nietzsche espinosa

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141 NIETZSCHE E ESPINOSA: FUNDAMENTOS PARA UMA TERAPÊUTICA DOS AFETOS Adriana Belmonte Moreira * Resumo: Neste artigo, partindo de uma análise dos conceitos de corpo e potência presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa, objetivamos mostrar que ambos os filósofos, além de fazerem uma crítica aos valores transcendentes, afirmam a necessidade de criação de novos valores e mostram que para que uma ética afirmativa da vida seja possível há, antes de tudo, a necessidade do aumento de potência da totalidade corpo/ mente, obtido através de uma terapêutica fundada na dinâmica afetiva. Considerando que tanto Nietzsche quanto Espinosa recorrem ao mesmo afeto, o da alegria, para a cura da impotência e apresentam uma terapêutica de caráter estritamente pessoal, recusando a criação de uma ética normativa, concluímos que uma terapêutica que objetiva realmente promover saúde deve ser um processo essencialmente afetivo, pautado em escolhas e ações salutares próprias, e não uma moralização dos atos da vida cotidiana, operada pelos manuais de psicologia do comportamento e de higiene coletiva. Palavras-chave: corpo – saúde - potência - terapêutica – afetividade Neste artigo realizaremos uma análise dos conceitos de corpo e potência presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa, de modo a desenvolver a ideia de uma terapêutica fundada na dinâmica afetiva, porque acreditamos que ambos os filósofos, além de fazerem uma crítica aos valores transcendentes e afirmarem a necessidade de criação de novos valores 1 , também mostram que para que outra ética seja possível há, antes de tudo, a necessidade do aumento de potência da totalidade corpo/mente, obtido * Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

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    NIETzSchE E ESPINOSA: fUNdAMENTOS PARA UMA TERAPUTIcA dOS AfETOS

    adriana belmonte moreira*

    Resumo: Neste artigo, partindo de uma anlise dos conceitos de corpo e potncia presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa, objetivamos mostrar que ambos os

    filsofos, alm de fazerem uma crtica aos valores transcendentes, afirmam a necessidade

    de criao de novos valores e mostram que para que uma tica afirmativa da vida seja

    possvel h, antes de tudo, a necessidade do aumento de potncia da totalidade corpo/mente, obtido atravs de uma teraputica fundada na dinmica afetiva. Considerando que tanto Nietzsche quanto Espinosa recorrem ao mesmo afeto, o da alegria, para a cura da impotncia e apresentam uma teraputica de carter estritamente pessoal, recusando a criao de uma tica normativa, conclumos que uma teraputica que objetiva realmente promover sade deve ser um processo essencialmente afetivo, pautado em escolhas e aes salutares prprias, e no uma moralizao dos atos da vida cotidiana, operada pelos manuais de psicologia do comportamento e de higiene coletiva.Palavras-chave: corpo sade - potncia - teraputica afetividade

    Neste artigo realizaremos uma anlise dos conceitos de corpo e potncia presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa, de modo a

    desenvolver a ideia de uma teraputica fundada na dinmica afetiva, porque acreditamos que ambos os filsofos, alm de fazerem uma crtica aos valores

    transcendentes e afirmarem a necessidade de criao de novos valores1, tambm mostram que para que outra tica seja possvel h, antes de tudo, a necessidade do aumento de potncia da totalidade corpo/mente, obtido

    * Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH/USP).

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    atravs de uma teraputica dos afetos. Em nosso percurso, apresentaremos alguns pontos de convergncia e de divergncia existentes entre os filsofos2, sem deixar de supor a significativa influncia do pensamento de Espinosa na

    filosofia nietzschiana. Recorreremos fundamentalmente tica de Espinosa e aos textos de Nietzsche do chamado ltimo perodo de sua produo filosfica (1883-1888), includos os fragmentos pstumos3. Isto porque nesses escritos Nietzsche apresenta o corpo como uma estrutura social de impulsos e afetos que lutam incessantemente para aumentar sua potncia, subjugando outros conjuntos afetivos. A seu ver, mesmo a alma deve ser remetida a este registro, j que no se distingue substancialmente do corpo. J Espinosa, na tica, apresenta o corpo como uma estrutura complexa composta de outros corpos, e a mente como idia do corpo e idia da idia do corpo. Mente e corpo definidos como modos finitos dos atributos

    de uma nica substncia, Deus. Modos estes que, em sua essncia, tambm podem alcanar diferentes graus de potncia. Assim, embora um aposte num monismo da substncia, em seus atributos e modos, e o outro recuse qualquer perspectiva substancialista (seja monista ou dualista), tanto Espinosa quanto Nietzsche apresentam o corpo e a alma ou mente como uma totalidade afetiva, entendida como uma multiplicidade compondo um todo, e nos fazem pensar a sade como um processo contnuo de busca por aumento da potncia de ao deste conjunto, que pode ser facilitado por uma teraputica fundada na forma como se processa a dinmica de nossos afetos.

