que ele exige a hum an idade" [O Banquete, p. 64).Estamos, sem nenhuma dvida, n m b ito das atitudes

    legadas pelo sculo X IX ao aristocra tism o de D elacro ix se acrescenta o "o u t la w " Courbet. M rio herda os problemas morais colocados pelos grandes do sculo que o precede: o ser fora das contingncias sociais mas de term inado pela sua m oral superior, concebendo uma hum anidade pela qual anseia, que ama e que teme.

    D elacro ix, Courbet, B yron mesmo. Mas a eles, to prxim os, M rio acrescenta o problem a p r p rio ao nosso tem po no s do engajamento do a rtis ta , mas da funo po ltica da arte ela mesma. Problema ao qual se associa, em M rio, a noo de sacrifc io : a arte deve almejar servir e no ser a obra-prim a eterna, para a posteridade. A o co n tr rio , um dos modos essenciais do empenho o sacrifc io trans ito riedade .18

    Raramente em outros tex tos ficaram to claras as contradies de M rio e a sua concepo ao mesmo tem po sacrificial e messinica do artista . O que Janjo d iz sai das profundezas da alma do au to r: o "Esquerzo a n tifa ch is ta ", a "S in fo n ia do tra b a lh o ", essas msicas po liticam en te engajadas do com posito r Janjo tm um equivalente na obra de M rio: a "Concepo m elodram tica" Caf. L M rio exige de si seu destino de m elhorar a vida, e o poema adm irvel tambm um admirvel esforo. Mas as contrad ies e tateam entos de Janjo tam bm nos so confiados nas confidncias doloridas da Lira paulistana, e a lgrim a de Janjo a mesma que cara nas guas escuras do r io , no no tu rno " A meditao sobre o T ie t ".

    18 Cf. sobre o problem a do empenho do msico: M rio de Andrade, " In tro d u o " V . Seroff S h o s ta ko v ich , E. G . O C ruzeiro , R. Janeiro, 1945. Mas este texto unilateral , como o C af , uma proposio sem contradies. A q u i, como no poem a, M rio um pouco' o ."boneco".

  • "Jan jo estava bastante envergonhado com a fraqueza que tivera de m ostrar as suas contradies de artista , consciente da servido social das artes mas incapaz de se libe rta r do seu ind iv idua lism o (O Banquete, p. 65).Este a flo ra r de contradies um autoquestionam ento,

    uma dvida con tnua que no abandona M rio no f im da sua vida. Devemos enviar o le ito r a um te x to essencial, com ple tando as confisses de Janjo e m ostrando sem desvios essa conscincia luc idam ente aguda e sempre insatisfe ita: trata-se d '"O m ovim en to m odernista de 1942 , que se encontra nos Aspectos da L ite ra tu ra Brasile ira.

    M om ento de crise para M rio, m om ento de reviso de sua vida e obra. "M archar com as m u ltid e s", com o d iz no "M o v im e n to m odernista , fazer obra de com bate, de lu ta, de empenho, uma soluo que o poeta M rio de Andrade provara, na ten ta tiva de superar a a titude m odernista, que lhe parece insu fic ien te :

    "E si agora percorro a m inha obra j numerosa e que representa uma vida trabalhada, no me vejo uma s vez pegar a mscara do tem po e esbofete-la com o ela merece. Quando m u ito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a m im , no me satisfaz ("M o v . M odern ista , p. 243).Talvez uma arte p o ltica , um Caf ou um "Esquerzo

    an tifach is ta possam agredir mais a "mscara do te m p o ". Mas Janjo parece insa tis fe ito , no convencido : divagando em frases soltas, no cr na construo de "um a arte que interessasse as massas e as movesse . E prope que a obra de arte seja mals, continuam ente revolucionria

    "n o sentido de conter germes d estruidores e intoxicadores, que

  • E Jan jo lem bra o P re fc io In te re ssa n tss im o " de Paulic ia desva irada, onde h antes e n riq u e c im e n to de fo rm a s que d e s tru i o :

    Mas no desdenho ba lo ios danarinos de re d on d ilha s e decasslabos (. . .) Nesta questo de m e tros no sou a lia d o ; sou co m o a A rg e n tin a : e n r iq u e o -m e " (Poesias co m p le ta s , p. 2 0 )."E is to cons tru o , Pastor F id o ! riqueza 'a m ais ', c a p ita lis m o " (O B anquete , p. 66 ).

