o antropologo e o outro

15
O ANTROPÓLOGO E O OUTRO: O TRABALHO DE CAMPO EM UMA ÉPOCA PÓS-MODERNA 1 . SMANIOTTO, Edgar Indalecio 2 RESUMO Neste artigo buscamos discutir o pensamento do escritor Augusto Emílio Zaluar a respeito da dificuldade que o antropólogo encontra para sair do mundo do “outro”. Essa discussão é feita por Zaluar no decorrer da trama do livro O Dr. Benignus, sendo representada pelo personagem Willian River. Pretendemos, ao longo destas páginas, expor as idéias de Zaluar, ao mesmo tempo em que as contrapomos com o pensamento de Clifford Geertz, James Clifford, Nigel Barley e Alba Zaluar, a fim de buscar compreender o papel e a validade epistemológica do trabalho de campo na antropologia. PALAVRAS-CHAVE: antropologia, outro, pré-figuração, pós-moderno. ABSTRACT In this article we discuss the thought of the writer Augusto Emilio ZALUAR about the difficulty that the anthropologist is to leave the world of the "other". This discussion is made by ZALUAR during the book's plot Dr. Benignus, represented by the character William River. We intend, in these pages, expose ZALUAR ideas at the same time that we oppose the thought of Clifford Geertz, James Clifford, Nigel Barley and Alba ZALUAR in order to try to understand the role and the epistemological validity of fieldwork in anthropology. KEYWORDS: Anthropology. Other. Pre-figuration. Postmodern. INTRODUÇÃO 1 Este trabalho foi anteriormente apresentado como parte da dissertação de mestrado: UMA ANÁLISE DO CONCEITO ANTROPOLÓGICO DO “OUTRO” NA OBRA DO ESCRITOR AUGUSTO EMÍLIO ZALUAR, defendida em 2007 no programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP de Marília sob orientação da Prof. Dr.ª Christina de Rezende Rubim, por este autor. 2 Filósofo, mestre e doutor Ciências Sociais. Docente da Faculdade de Ensino Superior do Interior Paulista. Membro da Associação Brasileira de Antropologia ABA; da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC; da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial ASPAS, e do Centro de Educação Transdisciplinar CETRANS, Grupo de Pesquisa Social - UNESP. E- mail: [email protected].

Upload: emidia-costa

Post on 05-Jan-2016

27 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

antropologia

TRANSCRIPT

Page 1: o Antropologo e o Outro

O ANTROPOacuteLOGO E O OUTRO O TRABALHO DE CAMPO EM UMA

EacutePOCA POacuteS-MODERNA1

SMANIOTTO Edgar Indalecio2

RESUMO Neste artigo buscamos discutir o pensamento do escritor Augusto Emiacutelio Zaluar a respeito da dificuldade

que o antropoacutelogo encontra para sair do mundo do ldquooutrordquo Essa discussatildeo eacute feita por Zaluar no decorrer

da trama do livro O Dr Benignus sendo representada pelo personagem Willian River Pretendemos ao

longo destas paacuteginas expor as ideacuteias de Zaluar ao mesmo tempo em que as contrapomos com o

pensamento de Clifford Geertz James Clifford Nigel Barley e Alba Zaluar a fim de buscar

compreender o papel e a validade epistemoloacutegica do trabalho de campo na antropologia

PALAVRAS-CHAVE antropologia outro preacute-figuraccedilatildeo poacutes-moderno

ABSTRACT

In this article we discuss the thought of the writer Augusto Emilio ZALUAR about the difficulty

that the anthropologist is to leave the world of the other This discussion is made by ZALUAR

during the books plot Dr Benignus represented by the character William River We intend in

these pages expose ZALUAR ideas at the same time that we oppose the thought of Clifford

Geertz James Clifford Nigel Barley and Alba ZALUAR in order to try to understand the role

and the epistemological validity of fieldwork in anthropology

KEYWORDS Anthropology Other Pre-figuration Postmodern

INTRODUCcedilAtildeO

1 Este trabalho foi anteriormente apresentado como parte da dissertaccedilatildeo de mestrado UMA ANAacuteLISE

DO CONCEITO ANTROPOLOacuteGICO DO ldquoOUTROrdquo NA OBRA DO ESCRITOR AUGUSTO EMIacuteLIO ZALUAR defendida em 2007 no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais da UNESP de Mariacutelia sob orientaccedilatildeo da Prof Drordf Christina de Rezende Rubim por este autor 2 Filoacutesofo mestre e doutor Ciecircncias Sociais Docente da Faculdade de Ensino Superior do Interior Paulista Membro da Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia ndash ABA da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciecircncia ndash SBPC da Associaccedilatildeo de Pesquisadores em Arte Sequencial ndash ASPAS e do Centro de Educaccedilatildeo Transdisciplinar ndash CETRANS Grupo de Pesquisa Social - UNESP E-mail edgarsmaniottogmailcom

No romance O Dr Benignus3 Augusto Emiacutelio Zaluar utiliza-se do conceito

antropoloacutegico do ldquooutrordquo ao narrar as aventuras do personagem homocircnimo O Dr Benignus eacute

meacutedico e naturalista e devido a um estratagema utilizado por seu cozinheiro aventura-se pelo

interior do Brasil a fim de conhecer a natureza brasileira e fazer pesquisas astronocircmicas

No decorrer da narrativa de suas aventuras pelo interior do Brasil Benignus encontra-se com o

antropoacutelogo Willian River que para a antropoacuteloga Alba Zaluar representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-

figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo

(ZALUAR Alba 1994 p 374) Tese esta que desenvolveremos neste artigo

Primeiro romance cientiacutefico brasileiro 2 ndash O Dr Benignus (Benignus = benigno) jaacute no

tiacutetulo reflete a visatildeo de Augusto Emiacutelio Zaluar de que a Ciecircncia e a Tecnologia tinham vindo

exclusivamente para fazer o bem ao ser humano5 eacute tambeacutem um relato de viagem Um relato

imaginaacuterio eacute claro mas sustentado pela pesquisa enciclopeacutedica feita pelo seu autor que insere

na obra um apecircndice com dezenas de referecircncias biograacuteficas cientiacuteficas e literaacuterias das quais

se utilizou para sustentar sua narrativa

Partindo deste relato fictiacutecio de viagem escrito por Zaluar buscamos tambeacutem

compreender os dilemas encontrados pelo antropoacutelogo durante o trabalho de campo bem como

a validade epistemoacutelogica e discursiva da monografia escrita por ele a partir dessa experiecircncia

sempre tendo em vista as criacuteticas feitas por antropoacutelogos hermenecircuticos e poacutes-modernos agrave

pretensatildeo de discurso sobre a realidade que estaacute presente na monografia antropoloacutegica

1 AUGUSTO EMIacuteLIO ZALUAR ESBOCcedilO DE UMA TRAJETOacuteRIA INTELECTUAL

3 O Dr Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 Ediccedilatildeo criacutetica com vaacuterias introduccedilotildees e uma explicaccedilatildeo teacutecnica quanto aos criteacuterios de modernizaccedilatildeo da linguagem e feita a partir da ediccedilatildeo em livros em dois volumes de 1875 Haacute indicaccedilotildees que o romance teve uma ediccedilatildeo anterior em forma de folhetim fato comum na eacutepoca contida na seccedilatildeo ldquoAo Leitorrdquo (p 27) ldquoAgradeccedilo cordialmente agrave ilustrada redaccedilatildeo do O GLOBO a benevolecircncia com que acolheu o meu trabalho que hoje principio a publicarrdquo 4 O romance de Zaluar eacute um legiacutetimo romance cientiacutefico brasileiro do seacuteculo XIX mas eacute produto tanto

da imitaccedilatildeo quanto da distacircncia cultural sofrida pelo paiacutes em relaccedilatildeo agrave Europa Ele aborda teorias

antropoloacutegicas locais como as ideacuteias da Ameacuterica como terra da liberdade e a do continente sul-

americano como o mais antigo do mundo mas seu estilo eacute claramente influenciado por Julio Verne no

qual as caracteriacutesticas literaacuterias satildeo deixadas de lado em favor de uma descriccedilatildeo cientiacutefica quase

didaacutetica

5 Particularmente eacute discutido no lsquoO Dr Benignusrsquo a relaccedilatildeo entre astronomia antropologia e

astrobiologia sendo esta relaccedilatildeo construiacuteda utilizando-se das obras de Camille de Flammarion (1937A

1937B 1995) Sabe-se que Flammarion influenciou a constituiccedilatildeo da astronomia brasileira ateacute o seacuteculo

XX entrando em disputa com os positivista ver MORAES Abraatildeo A astronomia no Brasil In

AZEVEDO Fernando de As ciecircncias no Brasil Satildeo Paulo Melhoramentos1955 p 81-161

RIBEIRO J Costa A fiacutesica no Brasil In AZEVEDO Fernando de As ciecircncias no Brasil Satildeo Paulo

Melhoramentos 1955 p 163 - 202

Augusto Emiacutelio Zaluar nasceu em Lisboa em 14 de fevereiro de 1826 filho de Joseacute de Oliveira

Zaluar6 major graduado que servira de comissaacuterio pagador da divisatildeo dos Voluntaacuterios Reais de El-Rei

na campanha do Rio da Prata antes da Independecircncia do Brasil Augusto Emiacutelio Zaluar matriculou-se

no 1ordm ano da Escola Meacutedico-ciruacutergica de Lisboa disposto a seguir esses estudos mas acabou por

descobrir-se mais apto agrave literatura

Colaborou com diversos jornais de Lisboa e algumas revistas entre elas Epoche Jardim das

Damas Revista Popular e outras publicaccedilotildees daquele tempo principalmente com poemas Jaacute em 1846

publica um folheto intitulado Poesias primeira parte7 Mas natildeo encontrou nos meios literaacuterios

rendimentos que lhe possibilitassem sustentar-se

Decidiu assim vir para o Brasil chegando ao Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 1850 Tratou

logo de tentar viver de meios puramente literaacuterios e jornaliacutesticos Fez parte das redaccedilotildees do Correio

Mercantil e do Diaacuterio do Rio de Janeiro e em Santos da Civilizaccedilatildeo Em 1856 naturalizou-se

brasileiro8

Aleacutem das atividades de articulista e redator Zaluar viria a se dedicar a traduccedilotildees de obras

literaacuterias para os folhetins da eacutepoca Traduziu Os moicanos de Paris para o Correio Mercantil Aleacutem da

atividade jornaliacutestica Zaluar se dedicou intensamente agrave poesia Em 1851 publica Dores e Flores9 que

teria sua continuaccedilatildeo publicada em 1862 com o tiacutetulo de Revelaccedilotildees10 Mas tambeacutem publicou um livro

de contos11 Fez apreciaccedilotildees criacuteticas para outros autores como Joaquim Inaacutecio Alvares de Azevedo12

um poema em homenagem a Pedro II13 e uma peccedila de teatro14

6 Infelizmente natildeo conseguimos identificar o nome da matildee de Zaluar 7 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Poesias Lisboa