    Com efeito, segundo a metafsica espinosana, o corpo uma modificao, um modo, do atributo divino extenso, que, com a mente,

    modo do atributo pensamento, compe a natureza humana. Na tica, Espinosa apresenta o corpo como uma coisa singular, um indivduo complexo, porque composto de outros corpos, que juntos concorrem para uma mesma ao. Cito: se vrios indivduos contribuem para uma nica ao, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de

    um nico efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma nica coisa singular (Espinosa 15, EII Def.7). Ou seja, o que garante que este composto constitua uma singularidade , primeiro, que o conjunto das partes seja a causa nica de um efeito; e, segundo, que haja um equilbrio

    interno na proporo de movimento e repouso das partes que o compe, j que sua conservao depende desta proporcionalidade. J a mente, Espinosa a define como idia do corpo e idia da idia do corpo, isto

    , ela conscincia das afeces do corpo, das alteraes pelas quais ele passa para conservar seu equilbrio, alm de ser conscincia de si mesma. E, embora no haja uma relao causal entre mente e corpo, j que nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso (Cf. Espinosa 15, EIII P2), h uma

    simultaneidade (ou paralelismo) do que ocorre em ambos, de modo que a ordem ou encadeamento do que ocorre no corpo simultnea ordem do que ocorre na mente, no significando com isto que haja uma relao

    causal a posta (Cf. Espinosa 15, EIII SP2). Assim, na medida em que o

    corpo se esfora para conservar a proporo de movimento e repouso de seus constituintes, a mente tambm procura perseverar em seu ser, atravs das idias que produz (Cf. Espinosa 15, EIII SP9). O conatus, presente tanto na mente quanto no corpo (seja como vontade, apetite ou desejo), seria justamente este esforo pelo qual cada coisa procura perseverar na existncia. E esta potncia de persistncia no ser, como parte da potncia infinita de Deus, no seria seno a essncia atual da prpria coisa (Cf.

    Espinosa 15, EIII DP7).Com isso, atravs da noo de conatus, Espinosa identifica

    essncia e potncia de existir, agir e pensar; definindo tambm a potncia

    do modo como um certo poder de afetar e ser afetado. Enquanto a essncia permanece a mesma, a potncia varia negativa ou positivamente, pois modulada pelas afeces das quais sofre o corpo no encontro com outros

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    corpos e pela conscincia destas afeces na mente, ou seja, pelas idias que produz. O afeto seria ento, simultaneamente, afeco e idia desta afeco: Por afeto compreendo as afeces do corpo, pelas quais sua potncia de agir aumentada ou diminuda, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idias dessas afeces (Espinosa 15, EIII Def.3). Se as afeces produzem alegria, nossa potncia de agir aumentada, caso contrrio, se so causa de tristeza, ela diminui. Isto , a alegria e a tristeza so afetos passivos ou paixes pelas quais a potncia de cada indivduo, ou o esforo de perseverar em seu ser, aumentado ou diminudo. Portanto, a alegria e a tristeza so o prprio desejo ou apetite, enquanto ele aumentado ou diminudo, favorecido ou reduzido por causas exteriores (Espinosa 15, EIII DP57). Ento, podemos dizer que Espinosa apresenta a totalidade corpo/mente como esta potncia imanente (ou conatus), capaz de variao positiva e negativa, aumento ou diminuio, traduzida pelos afetos alegres ou tristes. A alegria, ento, seria o sentimento que experimentamos quando nossa potncia de agir aumenta, e a tristeza o efeito de um encontro com outros corpos, indivduos ou coisas, que diminui nossa potncia de agir. Em resumo, para Espinosa, todos ns somos dotados de uma potncia de agir, sendo que na interao que temos com o mundo encontramos coisas que favorecem ou criam obstculos ao pleno exerccio dela. Se o que nos afeta causa de alegria, fazemos um bom encontro (occursus), e isto satisfaz nosso desejo (no como desejo de alguma coisa, como se esta ao tivesse uma finalidade determinada, mas como a afirmao da prpria

    potncia ou fora de existir), caso contrrio, fazemos um mau encontro, se o que nos afeta nos entristece e frustra o nosso desejo ou nossa potncia de agir ou fora de existir (Cf. Espinosa 15, EIII SP39).