    exclam a Jan jo (e pode ram os lem bra r a inda, mais fo r te , a frase lm ina de O sw ald evocando o engano id e o l g ico no te x to te rr v e l que precede S e ra fim P onte G rande (1 9 3 3 ):" A s ituao 're v o lu c io n r ia ' desta bosta m en ta l su l-am ericana apresentava-se assim : o c o n tr r io do burgus no era o p ro le t r io era o b o m io ! " ) .19

    Que a a rte con tenha os germes de d es tru i o no quer d ize r que ela mesma no seja c o n s tru d a . M rio fa la ra em tcnicas abertas, capazes de serem, no in te r io r da a rte mesma, irre cu p e r ve is ". Na rea lidade, a tcn ica pode ser c o n s tru t iv a , e m esm o a tcn ica artesanal o b je t iv a " u ltrapassando os hom ens e as escolas no perigosa. Perigosas so as tcnicas in d iv id u a is 20 que podem e ven tua lm en te serem aprove itadas pela classe d o m in a n te . ainda uma vez in t i l d is c u tir sobre os exem p los que M rio to m a na h is t ria das artes para ilu s tra r sua te o r ia , exem p los e viso h is t rica d iscu tve is . A ss ina lem os antes a im p o rt n c ia dessa idia de consegu ir uma a rte irrecuperve l pelas classes d o m in a n te s , no se n tid o em que ela no fo rnea os e lem entos de uma f rm u la c m o da destinados a c o n s tru ir o b je tos a rts tic o s cu ja fin a lid a d e ser um jog o h e d o n s tic o p e rtencen te aos "d o n o s da v id a " .

    Perdem o-nos com M rio nos seus exem p los e ra c io c n io s h is to r ic a m e n te inexa tos . A noo que revm to fre q u e n te m e n te de "a c a d e m is m o ", po r e xe m p lo , no nunca to m a da nas acepes d ife ren te s que teve na evo luo dos tem pos. Ela tem aqu i o sen tido p e jo ra tiv o de rece itas a p a r t ir de um a escola noo que lhe c o n fe riu o sculo X IX , mas

    19 O sw ald de A n d rad e S e ra fim P o n te G ra n d e , Obras com pletas 2 , So P au lo , C iv . B rasile ira , 1 9 7 1 .2() M rio d um sentido largo noo de tcnica: S io m ara d ir " o c o n ju n to de con hec im en tos prticos com que o artis ta m ove o m ate ria l pr con s tru ir a obra de a rte " nisso inc lu in d o a esttica p r p ria ao a rtis ta . P o deram o s d ize r que o estilo p artic ipa dessa noo larga de tcn ica.

  • se alarga a inda, po is p o r ela M rio condena o a rtis ta que segue seguram ente suas p r p rias receitas, j e xpe rim en tadas e aprovadas, sem nada a rrisca r d ia n te de seu p b lic o .21

    A esses "a c a d m ic o s " se o p em as audcias dos " fa u v e s " . Na rea lidade , M rio no d e fin e h is to r ic a m e n te ou te o r ic a m e n te esses c o n c e ito s : ele os vive e se serve deles c o m o e lem entos de lu ta . A re vo lta m od e rn is ta lanara-o num a ba ta lha c o n tfn u a c o n tra os "m e s tre s do passado""a c a d m ic o s " e se a largara c o n tra tu d o que parecer c o n fo rm is m o em a rte . O h is to r ia d o r c o n te m p o r n e o pode perceber a c o m p le x id a d e dos fe nm enos que esses co n ce ito s "a c a d m ic o s " , " fa u v e s " reco b rem . Mas no cabia a M rio a com preenso dessas co m p le x id a d e s : tem os que v-lo ta m b m no seu m o m e n to h is t r ic o , q u a n d o as e tique tas d e fin e m a lin h a de dem arcao de um cam po de ba ta lha , onde M rio se em penha nos com bates de seu te m p o .

    A ss im a p a r t ir das fa c ilid a d e s d o "a c a d e m is m o " que ele p ro p e um a v ig iln c ia c o n tn u a "sa b e d o r que h safadeza na in te lig n c ia (at na m in h a )" das p r p ria s p ropos ies, recusando o a c o m o d a tiv o dos va lores e ternos, ens inando o c o m b a tiv o e o t ra n s it r io . Lanar-se no fu tu ro sem d u v id a r de le , mas e x ig in d o sem pre o " fa z e r m e lh o r " de si m esm o. Para que o p r in c p io m esm o da a rte de nosso te m p o f iq u e sendo o " p r in c p io da re v o lu o ".