Imprensa Nacional 1846

8 Informaccedilotildees retiradas do Portugal ndash Dicionaacuterio Histoacuterico transcrito por Manuel Amaral disponiacutevel em httpwwwarqnetptdicionaacuteriozaluarhtml acesso em 22062004 9 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Dores e flores Rio

de Janeiro Typ De F de Paula Brito 1851

10 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Revelaccedilotildees Rio

de Janeiro-Paris Livraria de B L Garnier 1862

11 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Contos da Roccedila

Rio de Janeiro Typographia do Diario do Rio de Janeiro 1868

12 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Azevedo Joaquim

Inaacutecio Alvares de Poesias Rio de Janeiro Typ Universal de Laemmert 1872 Apreciaccedilotildees criacuteticas de

Augusto Emiacutelio Zaluar Joseacute Feliciano de Castilho Barreto e Noronha Joseacute Maria Velho da Silva

13 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Os Rios A SM

Imperial o Senhor Dom Pedro Segundo [ Sl sn sd] 6p 22cm

14 Esta peccedila chama-se ldquoO cofre da tartarugardquo uma conversaccedilatildeo em um ato de 1865

Zaluar era um homem profundamente interessado em ciecircncias Naturais e Fiacutesicas

principalmente em Astronomia havia comeccedilado sua carreira como meacutedico Publicou obras sobre

diversos temas como biografia seja em obra proacutepria15 ou em parceria16 obras de caraacuteter didaacutetico17

afinal era Lente em pedagogia da Escola Normal

No entanto seria uma obra sua dedicada agrave ciecircncia e agrave tecnologia18 assuntos de vital importacircncia

para Zaluar que lhe renderia o meacuterito de entrar para o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (I H

G B )

Como viajante Augusto Emilio Zaluar escreveu a sua Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo

Paulo (1860-6119) um relato de viagem tatildeo comum no seacuteculo XIX com uma leve diferenccedila em relaccedilatildeo

a seus contemporacircneos Enquanto grande parte dos viajantes principalmente estrangeiros estava

preocupada em catalogar a natureza brasileira Zaluar realizava sua viagem a fim de catalogar os

elementos civilizadores desta naccedilatildeo por isso ela transcorreu nas proviacutencias do Rio de Janeiro e

principalmente na de Satildeo Paulo onde comeccedilavam a surgir cidades de meacutedio porte alguma induacutestria e

estradas de ferro devido sobretudo agrave cultura cafeeira

2 UMA PREacute ndash FIGURACcedilAtildeO DA ANTROPOLOGIA

No decorrer do Doutor Benignus somos apresentados ao personagem William River20 um

ldquoantropoacutelogordquo21 Este de origem inglesa passou cerca de 9 meses entre os povos indiacutegenas de Goiaacutes

15 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Emiacutelia Adelaide

Rio de Janeiro Typ do Diaacuterio de Rio de Janeiro 1871

16 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional CASTRO Eduardo

de Saacute Pereira de ZALUAR Augusto Emiacutelio Os Heroacutees brazileiros na campanha do sul em 1865

Rio de Janeiro Typ Pinheiro amp Comp 1865

17 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Liccedilotildees das cousas

animadas e inanimadas modelos e assunptos de exercicios oraes e por escripto para os

meninos de 5 a 8 annos imitaccedilatildeo para uso das escolas primarias 3 ed Rio de Janeiro Liv

classica de Alves amp comp 1893

18Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Exposiccedilatildeo Nacional Brazileira de 1875 Rio de Janeiro Typ do Globo 1875 19 Esta obra teve uma republicaccedilatildeo relativamente recente 1975 que ainda estaacute disponiacutevel Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo Paulo ( 1860-61) Satildeo Paulo Ed Itatiaia USP 1975 20 Este personagem eacute puramente fictiacutecio natildeo tendo qualquer relaccedilatildeo com o antropoacutelogo e fisiologista inglecircs W H R Rivers fundador da escola de psicologia experimental de Cambridge Criador de um meacutetodo de registrar parentesco entre outras contribuiccedilotildees teacutecnicas agrave antropologia Rivers propagava a necessidade de encarar uma cultura ou sociedade como um todo integrado (MERCIER 1986 p 109) 21 Usamos aqui o termo antropoacutelogo com o objetivo de designar o personagem Willian River Sabemos que ateacute entatildeo esta aacuterea das ciecircncias humanas natildeo se tinha constituiacutedo mas uma vez que o personagem apresenta comportamentos que viriam a serem adotados pelos antropoacutelogos (como passar meses entre os Caiapoacutes antes de escrever sua monografia) e Zaluar o designa como tal usaremos este termo para referirmos a este

para depois redigir uma monografia Em outras palavras William River estava realizando um trabalho

de campo que seria a fase primordial da investigaccedilatildeo etnograacutefica Alba Zaluar (1994) reconhece ser

esta uma proposiccedilatildeo avanccedilada ldquobasta lembrarmos que as primeiras expediccedilotildees para realizar um longo

trabalho de campo deram-se na virada do seacuteculordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374)

Alba Zaluar se refere aqui agrave coleta de materiais etnograacuteficos feita por Frans Boas por

ocasiatildeo de uma missatildeo geograacutefica agrave terra de Bafim em 1887 Seguida por uma expediccedilatildeo

zooloacutegica ao estreito de Torres em 1888 com a presenccedila de A C Haddon Foi tambeacutem em

1894 que B Spencer e F J Gillen recolheram dados por ocasiatildeo de uma viagem de estudos

zooloacutegicos na Austraacutelia (MERCIER 1986 p 75)

Para Velasco e Rada (1997) o trabalho de campo eacute o periacuteodo dedicado agrave compilaccedilatildeo e

ao registro de dados sendo mais do que uma teacutecnica Trata-se de uma situaccedilatildeo metodoloacutegica e

tambeacutem um processo em si mesmo uma sequecircncia de accedilotildees de comportamentos e de

acontecimentos cujo objetivo eacute redigir uma monografia

O primeiro trabalho de campo a enquadrar-se nesta definiccedilatildeo teria sido segundo os autores

aquele realizado por Bronislaw Malinowski (1978) em seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand nos

anos de 1917-1918

A introduccedilatildeo de ldquoArgonautas do Paciacutefico Ocidentalrdquo pode mesmo ser considerada a carta

fundacional do trabalho de campo antropoloacutegico versando como podemos identificar em seu tiacutetulo

sobre o Tema meacutetodo e objetivo da pesquisa

Eacute nesta introduccedilatildeo que Malinowski propotildee que se faccedilam diaacuterios de campo ldquoo diaacuterio

etnograacutefico feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito eacute o instrumento ideal para este

tipo de estudordquo (p 31) e os princiacutepios metodoloacutegicos que vatildeo nortear sua pesquisa

em primeiro lugar eacute loacutegico que o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente

cientiacuteficos e conhecer os valores e criteacuterios da etnografia moderna Em segundo lugar

deve o pesquisador assegurar boas condiccedilotildees de trabalho o que significa

basicamente viver mesmo entre os nativos sem depender de outros brancos

Finalmente deve ele aplicar certos meacutetodos especiais de coleta manipulaccedilatildeo e

registro da evidecircncia (MALINOWSKI 1978 p 20)

Seguindo a leitura de Alba Zaluar de que Zaluar teria realizado uma ldquoprofecia do meacutetodo

etnograacutefico que se cumpriu no seacuteculo seguinterdquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) podemos verificar que

as propostas metodoloacutegicas inseridas por Bronislaw Malinowski encontram-se de certa forma

esboccediladas na ficccedilatildeo de Zaluar Isso natildeo significa poreacutem que Zaluar tenha sido um profeta ou mesmo

realizado um trabalho antropoloacutegico de envergadura que mais tarde foi esquecido por historiadores da

antropologia Na verdade Zaluar assim como o romancista francecircs Juacutelio Verne procurava fazer

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 2: o Antropologo e o Outro

No romance O Dr Benignus3 Augusto Emiacutelio Zaluar utiliza-se do conceito

antropoloacutegico do ldquooutrordquo ao narrar as aventuras do personagem homocircnimo O Dr Benignus eacute

meacutedico e naturalista e devido a um estratagema utilizado por seu cozinheiro aventura-se pelo

interior do Brasil a fim de conhecer a natureza brasileira e fazer pesquisas astronocircmicas

No decorrer da narrativa de suas aventuras pelo interior do Brasil Benignus encontra-se com o

antropoacutelogo Willian River que para a antropoacuteloga Alba Zaluar representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-

figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo

(ZALUAR Alba 1994 p 374) Tese esta que desenvolveremos neste artigo

Primeiro romance cientiacutefico brasileiro 2 ndash O Dr Benignus (Benignus = benigno) jaacute no

tiacutetulo reflete a visatildeo de Augusto Emiacutelio Zaluar de que a Ciecircncia e a Tecnologia tinham vindo

exclusivamente para fazer o bem ao ser humano5 eacute tambeacutem um relato de viagem Um relato

imaginaacuterio eacute claro mas sustentado pela pesquisa enciclopeacutedica feita pelo seu autor que insere

na obra um apecircndice com dezenas de referecircncias biograacuteficas cientiacuteficas e literaacuterias das quais

se utilizou para sustentar sua narrativa

Partindo deste relato fictiacutecio de viagem escrito por Zaluar buscamos tambeacutem

compreender os dilemas encontrados pelo antropoacutelogo durante o trabalho de campo bem como

a validade epistemoacutelogica e discursiva da monografia escrita por ele a partir dessa experiecircncia

sempre tendo em vista as criacuteticas feitas por antropoacutelogos hermenecircuticos e poacutes-modernos agrave

pretensatildeo de discurso sobre a realidade que estaacute presente na monografia antropoloacutegica

1 AUGUSTO EMIacuteLIO ZALUAR ESBOCcedilO DE UMA TRAJETOacuteRIA INTELECTUAL

3 O Dr Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 Ediccedilatildeo criacutetica com vaacuterias introduccedilotildees e uma explicaccedilatildeo teacutecnica quanto aos criteacuterios de modernizaccedilatildeo da linguagem e feita a partir da ediccedilatildeo em livros em dois volumes de 1875 Haacute indicaccedilotildees que o romance teve uma ediccedilatildeo anterior em forma de folhetim fato comum na eacutepoca contida na seccedilatildeo ldquoAo Leitorrdquo (p 27) ldquoAgradeccedilo cordialmente agrave ilustrada redaccedilatildeo do O GLOBO a benevolecircncia com que acolheu o meu trabalho que hoje principio a publicarrdquo 4 O romance de Zaluar eacute um legiacutetimo romance cientiacutefico brasileiro do seacuteculo XIX mas eacute produto tanto

da imitaccedilatildeo quanto da distacircncia cultural sofrida pelo paiacutes em relaccedilatildeo agrave Europa Ele aborda teorias

antropoloacutegicas locais como as ideacuteias da Ameacuterica como terra da liberdade e a do continente sul-

americano como o mais antigo do mundo mas seu estilo eacute claramente influenciado por Julio Verne no

qual as caracteriacutesticas literaacuterias satildeo deixadas de lado em favor de uma descriccedilatildeo cientiacutefica quase

didaacutetica

5 Particularmente eacute discutido no lsquoO Dr Benignusrsquo a relaccedilatildeo entre astronomia antropologia e

astrobiologia sendo esta relaccedilatildeo construiacuteda utilizando-se das obras de Camille de Flammarion (1937A

