o balcao - jean genet

Upload: ecle-s-gomes

Post on 07-Apr-2018

240 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    1/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O Balco(Jean Genet)

    PERSONAGENSO Bispo

    O JuizO Carrasco: Arthur

    O General

    O Chefe de PolciaO Velho

    RogerO Homem

    Um dos RevoltososO Enviado

    O Primeiro FotgrafoO Segundo FotgrafoO Terceiro Fotgrafo

    O Mendigo: O EscravoIrma: A Rainha

    A MulherA LadraA MoaCarmenChantal

    Primeiro Quadro

    (Cenrio - No teto, um lustre que ser sempre o mesmo, a cada quadro. O cenrio parecerepresentar uma sacristia, formada por trs biombos de cetim, vermelho sangue. Nobiombo do fundo dispe-se de uma porta. Em cima, um enorme crucifixo espanhol,

    desenhado em trompe-l'oeil. Na parede da direita, um espelho - cuja moldura dourada eesculpida - reflete uma cama desfeita que, se o cmodo tivesse uma disposio lgica, seencontraria na sala, nas primeiras poltronas. Uma mesa com um cntaro. Uma poltronaamarela. Sobre a poltrona: uma cala preta, uma camisa, um palet. O Bispo, de mitra ecapa dourada, est sentado na poltrona. Ele nitidamente mais alto que o normal. O papelser desempenhado por um ator que subir em andas de ator trgico de cerca de cinqentacentmetros de altura. Seus ombros, sobre os quais se assenta a capa, sero ampliados aomximo, de modo que, ao subir do pano, aparea desmesurado e hirto como umespantalho. Seu rosto est exageradamente caracterizado. Ao lado, uma mulher bastantejovem, muito maquiada e vestida com um quimono de renda, enxuga as mos numa toalha.Em p, uma mulher de uns quarenta anos, morena, rosto severo, vestida de um sbrio

    vestido preto. Irma. Um chapu de presilha apertada, como um capacete militar).

    O BISPO(Sentado na poltrona, no meio do palco, com uma voz cava, mas veemente) - Naverdade, no tanto a doura nem a uno que deveriam definir um prelado, porm a maisrigorosa inteligncia. O corao nos leva perdio. Cremos ser donos de nossa bondade:ns somos escravos de uma serena languidez. ainda de outra coisa que se trata, no deinteligncia. (Hesita) Seria de crueldade. E alm dessa crueldade - e atravs dela - umcaminhar hbil, vigoroso em direo Ausncia. Em direo Morte. Deus? (Sorrindo) Euvos vejo chegar! (Para sua mitra) Tu, mitra em forma de chapu de bispo, saiba bem que

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    2/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    se meus olhos se fecharem pela ltima vez, o que verei, por trs das minhas plpebras, stu, meu belo chapu dourado... Sois vs, belos ornamentos, capas, rendas...

    IRMA (Com brutalidade) - O que foi dito est dito. Quando a sorte est lanada...(Durante todo o quadro ela se deslocar pouco. Est muito perto da porta).

    O BISPO(Muito suave, afastando Irma com um gesto) - E os dados jogados...

    IRMA - No. Dois mil, dois mil, e nada de conversa. Ou me zango. E no est nos meushbitos... Contudo, se est em apuros...

    O BISPO(Seco e jogando a mitra) - Obrigado.

    IRMA - No vai quebrar nada. Isto ainda vai ter utilidade. ( mulher) Guarde (Coloca amitra na mesa, perto do cntaro)

    O BISPO(Depois de um profundo suspiro) - Disseram-me que essa casa vai ser sitiada. Osrevoltosos j atravessaram o rio.

    IRMA (Preocupada) - H sangue por toda parte... O senhor vai seguindo pelo muro doArcebispado e entra na Rue de la Poissonnerie... (De repente ouve-se um terrvel grito dedor, de uma mulher que no se v. Aborrecida) Eu tinha recomendado que fossemsilenciosos. Felizmente tomei a precauo de tapar as janelas com uma cortina acolchoada.(Subitamente amvel, insidiosa) E o que que foi executado esta noite? Beno? Orao?Missa? Adorao perptua?

    O BISPO(Grave) - No fale disso agora. Est acabado. S penso em voltar... A senhoradiz que a cidade est em sangue...

    A MULHER(Interrompendo) - Beno, madame. Em seguida, minha confisso...

    IRMA - E depois?

    O BISPO - Basta.

    A MULHER- Foi s. E no final, minha absolvio.

    IRMA - Ento, ningum pode assistir? Nem sequer uma vez?

    O BISPO(Assustado) - No. Estas coisas devem permanecer e permanecero secretas. J indecente falar enquanto se despem. Ningum. E que todas as portas estejam fechadas. Bem

    fechadas, cerradas, abotoadas, amarradas, afiveladas, costuradas...

    IRMA - Eu s estava lhe pedindo...

    O BISPO - Costuradas, madame Irma.

    IRMA (Aborrecida) - Permite ao menos que me preocupe... Profissionalmente? Eu jdisse: dois mil.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    3/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O BISPO(Sua voz de repente se clarifica, torna-se precisa, como se acordasse. Mostra umpouco de irritao) - No deu para cansar. Apenas seis pecados, e longe de serem os meuspreferidos.

    A MULHER- Seis, mas capitais! E tive dificuldades para encontr-los.

    O BISPO(Preocupado) - O qu, eram falsos?

    A MULHER- Todos verdadeiros! Refiro-me dificuldade que tive em comet-los. Se osenhor soubesse o que necessrio atravessar, ultrapassar, para chegar desobedincia...

    O BISPO - Eu no duvido. A ordem do mundo est to tumultuada que tudo permitido -ou quase tudo. Mas se os seus pecados eram falsos, pode dizer agora.

    IRMA - Ah, no. Posso at ouvir suas reclamaes quando voltar. No. Eram verdadeiros.( mulher) Desamarre-lhe os cordes. Descalce-o. E quando tornar vesti-lo, que no seresfrie. (Ao Bispo) O senhor quer um grogue, uma bebida quente?

    O BISPO - Obrigado. No tenho tempo. Eu preciso ir-me. (Sonhador) Sim, seis, mas

    capitais!

    IRMA - Aproxime-se, vamos despi-lo!

    O BISPO(Suplicante, quase de joelhos) - No, no, ainda no.

    IRMA - Est na hora. Vamos! Depressa! Mais depressa! (Todos continuam a falarenquanto despem-no. Ou melhor, retiram apenas os alfinetes, desamarram os cordes queparecem prender a capa, a estola e a sobrepeliz)

    O BISPO(Para a mulher) - Os pecados, voc realmente os cometeu?

    A MULHER- Sim.

    O BISPO - Fez mesmo os gestos? Todos os gestos?

    A MULHER- Fiz.

    O BISPO - Quando voc se aproximava de mim estendendo seu rosto, eram realmente defogo os reflexos que o iluminavam?

    A MULHER- Sim.

    O BISPO - E quando minha mo com o anel santo pousava sobre sua testa perdoando...

    A MULHER- Sim.

    O BISPO - E que meu olhar mergulhava em seus belos olhos?

    A MULHER- Sim.

    IRMA - E nos seus belos olhos, Monsenhor, passou pelo menos o arrependimento?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    4/68

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    5/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    Uma vez Bispo, a fim de s-lo, foi necessrio - a fim de s-lo para mim, claro! - foinecessrio que no esquecesse de no s-lo para que pudesse exercer minha funo.(Seguraa aba de sua sobrepeliz, beijando-a) Oh rendas, rendas, feitas por tantas e pequenas mospara esconder tantos colos ofegantes, colos fartos, e rostos, e cabelos, vs me ilustrais comramos e flores! Recomecemos. Mas - a est o hic! (Ri) Agora, falo latim! - uma funo uma funo. No uma maneira de ser. Ora, bispo uma maneira de ser. E um encargo.Um fardo. Mitras, rendas, tecidos de ouro e de pedrarias, genuflexes... A funo que v merda! (Crepitar de metralhadoras)

    IRMA(Passando a cabea pela porta, entreaberta) - O senhor acabou?

    O BISPO - Mas deixe-me, com os diabos. Suma-se. Estou me interrogando. (Irma torna a fechar a porta) A majestade, a dignidade, iluminando minha pessoa, no encontram suaorigem nas atribuies da minha funo. - Tampouco, cus! Em meus mritos pessoais. - Amajestade, a dignidade que me iluminam advm de um brilho mais misterioso: que obispo precede-me. Falei-te claro, espelho, imagem dourada, decorada como uma caixa decharutos mexicanos? E quero ser bispo na solido, unicamente pela aparncia... E paradestruir toda e qualquer funo, quero trazer o escndalo e liquidar-te, puta, sacana,peidona e piranha...

    IRMA(Voltando) - Agora, basta. preciso partir.

    O BISPO - Vocs esto loucas, ainda no terminei. (As duas mulheres entraram)

    IRMA - O senhor sabe que no estou procurando brigas para me divertir, mas no htempo a perder... Estou lhe repetindo que h perigo para todos permanecerem na rua.(Rudo de metralhadora, ao longe)

    O BISPO (Amargo) - Vocs esto pouco ligando para a minha segurana e quando tudotermina vocs esto pouco ligando para o resto do mundo!

    IRMA (Para a Mulher) - No lhe d ouvidos. Dispa-o. (Ao Bispo, que desceu de seuscoturnos e tem agora as dimenses normais de um ator, do mais banal dos atores) Ajude, osenhor est todo tenso.

    O BISPO(Com ar idiota) - Estou tenso? Tenso solene! Imobilidade definitiva...

    IRMA( Mulher) - D-lhe o casaco...

    O BISPO(Olhando seus trapos que se amontoam pelo cho) - Ornamentos, rendas, atravsde vs regresso a mim mesmo. Reconquisto um domnio. Bloqueio uma antiga praa-forte

    da qual fora expulso. Instalo-me numa clareira onde, enfim, o suicdio possvel. Ojulgamento depende de mim e eis-me aqui, frente a frente com minha morte.

    IRMA - bonito, mas preciso ir embora. O senhor deixou seu carro porta principal,perto do pilar...

    O BISPO (Para Irm) - J que o nosso Chefe de Polcia, este pobre incapaz, nos deixamassacrar pela gentalha! (Voltando-se para o espelho e declamando) Ornamentos! Mitras!Rendas! Capa dourada, tu, principalmente tu, me protegeste do mundo. Onde esto minhas pernas, onde esto meus braos? Que fazem minhas mos sob tuas abas de brocados,

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    6/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    cintilantes? Inbeis para qualquer coisa que no seja o esboo de um gesto flutuantetornaram-se cotos d asas - no de anjos, mas de galinhas-dangola - capa austera, permitesque no calor e na escurido se alimente a mais terna, a mais luminosa doura. Minhacaridade, que vai inundar o mundo, foi sob esta carapaa que a destilei... Como uma faca,minha mo algumas vezes aparecia para abenoar? Ou cortar, decepar? Cabea detartaruga, minha mo afastava as abas. Tartaruga, ou vbora prudente? E voltava gruta.Dentro, minha mo sonhava... Ornamentos, capas douradas... (O cenrio se desloca daesquerda para a direita, como se penetrasse nos bastidores. Aparece ento o quadro

    seguinte)

    Segundo Quadro

    (Cenrio: Mesmo lustre. Trs biombos, marrons. Paredes nuas. Mesmo espelho, direita,no qual reflete-se a mesma cama desfeita do primeiro quadro. Uma mulher, jovem e bela,parece algemada, punhos atados. Sua roupa, de musselina, est esfarrapada. Os seios mostra. De p, diante dela, o carrasco. um gigante, nu at cintura. Muito musculoso.Seu chicote passa por detrs da fivela de seu cinto, pelas costas, como se tivesse um rabo.Um Juiz que, ao levantar-se, parecer descomunal, tambm ele encompridado por andas,invisveis sob seu traje, e o rosto maquilado, de bruos, rasteja em direo da mulher que

    aos poucos vai recuando).