    "F e n m e n o de a m o r" , " p r in c p io de re v o lu o ", "sa c rifica r-se ao t r a n s it r io " te rm o s bem gerais, que podem ser u tiliz a d o s co m m f e lstica . Mas m enos que esses te rm o s , o . im p o r ta n te que no pensam en to de M rio a a t itu d e c o n tn u a de exignc ia de si im pede a m f , p o rqu e se questiona sem pre. M rio d e ix o u este m u n d o sem nenhum a posio c la ra , te r ic o que ele no era. Mas m e lh o r o d e ix o u q u e s tio n a n d o a si p r p r io e ao m u n d o , in s a tis fe ito co m am bos.22

    Jan jo re fle tir m ais e spec ificam en te sobre a m sica b ras ile ira , no c a p tu lo V , e x ig in d o o p r in c p io de u tilid a d e , im e d ia to , ligado c o n s tru o de um e s p r ito nac iona l de m sica que est se fo rm a n d o . A lgum as questes so m encionadas ra p id a m e n te , co m o o caso da s in co p a , que 21 S obre esse aspecto do acad em ism o , ver o a rtig o de 1 9 3 0 , " O

    B olero de R a v e l" , in M s ic a d o c e m s ic a , o p . c i t . , p. 2 5 9 a 2 6 1 .22 M esm o a linguagem de Jan jo pou co a firm a tiv a ele a

    personagem que fre q u e n te m e n te perde em seu d iscurso, reconhecendo-lhes as vaguezas, fa la n d o p erd id o no seu m undo n eb u lo s o " , d ize n d o coisas q ue lhe saem do mais p ro fu n d o mago de sua angstia , de suas incertezas , de suas questes.

  • desviada por S iom ara Ponga, mas que M rio j a tra ta ra no Ensaio sobre a m sica b ra s ile ira .

    O utras se esclarecem e se prec isam : assim , a noo de nac iona lism o que um p ro je to sem d v ida a r t i f ic ia l, "m a c u n a m ic o " : um nac ion a lism o fe ito c o m o um a co lcha de re ta lhos , o c o m p o s ito r devendo fa b rica r um a sntese dos e lem entos que conhecer ou escolher a p a r t ir das m an ifestaes popu la res de todas as regies do Brasil (e M rio pensa m esm o nas d if ic u ld a d e s das viagens, no p ro b le m a do acesso a regies isoladas). M rio de A n d ra d e fie l a si m esm o, co m b a te n d o o re g io n a lism o , mas podem os nos p e rgu n ta r se a so luo de uma nac ion a lid ad e supra -reg iona l, co n s tru d a v o lu n t r ia e a r t if ic ia lm e n te e inda m ais na exignc ia de um tra b a lh o s rio , no su pe rfic ia l te m um fu n d o rea lis ta q ua lq ue r. Nos nossos dias, em que os p a rtic u la ris m o s tn ico s , loca is, do m u n d o in te iro , se erguem e re iv in d ica m e spec ific idade e ide n tid ad e , podem os nos in te rro g a r se no fa lto u ao pensam ento m us ica l de M rio um a viso m ais nuanada e re fle tid a sobre os aspectos d o reg io n a lism o .

    Mas o p o n to m ais v io le n ta m e n te d ese nvo lv id o , localiza-se nos p rob lem as co n c re to s , da fo rm a o m us ica l, da c r t ic a , das escolas, das m an ifestaes m usica is de todas as o rdens, do iso la m e n to dos c o m p o s ito re s nos ce n tros m enos fa vo re c id o s do B ras il, da fo rm a o dos a rtis tas , do c o m p o rta m e n to dos responsveis pela c u ltu ra . P rob lem as p ragm ticos , d ire to s , sobre os qua is no h nenhum a hesitao, a tin g id o s pelo e s tilo fu lm in a n te de M rio . E so so b re tu d o esses aspectos que in d ispo r o Jan jo , a rtis ta ve rd ad e iro , c o m a "classe d ir ig e n te " , esses e lem en tos co nc re to s so o passo que de te rm in a o que fa ta lm e n te estava p re v is to :

    "E stava exausto d o es fo ro que fize ra pra vencer seus interesses js tos , d ize n d o a verdade, m esm o na certeza de recusar pra sem pre a p ro te o dos d on os da vida que co m ia m a Ii" (O B anque te , p. 145).E Jan jo , no c a p ftu lo X , no escrito , mas in d ic a d o no

    p ro je to de M rio , recusando a c u m p lic id a d e , ser jogado na rua.