1937B 1995) Sabe-se que Flammarion influenciou a constituiccedilatildeo da astronomia brasileira ateacute o seacuteculo

XX entrando em disputa com os positivista ver MORAES Abraatildeo A astronomia no Brasil In

AZEVEDO Fernando de As ciecircncias no Brasil Satildeo Paulo Melhoramentos1955 p 81-161

RIBEIRO J Costa A fiacutesica no Brasil In AZEVEDO Fernando de As ciecircncias no Brasil Satildeo Paulo

Melhoramentos 1955 p 163 - 202

Augusto Emiacutelio Zaluar nasceu em Lisboa em 14 de fevereiro de 1826 filho de Joseacute de Oliveira

Zaluar6 major graduado que servira de comissaacuterio pagador da divisatildeo dos Voluntaacuterios Reais de El-Rei

na campanha do Rio da Prata antes da Independecircncia do Brasil Augusto Emiacutelio Zaluar matriculou-se

no 1ordm ano da Escola Meacutedico-ciruacutergica de Lisboa disposto a seguir esses estudos mas acabou por

descobrir-se mais apto agrave literatura

Colaborou com diversos jornais de Lisboa e algumas revistas entre elas Epoche Jardim das

Damas Revista Popular e outras publicaccedilotildees daquele tempo principalmente com poemas Jaacute em 1846

publica um folheto intitulado Poesias primeira parte7 Mas natildeo encontrou nos meios literaacuterios

rendimentos que lhe possibilitassem sustentar-se

Decidiu assim vir para o Brasil chegando ao Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 1850 Tratou

logo de tentar viver de meios puramente literaacuterios e jornaliacutesticos Fez parte das redaccedilotildees do Correio

Mercantil e do Diaacuterio do Rio de Janeiro e em Santos da Civilizaccedilatildeo Em 1856 naturalizou-se

brasileiro8

Aleacutem das atividades de articulista e redator Zaluar viria a se dedicar a traduccedilotildees de obras

literaacuterias para os folhetins da eacutepoca Traduziu Os moicanos de Paris para o Correio Mercantil Aleacutem da

atividade jornaliacutestica Zaluar se dedicou intensamente agrave poesia Em 1851 publica Dores e Flores9 que

teria sua continuaccedilatildeo publicada em 1862 com o tiacutetulo de Revelaccedilotildees10 Mas tambeacutem publicou um livro

de contos11 Fez apreciaccedilotildees criacuteticas para outros autores como Joaquim Inaacutecio Alvares de Azevedo12

um poema em homenagem a Pedro II13 e uma peccedila de teatro14

6 Infelizmente natildeo conseguimos identificar o nome da matildee de Zaluar 7 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Poesias Lisboa

Imprensa Nacional 1846

8 Informaccedilotildees retiradas do Portugal ndash Dicionaacuterio Histoacuterico transcrito por Manuel Amaral disponiacutevel em httpwwwarqnetptdicionaacuteriozaluarhtml acesso em 22062004 9 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Dores e flores Rio

de Janeiro Typ De F de Paula Brito 1851

10 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Revelaccedilotildees Rio

de Janeiro-Paris Livraria de B L Garnier 1862

11 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Contos da Roccedila

Rio de Janeiro Typographia do Diario do Rio de Janeiro 1868

12 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Azevedo Joaquim

Inaacutecio Alvares de Poesias Rio de Janeiro Typ Universal de Laemmert 1872 Apreciaccedilotildees criacuteticas de

Augusto Emiacutelio Zaluar Joseacute Feliciano de Castilho Barreto e Noronha Joseacute Maria Velho da Silva

13 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Os Rios A SM

Imperial o Senhor Dom Pedro Segundo [ Sl sn sd] 6p 22cm

14 Esta peccedila chama-se ldquoO cofre da tartarugardquo uma conversaccedilatildeo em um ato de 1865

Zaluar era um homem profundamente interessado em ciecircncias Naturais e Fiacutesicas

principalmente em Astronomia havia comeccedilado sua carreira como meacutedico Publicou obras sobre

diversos temas como biografia seja em obra proacutepria15 ou em parceria16 obras de caraacuteter didaacutetico17

afinal era Lente em pedagogia da Escola Normal

No entanto seria uma obra sua dedicada agrave ciecircncia e agrave tecnologia18 assuntos de vital importacircncia

para Zaluar que lhe renderia o meacuterito de entrar para o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (I H

G B )

Como viajante Augusto Emilio Zaluar escreveu a sua Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo

Paulo (1860-6119) um relato de viagem tatildeo comum no seacuteculo XIX com uma leve diferenccedila em relaccedilatildeo

a seus contemporacircneos Enquanto grande parte dos viajantes principalmente estrangeiros estava

preocupada em catalogar a natureza brasileira Zaluar realizava sua viagem a fim de catalogar os

elementos civilizadores desta naccedilatildeo por isso ela transcorreu nas proviacutencias do Rio de Janeiro e

principalmente na de Satildeo Paulo onde comeccedilavam a surgir cidades de meacutedio porte alguma induacutestria e

estradas de ferro devido sobretudo agrave cultura cafeeira

2 UMA PREacute ndash FIGURACcedilAtildeO DA ANTROPOLOGIA

No decorrer do Doutor Benignus somos apresentados ao personagem William River20 um

ldquoantropoacutelogordquo21 Este de origem inglesa passou cerca de 9 meses entre os povos indiacutegenas de Goiaacutes

15 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Emiacutelia Adelaide

Rio de Janeiro Typ do Diaacuterio de Rio de Janeiro 1871

16 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional CASTRO Eduardo

de Saacute Pereira de ZALUAR Augusto Emiacutelio Os Heroacutees brazileiros na campanha do sul em 1865

Rio de Janeiro Typ Pinheiro amp Comp 1865

17 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Liccedilotildees das cousas

animadas e inanimadas modelos e assunptos de exercicios oraes e por escripto para os

meninos de 5 a 8 annos imitaccedilatildeo para uso das escolas primarias 3 ed Rio de Janeiro Liv

classica de Alves amp comp 1893

18Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Exposiccedilatildeo Nacional Brazileira de 1875 Rio de Janeiro Typ do Globo 1875 19 Esta obra teve uma republicaccedilatildeo relativamente recente 1975 que ainda estaacute disponiacutevel Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo Paulo ( 1860-61) Satildeo Paulo Ed Itatiaia USP 1975 20 Este personagem eacute puramente fictiacutecio natildeo tendo qualquer relaccedilatildeo com o antropoacutelogo e fisiologista inglecircs W H R Rivers fundador da escola de psicologia experimental de Cambridge Criador de um meacutetodo de registrar parentesco entre outras contribuiccedilotildees teacutecnicas agrave antropologia Rivers propagava a necessidade de encarar uma cultura ou sociedade como um todo integrado (MERCIER 1986 p 109) 21 Usamos aqui o termo antropoacutelogo com o objetivo de designar o personagem Willian River Sabemos que ateacute entatildeo esta aacuterea das ciecircncias humanas natildeo se tinha constituiacutedo mas uma vez que o personagem apresenta comportamentos que viriam a serem adotados pelos antropoacutelogos (como passar meses entre os Caiapoacutes antes de escrever sua monografia) e Zaluar o designa como tal usaremos este termo para referirmos a este

para depois redigir uma monografia Em outras palavras William River estava realizando um trabalho

de campo que seria a fase primordial da investigaccedilatildeo etnograacutefica Alba Zaluar (1994) reconhece ser

esta uma proposiccedilatildeo avanccedilada ldquobasta lembrarmos que as primeiras expediccedilotildees para realizar um longo

trabalho de campo deram-se na virada do seacuteculordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374)

Alba Zaluar se refere aqui agrave coleta de materiais etnograacuteficos feita por Frans Boas por

ocasiatildeo de uma missatildeo geograacutefica agrave terra de Bafim em 1887 Seguida por uma expediccedilatildeo

zooloacutegica ao estreito de Torres em 1888 com a presenccedila de A C Haddon Foi tambeacutem em

1894 que B Spencer e F J Gillen recolheram dados por ocasiatildeo de uma viagem de estudos

zooloacutegicos na Austraacutelia (MERCIER 1986 p 75)

Para Velasco e Rada (1997) o trabalho de campo eacute o periacuteodo dedicado agrave compilaccedilatildeo e

ao registro de dados sendo mais do que uma teacutecnica Trata-se de uma situaccedilatildeo metodoloacutegica e

tambeacutem um processo em si mesmo uma sequecircncia de accedilotildees de comportamentos e de

acontecimentos cujo objetivo eacute redigir uma monografia

O primeiro trabalho de campo a enquadrar-se nesta definiccedilatildeo teria sido segundo os autores

aquele realizado por Bronislaw Malinowski (1978) em seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand nos

anos de 1917-1918

A introduccedilatildeo de ldquoArgonautas do Paciacutefico Ocidentalrdquo pode mesmo ser considerada a carta

fundacional do trabalho de campo antropoloacutegico versando como podemos identificar em seu tiacutetulo

sobre o Tema meacutetodo e objetivo da pesquisa

Eacute nesta introduccedilatildeo que Malinowski propotildee que se faccedilam diaacuterios de campo ldquoo diaacuterio

etnograacutefico feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito eacute o instrumento ideal para este

tipo de estudordquo (p 31) e os princiacutepios metodoloacutegicos que vatildeo nortear sua pesquisa

em primeiro lugar eacute loacutegico que o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente

cientiacuteficos e conhecer os valores e criteacuterios da etnografia moderna Em segundo lugar

deve o pesquisador assegurar boas condiccedilotildees de trabalho o que significa

basicamente viver mesmo entre os nativos sem depender de outros brancos

Finalmente deve ele aplicar certos meacutetodos especiais de coleta manipulaccedilatildeo e

registro da evidecircncia (MALINOWSKI 1978 p 20)