    A LADRA (Estendendo o p) - Ainda no! Lambe! Lambe primeiro... (O Juiz faz umesforo para arrastar-se mais ainda, depois se levanta e, lentamente, penosamente feliz,vai sentar-se em um escabelo. A ladra, esta mulher acima descrita, muda de atitude e, dedominadora, torna-se humilde)

    O JUIZ (Severo) - Ento voc uma ladra! Foi surpreendida... Quem? A polcia... Vocesquece que uma rede sutil e slida, meus tiras de ao, controlam todos os seus gestos?Insetos de olhos vivos, montados em seus tentculos, eles vigiam. A todas! E todas,prisioneiras, so trazidas ao tribunal... Que tem a declarar? Voc foi surpreendida... Sob sua

    saia... (Ao Carrasco) Passe-lhe a mo por debaixo da angua, encontrar o famoso bolsoCanguru. ( ladra) Que voc enche com tudo o que abafa sem nem escolher. Porque voc insacivel e neca de discernimento. Alm disso, voc uma idiota... (Ao carrasco) Que que tinha nesse famoso bolso Canguru? Nesta enorme pana?

    O CARRASCO - Perfumes, Senhor Juiz, uma lanterna, uma lata de flit, laranjas, vrios pares de meias, ourios, uma toalha, uma charpe.(Ao Juiz) O senhor est me ouvindo?Estou dizendo: uma charpe.

    O JUIZ(Sobressaltando-se) - Uma charpe? Ah, ah, ento isso. E para que, a charpe?Hein, para qu? Estrangular algum? Responda. Estrangular quem? Voc uma ladra ou

    uma estranguladora? (Muito doce, implorando) Diga, meu bem, suplico-lhe, diga que voc uma ladra.

    A LADRA - Sim, Senhor Juiz!

    OCARRASCO - No!

    A LADRA(Olhando-o, espantada) - No?

    OCARRASCO - Isso para depois.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    7/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    A LADRA - Hein?

    OCARRASCO - Estou dizendo: a confisso tem sua hora. Agora, negue.

    A LADRA - Para ser mais espancada?

    O JUIZ(Melfluo) - Justamente, meu bem: para ser espancada. Primeiro voc deve negar,

    depois confessar e arrepender-se. De seus belos olhos quero ver jorrar a gua morna. Oh!Quero que fique encharcada. Poder das lgrimas!... Onde est meu cdigo? (Procura sobsua toga e pega um livro)

    A LADRA - J chorei...

    O JUIZ(Finge ler) - custa de pancadas. Quero lgrimas de arrependimento. Depois dev-la molhada como um prado, estarei satisfeito.

    A LADRA - No fcil. Ainda h pouco tentei chorar...

    O JUIZ (Deixando de ler, num tom semiteatral, quase familiar) - Voc bem jovem. nova? (Preocupado) Mas no menor?

    A LADRA - No, no senhor...

    O JUIZ - Trate-me de Senhor Juiz. Desde quando est aqui?

    OCARRASCO - Desde ontem, Senhor Juiz.

    O JUIZ(Retomada do tom teatral e retomada da leitura) - Deixe-a falar. Gosto dessa vozsem consistncia, dessa voz dispersa... Escute: preciso que voc seja uma ladra modelo se

    quiser que eu seja um juiz modelo. Falsa ladra, torno-me um falso juiz. Est claro?

    A LADRA - Est, Senhor Juiz.

    O JUIZ (Continuando a ler) - Bem. At agora tudo bem. Meu carrasco espancou comfora... pois tambm ele tem sua funo. Estamos ligados: voc, ele e eu. Por exemplo, seele no espancasse, como que eu poderia impedi-lo de espancar? Portanto, deve bater paraque eu intervenha e prove minha autoridade. E voc, deve negar para que ele bata... (Ouve-se um rudo: alguma coisa deve ter cado no cmodo ao lado. Tom natural) Que foi? Asportas esto bem fechadas? Algum pode nos ver e nos ouvir?

    OCARRASCO - No, no, esteja tranqilo. Puxei o ferrolho. (Vai examinar um enormeferrolho na porta do fundo) E o corredor est interditado.

    O JUIZ(Tom natural) - Tem certeza?

    OCARRASCO - Posso garantir. (Pe a mo no bolso) Posso dar uma tragada?

    O JUIZ(Tom natural) - Fume, o cheiro de fumo me inspira. (Mesmo rudo de h pouco)Oh, mas o que est acontecendo? O que est acontecendo? No posso ficar em paz?(Levanta-se) Mas o que ?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    8/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    OCARRASCO(Seco) - Nada. Com certeza deixaram cair alguma coisa. o senhor queest nervoso.

    O JUIZ (Entonao natural) - possvel, mas este nervosismo que me esclarece.Mantm-me acordado. (Levanta-se e aproxima-se do tabique) Posso olhar?

    OCARRASCO - Apenas uma olhadela porque j est ficando tarde. (O carrasco d de

    ombros, pisca o olho para a ladra e esta faz o mesmo)

    O JUIZ(Depois de ter olhado) - Est iluminado. Brilhando... mas vazio.

    OCARRASCO(Dando de ombros) - Vazio!

    O JUIZ (Com uma entonao ainda mais familiar) - Voc parece preocupado. Algumanovidade?

    OCARRASCO - Esta tarde, pouco antes de sua chegada, trs pontos estratgicos caramem mos dos revoltosos. Provocaram vrios incndios: Nenhum bombeiro acudiu. Tudo

    pegou fogo. O Palcio...

    O JUIZ - E o Chefe de Polcia? Deixando o barco correr, como de costume?

    A LADRA - H quatro horas que no temos notcias dele. Se conseguir fugir, certamentevir para c. Est sendo esperado a qualquer momento.

    O JUIZ ( ladra, sentando-se) - De qualquer maneira, que no tenha esperanas deatravessar a ponte da Rainha - explodiu esta noite.

    A LADRA - J sabamos. Daqui, ouvimos a exploso.

    O JUIZ (Retomada do tom teatral. L no Cdigo) - Enfim, prossigamos. Assim,aproveitando-se do sono dos justos, aproveitando-se do cochilo, voc avana, afana, abafa earranca...

    A LADRA - No, Senhor Juiz, jamais...

    OCARRASCO - Baixo a lenha?

    A LADRA(Gritando) - Arthur!

    OCARRASCO - Que que h com voc? No se dirija a mim. Responda ao Senhor Juiz.E me trate de Senhor Carrasco.

    A LADRA - Est bem, Senhor Carrasco.

    O JUIZ(Lendo) - Prossigo: voc roubou?

    A LADRA - Roubei, sim, Senhor Juiz.

    O JUIZ(Lendo) - Bem. Agora responda depressa, e corretamente: que mais roubou?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    9/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    A LADRA - Po, porque tinha fome.

    O JUIZ(Levanta-se e deixa o livro) - Sublime! Funo sublime! Terei de julgar tudo isto.Oh, menina, voc me reconcilia com o mundo. Juiz! Serei Juiz de seus atos! de mim quedependem a balana, o equilbrio. O mundo uma ma, corto-a em dois: os bons e osmaus. E voc aceita, obrigado, voc aceita ser a m! (De frente para o pblico) Estoudiante de vs: mos vazias, bolsos vazios, arranquem a podrido e joguem-na fora! Mas

    um ofcio penoso. Se cada julgamento fosse pronunciado com seriedade, me custaria a vida.E por isso que estou morto. Vivo nesta regio da exata liberdade. Rei dos Infernos, peso osque esto mortos, como eu. Voc est morta como eu.

    A LADRA - O senhor me d medo.

    O JUIZ(Com muita nfase) - Cale-se. Nas profundezas do Inferno, separo os humanos quepor l se aventuram. Uns para as chamas, outros para os campos de lilases. Tu, ladra, espi,cadela, Minos te fala, Minos te pesa. (Ao Carrasco) Crbero?

    OCARRASCO(Imitando cachorro) - Au, au!

    O JUIZ - s belo. E a presena de uma nova vtima te embeleza ainda mais. (Levanta-lheos lbios) Mostra tuas presas terrveis. Brancas. (De repente, parece preocupado. ladra)Espero que no esteja mentindo. Voc realmente praticou estes roubos?

    OCARRASCO - No se preocupe. Ela nem precisava pensar em no fazer. Eu a arrastariaat l.

    O JUIZ - Estou quase chegando. Continue. Que roubou? (Subitamente, um crepitar demetralhadora) Isto no acaba nunca. Nem uma trgua.

    A LADRA - J lhe disse: a revolta dominou quase toda a zona Norte...

    OCARRASCO - Cale a boca.

    O JUIZ (Irritado) - Vai responder-me, sim ou no? Que mais roubou? Onde? Quando?Como? Quanto? Por qu? Para quem? Responda.

    A LADRA - Muitas vezes penetrei nas casas durante a ausncia das criadas, passando pelaescada de servio... Roubava nas gavetas, quebrava o cofre das crianas. (Procura aspalavras) Uma vez, vesti-me de mulher honesta. Pus um tailleur marrom, um chapu depalha preto com cerejas, um vu, e um par de sapatos pretos - de salto cubano - e ento,

    entrei...

    O JUIZ(Apressadamente) - Onde? Onde? Onde? Onde -onde -onde? Onde entrou?

    A LADRA - No sei mais, desculpe.

    OCARRASCO - Bato?

    O JUIZ - Ainda no. ( moa) Onde entrou? Diga-me, onde?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    10/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    A LADRA(desorientada) - Juro, no sei mais.

    OCARRASCO - Bato, Senhor Juiz, bato?

    O JUIZ (Ao carrasco e aproximando-se dele) - Ah! Ah! Seu prazer depende de mim.Gosta de bater, hein? Estou satisfeito, Carrasco! Magistral amontoado de carne, quarto delombo que uma simples palavra minha bastante para fazer mover-se. (Simula mirar-se nocarrasco) Espelho que me glorifica! Imagem que posso tocar, eu te amo. Eu nunca teria

    fora nem jeito para deixar lanhos de fogo em suas costas. Alis, que poderia fazer comtanta fora e jeito? (Toca-o) Ests a? Ests a, meu brao enorme, pesado demais paramim, grosso demais, gordo demais para meu ombro e que, sozinho, caminha a meu lado!Brao, peso de carne, sem ti eu no seria nada... ( ladra) Sem voc tambm no, menina.Vocs so meus dois complementos perfeitos... Ah, que belo trio formamos! ( ladra) Masvoc tem um privilgio em relao a ele; alis, em relao a mim tambm: o daanterioridade. Meu ser Juiz uma emanao de seu ser ladra. Bastaria que voc recusasse...mas no se atreva!... que voc recusasse a ser quem - o que , logo, quem - para que eudeixe de existir... desaparea, evaporado. Estourado. Volatilizado. Negado. Donde: o Bemproveniente do... Ento? Ento? Voc no recusar, no mesmo? No recusar ser ladra?Seria errado. Seria criminoso. Voc me impediria de ser! (Implorando) Diga, meu bem,

    meu amor, voc no recusar?

    A LADRA(Dengosa) - Quem sabe?

    O JUIZ - Como? Que est dizendo? Recusaria? Diga-me onde. E diga-me tambm o queroubou.

    A LADRA(Seca, erguendo-se) - No.

    O JUIZ - Diga-me onde. No seja cruel.

    A LADRA - No me chame de voc, sim?

    O JUIZ - Senhorita... Senhora. Peo-lhe. (Ajoelha-se) Veja, suplico-lhe. No me deixenesta posio, esperando para ser juiz. Se no houvesse juiz, onde iramos parar? Mas seno houvesse ladres...

    A LADRA(Irnica) - E se no houvesse?

    O JUIZ - Seria terrvel. Mas a senhora no far isto comigo, no ? Que no existam!Compreenda: que voc se esconda tanto tempo quanto puder e meus nervos agentarem portrs da recusa de confessar; que, maliciosamente, voc me faa perecer, tripudiar, se quiser,

    agitar, babar, suar, relinchar de impacincia, rastejar... quer que eu rasteje?

    OCARRASCO(Ao Juiz) - Rasteje!

    O JUIZ - Sinto-me orgulhoso!

    OCARRASCO(Ameaador) - Rasteje! (O Juiz, que estava ajoelhado, deita-se de bruose rasteja suavemente em direo ladra. medida que avanar rastejando, a ladrarecuar) Est certo. Continue.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    11/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O JUIZ ( ladra) - justa, sua tratante, fazer-me rastejar em busca de meu ser de Juiz,mas se voc recusasse definitivamente, seria criminoso, sua safadinha...

    A LADRA(Altaneira) - Trate-me de senhora e queixe-se polidamente.

    O JUIZ - Obteria o que desejo?

    A LADRA(Coquete) - Custa caro roubar.

    O JUIZ - Eu pago! Eu pago o que for preciso, minha senhora. Porque se no tivesse maisque separar o Bem do Mal, para que serviria eu? Responda.

    A LADRA - o que me pergunto.