    P asto r F id o

    Jan jo , c o m p o s ito r b ra s ile iro , ope-se assim aos "d o m in a n te s " . Mas ao m enos num p rim e iro m o m e n to ele no estar so z in h o : e nco n tra r no parque uma personagem um p o u c o m is te riosa , b ra s ile iro ta m b m , es tudan te , que d e fin e

  • a si m esm o co m o um s m b o lo : ele a m oc ida d e que espera e investe no p o rv ir vendedor de ap lices da C om panh ia de Seguros a In fe lic id a d e , e tam bm a "m osca a z u l" cantada por M achado de Assis. O poem a, m e t fo ra das iluses da ju ve n tu d e , p ro m e te as g l rias e os sucessos do fu tu ro

    Eu sou a v ida, eu sou a f lo r Das graas, o padro da eterna m en in ice ,E m ais a g l ria , e m ais o a m o r" .Mas os versos m esm os nos advertem no te n tem os

    dissecar esse Pastor F id o Mosca A z u l sob pena de d e s tru ir o que ele : um se n tim e n to p ro fu n d o e in d e fin v e l. P rocurem os antes apreender a sua p a rtic ip a o no te x to .

    Ele est num a posio mais geral que o un ive rso es trita m e n te m usica l de Jan jo , e po r vezes lem bra ao c o m p o s ito r a obrigao de re lac ionar-se com o resto do m u n d o ; no m o m e n to por e xem p lo em que Jan jo , c o m p o s ito r "m o d e rn o " , a firm a detestar a a rq u ite tu ra "m o d e rn a " ; ou no m o m e n to em que Jan jo reclam a uma c r t ic a que repouse num a anlise essencia lm ente m usica l e tcn ica , o que no uma so luo, mas um re f g io que esconde o c r t ic o dos p rob lem as mais im p o rta n te s das funes da arte . A , Pastor F id o p ro tes ta :

    "T c n ic a , tcn ica , s t cn ica ! Si vocs exigem uma c r t ic a tcn ica em vez de uma c r t ic a boa, p o r ignornc ia ou esquec im en to do que seja a m sica in teg ra l, a A r te e n fim . C rt ic a no a po n ta r as q u in tas , co m o bem caoava S c h u m a n n " (O B anque te , p. 1 0 3 ).23Is to um assunto que lhe interessa m u ito , po is o

    d es tin o de Pastor F id o era o jo rn a lis m o . A fin id a d e j m u ito grande com o a u to r, que dissera no p r im e iro a rtig o do "M u n d o M u s ic a l" :24

    " . . . daquela vez em que tiv e de escolher e n tre os meus sete in s tru m e n to s , o que me desse um n m ero p ro fiss io n a l na b icha p tr ia , esco lh i o jo rn a lis m o " .E n tre ta n to , d iz F id o , a im prensa in fe liz m e n te e n tro u

    para o G E L O , e no m ais possvel "d iz e r a verdade verdade ira ao p o v o " (O B anquete , p. 5 7 ) : o reg im e de

    2 ~^ C r t ic a que vai buscar o sentido das m anifestaes m esm o em elem entos e x tra -a rts tico s , p ro cu ran do situar o s en tid o , o papel da m anifestao ela m esm a. C f. a srie "M s ic a de p an c a d a ria " , in M s ic a d o c e m s ic a , o p . c it ."O m aio r m s ic o " , 2 0 de m aio de 1 9 4 3 , p. 1 4 .

  • represso e censura condenara a m oc ida d e ou ap ia os don os da vida ou v ira a q u ilo que voc sabe" (O B a n q u e te , p. 5 7 ). N o e n ta n to , apesar de tu d o , essa m oc idade guarda sem pre um s e n tim e n to de esperana no p e ito .

    Mas M rio , ve lho e d esco n fia do d ia n te dos co n fo rm is m o s , faz de Pastor F id o um le ito r de M atias A ires , e na sua digresso sobre os clssicos portugueses o o pe A r te de fu r ta r que , com suas certezas e seguranas co rros ivas , castiga e denunc ia ao invs de c o rr ig ir ou superar, e que p ro p e co m o m o to r a Esperana, v ir tu d e esverd inhada e c o n fo rm is ta . A v ir tu d e de Pastor F id o antes a C haritas incend iada de a m o r" .