Seguindo a leitura de Alba Zaluar de que Zaluar teria realizado uma ldquoprofecia do meacutetodo

etnograacutefico que se cumpriu no seacuteculo seguinterdquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) podemos verificar que

as propostas metodoloacutegicas inseridas por Bronislaw Malinowski encontram-se de certa forma

esboccediladas na ficccedilatildeo de Zaluar Isso natildeo significa poreacutem que Zaluar tenha sido um profeta ou mesmo

realizado um trabalho antropoloacutegico de envergadura que mais tarde foi esquecido por historiadores da

antropologia Na verdade Zaluar assim como o romancista francecircs Juacutelio Verne procurava fazer

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 3: o Antropologo e o Outro

Augusto Emiacutelio Zaluar nasceu em Lisboa em 14 de fevereiro de 1826 filho de Joseacute de Oliveira

Zaluar6 major graduado que servira de comissaacuterio pagador da divisatildeo dos Voluntaacuterios Reais de El-Rei

na campanha do Rio da Prata antes da Independecircncia do Brasil Augusto Emiacutelio Zaluar matriculou-se

no 1ordm ano da Escola Meacutedico-ciruacutergica de Lisboa disposto a seguir esses estudos mas acabou por

descobrir-se mais apto agrave literatura

Colaborou com diversos jornais de Lisboa e algumas revistas entre elas Epoche Jardim das

Damas Revista Popular e outras publicaccedilotildees daquele tempo principalmente com poemas Jaacute em 1846

publica um folheto intitulado Poesias primeira parte7 Mas natildeo encontrou nos meios literaacuterios

rendimentos que lhe possibilitassem sustentar-se

Decidiu assim vir para o Brasil chegando ao Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 1850 Tratou

logo de tentar viver de meios puramente literaacuterios e jornaliacutesticos Fez parte das redaccedilotildees do Correio

Mercantil e do Diaacuterio do Rio de Janeiro e em Santos da Civilizaccedilatildeo Em 1856 naturalizou-se

brasileiro8

Aleacutem das atividades de articulista e redator Zaluar viria a se dedicar a traduccedilotildees de obras

literaacuterias para os folhetins da eacutepoca Traduziu Os moicanos de Paris para o Correio Mercantil Aleacutem da

atividade jornaliacutestica Zaluar se dedicou intensamente agrave poesia Em 1851 publica Dores e Flores9 que

teria sua continuaccedilatildeo publicada em 1862 com o tiacutetulo de Revelaccedilotildees10 Mas tambeacutem publicou um livro

de contos11 Fez apreciaccedilotildees criacuteticas para outros autores como Joaquim Inaacutecio Alvares de Azevedo12

um poema em homenagem a Pedro II13 e uma peccedila de teatro14

6 Infelizmente natildeo conseguimos identificar o nome da matildee de Zaluar 7 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Poesias Lisboa

Imprensa Nacional 1846

8 Informaccedilotildees retiradas do Portugal ndash Dicionaacuterio Histoacuterico transcrito por Manuel Amaral disponiacutevel em httpwwwarqnetptdicionaacuteriozaluarhtml acesso em 22062004 9 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Dores e flores Rio

de Janeiro Typ De F de Paula Brito 1851

10 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Revelaccedilotildees Rio

de Janeiro-Paris Livraria de B L Garnier 1862

11 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Contos da Roccedila

Rio de Janeiro Typographia do Diario do Rio de Janeiro 1868

12 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Azevedo Joaquim

Inaacutecio Alvares de Poesias Rio de Janeiro Typ Universal de Laemmert 1872 Apreciaccedilotildees criacuteticas de

Augusto Emiacutelio Zaluar Joseacute Feliciano de Castilho Barreto e Noronha Joseacute Maria Velho da Silva

13 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Os Rios A SM

Imperial o Senhor Dom Pedro Segundo [ Sl sn sd] 6p 22cm

14 Esta peccedila chama-se ldquoO cofre da tartarugardquo uma conversaccedilatildeo em um ato de 1865

Zaluar era um homem profundamente interessado em ciecircncias Naturais e Fiacutesicas

principalmente em Astronomia havia comeccedilado sua carreira como meacutedico Publicou obras sobre

diversos temas como biografia seja em obra proacutepria15 ou em parceria16 obras de caraacuteter didaacutetico17

afinal era Lente em pedagogia da Escola Normal

No entanto seria uma obra sua dedicada agrave ciecircncia e agrave tecnologia18 assuntos de vital importacircncia

para Zaluar que lhe renderia o meacuterito de entrar para o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (I H

G B )

Como viajante Augusto Emilio Zaluar escreveu a sua Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo

Paulo (1860-6119) um relato de viagem tatildeo comum no seacuteculo XIX com uma leve diferenccedila em relaccedilatildeo

a seus contemporacircneos Enquanto grande parte dos viajantes principalmente estrangeiros estava

preocupada em catalogar a natureza brasileira Zaluar realizava sua viagem a fim de catalogar os

elementos civilizadores desta naccedilatildeo por isso ela transcorreu nas proviacutencias do Rio de Janeiro e

principalmente na de Satildeo Paulo onde comeccedilavam a surgir cidades de meacutedio porte alguma induacutestria e

estradas de ferro devido sobretudo agrave cultura cafeeira

2 UMA PREacute ndash FIGURACcedilAtildeO DA ANTROPOLOGIA

No decorrer do Doutor Benignus somos apresentados ao personagem William River20 um

ldquoantropoacutelogordquo21 Este de origem inglesa passou cerca de 9 meses entre os povos indiacutegenas de Goiaacutes

15 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Emiacutelia Adelaide

Rio de Janeiro Typ do Diaacuterio de Rio de Janeiro 1871

16 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional CASTRO Eduardo

de Saacute Pereira de ZALUAR Augusto Emiacutelio Os Heroacutees brazileiros na campanha do sul em 1865

Rio de Janeiro Typ Pinheiro amp Comp 1865

17 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Liccedilotildees das cousas

animadas e inanimadas modelos e assunptos de exercicios oraes e por escripto para os

meninos de 5 a 8 annos imitaccedilatildeo para uso das escolas primarias 3 ed Rio de Janeiro Liv

classica de Alves amp comp 1893

18Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Exposiccedilatildeo Nacional Brazileira de 1875 Rio de Janeiro Typ do Globo 1875 19 Esta obra teve uma republicaccedilatildeo relativamente recente 1975 que ainda estaacute disponiacutevel Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo Paulo ( 1860-61) Satildeo Paulo Ed Itatiaia USP 1975 20 Este personagem eacute puramente fictiacutecio natildeo tendo qualquer relaccedilatildeo com o antropoacutelogo e fisiologista inglecircs W H R Rivers fundador da escola de psicologia experimental de Cambridge Criador de um meacutetodo de registrar parentesco entre outras contribuiccedilotildees teacutecnicas agrave antropologia Rivers propagava a necessidade de encarar uma cultura ou sociedade como um todo integrado (MERCIER 1986 p 109) 21 Usamos aqui o termo antropoacutelogo com o objetivo de designar o personagem Willian River Sabemos que ateacute entatildeo esta aacuterea das ciecircncias humanas natildeo se tinha constituiacutedo mas uma vez que o personagem apresenta comportamentos que viriam a serem adotados pelos antropoacutelogos (como passar meses entre os Caiapoacutes antes de escrever sua monografia) e Zaluar o designa como tal usaremos este termo para referirmos a este

para depois redigir uma monografia Em outras palavras William River estava realizando um trabalho

de campo que seria a fase primordial da investigaccedilatildeo etnograacutefica Alba Zaluar (1994) reconhece ser

esta uma proposiccedilatildeo avanccedilada ldquobasta lembrarmos que as primeiras expediccedilotildees para realizar um longo

trabalho de campo deram-se na virada do seacuteculordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374)

Alba Zaluar se refere aqui agrave coleta de materiais etnograacuteficos feita por Frans Boas por

ocasiatildeo de uma missatildeo geograacutefica agrave terra de Bafim em 1887 Seguida por uma expediccedilatildeo

zooloacutegica ao estreito de Torres em 1888 com a presenccedila de A C Haddon Foi tambeacutem em

1894 que B Spencer e F J Gillen recolheram dados por ocasiatildeo de uma viagem de estudos

zooloacutegicos na Austraacutelia (MERCIER 1986 p 75)

Para Velasco e Rada (1997) o trabalho de campo eacute o periacuteodo dedicado agrave compilaccedilatildeo e

ao registro de dados sendo mais do que uma teacutecnica Trata-se de uma situaccedilatildeo metodoloacutegica e

tambeacutem um processo em si mesmo uma sequecircncia de accedilotildees de comportamentos e de

acontecimentos cujo objetivo eacute redigir uma monografia

O primeiro trabalho de campo a enquadrar-se nesta definiccedilatildeo teria sido segundo os autores

aquele realizado por Bronislaw Malinowski (1978) em seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand nos

anos de 1917-1918

A introduccedilatildeo de ldquoArgonautas do Paciacutefico Ocidentalrdquo pode mesmo ser considerada a carta

fundacional do trabalho de campo antropoloacutegico versando como podemos identificar em seu tiacutetulo

sobre o Tema meacutetodo e objetivo da pesquisa

Eacute nesta introduccedilatildeo que Malinowski propotildee que se faccedilam diaacuterios de campo ldquoo diaacuterio

etnograacutefico feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito eacute o instrumento ideal para este

tipo de estudordquo (p 31) e os princiacutepios metodoloacutegicos que vatildeo nortear sua pesquisa

em primeiro lugar eacute loacutegico que o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente

cientiacuteficos e conhecer os valores e criteacuterios da etnografia moderna Em segundo lugar

deve o pesquisador assegurar boas condiccedilotildees de trabalho o que significa

basicamente viver mesmo entre os nativos sem depender de outros brancos

Finalmente deve ele aplicar certos meacutetodos especiais de coleta manipulaccedilatildeo e

registro da evidecircncia (MALINOWSKI 1978 p 20)

Seguindo a leitura de Alba Zaluar de que Zaluar teria realizado uma ldquoprofecia do meacutetodo

etnograacutefico que se cumpriu no seacuteculo seguinterdquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) podemos verificar que

as propostas metodoloacutegicas inseridas por Bronislaw Malinowski encontram-se de certa forma

esboccediladas na ficccedilatildeo de Zaluar Isso natildeo significa poreacutem que Zaluar tenha sido um profeta ou mesmo

realizado um trabalho antropoloacutegico de envergadura que mais tarde foi esquecido por historiadores da

antropologia Na verdade Zaluar assim como o romancista francecircs Juacutelio Verne procurava fazer

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 4: o Antropologo e o Outro

Zaluar era um homem profundamente interessado em ciecircncias Naturais e Fiacutesicas

principalmente em Astronomia havia comeccedilado sua carreira como meacutedico Publicou obras sobre

diversos temas como biografia seja em obra proacutepria15 ou em parceria16 obras de caraacuteter didaacutetico17

afinal era Lente em pedagogia da Escola Normal

No entanto seria uma obra sua dedicada agrave ciecircncia e agrave tecnologia18 assuntos de vital importacircncia

para Zaluar que lhe renderia o meacuterito de entrar para o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (I H