    O JUIZ(Infinitamente triste) - H pouco ia ser Minos. Meu Crbero latia. (Ao carrasco)Voc se lembra? (O carrasco interrompe o juiz jazendo estalar o chicote) Como voc eracruel, mau! Bom! E eu, impiedoso. Ia encher os Infernos de condenados, encher as prises.Prises! Prises! Prises, calabouos, lugares abenoados onde o mal impossvel porqueso a encruzilhada de toda a maldio do mundo. No se pode cometer o mal no mal.

    Agora, no condenar o que mais desejo, julgar. (Tenta reerguer-se)

    OCARRASCO - Rasteje! E rpido, que tenho de me vestir.

    O JUIZ( moa) - Minha senhora! Minha senhora, aceite, peo-lhe. Estou pronto a lamberseus sapatos com minha lngua, mas diga-me que uma ladra...

    A LADRA (Num grito) - Ainda no! Lambe! Lambe! Lambe primeiro! (O cenrio sedesloca da esquerda para a direita, como no fim do quadro precedente, e penetra nosbastidores da direita. Ao longe, crepitar de metralhadoras)

    Terceiro Quadro

    (Cenrio: Trs biombos na mesma disposio dos precedentes, mas verde-escuros. Omesmo lustre. O mesmo espelho refletindo a cama desfeita. Numa poltrona, um cavalodesses que so usados pelos bailarinos folclricos - com um saiote pregueado. Noaposento, um senhor, de aparncia tmida. o General. Tira o palet, depois o chapu-de-cco e as luvas. Irma est perto dele).

    O GENERAL(Mostra o chapu, o palet e as luvas) - Que no fiquem por a.

    IRMA - Sero dobrados, embrulhados...

    O GENERAL - Que desapaream.

    IRMA - Vou guard-los. E at queim-los.

    O GENERAL - Ah, sim, mesmo, gostaria que queimassem! Como as cidades, aocrepsculo.

    IRMA - O senhor notou alguma coisa no caminho?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    12/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O GENERAL - Passei por grandes perigos. O populacho explodiu barreiras, e bairrosinteiros esto inundados. Principalmente o arsenal, de modo que as munies ficarammolhadas. E as armas enferrujaram. Tive de me desviar bastante - contudo, no tropecei emnenhum afogado.

    IRMA - Eu no me permitiria indagar sobre suas opinies. Todo mundo livre e eu no meenvolvo em poltica.

    O GENERAL - Ento, falemos de outra coisa. O importante saber de que maneira saireidesta casa. Ser tarde quando...

    IRMA - A propsito de tarde...

    O GENERAL - verdade. (Procura no bolso, retira algumas cdulas, conta e entrega a Irma que as conserva nas mos) Eu no estou para ser abatido no escuro, quando sair.Porque, naturalmente, no haver ningum para me acompanhar...

    IRMA - Creio que no, infelizmente. Arthur no est livre. (Um longo silncio)

    O GENERAL(Subitamente impaciente) - Mas... ela no vem?

    IRMA - No sei o que estar fazendo. Recomendei que tudo estivesse pronto suachegada. O cavalo j est a... Vou chamar.

    O GENERAL - Deixe que eu fao. (Toca a campainha) Gosto de tocar a campainha! Dautoridade! Ah, o sinal de ataque!

    IRMA - Daqui a pouco, meu General. Oh, desculpe, j estou lhe conferindo a patente...Daqui a pouco o senhor ir...

    O GENERAL - Piss! No fale nisso.

    IRMA - O senhor tem uma fora, uma juventude! Uma petulncia!

    O GENERAL - E esporas: Terei esporas? Pedi que as prendessem nas botas. Botas acaju,no ?

    IRMA - Sim, meu General. Acaju. De verniz.

    O GENERAL - De verniz, est bem, mas com lama.

    IRMA - Lama e talvez um pouco de sangue. Mandei preparar as condecoraes.

    O GENERAL - Autnticas?

    IRMA - Autnticas. (De repente, um longo grito de mulher)

    O GENERAL - O que ? (Quer aproximar-se da parede da direita e j se abaixa paraolhar, mas Irma intervm)

    IRMA - No nada. H sempre imprevisto de um lado e de outro.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    13/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O GENERAL - E este grito? Um grito de mulher. Um chamado de socorro, quem sabe?

    IRMA(Glacial) - Aqui, nada de complicaes, acalme-se. Por enquanto, o senhor est paisana.

    O GENERAL - verdade. (Novo grito de mulher) Mesmo assim, perturba. Alm disso,atrapalha.

    IRMA - Mas o qu estar fazendo? (Vai tocar a campainha, mas pela porta do fundo entrauma jovem muito bonita, ruiva, cabelos soltos, despenteados. Seu colo est quase nu. Susa um corpete preto, meias pretas e sapatos de saltos muito altos. Traz um uniformecompleto de General, mais a espada, o chapu de dois bicos e as botas)

    O GENERAL (Com severidade) - Finalmente, chegou. Com meia hora de atraso. oquanto basta para perder uma batalha.

    IRMA - Ela compensar, meu General. Eu a conheo.

    O GENERAL(Olhando as botas) - E o sangue? No vejo sangue!

    IRMA - Secou. No se esquea de que o sangue de suas batalhas de outrora. Bem, voudeix-los. Tm tudo que precisam?

    O GENERAL(Olhando direita e esquerda) - A senhora esquece...

    IRMA - Meu Deus! verdade, ia me esquecendo. (Coloca sobre a cadeira as toalhas quetrazia no brao. Depois sai pelo fundo. O General vai at porta, fechando-a chave.Mas to logo a porta fechada, ouve-se bater. A moa vai abrir. Atrs, e ligeiramentecontrado, o carrasco, suando, enxugando-se com uma toalha)

    OCARRASCO - Madame Irma est a?

    A MOA (Seca) - No Roseiral. (Corrigindo-se) Perdo, na Capela Ardente. (Fecha aporta)

    O GENERAL(Aborrecido) - Espero que me deixem em paz. E ests atrasado, que fazias?No te deram a rao de aveia? Sorris? Sorris a teu cavaleiro? Reconheces sua mo, suave esegura? (Agrada-a) Meu bravo corcel! Bela gua! Juntos, galopamos tanto!

    A MOA - E no s! Quero ganhar o mundo com minhas patas nervosas, meus cascos

    ferrados. Tire as calas e os sapatos, para que eu possa vesti-lo.

    O GENERAL (Tomou da chibata) - Sim, mas primeiro de joelhos! De joelhos! Vamos,vamos, dobra teus jarretes, dobra... (A moa empina, solta um relincho de prazer e seajoelha como um cavalo de circo diante do General) Bravo! Bravo, minha pombinha! Note esqueceste de nada. E agora, vais me ajudar e responder s minhas perguntas. Eperfeitamente natural que uma boa potranca ajude seu dono a desabotoar-se, atirar as luvas,e que lhe responda de fio a pavio. Ento, comea desamarrando meus cordes. (Durantetoda a cena que se seguir a moa ajudar o General a despir-se e, depois, a vestir-se deGeneral. Quando este estiver completamente vestido, ver-se- que assumiu propores

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    14/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    gigantescas, graas a uma trucagem teatral: andas invisveis, ombros ampliados, rostomaquilado com exagero)

    A MOA - Continua com o p esquerdo inchado?

    O GENERAL - Sim. o p da sada. o que tripudia. Como a tua pata, quando estscontente.

    A MOA - Mas o que que estou fazendo? Desabotoe-se o senhor.

    O GENERAL - Voc cavalo ou analfabeta? Se for cavalo, balance a cabea. Ajude-me.Puxe. Puxe com menos fora, voc no burro de carga.

    A MOA - Fao o que devo.

    O GENERAL - Revolta-se? J? Espere que esteja pronto. Quando passar-lhe o freio pelaboca...

    A MOA - Ah, no, isso no.

    O GENERAL - Um General sendo repreendido por seu cavalo! Ter o freio, a rdea, osarreios, a barrigueira, e eu, de botas, de capacete, chicoteio, ataco!

    A MOA - O freio terrvel. Faz sangrar as gengivas e a comissura dos lbios. Vou babarsangue.

    O GENERAL - Espumar rosa e peidar fogo! Mas que galope! Pelos campos de centeio,pelos campos de alfafa, pelos prados, caminhos empoeirados, pelos montes, deitados ou dep, da aurora ao crepsculo, e do crepsculo...

    A MOA - Ponha a camisa para dentro. Puxe as alas. No pouca coisa vestir umGeneral vencedor e que vai ser enterrado. Quer o sabre?

    O GENERAL - Que permanea sobre a mesa, como o de Lafayette. Bem em evidncia,mas esconda as roupas. Onde, no sei, mas deve existir um esconderijo previsto em algumlugar. (A moa faz um pacote com as roupas e as esconde atrs da poltrona) A tnica?Bem. Todas as medalhas esto a? Conte.

    A MOA(Aps haver contado, muito depressa) - Todas, meu General.

    O GENERAL - E a guerra? Onde est a guerra?

    A MOA(Muito suave) - Aproxima-se, meu General. noite num campo de macieiras. Ocu est calmo e rseo. Uma sbita paz - o queixume das pombas - banha aterra,precedendo os combates. O ar suave. Um fruto caiu sobre a relva. E uma pinha. As coisasprendem sua respirao. A guerra foi declarada. O tempo est bom...

    O GENERAL -Mas de repente?

    A MOA - Estamos beira do prado. Contenho-me para no dar coices, nem relinchar.Suas coxas esto mornas e voc comprime meu flanco. A morte...

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    15/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O GENERAL - Mas de repente?...

    A MOA - A morte atenciosa. Dedo aos lbios, ela, ela, ela que convida ao silncio.Uma bondade derradeira ilumina as coisas. Voc j est mais atento minha presena...

    O GENERAL -Mas de repente?

    A MOA - Abotoe-se sozinho, meu General. A gua estava imvel nos audes. O prpriovento esperava por uma ordem para enfunar as bandeiras...

    O GENERAL - Mas de repente?...

    A MOA - De repente? Hein? De repente? (Parece procurar as palavras) Ah, sim, derepente, ferro e fogo! As vivas! Foi preciso tecer quilmetros de crepe para colocar nosestandartes. Sob seus vus, as mes e as esposas conservavam os olhos secos. Os sinosrolavam dos campanrios bombardeados. Dobrando uma rua, um lenol azul assustou-me:empinei, mas, domado pela sua mo doce e pesada, meu tremor passou. Prossegui. Comoeu te amava, meu heri!

    O GENERAL - Mas... os mortos? No havia mortos?

    A MOA - Os soldados morriam beijando o estandarte. Voc era todo vitrias e bondade.Uma tarde, lembra-se...

    O GENERAL - Eu estava to leve que me pus a nevar. A nevar sobre meus homens, asepult-los sob o mais terno dos sudrios. A nevar. Berezina!

    A MOA - Os estilhaos de granadas lanhavam os limes. Enfim, a morte agia. De um aoutro, gil, cavando uma chaga, apagando um olho, arrancando um brao, abrindo uma

    artria, chumbando um rosto, cortando bruscamente um grito, um canto, a morte noagentava mais. Finalmente, cansada, ela prpria morta de cansao, descansou, leve, sobreos seus ombros. Adormeceu.

    O GENERAL(brio de alegria) - Pare, pare, ainda no chegou o momento, mas sinto queser magnfico. O talabarte? Perfeito. (Olha-se no espelho) Austerlitz! General! Homem deguerra e de parada, eis-me na minha aparncia mais pura. Nada, no deixo para trsnenhum contingente. Simplesmente, apareo. Se atravessei guerras sem morrer, seatravessei as misrias, sem morrer, se fui promovido sem morrer, foi para este minutoprximo morte. (Subitamente pra, uma idia parece preocup-lo) Diga-me, Pombinha...

    A MOA - O qu, meu senhor?

    O GENERAL - Onde est o Chefe de Polcia, a quantas anda? (A moa faz com a cabeaum sinal negativo) Nada? Sempre na mesma? Em suma, tudo lhe escapa entre os dedos. Ens, perdemos nosso tempo?

    A MOA(Imperiosa) - Em absoluto. E de qualquer modo, no de nossa conta. Continue.O senhor dizia: para este minuto prximo morte... e depois?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    16/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O GENERAL(Hesitando) - ...prximo morte... onde no serei nada, nada alm de minhaimagem, muito embora refletida ao infinito nestes espelhos... Tens razo, penteia tua crina.Escova-te. Exijo uma potranca bem vestida. Assim, daqui a pouco, ao chamado dastrombetas, vamos descer -eu te cavalgando- ao encontro da glria e da morte, pois voumorrer. Trata-se realmente de uma descida sepultura...