    A m o r. Que m o la dos se n tim en tos p o lt ic o s surg idos n 'O B anque te . Pastor F id o que vai traze r fre q u e n te m e n te baila a s ituao con te m p o r ne a de represso, de censura, de b ru ta lid a d e . ele que , p o n tu a n d o um a conversa ab jeta e od iosa e n tre os d o m in a n te s , lem bra r o go lpe de 1937 e um a d ra m tica m an ifes tao a n tig o ve rn a m e n ta l, re p e tin d o co m o um d o b re : "n o v e de n o v e m b ro " (O B a nque te , p. 125 ). A m o r. E le ro m p e n um ch o ro desesperado de ju v e n tu d e , revo lta e im p o t n c ia , bem o m esm o que M rio concebera na sua m oc ida d e m o d e rn is ta , v in te e do is anos antes:

    " (. . . C aiu a n o ite , a lis, e na so lido da n o ite das m il estrelas as Ju ven ilida d es A u r iv e rd e s , tom badas no so lo , ch o ra n d o , ch o ra n d o o a rre p e n d im e n to do tresva rio fin a l.)M in h a lo u cu ra (. . .)Espa lha i vossas alm as sobre o verde!G uarda i nos m an tos de som bra dos manacs os vossos vagalum es in te r io re s !Inda sero um sol nos o iro s do am anh!C h o ra i! C ho ra i! D epois d o rm i!{Pau lic ia desvairada, op. c it . , p. 62 e 6 3 ).A m o r. Esperana. O c h o ro de Pastor F id o e rrado,

    m al a p ro p s ito , desa je itado mas, co m o jo ve m , te m o d ire ito de e rra r, co m o a firm a ra num a conversa a n te rio r Sarah L ig h t. E Jan jo se irm ana com ele nesse c h o ro .

    Mas ju v e n tu d e te r m esm o esse d ire ito ? Pastor F id o a m b gu o , a h ip o teca do fu tu ra no segura, e ele se de ixa conso la r "g o s to s o " p o r Sarah L ig h t, que j lhe interessara antes:

    "O in s t in to m ais que a expe rinc ia o fazia pender pra Sarah L ig h t, em bora m enos b o n ita e m ais v e lh a " (O B anque te , p. 105 ).

  • E Jan jo se desso lidariza dessa m oc idade que se deixa seduzir na sua inconsc inc ia s e n tim e n ta l. Pastor F id o no resiste salada am ericana e t r iu n fa l is ta :

    Mas no conseguia res is tir a trao daque la salada enceguecedora. N o se entregara a inda , e tenham os a esperana de que no se entregue nunca a um a salada em que havia at sorve te de crem e e suco de ped regu lho . Esperem os que ele saiba escolher dela apenas o que era t i l sua sade hum ana. (. . .) T n h a m o s que esperar at que a m oc idade nossa m adurasse a expe rinc ia e soubesse ace ita r ta lvez o sorvete de crem e, e recusar o suco de p e d re g u lh o "(O B anque te , pgs. 161 e 162 ).E vo lu o apa re n tem en te estranha da personagem : que

    M rio te m e as concesses que so fe ita s ju v e n tu d e e que a ju v e n tu d e faz a si m esm a. H sem pre, e n tre ta n to , um a esperana de a m a d u re c im e n to e m esm o, ta is c o m o so, os im pu lsos , pa ixes da ju v e n tu d e , agem co m seu e s p r ito " f r o n d e u r " , c o n te s ta d o r. Ta lvez n '0 B anque te M rio se de ixe m ais en te rnecer pelos "vaga lum es in te r io re s " da sua ju v e n tu d e que no m o m e n to da a u to c r t ic a im p iedosa do "M o v im e n to M o d e rn is ta " . Mas basta. No c o n tin u e m o s nesses jogos s im b lico s perigosos: c o m o j lem bram os, o poem a de M achado d iz bem no d issequem os a mosca azul sob pena de perd-la para sem pre.

    A le go ria s

    Porm fica o p ro b le m a da a legoria . J evocam os o cansao de M rio d ia n te das lu tas d ire tas e o repouso que representava o d is fa rce das vrias personagens. Havia tam bm o G E L O , d ig o , o D IP e a censura : as personagens im aginrias so a inda escudos eficazes.