G B )

Como viajante Augusto Emilio Zaluar escreveu a sua Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo

Paulo (1860-6119) um relato de viagem tatildeo comum no seacuteculo XIX com uma leve diferenccedila em relaccedilatildeo

a seus contemporacircneos Enquanto grande parte dos viajantes principalmente estrangeiros estava

preocupada em catalogar a natureza brasileira Zaluar realizava sua viagem a fim de catalogar os

elementos civilizadores desta naccedilatildeo por isso ela transcorreu nas proviacutencias do Rio de Janeiro e

principalmente na de Satildeo Paulo onde comeccedilavam a surgir cidades de meacutedio porte alguma induacutestria e

estradas de ferro devido sobretudo agrave cultura cafeeira

2 UMA PREacute ndash FIGURACcedilAtildeO DA ANTROPOLOGIA

No decorrer do Doutor Benignus somos apresentados ao personagem William River20 um

ldquoantropoacutelogordquo21 Este de origem inglesa passou cerca de 9 meses entre os povos indiacutegenas de Goiaacutes

15 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Emiacutelia Adelaide

Rio de Janeiro Typ do Diaacuterio de Rio de Janeiro 1871

16 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional CASTRO Eduardo

de Saacute Pereira de ZALUAR Augusto Emiacutelio Os Heroacutees brazileiros na campanha do sul em 1865

Rio de Janeiro Typ Pinheiro amp Comp 1865

17 Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Liccedilotildees das cousas

animadas e inanimadas modelos e assunptos de exercicios oraes e por escripto para os

meninos de 5 a 8 annos imitaccedilatildeo para uso das escolas primarias 3 ed Rio de Janeiro Liv

classica de Alves amp comp 1893

18Original sem republicaccedilatildeo recente pode ser encontrado na Biblioteca Nacional Exposiccedilatildeo Nacional Brazileira de 1875 Rio de Janeiro Typ do Globo 1875 19 Esta obra teve uma republicaccedilatildeo relativamente recente 1975 que ainda estaacute disponiacutevel Peregrinaccedilatildeo pela Proviacutencia de Satildeo Paulo ( 1860-61) Satildeo Paulo Ed Itatiaia USP 1975 20 Este personagem eacute puramente fictiacutecio natildeo tendo qualquer relaccedilatildeo com o antropoacutelogo e fisiologista inglecircs W H R Rivers fundador da escola de psicologia experimental de Cambridge Criador de um meacutetodo de registrar parentesco entre outras contribuiccedilotildees teacutecnicas agrave antropologia Rivers propagava a necessidade de encarar uma cultura ou sociedade como um todo integrado (MERCIER 1986 p 109) 21 Usamos aqui o termo antropoacutelogo com o objetivo de designar o personagem Willian River Sabemos que ateacute entatildeo esta aacuterea das ciecircncias humanas natildeo se tinha constituiacutedo mas uma vez que o personagem apresenta comportamentos que viriam a serem adotados pelos antropoacutelogos (como passar meses entre os Caiapoacutes antes de escrever sua monografia) e Zaluar o designa como tal usaremos este termo para referirmos a este

para depois redigir uma monografia Em outras palavras William River estava realizando um trabalho

de campo que seria a fase primordial da investigaccedilatildeo etnograacutefica Alba Zaluar (1994) reconhece ser

esta uma proposiccedilatildeo avanccedilada ldquobasta lembrarmos que as primeiras expediccedilotildees para realizar um longo

trabalho de campo deram-se na virada do seacuteculordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374)

Alba Zaluar se refere aqui agrave coleta de materiais etnograacuteficos feita por Frans Boas por

ocasiatildeo de uma missatildeo geograacutefica agrave terra de Bafim em 1887 Seguida por uma expediccedilatildeo

zooloacutegica ao estreito de Torres em 1888 com a presenccedila de A C Haddon Foi tambeacutem em

1894 que B Spencer e F J Gillen recolheram dados por ocasiatildeo de uma viagem de estudos

zooloacutegicos na Austraacutelia (MERCIER 1986 p 75)

Para Velasco e Rada (1997) o trabalho de campo eacute o periacuteodo dedicado agrave compilaccedilatildeo e

ao registro de dados sendo mais do que uma teacutecnica Trata-se de uma situaccedilatildeo metodoloacutegica e

tambeacutem um processo em si mesmo uma sequecircncia de accedilotildees de comportamentos e de

acontecimentos cujo objetivo eacute redigir uma monografia

O primeiro trabalho de campo a enquadrar-se nesta definiccedilatildeo teria sido segundo os autores

aquele realizado por Bronislaw Malinowski (1978) em seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand nos

anos de 1917-1918

A introduccedilatildeo de ldquoArgonautas do Paciacutefico Ocidentalrdquo pode mesmo ser considerada a carta

fundacional do trabalho de campo antropoloacutegico versando como podemos identificar em seu tiacutetulo

sobre o Tema meacutetodo e objetivo da pesquisa

Eacute nesta introduccedilatildeo que Malinowski propotildee que se faccedilam diaacuterios de campo ldquoo diaacuterio

etnograacutefico feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito eacute o instrumento ideal para este

tipo de estudordquo (p 31) e os princiacutepios metodoloacutegicos que vatildeo nortear sua pesquisa

em primeiro lugar eacute loacutegico que o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente

cientiacuteficos e conhecer os valores e criteacuterios da etnografia moderna Em segundo lugar

deve o pesquisador assegurar boas condiccedilotildees de trabalho o que significa

basicamente viver mesmo entre os nativos sem depender de outros brancos

Finalmente deve ele aplicar certos meacutetodos especiais de coleta manipulaccedilatildeo e

registro da evidecircncia (MALINOWSKI 1978 p 20)

Seguindo a leitura de Alba Zaluar de que Zaluar teria realizado uma ldquoprofecia do meacutetodo

etnograacutefico que se cumpriu no seacuteculo seguinterdquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) podemos verificar que

as propostas metodoloacutegicas inseridas por Bronislaw Malinowski encontram-se de certa forma

esboccediladas na ficccedilatildeo de Zaluar Isso natildeo significa poreacutem que Zaluar tenha sido um profeta ou mesmo

realizado um trabalho antropoloacutegico de envergadura que mais tarde foi esquecido por historiadores da

antropologia Na verdade Zaluar assim como o romancista francecircs Juacutelio Verne procurava fazer

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 5: o Antropologo e o Outro

para depois redigir uma monografia Em outras palavras William River estava realizando um trabalho

de campo que seria a fase primordial da investigaccedilatildeo etnograacutefica Alba Zaluar (1994) reconhece ser

esta uma proposiccedilatildeo avanccedilada ldquobasta lembrarmos que as primeiras expediccedilotildees para realizar um longo

trabalho de campo deram-se na virada do seacuteculordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374)

Alba Zaluar se refere aqui agrave coleta de materiais etnograacuteficos feita por Frans Boas por

ocasiatildeo de uma missatildeo geograacutefica agrave terra de Bafim em 1887 Seguida por uma expediccedilatildeo

zooloacutegica ao estreito de Torres em 1888 com a presenccedila de A C Haddon Foi tambeacutem em

1894 que B Spencer e F J Gillen recolheram dados por ocasiatildeo de uma viagem de estudos

zooloacutegicos na Austraacutelia (MERCIER 1986 p 75)

Para Velasco e Rada (1997) o trabalho de campo eacute o periacuteodo dedicado agrave compilaccedilatildeo e

ao registro de dados sendo mais do que uma teacutecnica Trata-se de uma situaccedilatildeo metodoloacutegica e

tambeacutem um processo em si mesmo uma sequecircncia de accedilotildees de comportamentos e de

acontecimentos cujo objetivo eacute redigir uma monografia

O primeiro trabalho de campo a enquadrar-se nesta definiccedilatildeo teria sido segundo os autores

aquele realizado por Bronislaw Malinowski (1978) em seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand nos

anos de 1917-1918

A introduccedilatildeo de ldquoArgonautas do Paciacutefico Ocidentalrdquo pode mesmo ser considerada a carta

fundacional do trabalho de campo antropoloacutegico versando como podemos identificar em seu tiacutetulo

sobre o Tema meacutetodo e objetivo da pesquisa

Eacute nesta introduccedilatildeo que Malinowski propotildee que se faccedilam diaacuterios de campo ldquoo diaacuterio

etnograacutefico feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito eacute o instrumento ideal para este

tipo de estudordquo (p 31) e os princiacutepios metodoloacutegicos que vatildeo nortear sua pesquisa

em primeiro lugar eacute loacutegico que o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente

cientiacuteficos e conhecer os valores e criteacuterios da etnografia moderna Em segundo lugar

deve o pesquisador assegurar boas condiccedilotildees de trabalho o que significa

basicamente viver mesmo entre os nativos sem depender de outros brancos

Finalmente deve ele aplicar certos meacutetodos especiais de coleta manipulaccedilatildeo e

registro da evidecircncia (MALINOWSKI 1978 p 20)

Seguindo a leitura de Alba Zaluar de que Zaluar teria realizado uma ldquoprofecia do meacutetodo

etnograacutefico que se cumpriu no seacuteculo seguinterdquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) podemos verificar que

as propostas metodoloacutegicas inseridas por Bronislaw Malinowski encontram-se de certa forma

esboccediladas na ficccedilatildeo de Zaluar Isso natildeo significa poreacutem que Zaluar tenha sido um profeta ou mesmo

realizado um trabalho antropoloacutegico de envergadura que mais tarde foi esquecido por historiadores da

antropologia Na verdade Zaluar assim como o romancista francecircs Juacutelio Verne procurava fazer

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 6: o Antropologo e o Outro

extensas leituras da aacuterea de conhecimento do que iria tratar22 No decorrer do romance buscava

apresentar aos seus leitores os conhecimentos cientiacuteficos de sua eacutepoca a respeito dessa disciplina e

conseguia propor certas especulaccedilotildees acerca do desenvolvimento futuro da aacuterea tratada e por vezes

algumas de suas asserccedilotildees poderiam se verificar plausiacuteveis

No decorrer da narrativa Zaluar fala da necessidade de coletar expondo suas ideacuteias de

que o cientista (por vezes ele usa o termo antropoacutelogo) deve anotar suas observaccedilotildees e recolher

objetos a fim de poder melhor estudar os povos indiacutegenas quando retornar ao mundo civilizado

Ele eacute taxativo ao acusar os viajantes que percorreram o interior do Brasil de muito pouco

escrupulosos na exposiccedilatildeo de fatos e na decifraccedilatildeo de documentos trazendo enormes enganos agrave ciecircncia

devido agrave sua leviandade ao trabalhar ao sabor da aventura mais do que com a exploraccedilatildeo cientiacutefica