    A MOA - Mas, meu General, o senhor est morto desde ontem.

    O GENERAL - Eu sei... mas de uma descida solene e pitoresca, por inesperadas escadas...

    A MOA - O senhor um General morto, mas eloqente.

    O GENERAL - Porque morto, cavalo tagarela. O que fala, e com voz to bela, oExemplo. No sou mais que a imagem daquele que fui. Agora, tua vez. Vais baixar acabea e esconder os olhos pois quero ser general na solido. Nem mesmo para mim, maspara minha imagem, e minha imagem para sua imagem, e assim sucessivamente. Em suma,estaremos entre iguais. Pombinha, ests pronta? (A moa sacode a cabea) Ento, vem.Veste tua roupa baia, cavalo, meu belo genet de Espanha. (O general passa-lhe o cavalo debrinquedo por cima da cabea. Depois faz estalar seu chicote) Salve! (Sada sua imagem

    no espelho) Adeus, meu general! (Depois se estende na poltrona, os ps sobre a cadeira, ecumprimenta o pblico conservando-se to rgido quanto um cadver. A moa coloca-sediante da cadeira e, neste mesmo lugar, esboa os movimentos de um cavalo andando)

    A MOA(Solene e triste) - O desfile comeou... Atravessamos a cidade... seguindo o rio.Estou triste... O cu est cerrado. O povo chora um heri, to belo, morto na guerra...

    O GENERAL(Sobressaltando-se) - Pombinha!

    A MOA(Desviando-se, em prantos) - Meu general?

    O GENERAL - Acrescenta que morri de p! (Depois retoma sua pose)

    A MOA - Meu heri morreu de p! O desfile continua. Seus oficiais subalternosprecedem-me... Depois, venho eu, Pombinha, cavalo de batalha... A banda militar toca umamarcha fnebre... (A moa canta - caminhando imvel - a Marcha fnebre de Chopin queuma orquestra invisvel, com cobres, continua. Ao longe, um crepitar de metralhadoras)

    Quarto Quadro

    (Cenrio: um quarto cujos trs painis visveis so trs espelhos nos quais est refletidoum velhote maltrapilho, mas bem penteado, imvel no meio do recinto. Perto dele,

    indiferente, uma moa ruiva muito bonita. Colete de couro, botas de couro. Coxas nuas ebelas. Jaqueta de pele. Espera. O velhote tambm. Est impaciente, nervoso. A moa,imvel. O velhote, tremendo, tira suas luvas furadas. Retira do bolso um leno branco eenxuga-se. Tira os culos. Dobra-os e coloca-os num estojo, em seguida pe o estojo nobolso. Enxuga as mos com um leno. Todos os gestos do velhote refletem-se nos trsespelhos. Portanto, so necessrios trs atores para representar os reflexos. Finalmente,ouvem-se trs pancadas na porta do fundo. A moa ruiva aproxima-se. Diz: "O que ?".Irma estende o brao que segura uma palmatria e uma peruca muito suja e desgrenhada.A moa pega-as e a porta torna a fechar-se. A fisionomia do velhote se ilumina. A moaruiva tem um ar exageradamente altivo e cruel. Pe a peruca na cabea do velhote, com

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    17/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    brutalidade. O velho tira do bolso um pequeno buqu de flores artificiais. Segura-o como se fosse oferec-lo moa que o chicoteia e arranca o buqu com a palmatria. Afisionomia do velhote se ilumina com doura. Muito perto, crepitar de metralhadoras. Ovelhote toca a peruca).

    O VELHO - E os piolhos?

    A MOA(Muito vulgar) - Esto a.

    Quinto Quadro

    (Cenrio: O quarto de Irma. Muito elegante. o mesmo quarto que se via refletido nosespelhos dos trs primeiros quadros. O mesmo lustre. Longas rendas caindo do urdimento.Trs poltronas. Um vo esquerda. Perto dele um aparelho que permite a Irma ver o quese passa em seus sales. Porta direita. Porta esquerda. Irma est fazendo suas contas,sentada penteadeira. Perto dela uma moa: Carmen. Um crepitar de metralhadora).

    CARMEN(contando) - Dois mil do Bispo... dois mil do Juiz... (Levanta a cabea) No,madame, tudo na mesma. Nada de Chefe de Polcia.

    IRMA (Aborrecida) - Vai chegar, se que chega... e chega que nem uma fera! E, noentanto...

    CARMEN - Eu sei: no mundo, tudo necessrio. Mas nada de Chefe de Polcia. (Volta acontar) Dois mil do General... dois mil do marinheiro... trs do garoto...

    IRMA - J lhe disse, Carmen, no gosto disso. Exijo respeito aos visitantes. Vi-si-tan-tes!Nem mesmo eu (Acentua esta palavra) ouso cham-los de clientes. E, no entanto... (Fazestalar, de maneira acintosa, as cdulas novas de mil que segura na mo)

    CARMEN(Dura. Voltou-se e fixa Irma) - Para a senhora, sim: o tutu e o requinte!

    IRMA(Tentando conciliar) - Estes olhos! No seja injusta. Voc tem andado irritada. Osltimos acontecimentos nos deixaram com os nervos flor da pele, mas tudo isto vaipassar. E o sol voltar a brilhar. O Sr. Georges...

    CARMEN(Mesmo tom de antes) - Ah, este!

    IRMA - No fale mal do Chefe de Polcia. Sem ele, estaramos em maus lenis. Sim, ns,porque voc est ligada a mim. E a ele. (Longo silncio) E principalmente sua tristeza queme preocupa. (Douta) Voc est mudada, Carmen. E mesmo antes que a revolta

    comeasse...

    CARMEN - J no tenho tanto que fazer aqui, Madame Irma.

    IRMA(Desconcertada) - Mas... eu lhe entreguei a contabilidade. Voc se instalou em meuescritrio e, de repente, minha vida inteirinha abriu-se diante de voc. No tenho maissegredos, e mesmo assim no est contente?

    CARMEN - Claro, agradeo-lhe a confiana, mas... no a mesma coisa.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    18/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    IRMA - "Aquilo" lhe faz falta? (Silncio de Carmen) Ora, Carmen, quando voc subia aorochedo coberto de neve com uma roseira florida de papel amarelo - que, alis, devo tornara guardar no poro - e o devoto desmaiava ante a sua apario, voc no estava se levandoa srio, no ? Diga, Carmen... (Curto silncio)

    CARMEN - Quando as nossas sesses terminam, a senhora nunca permite que se comentee por isso desconhece os nossos verdadeiros sentimentos. A senhora observa tudo de longe,patroa, mas se alguma vez a senhora pusesse o vestido e o vu azul, ou fosse a penitente

    sedutora, ou a gua do general, ou a camponesa currada no palheiro...

    IRMA(Chocada) - Eu!

    CARMEN - Ou a empregadinha de avental rosa, ou a arquiduquesa deflorada pelo guarda,ou... enfim, no preciso dar a lista completa, a senhora saberia o que isto custa e que necessrio compensar com um pouco de ironia. Mas nem entre ns a senhora deixa que sefale sobre o assunto. A senhora tem medo de um sorriso, de uma pilhria.

    IRMA (Muito severa) - verdade, eu no gosto que se brinque. Um acesso de riso, oumesmo um sorriso, pe tudo a perder. Se h sorriso, h dvida. Os clientes querem

    cerimnias graves. Com suspiros. Minha casa um lugar severo. Permito que vocs joguemcartas.

    CARMEN - Ento no se espante com nossa tristeza. (Pausa) Penso em minha filha. (Irmalevanta-se, pois ouviu um toque de campainha, e dirige-se quele estranho mvel situado esquerda, espcie de aparelho munido de um visor, de um fone e de um grande nmero dealavancas. Enquanto fala, baixa uma alavanca e espia pelo visor)

    IRMA - Cada vez que lhe fao uma pergunta mais ntima voc amarra a cara e me vemcom sua filha. Voc ainda insiste em visit-la? Mas, no seja idiota, entre a nossa casa e ada ama de leite l na roa existe o fogo e a gua, a revolta e as balas. Eu at me pergunto

    se... (Novo toque de campainha. Madame Irma levanta uma alavanca e abaixa outra)...se oSr. Georges no foi liquidado no caminho. Se bem que um Chefe de Polcia saiba seproteger. (V as horas num relgio que tira de seu corpete) Est atrasado. (Parecepreocupada) Ou ento teve medo de sair.

    CARMEN - Para chegar a seus sales, estes senhores atravessam o fogo das metralhadorassem medo. Eu, para ver minha filha...

    IRMA - Sem medo? Com um temor que os excita. Por trs do muro de fogo e de ferro,com as narinas dilatadas, eles farejam a orgia. Vamos voltar s nossas contas, est bem?

    CARMEN (Aps um silncio) - No total, contando o marinheiro e os atendimentos maissimples, d trinta e dois mil.

    IRMA - Quanto mais se mata nos subrbios, mais os homens vm correndo para os meussales.

    CARMEN - Os homens?

    IRMA (Depois de uma pausa) - Alguns. Atrados por meus espelhos e meus lustres,sempre os mesmos. Para os outros, o herosmo substitui a mulher.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    19/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CARMEN(Amarga) - A mulher?

    IRMA - Como que vou chamar vocs, minhas grandes, compridas criaturas estreis?Eles nunca fecundam vocs. E, no entanto... se vocs no estivessem aqui...

    CARMEN - A senhora tem suas diverses, Madame Irma.

    IRMA - Cale-se. este jogo glacial a causa de minha tristeza e de minha melancolia.Felizmente tenho minhas jias. Correndo perigo, alis. (Sonhadora) Tenho minhasdiverses... e voc, as orgias de seu corao...

    CARMEN - Isso no resolve nada, patroa. Minha filha gosta de mim.

    IRMA - Voc a princesa distante que vai v-la com brinquedos e perfumes: Ela pe vocno cu. (Rindo com estardalhao) Ah, isto demais, pensar que para algum o Inferno que meu bordel possa parecer o Cu! o Cu para sua garota! (Ri) Mais tarde voc far delauma puta?

    CARMEN - Madame Irma!

    IRMA - verdade. Devo deix-la em seu bordel secreto, seu prostbulo precioso e cor-de-rosa, em seu puteiro sentimental... Voc me acha cruel? Esta revolta tambm me abalou osnervos. Sem que voc perceba, atravesso perodos de medo, de pnico... Tenho a impressode que a revolta no visa a tomada do Palcio Real, mas a pilhagem de meus sales. Tenhomedo, Carmen. No entanto, j tentei tudo, cheguei at a rezar. (Sorri com esforo) Como oseu penitente. Estou magoando voc?

    CARMEN(Decidida) - Duas vezes por semana, s teras e s sextas, tinha de ser NossaSenhora de Lourdes e aparecer a um contador do Banco da Provncia. Para a senhora era

    dinheiro em caixa e a justificativa do bordel; para mim era...

    IRMA(Espantada) - Voc aceitou. No parecia zangada...

    CARMEN - Eu era feliz.

    IRMA - E ento? Onde est o mal?

    CARMEN - Vi o efeito que causava sobre o meu contador. Vi seus transes, seus suores,ouvi seus estertores...

    IRMA - Basta. Ele no vem mais. Me pergunto por qu. Talvez o perigo, ou, quem sabe,sua mulher descobriu. (Pausa) Ou morreu. Cuide das minhas contas.

    CARMEN - Sua contabilidade nunca substituir minha apario. Tornara-se to verdadeiroquanto em Lourdes. Agora, s me preocupo com minha filha, madame Irma. Ela est numverdadeiro jardim...

    IRMA - Voc ter muita dificuldade em ir a seu encontro e daqui a pouco o jardim estarem seu corao.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    20/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CARMEN - Cale-se!

    IRMA (Inexorvel) - A cidade est cheia de cadveres. Todos os caminhos estoimpedidos. Os camponeses tambm aderiram. o caso de se perguntar o porqu. Contgio?A revolta uma epidemia. Tem o mesmo carter fatal e sagrado. De qualquer maneira,vamos ficar cada vez mais isolados. Os revoltosos odeiam o Clero, o Exrcito, aMagistratura, e a mim, Irma, cafetina e dona de prostbulo. Voc ser morta, estripada, esua filha adotada por um virtuoso rebelde. E o que nos espera, a todos. (Arrepia-se. De

    repente, um toque de campainha. Irma corre ao aparelho, olha e escuta como h pouco) Salo 24, o salo das Areias. Que est acontecendo? (Espia, preocupada. Longo silncio)

    CARMEN (Sentara-se penteadeira de Irma e retomava as contas. Sem levantar acabea) - A Legio?