    Em Nietzsche, como em Espinosa, o corpo definido como

    uma multiplicidade, mas, para o filsofo alemo, uma multiplicidade

    disposta hierarquicamente, em constante luta por intensificao de

    potncia, e no por conservao como equilbrio esttico de suas partes constituintes. Em oposio conservao, Nietzsche prope a superao como o carter prprio da vida, ela mesma identificada vontade de

    potncia4. Da, sua crtica idia espinosana de esforo do vivente para autoconservao: Antes de tudo, o vivente quer dar vazo a sua fora - a prpria vida vontade de potncia -: a autoconservao somente uma das conseqncias indiretas e mais freqentes disso. - Em suma: aqui, como por toda parte, cuidado com princpios teleolgicos suprfluos! - tais como

    o impulso de autoconservao (que se deve inconseqncia de Espinosa -). Assim, com efeito, o ordena o mtodo, que tem de ser essencialmente parcimnia de princpios (Nietzsche 8, JGB/BM, 13). Com efeito, por ser essencialmente caracterizado por relaes de domnio, o corpo pode ser visto sob o prisma da vontade de potncia, j que cada elemento que o constitui luta indefinidamente com os demais para ganhar fora e

    subjugar os outros que, igualmente, querendo vir-a-ser mais fortes, lhe opem resistncia. Mas, alm da noo de vontade de potncia, Nietzsche tambm usa os termos impulso (Trieb), afeto (Affekt) e, por vezes, instinto (Instinkt), de modo intercambivel, quando quer tratar dos elementos que compem a totalidade corpo/alma. Em Para Alm de Bem e Mal, ele define a alma como uma estrutura social de impulsos e afetos (Cf. Nietzsche 10, JGB/BM 12), e o corpo como uma estrutura social de muitas almas

    (Nietzsche 10, JGB/BM 19). Com isso, ele evidencia que todo corpo quer, sente e pensa; e, a pequena razo, que chamamos alma ou esprito,

    teria apenas um carter instrumental, seria apenas um brinquedo desta grande razo que o corpo: Todo eu sou corpo e nada mais; a alma no

    mais que uma palavra que designa uma parte do corpo (...) Essa pequena razo que tu chamas de esprito, meu irmo, um pequeno instrumento do teu corpo e um brinquedo da tua grande razo (Nietzsche 7, Za/ZA, Dos desprezadores do corpo). Logo, o corpo, assim com a alma que no

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    seria mais do que uma parte dele, considerado uma estrutura social de impulsos ou afetos que, longe de buscarem um equilbrio interno, esto em luta constante por aumento de potncia, em analogia a uma comunidade onde so estabelecidos processos de dominao, relaes de mando e obedincia (Cf. Nietzsche 10, JGB/BM 19).

    Ademais, na filosofia nietzschiana as idias de potncia, superao,

    criao, sade e alegria andam juntas. Se em Espinosa, a alegria depende dos bons encontros e est relacionada ao aumento da nossa potncia de agir, em Nietzsche, a felicidade tambm est relacionada ao sentimento de uma potncia que se eleva devido a uma resistncia superada: O que a felicidade? O sentimento de que uma potncia cresce, de que uma resistncia foi vencida (Cf. Nietzsche 6, AC/AC 2). Relacionada alegria,

    a elevao da potncia do corpo encontra-se associada ao simbolismo da dana5, pois, metaforicamente, Nietzsche apresenta a luta entre os afetos como um ensaio de novas coreografias prprio da vida. Se a potncia

    do corpo est elevada porque a dana dos afetos est caracterizada pelo dinamismo e pela mudana de formas, se est diminuda, porque os conjuntos afetivos encontram-se desorganizados, no conseguindo compor um bailado harmonioso. No primeiro caso, quando o corpo est mais ativo em sua dana, ele experimenta diferentes pensamentos, sentimentos e quereres e se recria incessantemente; no segundo, quando