Eacute interessante salientarmos que no decorrer do romance O Dr Benignus Zaluar vai coletando

material tanto de cunho arqueoloacutegico quanto de cunho antropoloacutegico ao fazer contato com povos

nativos A expediccedilatildeo fictiacutecia de Benignus natildeo era muito diferente daquelas que ele criticava

Haacute uma certa tensatildeo no romance entre o Dr Benignus e William River O primeiro comanda

uma expediccedilatildeo agrave moda antiga dos viajantes e o segundo ateacute por forccedila dos acontecimentos relatados

no romance parece apontar para uma pesquisa mais cuidadosa e em contato direto com os nativos

Existiria entatildeo uma tensatildeo que acreditamos intencional jaacute verificada por Zaluar No texto

ldquoPoder e Diaacutelogo na Etnografia A iniciaccedilatildeo de Marcel Griaulerdquo de James Clifford (1998) apesar de

natildeo tomarmos conhecimento de fontes primaacuterias verificamos na Missatildeo Dakar-Djibout que atravessou

em vinte e um meses a Aacutefrica do Atlacircntico ao Mar Vermelho certa similaridade com a tensatildeo exposta

por Zaluar

Clifford relata que Marcel Griaule era um aviador da Forccedila Aeacuterea francesa que tinha interesse

em expediccedilotildees Pelo relato de Clifford podemos inferir que Griaule natildeo estava tatildeo distante do viajante

aventureiro do seacuteculo XIX Sua expediccedilatildeo natildeo era solitaacuteria como a de Malinowski ao contraacuterio levava

consigo vaacuterios assistentes chegou mesmo a pensar em projetar um barco-laboratoacuterio-de-pesquisa para

uso no rio Niacuteger Tambeacutem buscava realizar de forma intensiva a coleta de artefatos de uma aacuterea

Para Clifford (1998) ldquoa noccedilatildeo de que a etnografia era um processo de coleta dominou a Missatildeo

Dakar-Djibout com sua ecircnfase museograacuteficardquo (p193) mas o mesmo autor tambeacutem nos informa que

Griaule fazia pesquisas intensivas tendo ficado durante quase trecircs anos em cerca de dez expediccedilotildees

diferentes entre os dogon23 Fizemos esta citaccedilatildeo a fim de salientar que a mesma tensatildeo entre o relato

de viagem e a moderna antropologia poderia ser verificada ainda na primeira metade do seacuteculo XX

em um dos maiores expoentes da antropologia francesa

22 No caso especiacutefico da antropologia Zaluar cita os seguintes nomes no decorrer do texto Quatrefages Pierre-Paul Broca Charles Robert Darwin Alexander von Humboldt Eacutedourd Arnaud Isidore Hippolyte Franccedilois Lenormant Peter Wilhen Lund Couto de Magalhatildees Boucher de Perthes entre outros Verificamos vasta leitura da disciplina 23 Sociedade Africana pesquisada por Criaule

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 7: o Antropologo e o Outro

Apesar de se mostrar bastante preocupado com o aprimoramento da pesquisa ldquoantropoloacutegicardquo

Zaluar era um homem de sua eacutepoca Geertz (2002) relata que a antropologia nasce no seio da expansatildeo

imperialista do ocidente trazendo consigo uma crenccedila salvacionista nos poderes da ciecircncia

Zaluar estava impregnado desta visatildeo de mundo com uma uacutenica diferenccedila os nativos aos quais

Zaluar se referia satildeo parte constitutiva da mesma metroacutepole que ele O mesmo dilema foi enfrentado

por outros escritores brasileiros entre eles Gonccedilalves de Magalhatildees Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias e

Bernardo Guimaratildees

Todos estes homens do seacuteculo XIX os romacircnticos se apropriaram do iacutendio em seu imaginaacuterio

Segundo Jobim (1998)

o nosso romantismo elegeraacute o iacutendio como seu heroacutei entre outras coisas porque este

podia ser representado como o nativo legiacutetimo do Brasil ndash aquele que desde sempre

aqui viveu e que lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros Nada

melhor para um movimento literaacuterio nacionalista do que um heroacutei que pode ser

apresentado como legiacutetimo produto da nossa terra (p 36)

Esses escritores pretendiam tratar epicamente o nativo americano e sua natureza Zaluar

tambeacutem um escritor romacircntico natildeo deixou de enaltecer o indiacutegena mas pretendeu sobretudo

tornaacute-lo parte da sociedade civilizada Em seu romance o Doutor Benignus almejava fundar

uma colocircnia agriacutecola e industrial na ilha de Santana

Jaime River e os filhos do Dr Benignus preparam-se com estudos racionais e praacuteticos

para serem um dia grandes proprietaacuterios agriacutecolas na colocircnia da ilha de Santana sonho

dourado do saacutebio Benignus e seus amigos pois querem fazer representar ali todas as

naccedilotildees principais atraindo agrave civilizaccedilatildeo pela santa comunhatildeo do trabalho as raccedilas

ainda mergulhadas na indolecircncia e no barbarismo (Zaluar 1994 p 346)

Mesmo demonstrando apreccedilo pela pesquisa cientiacutefica e respeito agrave cultura desses povos Zaluar

natildeo deixa de enxergaacute-los como baacuterbaros indolentes a serem transformados em cidadatildeos uacuteteis ao Impeacuterio

do Brasil

Zaluar afinal natildeo estava escrevendo de um modo geral sobre povos coloniais para uma

metroacutepole aleacutem do Atlacircntico Aqui os povos nativos satildeo ainda que marginalizados parte da metroacutepole

Portanto devem trabalhar por ela

3 O antropoacutelogo no mundo do ldquooutrordquo

A antropologia seja ela ldquouma busca malinowskiana da experiecircncia uma paixatildeo straussiana

pela ordem uma ironia cultural benedictiana ou uma reafirmaccedilatildeo cultural pritchardiana - eacute acima de

tudo uma apresentaccedilatildeo do realrdquo (Geertz 2002 p 186)

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 8: o Antropologo e o Outro

Para realizar esta apresentaccedilatildeo do real a ficccedilatildeo antropoloacutegica ainda usando uma interpretaccedilatildeo

de Geertz pretende fazer de forma objetiva e cientiacutefica a ponte entre duas culturas Eacute o antropoacutelogo

por sua vez o sujeito que experimenta essa outra cultura e que a traduz de forma coerente para ser

degustada pelos membros da cultura ocidental

O historiador da antropologia James Clifford (1998) em seu trabalho ldquoSobre a Autoridade

Etnograacuteficardquo relata a constituiccedilatildeo da figura do antropoacutelogo como cientista Ele natildeo deve ser confundido

com aquele que faz o trabalho de gabinete O novo antropoacutelogo agora um cientista eacute aquele que realiza

um trabalho de campo e legitima seu texto evocando a sua experiecircncia participante

Muitas etnografias ndash por exemplo a de Colin Turnbull Forest people (1962) ndash ainda

satildeo apresentadas no modo experiencial defendendo anteriormente a qualquer

hipoacutetese de pesquisa ou meacutetodo especiacuteficos o ldquoeu estava laacuterdquo do etnoacutegrafo como

membro integrante e participante (CLIFFORD 1998 p 35)

A observaccedilatildeo participante seria nas palavras de James Clifford uma foacutermula para o contiacutenuo

vaiveacutem entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo dos acontecimentos de um lado captando o sentido de

ocorrecircncias e gestos especiacuteficos atraveacutes da empatia para entatildeo buscar situaacute-los em contextos maiores

(CLIFFORD 1998 p 33)

Calcado na observaccedilatildeo participante nasceu este novo gecircnero cientiacutefico e literaacuterio a etnografia

dependente das seguintes inovaccedilotildees institucionais e metodoloacutegicas segundo James Clifford

Primeiro a persona do pesquisador de campo foi legitimada tanto puacuteblica quanto

profissionalmente Segundo era tacitamente aceito que o etnoacutegrafo de novo estilo

cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos e mais frequumlentemente era bem

curta podia eficientemente ldquousarrdquo as liacutenguas nativas mesmo sem dominaacute-las

Terceiro a nova etnografia era marcada por uma acentuada ecircnfase no poder de

observaccedilatildeo Quarto algumas poderosas abstraccedilotildees teoacutericas prometiam auxiliar os

etnoacutegrafos acadecircmicos a ldquochegar ao cernerdquo de uma cultura mais rapidamente do que

algueacutem por exemplo que empreendesse um inventaacuterio exaustivo de costumes e

crenccedilas Quinto uma vez que a cultura vista como um todo complexo estava sempre

aleacutem do alcance numa pesquisa de curta duraccedilatildeo o novo etnoacutegrafo pretendia focalizar

tematicamente algumas instituiccedilotildees especiacuteficas Sexto os todos assim representados

tendiam a ser sincrocircnicos produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraccedilatildeo O

pesquisador de campo operando de modo intensivo poderia de forma plausiacutevel

traccedilar o perfil do que se convencionou chamar ldquopresente etnograacuteficordquo (CLIFFORD

1998 p 28-30)

Este pesquisador descrito por Clifford entretanto segundo Geertz (2002) tem seu discurso cada

vez mais difiacutecil de realizar-se Afinal

A capacidade dos antropoacutelogos de nos fazer levar a seacuterio o que dizem tem menos a

ver com uma aparecircncia factual ou com um ar de elegacircncia conceitual do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se vocecirc preferir de terem sido

penetrados por ela) - de realmente haverem de um modo ou de outro ldquoestado laacuterdquo E

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 9: o Antropologo e o Outro

eacute aiacute ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu que entra a escrita

(GEERTZ 2002 p 15)

Verificamos entatildeo que tradicionalmente o antropoacutelogo eacute aquele cientista que pretende escrever

uma etnografia e para tanto deve fazer uma observaccedilatildeo participante Enfocaremos o trauma da saiacuteda

desse cientista do mundo do ldquooutrordquo que ele pretende estudar defendendo a tese de que tal trauma jaacute

estava presente na obra de Zaluar

No decorrer do O Doutor Benignus ficamos sabendo que William River apesar de todas as

dificuldades que encontrou entre os Carajaacutes pretendia apoacutes apresentar sua monografia em um

Congresso Internacional de Geografia voltar para junto desses nativos a fim de entre outras coisas

continuar seus estudos e participar da cidade utoacutepica de Zaluar

Uma vez que para a antropoacuteloga Alba Zaluar como jaacute citamos na introduccedilatildeo deste artigo o

personagem William River representaria uma espeacutecie de ldquopreacute-figuraccedilatildeo da situaccedilatildeo vivida por muitos

etnoacutegrafos que natildeo sabem como sair do mundo do outrordquo (ZALUAR Alba 1994 p 374) e levando-

se em consideraccedilatildeo que o termo prefiguraccedilatildeo pode ser definido como ldquoAto de prefigurar representaccedilatildeo

de coisa futura Representar antecipadamente coisa que ainda natildeo existe mas que pode existirrdquo