    IRMA(Sempre com o olho colado no dispositivo) - Sim. o Legionrio herico que cainas areias. E Rachel lanou-lhe um dardo orelha, a idiota. Podia ficar desfigurado.Tambm, que idia, deixar-se alvejar por um rabe e morrer - se que se pode dizer assim!-, ao sinal de "cuidado", sobre um monto de areia! (Uma pausa. Olha com ateno) Ah,Rachel est cuidando dele. Prepara um curativo e parece que ele est contente. (Muito

    interessada) Veja, mas isso lhe agrada. Tenho a impresso de que gostaria de mudar ocenrio e que de hoje em diante vai morrer no hospital militar, abraado com umaenfermeira... Tenho de comprar um novo uniforme. Mais despesas. (De repente,preocupada) Bem, isso no me agrada. Nem um pouco. Rachel me preocupa cada vez mais.Que ela no me v fazer o mesmo que Chantal. (Voltando-se para Carmen) Por falar nisso,alguma notcia de Chantal?

    CARMEN - Nenhuma.

    IRMA (Retoma o aparelho) - E este aparelho que no funciona direito! O que que eleest dizendo? Ele explica... ela ouve... ela compreende. Tenho medo que ele tambm

    compreenda. (Novo toque de campainha. Abaixa outra alavanca e olha) Falso alarme. obombeiro que vai embora.

    CARMEN - Qual?

    IRMA - O verdadeiro.

    CARMEN - Qual o verdadeiro?

    IRMA - O que conserta as torneiras.

    CARMEN - O outro falso?

    IRMA (D de ombros. Aperta a primeira alavanca) - Ah, exatamente o que eu dizia: astrs ou quatro gotas de sangue de sua orelha bastaram para inspir-lo. Agora deixa-se ninar.Amanh de manh estar em forma para ir sua embaixada.

    CARMEN - Ele casado, no ?

    IRMA - Via de regra, no gosto de falar da vida particular de meus visitantes. O GrandeBalco conhecido no mundo inteiro. E a casa de iluses mais honesta e mais sbia...

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    21/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CARMEN - Honesta?

    IRMA - Discreta. Mas, para falar com franqueza, sua indiscreta: so quase todos casados.(Pausa)

    CARMEN (Pensativa) - Quando esto com suas esposas, a quem amam, ser que elesainda guardam uma vaga, uma pequena lembrana das suas festas num bordel?...

    IRMA(Chamando-a ordem) - Carmen!

    CARMEN - Desculpe, madame... em uma casa de iluses. Eu dizia: eles ainda guardamuma vaga, uma pequena lembrana das suas festas numa casa de iluses? Minscula,longnqua, no fundo de suas cabeas, mas presente?

    IRMA - possvel, meu bem. Elas devem existir. Como uma lanterna esperando oprximo So Joo, ou, se preferir, como uma luz imperceptvel de um imperceptvel casteloque, de repente, podem ampliar, todas as vezes que quiserem descansar. (Crepitar demetralhadoras) Voc est ouvindo? Eles se aproximam. Eles querem me destruir.

    CARMEN(Prosseguindo em seu pensamento) - No entanto, deve ser agradvel uma casade verdade...

    IRMA(Cada vez mais assustada) - Vo conseguir cercar o prostbulo antes da chegada doSr. Georges. Se conseguirmos escapar, uma coisa no se deve esquecer: que as paredesno esto suficientemente forradas, as janelas mal calafetadas... Ouve-se tudo que se passana rua. Portanto na rua deve-se ouvir o que se passa dentro de casa...

    CARMEN(Sempre pensativa) - Numa verdadeira casa deve ser agradvel...

    IRMA - Quem sabe? Mas Carmen, se minhas meninas comeam a ter essas idias, aruna do bordel! Acredito, realmente, que voc sinta falta de sua apario. Olhe, posso fazeralguma coisa por voc. Eu tinha prometido a Regine, mas agora dou a voc. Se voc quiser,naturalmente. Ontem me pediram, por telefone, uma santa Teresa... (Pausa) Ah,evidentemente, de Nossa Senhora a santa Teresa uma decadncia; mas tambm no toruim assim... (Silncio) No diz nada? para um banqueiro. Muito limpo, sabe? Nadaexigente. Dou para voc. Se os revoltosos forem massacrados, claro.

    CARMEN - Eu gostava do meu vestido, do meu vu e da minha roseira.

    IRMA - Na "Santa Teresa" tambm h uma roseira. Considere. (Silncio)

    CARMEN - E qual o detalhe autntico?

    IRMA - O anel. Porque ele previu tudo. O anel de casamento. Voc sabe, que cadareligiosa usa uma aliana, como esposa de Deus. Claro. E assim que ele saber que estlidando com uma verdadeira religiosa.

    CARMEN - E o detalhe falso?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    22/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    IRMA - quase sempre o mesmo: rendas negras sob a saia de l. Ento, quer? Voc tem adoura que ele gosta, ficar contente.

    CARMEN - muito gentil de sua parte pensar nele.

    IRMA - Eu penso em voc.

    CARMEN - Era sem ironia que eu falava que a senhora gentil. A favor de sua casa, pode-

    se dizer que ela traz consolo, madame Irma. A senhora monta e prepara seus teatrosclandestinos... A senhora tem os ps na terra. A prova que a senhora fatura. Quanto aeles... o despertar deve ser brutal. Logo que acaba preciso comear tudo de novo.

    IRMA - Felizmente, para mim.

    CARMEN - ...Comear tudo de novo, e sempre a mesma aventura. Da qual gostariam denunca sair.

    IRMA - Voc no entende nada disso. Eu vejo nos olhos deles: depois, tudo se torna claro.Subitamente compreendem a matemtica. Gostam de seus filhos e de sua ptria. Como

    voc.

    CARMEN(Empertigando-se) - Filha de oficial superior...

    IRMA - Eu sei. sempre preciso ter uma dessas no bordel. Mas lembre-se Que General,Bispo e Juiz esto na vida...

    CARMEN - A senhora est falando de quais?

    IRMA - Dos verdadeiros.

    CARMEN - Quais so os verdadeiros? Os nossos?

    IRMA - Os outros. Na vida so suportes de uma ostentao que devem arrastar pela lamado real e do quotidiano. Aqui, a Comdia, a Aparncia mantm-nas puras, a Festa intacta.

    CARMEN - As festas que me ofereo...

    IRMA(Interrompendo-a) - Eu sei para que elas servem: para esquecer as deles.

    CARMEN - A senhora me reprova?

    IRMA - As deles servem para esquecer as suas. Tambm eles gostam de seus filhos.Depois. (Novo toque de campainha, como os precedentes. Irma, que continuava perto doaparelho, volta-se, cola o olho no visor e aproxima o fone do ouvido. Carmen volta scontas)

    CARMEN(Sem levantar a cabea) - O senhor Chefe de Polcia?

    IRMA (Descrevendo a cena) - No. O garom, que acaba de chegar. Ainda vairesmungar... pronto, fica danado porque Eliane est lhe entregando um avental branco.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    23/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CARMEN - Eu j tinha prevenido. Ele quer um avental cor-de-rosa.

    IRMA - Amanh voc vai ao mercado, se estiver aberto. E compre tambm um espanadorpara o empregado da Ferroviria. Um espanador verde.

    CARMEN - Contanto que Eliane no esquea de deixar cair a gorjeta no cho. Ele exigeuma verdadeira revoluo. E copos sujos.

    IRMA - Querem que tudo seja o mais verdadeiro possvel... Menos alguma coisaindefinvel que far com que isso no seja verdade. (Mudando de tom) Carmen, fui euquem decidiu chamar meu estabelecimento de casa de iluses, mas sou apenas a diretora ecada um, quando toca e entra, traz seu cenrio perfeitamente estabelecido. S me restaalugar a sala e fornecer os acessrios, os atores e as atrizes. Consegui desligar minha filhada terra voc compreende o que eu digo? Dei-lhe, desde muito tempo, o sinal de partida eela voa. Cortei as amarras. Voa. Ou, se quiser, voga no cu, para onde ela me leva. Ento,minha querida... voc me permite algumas palavras de ternura? -toda dona de penso temsempre uma certa queda por uma de suas meninas...

    CARMEN - Eu j tinha percebido, Madame. E eu tambm, s vezes... (Olha para Madame

    Irma de uma maneira lnguida)

    IRMA(Levanta-se e olha-a) - Fiquei um pouco perturbada, Carmen. (Longo silncio) Mas,recomecemos. Minha querida, a casa realmente decola, deixa a terra, voga pelo cu quandome chamo, no fundo de meu corao, mas com grande clareza, de uma dona de penso.Querida, quando, secretamente, no silncio, repito para mim mesma, em silncio: "s umacafetina, uma dona de prostbulo e de puteiro", querida, tudo (Subitamente lrica), tudoesvoaa: lustres, espelhos, tapetes, pianos, caritides e meus sales, meus clebres sales: osalo dito dos Fenos, decorado com cenas rsticas, o salo das torturas, salpicado de sanguee lgrimas, o salo Sala do Trono, drapeado com veludo e flor de lis, o salo dos Espelhos,o salo do Aparato, o salo dos Repuxos perfumados, o salo mictrio, o salo de Anfitrite,

    o salo Luar, tudo voa: sales. Ah! esquecia o salo dos mendigos, dos vagabundos, onde aimundcie e a misria so enaltecidas. Recomeo: sales, meninas... (Reconsidera) Ah! iaesquecendo: o mais belo de todos, paramento definitivo, coroa do edifcio - se suaconstruo for um dia acabada - falo do salo funerrio, decorado com urnas de mrmore,meu salo da Morte Solene, o Tmulo! O salo mausolu. Recomeo: sales, meninas,cristais, rendas, balco, tudo desaparece, se eleva e me transporta! (Longo silncio. As duasmulheres esto imveis, de p, uma diante da outra)

    CARMEN - Como a senhora fala bonito!

    IRMA(Modesta) - Estudei at o ginsio.

    CARMEN - Percebi. Meu pai, o coronel de artilharia...

    IRMA(Corrigindo severamente) - De cavalaria, minha cara.

    CARMEN - Perdo. verdade. O coronel de cavalaria queria que eu estudasse.Infelizmente... Madame, a senhora conseguiu. Ao redor de sua bela pessoa organizou umteatro faustoso, uma festa cujo esplendor a envolve, dissimulando-a para o mundo. Para suaputice era necessrio este aparato. E eu, s terei a mim e s serei eu mesma? No, madame.Graas ao vcio e misria dos homens, tambm eu tive o meu momento de glria! Daqui,

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    24/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    com o fone no ouvido e olhando pelo visor, a senhora podia me ver erguida, ao mesmotempo soberana e boa, maternal e to feminina, meu calcanhar sobre a serpente de papeloe as rosas de papel rosa, a senhora tambm podia ver o contador do Banco da Provncia de joelhos diante de mim, e desmaiando ante minha apario. Infelizmente, ele estava decostas e a senhora no podia ver seu olhar de xtase, nem ouvir as batidas enlouquecidas demeu corao. Meu vu azul, meu vestido azul, meu avental azul, meu olho azul...

    IRMA - Castanho!

    CARMEN - Azul, naquele dia. Para ele eu era o prprio Cu que tocava a sua testa. Dianteda Madona que eu era, um espanhol teria rezado e feito promessas. Ele me cantavalouvores, confundindo-me com a sua cor predileta, e quando me levava para a cama, era noazul que ele me penetrava. Mas eu no vou mais aparecer.

    IRMA - Eu lhe ofereci Santa Teresa.

    CARMEN - No estou preparada, Madame Irma. preciso saber o que o cliente vai exigir.Ser que tudo j foi combinado?

    IRMA - Toda puta deve poder - voc me desculpe, j que chegamos a este ponto, falemosde homem para homem - deve poder enfrentar qualquer situao.

    CARMEN - Sou uma de suas putas, patroa, e uma das melhores, eu me orgulho disso.Numa noitada eu consigo dar...