    Mas m et fo ras e s m b o lo s nem sem pre tm a mesma in tens idade . Por e xe m p lo , os p ra tos so o m o m e n to mais ev id en te dessas alegorias. A li s , m e t fo ra s gastronm icas no so nov idade em sua obra . A ss im , ao inverso dessa Salada que se d desavergonhadam ente para t ra ir depo is , est a d ia l tica d o ca ju , cu ja degustao " um a verdadeira tro c a de posses pessoa is",25 que M rio pensou em 1928 . E a Salada, M rio

    C itad o por T e l P o rto A n co n a L o p ez , M r io d e A n d ra d e , ram a is e c a m in h o , So Pau lo , L iv r. Duas C idades, 1 9 7 2 , p. 5 3 . T e x to de 1 9 2 8 .

  • a declara m esm o e x p lic ita m e n te co m o a legoria . Mas at nesses m om en to s mais eviden tes os s m b o lo s tm v rios sentidos. Lem brem os sobre a Salada que ela, alm de " t r iu n fa l is ta " , s im b o liza n d o a g l ria com to d o s os co m prom issos que ela c o m p o rta , ta m b m am ericana . E sua tra i o de salada nos faz pensar na "N o v a cano de D ix ie " , sobre os E U A , con tem po rnea d 'O B a nq u e te (25 de fe ve re iro de 1944 ) que Te l P o rto A n con a L op ez p u b lic o u no liv ro de la :

    " a te rra m aravilhosa Cham ada pe lo A m ig o Urso L n ingum no cobra entrada Se a pessoa conv idada D epois lhe do um d iscurso A b ra o to a pe rtado Que voc m o rre a s fix ia d o ,F e liz de ser es tim ado .

    N o. I ' l l never never be In C o lo u r L in e L a n d " .26

    Tais s m b o lo s c o m p le x o s , a lm de no u n vo co s , tm um a fo ra expressiva p r p r ia , eles so mais que s m bo los .Mais ou m enos am b guos , ganham no m e io m is t r io em que se e n co n tra m , e seria bana lizao im perdove l (e sem pre fa lsa) estabelecer co rrespondnc ias d o gnero is to q ue r d ize r a q u ilo . Por o u tro lad o , so lues evidentes co m o o nom e de M e n tira , que se presta a tro c a d ilh o s to fe lizes, no necessitam exp licao .

    E n fim , no nos p reocupem os em saber se M rio to m o u da rea lidade ta l ou qua l personagem . Pouco nos im p o r ta , p o r e xe m p lo , a p lausve l h ip tese de que M rio deve te r t id o no fu n d o da lem brana um a g rande p ian is ta in te rn a c io n a l b ras ile ira (p a rt ic ip a n te alis dos tu m u lto s in ic ia is m odern is tas ) ao c o n s tru ir a personagem de S iom ara Ponga. A s personagens u ltrapassam m u ito o m o d e lo lo n g n q u o e se d e ixa m fre q u e n te m e n te pene tra r pe lo a u to r, que evita esquemas s im ples e p re fe re no-los o fe rece r num a co m p le x id a d e rica .E que o le ito r se regale q u a n to qu iser na segurana que ta is riquezas so inesgotveis.

    Jorge C o li eL u iz C arlos da S ilva Dantas

    A ix -en -P rovence , se tem bro de 1977

    26 O p ' c iu , p. 2 3 0 .

  • C o lh id o pela m o rte que o su rpreendeu a 2 5 de fe ve re iro de 1945, M rio de A n d ra de no teve te m p o de te rm in a r a redao de O B anque te , que v inha p u b lica n d o parce ladam ente em seu rodap semanal d o M u n d o M usica l. A srie se in te rro m p e co m o te x to de 2 2-2 -45 e nesse d ia o e sc rito r anotava nb n ico d i r io que no d es tru iu :

    Saiu m eu 19 a rt. cap. Salada, do Banquete . Ins is tir? P referia faze r o u tra coisa mas no sei o qu. V o u e xam ina r os papis. E xa m in e i e o rgan ize i as partes do c a p ."

    Poucos dias antes a 18-2-45 havia reg is trado no m esm o d i r io :

    " ( . . . ) R ed isponho assuntos do B a n q u e te ". Passo a m anh to d a reestudando co m m eia angstia as notas e fichas. C om o d ese nvo lv im en to , m ed ida que escrevia os a rtigos , em bora tivesse um su m rio geral, tu d o f ic o u ca tic o e su pe rlo tad o . S consegui de m ais e fic ie n te esta m anh f ix a r 5 assuntos gerais, pra 5 c a p tu lo s . S in to que com a e bu li o de ta n ta le itu ra , p od ia , neste m o m e n to , f ix a r o sum rio do cap. Salada, mas me s in to fa tig a d o . D e ixo pra a m a n h ."