(FERNANDES 2005 p [SP] ) ao utilizarmos entatildeo a palavra prefiguraccedilatildeo como definida no

dicionaacuterio citado queremos enfatizar de acordo com Alba Zaluar um certo exerciacutecio de antecipaccedilatildeo

por parte de Augusto Emiacutelio Zaluar

O natildeo sair do mundo do ldquooutrordquo ou o natildeo saber fazecirc-lo poderia vir a ser o futuro da

antropologia Recorrendo ao antropoacutelogo Nigel Barley acreditamos que podemos defender tal tese pois

as afirmaccedilotildees de Zaluar tornaram-se realidade

Nigel Barley (2005) autor de ldquoEl antropoacutelogo Inocenterdquo estabelece algumas certezas

que diz serem comuns na vida universitaacuteria ainda que totalmente arbitraacuterias Uma dessas

certezas arbitraacuterias seria a de que o bom estudante se tornaria um bom investigador de que um

bom investigador se tornaria um bom escritor de ensaios e que por fim um bom escritor de

ensaios desejaria fazer trabalho de campo

Para o autor estas satildeo deduccedilotildees sem qualquer fundamento Afinal alguns estudiosos tornam-

se investigadores mediacuteocres alguns ensaiacutestas que estatildeo constantemente publicando nas melhores

revistas de sua aacuterea satildeo professores decepcionantes Ele mesmo faz parte de uma nova geraccedilatildeo de

antropoacutelogos que considera o trabalho de campo um tanto sobrevalorizado Assim teria feito um

doutorado tendo por base horas de pesquisa em bibliotecas Mas apoacutes ensinar durante vaacuterios anos

Barley optou por fazer um trabalho de campo ainda que para ele o trabalho de campo parecesse ldquouna

de esas tareas desagradables como el servicio militar que habiacutea que sufrir en silencio o si por el

contrario se trataba de uno de los lsquoprivilegiosrsquo de la profesioacuten por el cual habiacutea que estar agradecidordquo

(BARLEY 2005 p 18)

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 10: o Antropologo e o Outro

Seria um recurso para escapar da docecircncia e tutoria um privileacutegio da profissatildeo que durante o

resto da vida coloca agrave matildeo um repertoacuterio de anedotas etnograacuteficas para fazer calar os alunos e entreter

as pessoas Ou quem sabe uma maneira de adquirir uma aura que permite fazer parte lsquodos santos da

igreja britacircnica dos excecircntricosrsquo nas palavras do autor

Y sospecho que haacute sido la utilizacioacuten de tales latiguillos lo que haacute dotado de esa valiosa

aura de excentridad a los grises pobladores de los departamentos de antropologiacutea Los

antropoacutelogos han tenido suerte en lo que se refiere a su imagem puacuteblica Es notorio

que los socioacutelogos son avinagrados e izquierdistas proveedores de desatinos o

perogrulladas Pero los antropoacutelogos se han situado a los pies de santos hinduacutees han

visto dioses extrantildeos presenciado ritos repugnantes y haciendo gala de un audacia

suprema han ido a donde no habiacutea ido ninguacuten hombre Estaacuten pues rodeados de un

halo de santidad y divina ociosidad Son santos de la iglesia britaacutenica de la

excentricidad por meacuterito proprio (BARLEY 2005 p 19-20)

Continuando sua linha de argumentaccedilatildeo o autor coloca em xeque o trabalho de campo como

simples coleta de material ldquocoleccionar mariposasrdquo pois o que importa natildeo eacute o volume de material

etnograacutefico recolhido e descrito mas aquilo que se faz com esse material

Assim as justificativas para a investigaccedilatildeo de campo seriam iguais agravequelas dadas para

qualquer atividade acadecircmica natildeo residindo em uma contribuiccedilatildeo agrave coletividade mas em uma

satisfaccedilatildeo egoiacutesta Para sustentar suas teses Barley decide partilhar com o leitor sua proacutepria

experiecircncia de campo tendo por objetivo

puede servir para reequilibrar la balanza y demostrar a los estudiantes y ojalaacute

tambieacuten a los no antropoacutelogos que la monografia acabada guarda relacioacuten con los

lsquosangrantes pedazosrsquo de la cruda rea que se basa asiacute como para transmitir algo de la

experiencia del trabajo de campo a los que no han pasado por ella (BARLEY 2005

p 21)

Barley continua sua argumentaccedilatildeo sugerindo que

Es una ficcioacuten amable pensar que un deseo irrefrenable de vivir entre un iacutenico pueblo

de este planeta que se considera depositario de un secreto de gran transcendencia para

el resto de la raza humana consume a los antropoacutelogos que sugerir que trabajen en

outro lugar es como sugerir que podiacutean haberse casado con alguien que no fuera su

insustituible compantildeero espiritual (BARLEY 2005 p 21)

Uma vez natildeo estando comprometido com tal visatildeo da etnografia Barley pretendeu

escolher para sua pesquisa o povo de uma perspectiva mais praacutetica Devido a dificuldades de

ordem material e principalmente poliacutetica desistiu de pesquisar em Timor Leste (entatildeo colocircnia

da Indoneacutesia) e em Fernando Poo (sob regime ditatorial) optando pelos dowayos habitantes

das montanhas da Repuacuteblica dos Camarotildees (Aacutefrica)

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 11: o Antropologo e o Outro

Entretanto Barley relata que antes mesmo de chegar ao local da pesquisa teve de passar por

vaacuterios contratempos entre eles o processo de convencer o Comitecirc responsaacutevel pela bolsa de pesquisa

sobre a validade de seu trabalho de campo Ainda que Barley defendesse sua pesquisa como interessante

nova e importante para o desenvolvimento da antropologia sabia que esta era apenas normal seguindo

o padratildeo de diversas pesquisas anteriores

Apoacutes ter sua pesquisa aprovada Barley relata suas dificuldades em conseguir um visto para

desenvolver seu trabalho na Repuacuteblica dos Camarotildees

La principal dificultad reside aquiacute igual que en otras aacutereas en explicar por queacute el

gobierno britaacutenico considera provechoso pagar a sus suacutebditos joacutevenes cantidades

bastante importantes de dinero para que se vayan a zonas desoladas del mundo con el

supuesto cometido de estudiar pueblos que en el paiacutes son famosos por su ignorancia

y atraso iquest Coacutemo era posible que semejantes estudios fueran rentables

Evidentemente habiacutea alguacuten tipo de propoacutesito oculto El espionaje la buacutesqueda de

yacimentos minerales o el contrabando habiacutean de ser el verdadero motivordquo

(BARLEY 2005 p 28)

O tratamento dispensado pela empresa aeacuterea local ldquoAir Cameroun consideraba a todos los

clientes una detestable molestiardquo (BARLEY 2005 p 26) a vacina que teve de tomar contra a febre

amarela e que lhe provocara tonturas e vocircmitos as dificuldades em comprar materiais adequados para

a pesquisa jaacute que a alfacircndega criava imensos problemas com as importaccedilotildees inglesas foram essas as

dificuldades de Barley

Seu relato prossegue descrevendo a monotonia de estar em uma populaccedilatildeo tipicamente rural

afinal havia sido criado na moderna sociedade industrial cheia de estiacutemulos Foi ateacute mesmo chamado

para ser mediador em disputas entre empregados (oriundos da etnia dowayos) e seus patrotildees

Apesar destes percalccedilos Barley apresenta uma poderosa etnografia oferecendo

minuciosas informaccedilotildees sobre cerimocircnias linguagem comida construccedilatildeo de choccedilas

circuncisatildeo e fertilidade Tambeacutem expotildee os processos de coleta e construccedilatildeo do objeto de

estudo inclusive suas incertezas

Barley relativiza os dowayos em relaccedilatildeo agraves etnias e aos grupos vizinhos (fulanis koma negros

urbanizados cristatildeos muccedilulmanos funcionaacuterios e cooperantes ocidentais) tratando suas experiecircncias

ndash tropeccedilos linguumliacutesticos extraccedilatildeo dentaacuteria aventuras na medicina indiacutegena ndash sem idealizaccedilotildees

Por fim ao retornar agrave Inglaterra com 18 quilos a menos e com suas crenccedilas

fundamentais abaladas sentindo que a trabalhosa instalaccedilatildeo no paiacutes Dowayo foi um

empreendimento insensato ele tem a seguinte conversa com um amigo antropoacutelogo

- Ah ya has vuelto

- Siacute

- iquest Haacute sido aburrido

- Siacute

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 12: o Antropologo e o Outro

- Te has puesto muy enfermo

- Siacute

- iquest Has traiacutedo unas notas a las que no encuentras ni pies

ni cabeza y te has dado cuenta de que te olvidastes de hacer

todas las preguntas importantes

- Siacute

- iquest Cuaacutendo piensas volver

Me reiacute deacutebilmente Sin embargo seis meses maacutes tarde

regresaba al paiacutes Dowayo (BARLEY 2005 p 234)

O relato de Barley tem certas similaridades com a descriccedilatildeo feita por Zaluar da vida do

personagem William River A princiacutepio eacute o estranho elo que liga o antropoacutelogo ao ldquoseu povordquo Mesmo

com todas as dificuldades que Barley e River24 enfrentam almejam apenas umas pequenas feacuterias no

mundo ldquocivilizadordquo para entatildeo retornar ao ldquoseu povordquo25

Esta volta ao ldquoseu povordquo presente na obra de Barley e de Zaluar ainda que apenas preacute-

figurada natildeo eacute somente uma curiosidade psicoloacutegica inerente ao antropoacutelogo mas o resultado

de um questionamento epistemoloacutegico e discursivo que pode ser a via de fortalecimento do

trabalho de campo

Jaacute salientamos neste trabalho que a antropologia teve como seu principal alicerce e garantia de

objetividade cientiacutefica o trabalho de campo A etnografia seria assim o equivalente agrave experiecircncia

repetida em laboratoacuterio nas ciecircncias exatas Entretanto criacuteticas foram feitas tanto por antropoacutelogos

hermenecircuticos (Clifford Gerrtz) quanto por antropoacutelogos poacutes-modernos (James Clifford)