    a dana arrefece, ele tende estagnao de suas formas de querer, sentir e pensar, o que diminui sua potncia criativa. Como este conjunto afetivo est constantemente se alterando, a elevao de potncia passa a ser uma condio que continuamente se procura, j que os processos de diminuio de potncia ou descompasso so inevitveis. Por este vis, a sade seria a capacidade de manter a dana dos afetos sempre vivaz, atravs da criao de diferentes coreografias vitais. Mesmo que a dana arrefea por um tempo,

    que o bailado no seja harmonioso, o que importa que ela continue ativa e supere os perodos de descompasso.

    em vista disso que em A Gaia Cincia Nietzsche define a grande sade como uma sade mais alegre que supera a doena, em oposio pequena sade, que no a suporta. Entendida como uma sade que incorpora perodos de declnio, de dcadence, a grande sade definida como uma sade que constantemente se conquista e no se tem permanentemente, por isso mesmo ela uma sade mais forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerria, mais alegre, do que todas as sades que houve at agora (Nietzsche 8, FW/GC V 382). Ou seja, a

    grande sade no uma sade perfeita, ideal, entendida como ausncia de doena, mas como a capacidade que temos de enfrentar a experincia do adoecimento, que a ns inevitvel, e super-la, fazendo dela uma oportunidade de criao de diferentes modos de querer, sentir e pensar. A verdadeira doena, para ele, seria o paralisar-se no estado crtico, sem conseguir fazer do adoecimento uma experincia potencializadora. Deste modo, atravs da idia de grande sade, Nietzsche subverte a concepo corrente de sade, podendo, numa autodiagnose tipolgica, se considerar um tipo saudvel, malgrado seus constantes episdios de enfermidade. Tal subverso o que d sentido ao relato que faz na autobiografia Ecce Homo de seus episdios de doena, de seus momentos de declnio vital (as dores de cabea lancinantes, a doena dos olhos, a fraqueza do sistema gstrico...), mostrando que foi apenas por ser sadio no fundamento (Cf. Nietzsche 8, EH/EH Porque sou to sbio, 2) que pde, atravs

    da experincia da dcadence, olhar a vida atravs de diferentes pticas, transtrocar perspectivas que, como ele mesmo diz, condio sine qua non para sua maior tarefa, a de transvalorao dos valores (Cf. Nietzsche 8, EH/EH Porque sou to sbio, 1).

    Vemos tambm que na filosofia nietzschiana estreita a relao

    entre vontade de potncia, grande sade e criao de valores, pois a possibilidade de elevao de potncia a condio ou pr-requisito para

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    a tarefa de transvalorao dos valores, sendo vista como o pressuposto fisiolgico do tipo saudvel: Para compreender esse tipo, preciso primeiramente ganhar clareza sobre o seu pressuposto fisiolgico: o que

    denomino a grande sade (Cf. Nietzsche 11, EH/EH, Assim falou Zaratustra, 2). Dado isto, podemos supor que quando Nietzsche, no

    relato autobiogrfico, diz mostrar como algum se torna o que se ,

    ele se refere exatamente ao processo de uma estrutura afetiva ou de uma configurao fisiopsicolgica saudvel aumentando o seu grau de potncia,

    e em decorrncia disto criando valores outros, que no os judaico-cristos. Por este vis, at mesmo o tom demasiado autoafirmativo que Nietzsche

    imprime s sees do escrito se explicaria porque a vida nele, como um tipo dotado de grande sade, pode transbordar. Destarte, podemos dizer que atravs do relato de suas experincias de vida, Nietzsche quer mostrar a trajetria de realizao daquilo que prprio ao corpo em seu grau mximo ou timo (optimum) de potncia. Nas palavras de Espinosa, da realizao total daquilo que pode o corpo (Cf. Espinosa 15, EIII SP2).