    IRMA - Conheo seu estilo. Mas quando voc se exalta logo que ouve a palavra puta, quevoc repete para voc mesma e com ela se paramenta como se fosse um ttulo, muitodiferente de quando eu uso esta palavra para designar uma funo. Mas voc tem razo,minha querida, em exaltar sua profisso e fazer disso uma glria. Faa-a brilhar: Que ela ailumine, se a nica coisa que voc tem. (Terna) Farei tudo para ajud-la... voc a jia

    mais pura de meu rebanho, a nica a quem dedico toda a minha ternura. Fique comigo.Teria coragem de me abandonar quando tudo est desmoronando? A morte - a verdadeira, adefinitiva est minha porta, embaixo de minhas janelas... (Crepitar de metralhadoras)Est ouvindo?

    CARMEN - O exrcito est lutando com coragem.

    IRMA - Os revoltosos, com mais coragem ainda. E estamos junto aos muros da catedral, adois passos do arcebispado. Minha cabea no tem preo, no, seria bom demais. Mas sabe-se que ofereo jantares s pessoas importantes. Portanto, sou visada. E no h homens nestacasa.

    CARMEN - O Sr. Arthur est a.IRMA - Voc est brincando? Nenhum, ele um acessrio. Por falar nisso, logo quetermine a funo, vou mand-lo procurar o Sr. Georges.

    CARMEN - Se o pior acontecer...

    IRMA - E os revoltosos ganharem? Estou perdida. So operrios. Sem imaginao.Virtuosos e talvez castos.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    25/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CARMEN - Eles se habituam logo com o deboche. Basta um pouco de tdio...

    IRMA - Voc se engana. Nesse caso, evitaro o tdio. Sou eu a mais visada. Com vocs diferente. Em toda revoluo h uma puta exaltada que canta uma Marselhesa e sevirginiza. Voc seria esta puta? Eles daro santamente de beber aos moribundos. Depois...se casaro com vocs. Voc gostaria de casar?

    CARMEN - Flor de laranjeira, vu...

    IRMA - Bravo. Casada, para voc, quer dizer fantasiada. Minha querida, voc bem donosso mundo. No, eu tambm no vejo voc casada. Alis, o que eles querem nos matar.Ns teremos uma bela morte, Carmen. Ser terrvel e suntuosa. possvel que meus salessejam invadidos, os cristais, quebrados, os brocados rasgados, e que nos degolem...

    CARMEN - Tero pena...

    IRMA - No. Eles vo ficar ainda mais exaltados com a idia de que esto cometendo umsacrilgio. De capacete, botas, de bon e peito nu, nos destruiro a ferro e fogo. Serbelssimo. No podemos desejar outro fim. E voc ainda pensa em ir embora...

    CARMEN - Mas, Madame Irma...

    IRMA - Agora que a casa vai pegar fogo, a rosa vai ser apunhalada, voc, Carmen, spensa em fugir.

    CARMEN - A senhora sabe muito bem por que eu quis me ausentar.

    IRMA - Sua filha est morta...

    CARMEN - Madame!

    IRMA - Morta ou viva, sua filha est morta. Penso na sepultura, ornamentada commargaridas e coroas de prolas, no fundo de um jardim... e este jardim no seu corao, ondevoc poder cuidar dele...

    CARMEN - Teria sido um prazer rev-la...

    IRMA - Voc conservar sua imagem na imagem do jardim e o jardim em seu corao, sobo manto em chamas de santa Teresa. E voc ainda hesita? Eu lhe ofereo a mais gloriosadas mortes e voc ainda hesita? covarde.

    CARMEN - A senhora bem sabe que lhe sou dedicada.

    IRMA - Vou lhe ensinar as cifras! As maravilhosas cifras que passaremos, juntas, asnoites, a caligrafar.

    CARMEN(Suavemente) - A guerra desencadeada, a senhora disse muito bem, a horda.

    IRMA(Triunfante) - A horda! mas ns, ns temos nossas tropas, nossas armadas, nossasmilcias, legies, batalhes, vasos, arautos, clarins, trombetas, nossas cores, auriflamas,estandartes, pendes... para levar-nos catstrofe! A morte? a morte certa, mas to rpida

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    26/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    e com tal desenvoltura!... (Melanclica) A no ser que Georges ainda seja todo-poderoso...E ainda possa atravessar a horda e vir nos salvar. (Um grande suspiro) Voc vai me vestir.Mas antes, quero vigiar Rachel. (Mesmo toque de campainha de h pouco. Irma pe o olhono visor) Com este instrumento, eu os vejo e posso at ouvir os suspiros. (Silncio. Olha) OCristo sai com sua parafernlia. Nunca pude compreender por que pede que o amarrem cruz com as cordas que traz em -sua mala. So cordas bentas? Quando chega em casa, ondeir guard-las? Que importa! Vejamos Rachel. (Pressiona outra manivela) Ah, terminaram.Agora esto conversando. Guardando os dardos, o arco, as faixas de gaze, o quepe branco...

    No, no gosto nem um pouco da maneira como eles se olham! Eles esto com um olharto claro. (Volta-se para Carmen) A esto os perigos da assiduidade. Seria a runacompleta se meus clientes trocassem um sorriso amistoso com as meninas. Seria umacatstrofe ainda major que se houvesse amor. (Pressiona maquinalmente a manivela erecoloca o fone. Pensativa) Arthur j deve ter acabado. Ele vem a... Vista-me.

    CARMEN - O que vai pr?

    IRMA - O neglig creme. (Carmen abre um armrio e retira o neglig enquanto Irmadesabotoa seu costume) Carmen, e Chantal?

    CARMEN - Senhora?

    IRMA - Diga, que sabe de Chantal?

    CARMEN - Passei em revista todas as meninas: Rosine, Eliane, Florence, Marlyse.Prepararam seus pequenos relatrios. Vou d-los senhora. Mas eles no me adiantarammuito. Antes, era possvel espionar. Com o tumulto, mais difcil. No comeo os partidosesto mais definidos, pode-se escolher. Na paz, tudo menos claro. No sabemos bem aquem estamos traindo. Nem mesmo se estamos traindo. No h notcias de Chantal. Nosabemos se ainda vive.

    IRMA - Mas, diga-me uma coisa, voc no teria escrpulos?

    CARMEN - Nenhum. Ingressar no bordel recusar o mundo. Aqui estou e aqui fico. Aminha realidade so os seus espelhos, as suas ordens e as paixes. Que jias a senhora vaiusar?

    IRMA - Os diamantes. Minhas jias: de verdadeiro s tenho isto. Com a certeza de que oresto falso, tenho minhas jias, como outras tm uma filha no jardim, Quem a traidora?Voc no quer dizer?

    CARMEN - Todas elas desconfiam de mim. Eu recolho seus relatrios. Entrego-os

    senhora. E a senhora os d Polcia. ela que controla... Eu, no sei de nada.

    IRMA - Voc prudente. D-me um leno.

    CARMEN (Trazendo um leno de renda) - Vista daqui, onde de qualquer maneira oshomens ficam nus, a vida parece-me to distante, to profunda que possui toda a irrealidade de um filme ou do nascimento de Cristo numa creche. Quando um homem, no quarto,se abandona aponto de me dizer: "Tomaremos o arsenal amanh noite", tenho a impressode ler uma inscrio obscena. Seu ato torna-se to louco, to... volumoso quanto os que sodescritos de uma certa maneira em certas paredes... No, eu no sou prudente. (Batem. Irma

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    27/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    sobressalta-se. Precipita-se sobre o aparelho que, graas a um mecanismo acionado porum boto, encaixa-se na parede, invisvel. Durante toda a cena com Arthur, Carmen despee depois veste Irma, de maneira que esta fique pronta exatamente chegada do Chefe dePolcia)

    IRMA - Entre! (A porta se abre. Entra o carrasco que, de agora em diante, chamaremosde Arthur. Clssico terno de cafeto: cinza-claro, chapu de feltro branco, etc. Termina dedar o n na gravata. Irma, examinando-o minuciosamente) A funo terminou? Foi rpida.

    ARTHUR- Sim. O velhote est se vestindo. Est esgotado. Duas funes em meia hora.Com todo este tiroteio nas ruas, tenho minhas dvidas de que ele consiga chegar at o seuhotel. (Imita o Juiz no segundo quadro) Minos te julga... Minos te pesa... Crbero?... Uau!Uau! (Mostra os dentes e ri) O Chefe de Polcia no chegou?

    IRMA - Voc no bateu demais nela? Da ltima vez, a pobre coitada ficou dois dias decama. (Carmen trouxe o neglig de rendas. Irma agora est de camisola)

    ARTHUR- No se faa de boazinha, nem de falsa puta. Tanto da ltima vez como hoje denoite ela teve o que merecia: em gaita e em pancadas. Recta-reglo. Se o banqueiro quer ver

    as costas marcadas, ento eu marco.

    IRMA - Ao menos voc sente prazer?

    ARTHUR- Com ela, no; s gosto de voc. E trabalho trabalho. Tenho conscincia doque fao.

    IRMA (Autoritria) - No estou com cimes desta moa, mas no gostaria que vocacostumasse mal os empregados, cada vez mais difceis de encontrar.

    ARTHUR- Duas ou trs vezes tentei fazer as marcas, pintando nas costas com tinta roxa,

    mas no funciona. Quando o velho chega, examina e exige que esteja em forma.

    IRMA - Pintar? Quem deu licena? ( Carmen) Minhas sandlias orientais, querida.

    ARTHUR(Dando de ombros) - Uma iluso a mais, uma iluso a menos! Eu pensei queestava certo. Mas fique sossegada, agora chicoteio, flagelo, ela grita e ele rasteja.

    IRMA - Diga-lhe para gritar mais baixo, que a casa est visada.

    ARTHUR- O rdio acaba de anunciar que toda a zona Norte caiu esta noite. E o Juiz aindaquer gritos. O Bispo menos perigoso. Ele se satisfaz perdoando os pecados.

    CARMEN - Sua alegria est em perdoar, por isso ele exige primeiro que os pecados sejamcometidos. No, o melhor aquele que amarrado, espancado, chicoteado e, depois deacalentado, ronca.

    ARTHUR- E quem que faz ele dormir? ( Carmen) Voc? Voc lhe d o seio?

    CARMEN(Secamente) - Eu trabalho direito. Quem usa terno como este, seu Arthur, notem direito de gracejar. O cafeto faz careta, nunca sorri.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    28/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    IRMA - Ela tem razo.

    ARTHUR- Quanto ganhou hoje?

    IRMA(Na defensiva) - Eu e Carmen ainda no acabamos as comas.

    ARTHUR- Eu, j. Pelas minhas contas, deve chegar a vinte mil.

    IRMA - possvel. Mas no tenha medo. Eu no fao trapaas.

    ARTHUR - Acredito em voc, meu amor, mas no posso controlar: os nmeros seorganizam na minha cabea. Vinte mil! A guerra, a revolta, a metralha, o gelo, o granizo, achuva, a merda em aguaceiro, nada impede! Pelo contrrio. O pessoal est se matando nasruas, o bordei est visado: eles insistem. Eu tenho voc a domiclio, meu tesouro, se no...

    IRMA(Precisa) - Voc estaria paralisado de medo, no poro.

    ARTHUR(Dbio) - Faria como os outros, meu amor. Ficaria esperando que o Chefe dePolcia me salvasse. Voc no vai esquecer minha pequena porcentagem, no ?

    IRMA - O que eu lhe dou d para voc se defender.

    ARTHUR - Meu amor! Encomendei minhas camisas de seda. E voc sabe que tipo deseda? E a cor? Da seda roxa de seus corpetes!

    IRMA(Enternecida) - Pare com isso. Na frente de Carmen, no.

    ARTHUR- Ento? Vai dar?

    IRMA(Desfalecendo) - Vou.

    ARTHUR- Quanto?

    IRMA(Dominando-se) - Veremos. Eu e Carmen temos de fazer as contas. (Meiga) Tantoquanto eu puder. Mas agora preciso que voc v buscar Georges, de qualquer jeito...

    ARTHUR(Com ironia insolente) - Que que voc est dizendo, minha querida?

    IRMA(Seca) - Que voc v buscar o Sr. Georges. Se for preciso v at a Polcia e aviseque s conto com ele.

    ARTHUR(Ligeiramente preocupado) - Eu acho que voc est brincando...

    IRMA(De repente muito autoritria) - Pelo meu jeito voc j devia saber: no estou maisrepresentando. Pelo menos, no o mesmo papel. E voc, no tem mais que representar ocafeto terno e mau: faa o que lhe ordeno, mas antes segure o vaporizador. (A Carmen,que traz o objeto) Entregue a ele. ( Arthur) E de joelhos!