Gerrtz apoiando-se em uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e na semioacutetica propotildee que a uacutenica

maneira de descrever os fatos culturais eacute precisamente interpretando-os uma vez que os

fenocircmenos culturais satildeo sinais mensagens ou textos Podemos apenas interpretar seu

significado

Tal construccedilatildeo em tais moldes agora que as suposiccedilotildees simplistas sobre a convergecircncia

de interesse entre povos (sexos raccedilas classes cultos etc) de poder desigual foram

historicamente rejeitadas e que a proacutepria possibilidade da descriccedilatildeo absoluta foi

questionada natildeo parece nem de longe uma empreitada tatildeo inambiacutegua quanto na

eacutepoca em que a hierarquia estava instaurada e a linguagem natildeo tinha peso As

assimetrias morais atraveacutes das quais trabalha a etnografia bem como a complexidade

discursiva em que ela funciona tornam indefensaacutevel qualquer tentativa de retrataacute-la

como mais do que a representaccedilatildeo de um tipo de vida nas categorias de outro

(GEERTZ 2002 p 188)

24 Vamos nos referir aqui a William River de forma bastante literal Quase como a um personagem

real

25 Segundo James Clifford ldquoa forma possessiva lsquomeu povorsquo foi ateacute recentemente bastante usada nos ciacuterculos antropoloacutegicos mas a frase na verdade significa lsquominha experiecircnciarsquordquo (CLIFFORD 1998 p 38) Eacute neste sentido que usamos a expressatildeo neste trabalho

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 13: o Antropologo e o Outro

James Clifford por sua vez participou do movimento empreendido por jovens antropoacutelogos

americanos no seminaacuterio de Santa Feacute (Novo Meacutexico EUA abril de 1984) de certa forma todos eles

inspirados por Geertz ainda que fazendo criacuteticas a este26 Clifford e os demais antropoacutelogos presentes

nesse seminaacuterio identificavam uma crise no campo da antropologia ateacute entatildeo segundo eles muito

positivista

Sua intenccedilatildeo era partindo de uma postura claramente impregnada da criacutetica poacutes-estruturalista

ou poacutes-moderna redefinir a antropologia a partir de criteacuterios esteacuteticos recorrendo a anaacutelises

paraliteraacuterias e filosoacuteficas Esse movimento teve seu manifesto publicado na forma do livro Writing

Culture27 publicado em 198628

Os autores presentes no livro satildeo os antropoacutelogos James Clifford Mary Louisse Pratt Vincent

Crapanzano Renato Rosaldo Stephen A Tyler Talal Asad George E Marcus Michel M J Fischer e

Paul Rabinow Aleacutem de ser o organizador e um dos ensaiacutestas James Clifford eacute tambeacutem responsaacutevel pela

introduccedilatildeo da obra

Destacamos um trecho de sua introduccedilatildeo

Los ensayos que aquiacute se contienen hacen bien expliacutecito un aserto la ideologizacioacuten

en el anaacutelisis haacute claudicado haacute sucumbido Estos ensayos son el resultado de uma

observacioacuten de una visioacuten a la contra uacutenica manera posible de componer un coacutedigo

fiable de representaciones Se assume en este libro que lo poeacutetico y lo poliacutetico son

cosas inseparables y que lo cientiacutefico estaacute impliacutecito en ello no en sus maacutergenes O

sea como en todo processo histoacuterico y linguumliacutestico Asumen estes ensayos que las

interpretaciones puramente literarias son propicias a la experimentacioacuten a la vez que

rigurosamente eacuteticas El texto en gestacioacuten la retoacuterica incluso arrojan buena luz para

construir siquiera sea artificialmente una sucesioacuten de eventos culturales Ello mina

ciertas resoluciones que propenden al autoritarismo interpretativo ello hace maacutes

transparente el sustrato cultural que se contempla Asi se evita en definitiva que la

interpretacioacuten etnograacutefica sea maacutes que una representacioacuten de culturas una

reinvencioacuten de las mismas (veacutease a Wagner) Por todo ello podemos decir que el

problema no radica en la interpretacioacuten de unos textos literarios en su sentido maacutes

tradicional La mayoria de estos ensayos apoyados en un empirismo constatable se

refieren a textos elaborados en contextos de poder de resistencia de tensiones

institucionales y espoleado todo ello por una clara intencioacuten renovadora

(CLIFFORD 1991 p 26-27)

Os escritos etnograacuteficos teriam de passar a combinar descriccedilotildees com interpretaccedilotildees nos

quais o etnoacutegrafo usa da interpretaccedilatildeo para associar o pensamento do nativo aos seus meios de

expressatildeo e tornaacute-los compreensiacuteveis para o leitor O resultado parece ser uma reduccedilatildeo do papel

26 Segundo Sena ldquoeles natildeo satildeo um grupo eles natildeo formam uma escola eles natildeo seguem modelos eles natildeo propotildeem modelos eles natildeo acreditam em teoria geral eles natildeo suportam o positivismo eles natildeo satildeo convencidos pela transparecircncia do realismo etnograacutefico eles natildeo satildeo enganados pelo virtuosismo interpretativo eles natildeo reivindicam uma genealogia na tradiccedilatildeo da disciplina eles se reuniram em Santa Feacute para matar o pai (Geertz)rdquo (SENA 1987 p 3) 27 O tiacutetulo completo eacute Writing Culture The Poetics and Politics of Ethnography 28 Para confecccedilatildeo deste trabalho usamos a seguinte ediccedilatildeo em liacutengua espanhola CLIFFORD James MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 14: o Antropologo e o Outro

do antropoacutelogo ao de escritor e da crise epistemoloacutegica e poliacutetica da disciplina a uma questatildeo

de estilo

Para Sena (1987) estes antropoacutelogos pretendiam sim destacar-se de seus colegas

Afinal a inovaccedilatildeo aleacutem de garantir a sobrevivecircncia intelectual garantia tambeacutem a econocircmica

jaacute que o mercado de trabalho estava saturado de relatos etnograacuteficos

Apoacutes os escritos de Clifford Geertz e James Clifford com suas criacuteticas ao ldquotrabalho de

campordquo este teria realmente se esgotado a atividade antropoloacutegica inovadora passaria a ser a

meta-antropologia Acreditamos que natildeo

Ainda que nos faltem maiores leituras e possivelmente experiecircncia etnograacutefica o que

desponta para noacutes eacute um aumento da complexidade do trabalho de campo Pensamos que para

fazer antropologia precisamos ter acesso a dados e que em muitos casos poderemos recorrer a

bibliotecas ou mesmo agrave rede mundial de computadores (Internet) O trabalho de campo com

todas as criacuteticas feitas por hermenecircuticos e poacutes-modernos parece ainda ser a melhor forma de

colher dados natildeo publicados

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As criacuteticas feitas aos textos etnograacuteficos e as discussotildees teoacutericas originadas destas servem ao

nosso ver natildeo para invalidar o trabalho do etnoacutegrafo mas para sobrevalorizaacute-lo

Na verdade os fatos sociais religiosos tecnoloacutegicos etc coletados pelo antropoacutelogo no

trabalho de campo satildeo o resultado de processos sociais institucionais e discursivos de construccedilatildeo

teoacuterica realizada pelo antropoacutelogo que de qualquer forma deve ter o trabalho de colhecirc-los O

questionamento acerca destes dados natildeo deve ser pretexto para substituir o trabalho de campo pela pura

anaacutelise teoacuterica Ao contraacuterio aumenta a necessidade de cada vez mais fortalecer seu trabalho com mais

dados voltando-se novamente ao campo de pesquisa e possivelmente voltar-se outra vez e quem sabe

ateacute mesmo uma outra vez Redundacircncia agrave parte parece ser cada vez mais imperativo o trabalho de colher

dados e analisaacute-los e mais tarde voltar ao campo para comprovaccedilatildeo da anaacutelise para entatildeo fazer uma

nova anaacutelise e assim por diante

Sair do mundo do outro dificuldade enfrentada pelo personagem de Zaluar e possivelmente

por dezenas de antropoacutelogos de carne e osso parece natildeo ser mais uma dificuldade a ser suplantada mas

uma postura a imitar William River mostrou-se ao natildeo conseguir evitar seu retorno ao ldquoseu povordquo

coerentemente um antropoacutelogo preparado para o seacuteculo XXI O trabalho de Barley eacute um bom exemplo

do fortalecimento epistemoloacutegico e discursivo que o trabalho de campo pode ganhar com esta postura

Afinal ldquoo autor agora natildeo tem apenas que construir um texto para ser feliz mas deve

ainda estar consciente do processo de construccedilatildeo de seu proacuteprio lugar no texto dos artifiacutecios

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994

Page 15: o Antropologo e o Outro

retoacutericos usados e dos efeitos conseguidosrdquo (SENA 1987 Advertecircncia ao Leitor Espertinho I

[S P])

Referecircncias Bibliograacuteficas

BARLEY Nigel El antropoacutelogo inocente Trad de Mordf Joseacute Rodellar EspanhaBarcelona

Editora Anagrama 2005 (20ordm ediccedilatildeo)

CLIFFORD James A Experiecircncia Etnograacutefica antropologia e literatura no seacuteculo XX Org Joseacute

Reginaldo Santos Gonccedilalves Rio de Janeiro Editora UFRJ 1998

________________ MARCUS George E Retoacutericas de la Antropologia Trad Joseacute Luis Moreno-

Ruiacutez Espanha Madrid Ediciones Juacutecar Universidad 1991 (Seacuterie Antropologiacutea)

FERNANDES Francisco LUFT Celso Pedro GUIMARAtildeES F Marques Dicionaacuterio

Brasileiro Globo Portuguecircs 41ordm ed Satildeo Paulo Editora Globo 1995

GEERTZ Clifford O Saber Local Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa Trad

Vera Mello Joscelune Petroacutepolis Vozes 1997

______________ A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fnny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

Editores 1978

_______________ OBRAS E VIDAS O antropoacutelogo como autor Trad Vera Ribeiro Rio

de Janeiro Editora UFRJ 2002

JOBIM Joseacute Luiacutes Indianismo Literaacuterio na Cultura do Romantismo Rev Let Satildeo Paulo 373835-

48 1998

MALINOWSKI Bronislaw Argonautas do Pacifico Ocidental Trad Anton P Carr e Liacutegia

Aparecida Cardieri 2ordm ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978 (Coleccedilatildeo Pensadores)

MERCIER Paul Histoacuteria da Antropologia Trad Manuela Torres Lisboa Teorema 1986

SENA Custodia Selma Em favor da tradiccedilatildeo ou falar eacute faacutecil fazer eacute que satildeo elas Brasiacutelia

Universidade de Brasiacutelia Departamento de Antropologia 1987 (Seacuterie Antropologia nordm 63)

VELASCO Honorio RADA Aacutengel Diaz de La loacutegica de la investigacioacuten etnograacutefica Un modelo

de trabajo para etnoacutegrafos de la escuela EspanhaMadrid Editorial Trotta 1997

ZALUAR ALBA Ameacuterica Redescoberta O Civilizado Cientista e seus outros In Augusto Emiacutelio

Zaluar O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994 pp 371-376

ZALUAR Augusto Emiacutelio O Doutor Benignus Rio de Janeiro Editora UFRJ 1994