    As duas notas te s te m u n h a m que M rio de A n d ra d e traba lhava , c o m o era seu h b ito , servindo-se de fich as e anotaes prvias acum uladas s vezes atravs dos anos e de le itu ras do m o m e n to , d itadas pe lo d ese nvo lv im en to dos assuntos; m segundo lugar, que em bora seguisse um p lano p reestabe lec ido , ia re d ig in d o os a rtigos um a um , de acordo com as im posies do rodap semanal. J u n to co m os o rig in a is encon trou -se um a fo lh a d a tilog ra fa da co m correes fe itas a m o e data de "S o Paulo, fe ve re iro , 1 9 4 4 " , onde o te x to d iv id id o em 10 c a p tu lo s e cada c a p tu lo tra z a ind icao do assunto que nele deveria ser tra ta d o . E ncarando essas anotaes co m o a lt im a fo rm a do p ro je to do e sc rito r, a presente edio a do tou o c r it r io de d is tr ib u ir a m a t ria dos a rtigos de a co rdo co m o n d ice a p ro p o s to , acrescen tando no fin a l a ind icao dos c a p tu lo s p rogram ados, que no chegaram sequer a ser esboados e deveriam a rrem ata r a grande com pos io .

    V em os pelo d i r io que, j a m e io da ta re fa e co m uma certa perspectiva do c o n ju n to , M rio de A n d ra d e lam entava, com a sua aguda exigncia fo rm a l, que o te x to no fosse mais e n x u to .

    O B a n q u e te , ta l c o m o nos fo i legado, no pode se a lin h a r ju n to aos liv ro s fe ito s d o e s c rito r; mas pela im p o rt n c ia e tra ta m e n to a pa ixo na d o dos seus tem as, , sem d v ida , um dos m om en tos mais a ltos da m ed itao est tica no B rasil.

  • AberturaApresentao dospersonagensclasse-dom inante.

  • Ora se deu que naquela ta rde boa de d o m in g o , a m ilio n ria Sarah L ig h t o fe rec ia um banque te em seu so lar de inve rno , que ficava n u m s u b rb io de M e n tira , a s im p tica c ida d in ha da A lta Paulista. Iam se e n c o n tra r mesa dela o c o m p o s ito r Jan jo , a c lebre can to ra S iom ara Ponga e o im p o rta n te p o l t ic o F e lix de C im a, su b p re fe ito de M en tira . Oh meus am igos, si lhes d ou este re la to f ie l de tu d o q u a n to sucedeu e se fa lo u naquela ta rde boa, boa e tr is te , no a c re d ite m no, que q u a lq u e r semelhana destes personagens, to nossos conhec idos, co m q ua lq ue r pessoa do m u n d o dos vivos e dos m o rto s , no seja mais que pura co in c id n c ia ocasiona l. E tam bm ce rto , ce rtss im o , que ao m enos desta vez, eu no podere i me responsab iliza r pelas idias expostas aqu i. No me pertencem , em bora eu sustente e p ro c la m e a responsab ilidade dos autores, nesse m u n d o de am biciosas reportagens estticas, vu lg a rm en te cham ado Belas A rte s .

    O fa to que a m ilio n r ia Sarah L ig h t estava fran cam e n te apa ixonada pe lo c o m p o s ito r Janjo . Este, ao m enos p o r e n q u a n to , se de ixava am ar sem grandes exigncias, em bora no lhe fossem in d ife re n te s aquelas carnes abundan tes e j um bocado crepuscu lares de Sarah. Nos seus v in te -e -o ito anos de m u ita e vria expe ri nc ia , Jan jo bem perceb ia que p o r detrs dessas coch ilhas amansadas, esperava um sol fu r ib u n d o . Mas po r e n q u a n to ele se de ixava apenas ado ra r, na sem -cerim n ia insacivel com que a to d o s os a rtis tas le g tim o s , a m o r, g l ria , adorao, xtase, aplauso e at d in h e iro , o m n im o ing ra to que podem lhes dar os hom ens desse m u n d o . E m bora no tivesse a m enor consc inc ia disso, co m o to d o s os a rtis tas le g tim o s , Jan jo era um m o n s tro c a m u fla d o em coisa na tu ra l. M on s tro manso e desgraado, mas m o n s tro d e n tro desta nossa v ida. E Sarah L ig h t, j e ru d ita p o r dem ais em am ores, estava descam bando para aquela fraqueza dos anos em que a gente se bo ta am ando exo tism os , os ve lhos as m en in o tas im pberes , e as qua ren tonas os m ons tros . Ora Jan jo era v io le n ta m e n te e x tic o , o n ico hom em b ranco , que ro d ize r, m es tio de apenas q u a tro ce n to s anos, naquele m eio p re m a tu ro de M e n tira em que a p r p ria Sarah L ig h t era um a is rae lita ir re d u tv e l, nascida em Nova Y o rk , S iom ara Ponga v inha de pais espanhis, e F e lix de C im a era de o rige m ita lia n a e n a tu ra lm e n te fa ch is ta . Sarah L ig h t se a p a ixo n o u pelo e x o tis m o de Jan jo , m o n s tro po r ser a rtis ta avis ra ra envergonhada de um a pureza racia l que s tin h a sangue b ra s lic o , ngro e lu s ita n o se la s tim an d o por d e n tro daque le c o rp o de zebu ossudo, pele m orena , cabelo mais liso que o d u m g e linhas duras ca in d o no cho co m o a fa ta lid ad e .