    ARTHUR(Ajoelha-se e vaporiza Irma) - Na rua?... Sozinho?... Eu?...

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    29/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    IRMA (De p, diante dele) - Precisamos saber que fim levou Georges. No posso ficardesprotegida.

    ARTHUR- Mas eu estou aqui...

    IRMA (Dando de ombros) - Tenho de defender minhas jias, meus sales e minhasmeninas. O Chefe de Polcia j devia ter chegado h meia hora...

    ARTHUR (Acovardado) - Eu, na rua? ...Mas est chovendo... eles esto atirando...(Mostrando seu terno) Eu me vesti para ficar, passear pelos corredores e me olhar nosespelhos. E tambm para que voc me visse vestido de cafeto... Eu s tenho a seda parame proteger...

    IRMA( Carmen) - D-me as pulseiras, Carmen. ( Arthur) E voc, vaporize.

    ARTHUR- Eu no sou feito para os exteriores. J faz muito tempo que vivo dentro de suasparedes... E alm disso, a minha pele no suportaria o ar livre... se ao menos eu tivesse umvu!... Imagine se me reconhecerem!...

    IRMA(Irritada e girando) - Ento v rente aos muros. (Pausa) Leve este revlver.

    ARTHUR(Assustado) - Comigo?

    IRMA - No seu bolso.

    ARTHUR- Meu bolso! E se eu tiver de atirar?...

    IRMA(Doce) - Voc j se cansou de ser o que ? Est farto?

    ARTHUR- Estou farto... (Pausa) Descansado, farto... mas se sair...

    IRMA(Autoritria, mas com doura) - Tem razo. Nada de revlver. Mas tire o chapu,v onde mandei e volte para me dar notcias. Esta noite voc tem uma sesso. J sabia? (Elejoga seu chapu)

    ARTHUR(Que estava se dirigindo para a porta) - Outra?! Esta noite?! De qu?

    IRMA - Eu pensei que j tinha dito: um cadver.

    ARTHUR(Com nojo) - E eu, vou fazer o qu?

    IRMA - Nada. Voc permanecer imvel e ser enterrado. Poder descansar.

    ARTHUR- Ah, por que que eu... ? Ah, bom. Muito bem. E o cliente?

    IRMA(Misteriosa) - Uma pessoa muito importante. E chega de perguntas. V.

    ARTHUR(Vai sair, depois hesita, e tmido) - E no se ganha um beijo?

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    30/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    IRMA - Quando voltarmos. Se voltarmos. (Ele sai, sempre ajoelhado. Entra o Chefe dePolcia pela porta da direita, sem bater. Um sobretudo pesado. Chapu. Charuto. Carmententa correr para chamar Arthur, mas o Chefe de Polcia interfere)

    O CHEFE DE POLCIA - No, no, fique, Carmen. Gosto de sua presena. Quanto aogigol, que d um jeito de me encontrar. (Permanece de chapu, charuto e sobretudo, masinclina-se diante de Irma a quem beija a mo)

    IRMA (Ofegante) - Ponha sua mo aqui. (Em seu seio) Estou transtornada. Ainda estoutremendo. Sabia que voc estava a caminho, correndo perigo. Palpitante, eu esperava... meperfumando...

    O CHEFE DE POLCIA(Tirando o chapu, as luvas, o sobretudo e o palet) - J passou.A comdia terminou. A situao est cada vez mais grave - no desesperadora, mas estse tornando - fe-liz-men-te! O castelo real ser cercado. A rainha se esconde. Atravessei acidade por milagre: a cidade est em fogo e sangue. A revolta trgica, mas l, h alegriaenquanto que nesta casa tudo est morrendo lentamente. Hoje meu dia. Esta noite estareina cova ou num pedestal. Portanto, esta histria de eu te amo, eu te desejo, no temimportncia. E o negcio, como vai?

    IRMA - Maravilhosamente. Tivemos grandes representaes.

    O CHEFE DE POLCIA(Impaciente) - De que gnero?

    IRMA - Carmen sabe contar melhor do que eu. Pergunte a ela.

    O CHEFE DE POLCIA( Carmen) - Como foi, Carmen? Sempre...?

    CARMEN - Sempre, sim senhor. Sempre os baluartes do Imprio.

    O CHEFE DE POLCIA (Irnico) - Nossas alegorias, nossas armas falantes. E quemais?...

    CARMEN - Como toda semana, um novo tema. (Gesto de curiosidade do Chefe dePolcia) Esta semana o beb, esbofeteado, batido posto na cama, que ento chora e ninado.

    O CHEFE DE POLCIA(Impaciente) - Est bem, mas...

    CARMEN - encantador, meu senhor. E to triste!

    O CHEFE DE POLCIA(Irritado) - S isso?

    CARMEN - To bonitinho quando lhe tiram a fralda...

    O CHEFE DE POLCIA (Cada vez mais irritado) - Voc est me gozando, Carmen?Estou lhe perguntando se j fui representado.

    CARMEN - Se o senhor j foi representado?

    IRMA(Irnica, no se sabe para quem) - No foi.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    31/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - Ainda no? ( Carmen) Finalmente, fui ou no fuirepresentado?

    CARMEN(Abobalhada) - Representado?

    O CHEFE DE POLCIA - Boba! Sim, uma imitao do Chefe de Polcia! (Silncio muitopesado)

    IRMA - Ainda cedo. Meu caro, seu cargo no tem a nobreza suficiente para sugerir aossonhadores uma imagem que sirva de consolo. Por falta de ancestrais ilustres, quem sabe?No caro amigo... preciso reconhecer que sua imagem ainda no tem acesso s liturgiasdo prostbulo.

    O CHEFE DE POLCIA - Quem est sendo representado?

    IRMA - Voc j sabe, voc no tem as fichas? (Conta nos dedos): h dois reis de Frana,com cerimnias de sagrao e rituais diferentes; um almirante desaparecendo na popa deseu torpedeiro; um bei de Argel, capitulando; um bombeiro, apagando um incndio; uma

    cabra amarrada a uma estaca; uma dona-de-casa voltando da feira; um saqueador; umassaltado amarrado e espancado; um So Sebastio; um fazendeiro em sua granja... nada dechefe de polcia... nem de administrador das colnias, mas um missionrio morrendo nacruz, e Cristo em pessoa.

    O CHEFE DE POLCIA(Aps uma pausa) - Voc esqueceu o mecnico.

    IRMA - Ele no vem mais. De tanto aparafusar, quase construa uma mquina. E que teriafuncionado. Na fbrica!

    O CHEFE DE POLCIA - Ento, nenhum de seus clientes teve a idia... a idia mais

    remota, apenas esboada...

    IRMA - Nada. Sei que voc faz o que pode; voc tenta o dio e o amor. Para voc, a glria uma ducha fria.

    O CHEFE DE POLCIA(Com veemncia) - Minha imagem cresce cada vez mais, eu lhegaranto. Torna-se colossal. Tudo, minha volta, reproduz e reflete essa imagem. E vocnunca a viu representada em sua casa?

    IRMA - Mesmo se sua imagem fosse consagrada eu no teria visto. As cerimnias sosecretas.

    O CHEFE DE POLCIA - Mentirosa. Em cada tabique voc colocou o visor. Todaparede, todo espelho est trucado. Aqui, os suspiros, l, o eco das lamentaes. Voc noprecisa de mim para saber que a maioria dos truques desse bordel so truques de espelhos...(Muito triste) Ningum! Mas eu obrigarei minha imagem a desprender-se de mim, apenetrar, a abrir caminho nos seus sales, a refletir-se, a multiplicar-se. Irma, meu cargo to pesado... Mas aqui, ela surgir diante de mim, na luz ofuscante do prazer e da morte.(Sonhador) Da morte...

    IRMA - preciso continuar matando, meu caro Georges.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    32/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - Fao o que posso, garanto. Cada dia que passa, sou maistemido.

    IRMA - Mas pouco. Voc precisa penetrar na noite, na merda e no sangue. (Subitamenteangustiada) E matar o que sobrar de nosso amor...

    O CHEFE DE POLCIA(Claro) - Tudo est morto.

    IRMA - uma bela vitria. Ento preciso matar o que existe em torno de voc.

    O CHEFE DE POLCIA(Muito irritado) - J disse. Fao o que posso. Eu tento provar Nao que sou um chefe, um legislador, um construtor...

    IRMA(Preocupada) - Voc est sonhando.Ou realmente voc espera construir um Imprioe de qualquer maneira voc est sonhando.

    O CHEFE DE POLCIA(Com convico) - Uma vez sufocada a revolta, e sufocada pormim, e com o apoio da Nao, convocado pela Rainha, nada poder me deter. E a vocs

    vo saber quem eu sou agora. (Sonhador.) Sim, minha cara, quero construir um Imprio...para que o Imprio, em troca,construa para mim...

    IRMA - Um sepulcro...

    O CHEFE DE POLICIA (Ligeiramente desconcertado) - Mas, finalmente, por que no?Todo conquistador no tem o seu? Ora! (Exaltado.) Alexandria! Eu terei meu sepulcro,Irma. E voc, quando colocarem a primeira pedra, estar no lugar de honra.

    IRMA - Muito obrigada. ( Carmen) Carmen, o ch.

    O CHEFE DE POLCIA( Carmen, que ia sair) - Um momento, Carmen. Qual a suaopinio?

    CARMEN - Que O senhor quer confundir a vida com longos funerais.

    O CHEFE DE POLCIA(Agressivo) - E a vida, outra coisa? Voc que parece saber detudo, diga: neste suntuoso teatro, onde a cada instante um drama representado como sediz l fora, uma missa celebrada o que que voc viu?

    CARMEN(Depois de hesitar) - De muito srio, s uma coisa merece ser contada: sem ascoxas do seu dono, uma cala sobre a cadeira, bonito, meu senhor. Nossos ornamentos

    sem os seus velhotes, ficam tristes de dar pena. So aqueles que colocamos no cadafalsodos altos dignatrios. S cobrem os cadveres que nunca terminam de morrer. No entanto...

    IRMA( Carmen) - No foi isso que o Chefe de polcia lhe perguntou.

    O CHEFE DE POLCIA - J me habituei aos discursos de Carmen. ( Carmen) Vocestava dizendo: no entanto...

    CARMEN - No entanto, quando eles percebem os ouropis, a alegria nos seus olhos maiso brilho da inocncia, tenho certeza...

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    33/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - Dizem que a nossa casa os conduz Morte. (De repente, umacampainha. Irma se sobressalta. Uma pausa)

    IRMA - Abriram a porta. Quem poder ser a esta hora? ( Carmen) Desa, Carmen, efeche a porta. (Carmen sai. Silncio bastante longo entre Irma e o Chefe de Polcia quepermaneceram sozinhos.)

    O CHEFE DE POLCIA - Meu sepulcro!

    IRMA - Fui eu que toquei. Queria ficar um pouco sozinha com voc. (Silncio, durante oqual olham-se nos olhos, gravemente) Diga-me, Georges... (Hesita) Voc ainda insiste emlevar adiante esta farsa? No, no, no se impaciente. No est cansado?

    O CHEFE DE POLCIA - Mas... Daqui a pouco volto para casa...

    IRMA - Se puder. Se a revolta permitir.

    O CHEFE DE POLCIA - A revolta uma farsa. Daqui voc no pode ver nada l fora,

    mas todos os revoltosos esto representando. E gostam de seu papel.

    IRMA - Mas se, por exemplo, ultrapassarem os limites da representao? Isto , se sedeixarem levar at destrurem tudo e tudo substiturem? Sim, sim, sim, h sempre o detalhefalso para lembrar que a um certo momento e num certo ponto do drama, eles devem parar,e at recuar... Mas se, levados pela paixo, no reconhecem mais nada e saltam sem hesitarpara...

    O CHEFE DE POLCIA - Para a realidade? E da? Que experimentem. Fao como eles,penetro de sbito na realidade que o jogo nos prope e, como tenho o papel principal, eu osliquido.

    IRMA - Eles sero os mais fortes.

    O CHEFE DE POLCIA - Por que eles sero? Deixei meus homens nos seus sales;assim, fico a par dos acontecimentos. E, alis, acabe com essa conversa. Voc ou no adona de uma casa de iluses? isso. Se venho aqui, para me satisfazer com seus espelhose seus truques. Fique tranqila. Tudo se passar como das outras vezes.

    IRMA - Hoje, no sei por que, estou preocupada. Os que passam pelas nossas janelas tmum ar ameaador, mas no cantam. A ameaa est no olhar.