    Portanto, analogamente a Espinosa, que considera que corpo e mente no agem tendo em vista fins, mas operam segundo uma causa eficiente

    interna, isto , por decorrncia necessria de sua potncia, o conatus; para Nietzsche, a possibilidade efetivada de criao de distintos valores tambm seria o resultado necessrio do exerccio de sua potncia elevando-se, como sintoma de sua sade corporal. E assim como Espinosa no prope uma tica normativa6, transcendente, haja vista que para ele os valores so criados de modo imanente tendo por nico critrio o conatus singular, Nietzsche no pretende, na autobiografia, apresentar um guia de conduta

    ou uma nova tbua de valores a ser tomada por lei ou dogma, mas sim atestar a possibilidade de criao de outras tantas morais por tipos que, como ele, so dotados de grande sade.

    Com efeito, segundo o filsofo alemo, cada um compe sua prpria

    tbua de bens, de acordo com suas necessidades vitais: As valoraes de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma, e aquilo em que ela v suas condies de vida, sua autntica necessidade (Nietzsche 10, JGB/BM 268). Por isso, quando, no contexto genealgico, ele se pe a fazer a anlise diagnstica dos tipos saudveis ou doentios, so as morais que passam a ser vistas como uma semitica dos afetos (Zeichensprache der Affekte) (Nietzsche 10, JGB/BM, 187), e o processo de criao de valores como os sintomas da sade ou doena dos tipos. Na Genealogia da Moral, ao tratar da rebelio escrava na moral (Nietzsche 9, GM/GM, I, 10), Nietzsche apresenta uma tipologia ou caracteriologia composta por tipos fortes e fracos, representados pelos nobres e pelos escravos, e uma sintomatologia pautada na atividade e na reatividade vitais. Nesse contexto, ele fala do carter reativo e no ativo do processo de criao de valores do tipo fraco, e do carter necessariamente ativo do tipo forte, que valora a partir de uma atitude afirmativa (ns nobres, ns bons, ns belos, ns

    felizes!) e no sabe separar a felicidade do agir: o estar em atividade por eles includo e computado, com necessidade, na felicidade (Nietzsche 8, GM/GM. I, 10). O tipo fraco, reativo, ao invs de criar valores a partir de um olhar afirmativo para si prprio, precisa negar os valores j criados pelo

    tipo forte: a moral dos escravos precisa sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de estmulos externos para

    em geral agir - sua ao , desde o fundamento, por reao (Nietzsche 8, GM/GM. I, 10). , portanto, por reao e oposio aos valores dos fortes que os fracos compem a sua tbua de valores, seu bom e seu mau. Destarte, se as caractersticas do tipo forte so a atividade e a felicidade, as marcas do tipo fraco, dos impotentes, oprimidos, ulcerados de sentimentos venenosos e hostis, so a reatividade e uma sensao artificial, fictcia

    de felicidade, porque sempre atrelada condio de infelicidade dos

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    inimigos. Para este tipo, avaliado fisiopsicologicamente, a felicidade no

    se vincula ao, mas passividade, j que ela aparece essencialmente como narcose, ensurdecimento, tranqilidade, paz, sabbat, distenso da mente e extenso dos membros, em suma, passivamente (Nietzsche 8, GM/GM. I, 10).

    Ora, as noes de atividade e passividade nos remetem diretamente filosofia de Espinosa. Isto , se em Nietzsche podemos dizer que h uma

    tipologia ou caracteriologia, composta por tipos doentios ou saudveis, passivos ou ativos; em Espinosa, a tipologia7 se refere a disposies atuais de corpo, estados de transio de momentos de maior passividade para uma maior atividade da totalidade corpo/mente. Lembremos que, segundo Espinosa, corpo e mente so potencializados e despotencializados conjunta e simultaneamente, ao contrrio da tradio que mostra uma alma ativa num corpo passivo e uma alma passiva num corpo ativo. De outro modo, na filosofia espinosana, atividade e passividade esto relacionadas,

    respectivamente, com a adequao e inadequao das idias. Com efeito, quando Espinosa trata especificamente da mente, esclarece que ela tanto

    mais passiva quanto mais idias confusas e inadequadas tem, e ativa na medida em que tem maior nmero de idias adequadas ou claras e distintas (Cf. Espinosa 15, EIII CP1). Alm da relao com a adequao e a inadequao, para ele, a atividade da mente tem uma relao direta com o afeto da alegria, pois quando a mente concebe a si prpria e sua potncia de agir, ela se alegra (...). E a mente necessariamente considera a si prpria quando concebe uma idia verdadeira, ou seja, uma idia adequada (Espinosa 14, EIII DP58). Portanto, se a mente se alegra