  • Parece f c il a rgum en ta r que n u m caso de a m o r ta m a n h o , o m ais in s t in t iv o era Sarah L ig h t mesma p ro teg e r o a rtis ta , lhe fo rn e c e n d o sem dem ora algum as m igalhas dos seus c inco con tos d i rio s de renda, e lhe co m p ra r o a m o r na ba ta ta . T a n to mais que em bora v iven do co m o m a rid o m u ito s boas, p o r causa da d isperso das rendas que um d iv rc io q u a lq u e r tra r ia , Sarah L ig h t co nq u is ta ra a sua libe rdade poucos meses depo is de casada, a p rim e ira vez n u m p ile qu e . Mas a is rae lita t in h a o senso da rea lidade, e fu g ira sem pre de com p licaes com os artis tas, p o rq u e estes so os m elhores t cn ico s da chan tagem . No que eles p repa rem escndalos, e x ija m d in h e iro , ro u b e m cartas, c o n te m , am eacem , nada disso que se enco n tra co m bana lidade nos rom ances e na vida. Mas Sarah L ig h t era bastan te esperta pra perceber que os a rtis tas so chantag istas p o r na tu reza e co nd i o . No pedem nada, mas a s presena deles j uma chan tagem no a m o r r ica o . Ressumam pobreza, m is ria m esm o; ressum am exigncias inesgotveis de adorao, g l ria e posies de m ando . E ta is presenas Sarah L ig h t no conseguia aguentar, era ch a to . De fo rm a s que tra tava com a lgum a d is tn c ia a Janjo . E q ua nd o os em purres d o desejo eram dem ais, ela o fe rec ia um a fa rr in h a a do is com to preciosos v inh os , que Jan jo se em briagava e ela pod ia lhe alisar os cabelos com m e lanco lia .

    Mas tin h a a inda um a o u tra razo que p ro ib ia so c ia lm en te Sarah L ig h t de p ro tege r o c o m p o s ito r e as artes, co m o de ra ro em ra ro lhe v inha na id ia . Era o a m b ie n te em que ela v iv ia , o m e io dos m ilio n rio s de M en tira . M e io in fe c to de es tp idos, de g ra n fin os , de in d ife re n te s s artes; m e io que apenas p rin c ip ia va reconhecendo que era um a boa ap licao de d in h e iro co m p ra r liv ro s an tigos, gravuras antigas aquareladas co m sabena pelos b o tic rio s de a n tig u id a d e s " e a lgum G u id o R eni fa lso . Si a m ilio n ria fornecesse d in h e iro a n ingum , que no fosse na obed inc ia tra d i o p o rtug a de acalm ar o cu, p ro tegendo santas-casas, m endigos ou a inda algum a bem rara creche inven tada pelos jo rn a lis ta s , si em vez protegesse as artes, ela sabia m u ito bem que se to rn ava logo um m o tiv o de riso . O m e io era su fic ie n te m e n te snob pra gostar de um f c il A n a to le F rance e dem ais rom anc is tas franceses que chegassem at isso, e ta m b m a lgum H u x le y banal de pa radoxos n o v in h o s , que w ild ia n a m e n te dourasse a francesia . Mas o esnob ism o de M e n tira jam ais no chegara consequncia da sua u tilid a d e . Si Sarah L ig h t protegesse