    O CHEFE DE POLCIA - E da? Supondo que seja assim, voc me toma por umcovarde? Pensa que vou renunciar?

    IRMA(Pensativa) - No. Alis, acho que j tarde demais.

    O CHEFE DE POLCIA - Voc tem alguma notcia?

    IRMA - Atravs de Chantal, antes de sua fuga. A central eltrica ser ocupada por voltadas trs horas da madrugada.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    34/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - Tem certeza? Quem contou a ela?

    IRMA - Os revolucionrios do quarto setor.

    O CHEFE DE POLCIA - possvel. Como que ela soube?

    IRMA - Foi com sua ajuda que alguns fugiram. Mas foi s ela que ajudou. No v comisso depreciar a minha casa.

    O CHEFE DE POLCIA - Seu prostbulo, meu amor.

    IRMA - Prostbulo. Lupanar. Rendez-vouz. Bordel. Fodedor. Puteiro. Admito tudo. Nessecaso, Chantal a nica que est do outro lado... Ela fugiu. Mas antes fez confidncias aCarmen; esta sim sabe viver.

    O CHEFE DE POLCIA - Quem lhe deu esta informao?

    IRMA - Roger, o bombeiro. Como que voc acha que ele ? Jovem? Belo? No.Quarenta anos. Baixo e atarracado. De olhar grave e irnico. Chantal falou Com ele. Eu o

    despedi: tarde demais. Faz parte do setor Andrmeda.

    O CHEFE DE POLCIA - Andrmeda? Muito bem. A revolta se exalta e ganha asalturas. Se ela d nomes de constelao s suas frentes evaporar e virar cano. Fao votosde que sejam belas.

    IRMA - E se essas canes derem coragem aos revoltosos? E eles queiram morrer porelas?

    O CHEFE DE POLCIA - Eles vo amansar com a beleza das canes. Infelizmente noatingiram o estado nem da beleza, nem da mansido. De qualquer forma os amores de

    Chantal foram providenciais.

    IRMA - No misture Deus com...

    O CHEFE DE POLCIA - Eu sou maom. Da...

    IRMA - O qu? Voc nunca me disse.

    O CHEFE DE POLCIA(Solene) - Sublime Prncipe do Real Segredo!

    IRMA(Irnica) - Voc, irmo maom! De aventalzinho! Com um martelinho, um capuz e

    uma vela! engraado. (Uma pausa.) Voc tambm!

    O CHEFE DE POLCIA - Por qu? Voc tambm?

    IRMA(Comicamente solene) - Guardi de rituais ainda mais solenes! (Subitamente triste)J que finalmente cheguei a isto.

    O CHEFE DE POLCIA - Vai comear a lembrar nossos amores, ?

    IRMA(Com doura) - Nossos amores, no. O tempo em que nos amvamos.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    35/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - E da? Quer fazer o histrico e o elogio? Voc pensa queminhas visitas teriam menos sabor se no fossem temperadas com a lembrana de umasuposta inocncia?

    IRMA - de ternura que se trata. Nem as mais extravagantes fantasias de meus clientes,nem minha ternura, nem minhas pesquisas para enriquecer meus sales com novos temas,nem os tapetes, nem os dourados, nem os cristais, nem o frio impedem que tenha havido

    momentos em que voc se aninhava em meus braos e que eu me lembre deles.

    O CHEFE DE POLCIA - Voc tem saudades?

    IRMA(Com ternura) - Daria meu reinado para reviver um desses momentos! E voc sabequal. Necessito de uma nica palavra que seja verdadeira, como as rugas que descobrimos noite, ou quando lavamos a boca...

    O CHEFE DE POLCIA - tarde demais. (Pausa) Alm disso, no poderamos vivereternamente. Enfim, voc no sabe o que, j naquele tempo, em seus braos, eusecretamente pretendia.

    IRMA - O que sei que eu te amava.

    O CHEFE DE POLCIA - tarde demais. Voc abandonaria Arthur?

    IRMA (Ri, nervosamente) - Voc exigiu a presena de um homem aqui. Ele me foiimposto por voc - contrariando a minha vontade e a minha opinio - num terreno quedeveria permanecer virgem... Imbecil, no ria. Virgem. Isto , estril. Mas voc queria umsustentculo, um eixo, um falo presente, inteiro, erguido, de p. E a est. Voc meimpingiu este monto de carne congestionada, esta novia com braos de lutador - numcirco pareceria forte, mas voc ignora sua fragilidade. Ele me foi estupidamente impingido

    porque voc sentia que estava envelhecendo.

    O CHEFE DE POLCIA - Cale-se.

    IRMA (Dando de ombros) - Atravs de Arthur, voc descansava. No tenho iluses. Eusou o homem dele e comigo que ele conta. Mas necessito deste corpo musculoso, nodosoe estpido, encravado nas minhas anguas. Ou, se voc prefere, ele o meu corpo, mas ameu lado.

    O CHEFE DE POLCIA(Irnico) - E se eu estivesse com cimes?

    IRMA - Desta gorda boneca que se disfara em carrasco para saciar um juiz de mentira?Voc agora est brincando, mas nunca se importou que eu tomasse as aparncias daquelecorpo magnfico. Se quiser, eu repito...

    O CHEFE DE POLCIA(Esbofeteia Irma, que cai no div) - E no berre que eu lhe partoa cara e toco fogo nesse pardieiro. E toco fogo nos cabelos e nos plos e solto vocs por a.Ilumino a cidade com as putas incendiadas. (Muito docemente) Voc acha que sou capaz?

    IRMA(Num suspiro) - Sim, querido.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    36/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CHEFE DE POLCIA - Ento, faa-me as contas. Se quiser, desconte o crepe de Chinade Apolo. E rpido, que eu tenho de voltar ao meu posto. Por enquanto, tenho de agir.Depois... Depois, as coisas correro sozinhas. Meu nome agir em meu lugar. E Arthur?

    IRMA(Submissa) - Esta noite ser morto.

    O CHEFE DE POLCIA - Morto? Voc quer dizer... morto... mesmo?

    IRMA(Resignada) - Ora, Georges, como se morre aqui em casa.

    O CHEFE DE POLCIA - Verdade? E para quem ?

    IRMA - Para o ministro... ( interrompida pela voz de Carmen)

    VOZ DE CARMEN (Nos bastidores) - Tranquem o salo dezessete! Eliane, maisdepressa! E faa baixar o salo... No, no, espere... (Ouve-se um barulho de engrenagensenferrujadas, como fazem alguns elevadores velhos. Carmen entra)

    CARMEN - Madame, o enviado da Rainha est no salo...(A porta da esquerda se abre e

    surge Arthur, trmulo, roupas rasgadas)

    ARTHUR(Vendo o Chefe de Polcia) - O senhor est a? Conseguiu atravessar?

    IRMA(Jogando-se em seus braos) - Querido! Que aconteceu? Est ferido?... Fale!...

    ARTHUR(Ofegante) - Tentei ir at a Polcia. Impossvel. A cidade est iluminada pelosincndios. Os revoltosos tomam quase tudo. Tenho a impresso de que o senhor no vaiconseguir voltar. Cheguei at o Palcio Real e vi o Camareiro-mor. Ele disse que tentariavir. De passagem, apertou minha mo. E eu voltei. As mulheres so as mais exaltadas.Encorajam os homens a saquear e matar. E a mais terrvel era uma moa que cantava...

    (Ouve-se um estampido seco. Um vidro da janela voa em estilhaos. Um espelho tambm, prximo ao leito. Arthur cai, atingido na testa por uma bala vinda de fora. Carmendebrua-se sobre ele, depois levanta-se. Irma por sua vez debrua-se sobre ele, acaricia-lhe a testa)

    O CHEFE DE POLCIA - Isso quer dizer que estou encurralado no bordei. Portanto, dobordei que terei de agir.

    IRMA(Para si mesma, debruada sobre Arthur) - Ser que tudo me abandona? Ser quetudo me escapa entre os dedos?... (Amarga) Ainda tenho minhas jias... os meusdiamantes... e no por muito tempo, talvez...

    CARMEN(Suavemente) - Se a casa for pelos ares... O traje de Santa Teresa est no cabide,madame Irma?

    IRMA (Levantando-se) - esquerda. Mas primeiro retirem Arthur. Vou receber oEnviado.

    Sexto Quadro

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    37/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    (Cenrio: O cenrio representa uma praa com zonas de sombra. Ao fundo, bastantelonge, percebe-se a fachada do Grande Balco, persianas cerradas. Chantal e Roger estoabraados. Trs homens parecem vigi-los. Malhas pretas. Seguram as metralhadorasapontadas para o Grande Balco).

    CHANTAL (Suavemente) - Guarde-me, se quiser, meu amor, mas guarde-me no seucorao. E espere por mim.

    ROGER- Eu te amo. Amo teu corpo, teus cabelos, teu pescoo, teu ventre, teus intestinos,teus humores, teus odores. Chantal, eu te amo em minha cama. Esses...

    CHANTAL(Sorrindo) - Eles riem ligam para mim! Mas, sem eles, eu no seria nada.

    ROGER- Voc minha. Eu...

    CHANTAL (Aborrecida) - Eu sei: me tirou de um tmulo. E assim que me vi livre deminhas faixas, como uma ingrata, me larguei por a. Entrego-me aventura e escapo devoc. (De repente, ternamente irnica) Mas, Roger, meu amor, voc bem sabe que te amo es amo voc.

    ROGER- como voc diz, voc escapa de mim. No posso acompanh-la nessa corridaherica e estpida.

    CHANTAL - Oh, oh! Est com cimes, de quem, de qu? Dizem que pairo acima daInsurreio, que sou a sua alma e a sua voz, e voc, permanece na terra. E por isso que vocfica triste...

    ROGER - Chantal, no seja vulgar. Se voc puder ajudar... (Um dos homens,aproximando-se)

    O HOMEM(Para Roger) - Ento, sim ou no?

    ROGER- E se ela ficar?

    O HOMEM - Voc poderia ced-la por duas horas?

    ROGER- Chantal pertence...

    CHANTAL - A ningum!

    ROGER- Ao meu setor.

    O HOMEM - Insurreio!

    ROGER- Se o que vocs querem mulher para arrebanhar homens, fabriquem uma.

    O HOMEM - Procuramos. No h. Tentamos fabricar uma: voz bonita, seios bonitos mostra, mas sem fogo nos olhos; e voc sabe, sem o fogo... Convocamos as da zona Norte eas do Cais do Porto: no estavam livres.

  • 8/3/2019 O Balcao - Jean Genet

    38/68

    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    CHANTAL - Uma mulher como eu? Outra? Tudo o que tenho o meu rosto de coruja, aminha voz rouca que dou ou empresto a servio do dio. Nada sou alm de meu rosto, deminha voz e dentro de mim uma adorvel bondade envenenada. Tenho duas rivaispopulares? Outras miserveis? Que venham, farei com que elas morram na luta. No tenhorivais.

    ROGER(Explodindo) - Eu a arranquei de um tmulo. E ela agora me escapa e sobe aoscus. Se eu a emprestar a vocs...

    O HOMEM - Ningum est pedindo emprestado, ns queremos alugar.

    CHANTAL(Divertida) - Quanto?

    ROGER- Mesmo alugada para que ela v cantar e subverter o pessoal do seu subrbio, sefor liquidada, perdemos tudo. Ningum a substituir.

    O HOMEM - Ela tinha aceitado.

    ROGER- Ela no se pertence. Ela nossa. o nosso smbolo. Suas mulheres s servem

    para arrancar e juntar pedras, ou recarregar as armas. Sei que difcil, mas...

    O HOMEM - Quantas mulheres quer em troca?

    ROGER(Pensativo) - to importante assim uma cantora nas barricadas?

    O HOMEM - Quantas? Dez mulheres por Chantal? (Pausa) Vinte?

    ROGER- Vinte mulheres? Estariam dispostos a pagar vinte mulheres por Chantal? Vintebois, vinte cabeas de gado? Ento Chantal uma pessoa excepcional? E voc sabe de ondeela vem?

    CHANTAL(Para Roger, com violncia) - Todas as manhs volto - resplandeo noite -volto minha toca para dormir - to casta, meu amor! - e deixar-me aniquilar pelo vinho. Eeu, com minha voz spera, minha clera fingida, meus olhos de camafeu, minha iluminaopintada, meus cabelos andaluzes, consolo e encanto dos miserveis. Eles vencero e minhavitria ser uma vitria estranha.

    ROGER(Pensativo) - Vinte mulheres por Chantal?