    na medida em que concebe idias adequadas, isto , enquanto age (Cf. Espinosa 15, EIII DP58), nenhum dos afetos tristes podem ser referidos a ela enquanto ativa. E enquanto uma mente alegre tem sua capacidade ou potncia de agir aumentada, uma mente triste tem sua capacidade de

    agir diminuda ou contrariada (Cf. Espinosa 15, EIII DP59). Ademais, para a mente, a transio da passividade para a atividade diz respeito sua capacidade de conhecer adequadamente seus afetos, sendo esta capacidade mesma de conhec-los a maior causa de alegria, pois quem compreende clara e distintamente a si prprio e os seus afetos, alegra-se (Espinosa 15, EV DP15). Podemos dizer ento que para Espinosa a mutao (mutatio) dos afetos passivos em ativos se d quando o conhecer passa a ser o mais potente, o mais poderoso dos afetos, pois o conhecer, ou a atividade intelectual, sempre alegre, podendo mesmo nos conduzir a um estado de liberdade ou beatitude (Cf. Espinosa 15, EV Praef.).

    Alm disso, quando ele trata do aumento ou diminuio da potncia de agir do corpo humano, diz que essa variao depende das maneiras como o corpo afeta e afetado por outros corpos externos, pois desse modo que ele encontra elementos que podem lhe ser teis sua conservao, preservando as relaes de movimento e repouso que suas partes tm entre si, evitando atravs disso que ele seja destrudo (Cf. Espinosa 15, EIV P39). Vale dizer que, para Espinosa, nenhuma coisa pode ser destruda, dada sua positividade e indestrutibilidade intrnsecas, a no ser por uma causa exterior (Cf. Espinosa 15, EIII P4). Isso porque cada coisa, enquanto

    est em suas foras, esfora-se para perseverar na existncia opondo-se a tudo que possa vir a suprimi-la (Cf. Espinosa 15, EIII P6). Esforo que, como vimos, traduzido pela noo de conatus. Mas, apesar de cada coisa perseverar na existncia, sua fora limitada e infinitamente superada

    pela potncia de causas externas (Cf. Espinosa 15, EIV P3). Em resumo, no encontramos, internamente ou essencialmente nas coisas, nada que as possa destruir. Ora, quando Espinosa se refere aos afetos da tristeza e da alegria tambm desta possibilidade de destruio ou conservao que ele trata. Ao falar da aptido do corpo para afetar e ser afetado, ele apresenta o contentamento (hilaritatem) como uma alegria que concerne totalidade

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    corpo/mente, em que a potncia de agir aumentada ou favorecida de tal maneira que todas as suas partes conservam entre si a mesma relao de movimento e repouso, e a melancolia (melancholiam) como uma tristeza que, ao afetar a coisa em sua totalidade, diminui ou entrava sua potncia de agir e, na mesma lgica, afeta o equilbrio interno na proporo de movimento e repouso das partes que a compem (Cf. Espinosa 15, EIII P11;

    EIV P42). A melancolia ocorreria, ento, quando uma afeco sentida,

    experimentada como tristeza, e que toma conta da totalidade corpo/mente, entravando seu esforo de preservao na existncia, o conatus, podendo at mesmo conduzir o indivduo morte.

    Ao ver de Espinosa, enquanto a melancolia sempre m, o contentamento sempre bom e nunca excessivo, considerando que quanto maior a alegria com que somos afetados, maior a perfeio para a qual passamos.Vale dizer que o amor, embora seja uma alegria (laetitia), uma alegria acompanhada de uma excitao, que pode essa sim ser m, pois ocorre quando uma parte do corpo afetada mais do que as outras e a potncia desse afeto supera as outras aes do corpo, impedindo que ele seja afetado de outros modos (Cf. Espinosa 15, EIV DP43). Isso porque

    o corpo humano, por ser composto de muitas partes de natureza diversa, carece continuamente de alimento novo e variado, para que esteja apto para ser afetado de muitos modos e a mente tambm apta para entender simultaneamente vrias coisas. Caso contrrio, se o corpo for afetado por uma causa externa de potncia maior do que a dele, ele fica impedido de

    ser afetado de outros modos, o que retm a mente na contemplao de um nico objeto, tornando-se obsessiva. Tanto a fora de um afeto quanto do desejo que dele deriva podem, portanto, ser excessivos, fazendo com que os homens, afetados de tal maneira por um nico objeto (por exemplo, dinheiro, glria ou a pessoa amada), enlouqueam ou delirem, passando a v-lo diante de si, embora este nem mesmo esteja presente (Cf. Espinosa

    15, EIV SP44). Portanto, tanto a preponderncia dos afetos tristes na

    totalidade corpo/mente, quanto a fixao em um nico e mesmo afeto, e no

    desejo excessivo que dele surge, podem ser contados entre as doenas, pois ambos levam igualmente ao enfraquecimento do conatus, na medida em que diminuem a capacidade do corpo de ser afetado de diferentes modos. Alm da melancolia e da obsesso delirante, outro alvo de Espinosa a flutuao

    da alma (flutuatio animi), acontecimento que se d quando um nico objeto causa de afetos contrrios, como o amor e o dio (por exemplo, no cime, h o dio pela pessoa amada e a inveja do novo amante) (Cf. Espinosa 15, EIII P35). Tomado pelo cime, o indivduo est refm da exterioridade, pois aquilo que constitui a forma do amor ou do dio a alegria ou tristeza acompanhada da idia de uma causa externa (Cf. Espinosa 15, EIII SP13). Tanto o dio pela amada, quanto a inveja do amante, que tambm dio pela felicidade de outrem, so afetos passivos e tristes.

    Assim, como que compondo uma sintomatologia e uma teraputica, Espinosa considera as lgrimas, os soluos, os medos como sinais de um nimo impotente, que podem e devem ser combatidos o quanto antes, como forma de expulsar a melancolia (melancholiam expellere) (Cf. Espinosa 15, EIV SP45). Como princpio de conduta ou norma de vida, ele sugere a moderao (moderatio), isto , usar das coisas e deleitar-se delas, mas no at a exausto, pois: prprio do homem sbio recompor-se e reanimar-se moderadamente com bebidas e refeies agradveis, assim como todos podem se servir, sem nenhum prejuzo alheio, dos perfumes, do atrativo das plantas verdejantes, das roupas, da msica, dos jogos esportivos, do teatro, e coisas do gnero (Espinosa 15, EIV SP45). E

    embora diga que na tica no teve a inteno de apresentar uma medicina mentis (Cf. Espinosa 15, EV Praef.), de algum modo ele nos oferece uma teraputica para a flutuao da alma, ao dizer que o melhor remdio

    contra os afetos passivos o verdadeiro conhecimento deles: um afeto,

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    que paixo, deixa de ser paixo no momento em que dele formamos

    uma idia clara e distinta (Espinosa 15, EV P3); e j que conhecer ter

    clareza das causas, na medida em que conhecemos as causas da tristeza, nesta mesma medida ela deixa de ser paixo, isto , nessa mesma medida

    ela deixa de ser tristeza (Espinosa 15, EV SP18). Para Espinosa, uma mente internamente disposta (interne disponitur), como aquela que no se encontra refm da exterioridade, causa adequada de suas idias, potente o suficiente para moderar seus afetos, j que os conhece clara e

    distintamente. Por isso, a mente tem potncia para suprimir afeto passivo ou paixo, atravs de trs grandes poderes: poder formar um conceito claro e distinto de todas as afeces do corpo; poder na mente formar uma idia

    clara e distinta dos afetos; poder desligar o afeto da causa externa e lig-

    lo a outros pensamentos, evitando a flutuao do nimo (flutuatio animi). Dado isso, primeiramente, ele conclui que o melhor remdio para os afetos o conhecimento deles, visto que a mente no tem outro poder que no seja o de pensar e o de formar idias adequadas (Cf. Espinosa 15, EV SP4),

    e, em segundo lugar, que o agente da mudana (mutatio) de qualidade dos afetos, de passivos para ativos, trata-se da potncia da mente em considerar as coisas clara e distintamente, porque causa adequada de suas idias, as quais seguem apenas de sua natureza. Entendendo clara e distintamente todas as afeces do corpo e seus afetos, a mente evita a flutuao do

    nimo e o excesso dos desejos, provenientes de idias inadequadas.E se uma teraputica, elaborada a partir do pensamento de

    Espinosa, nos d elementos para fazer frente melancolia, obsesso delirante e flutuao do nimo, a teraputica nietzschiana nos mostra

    como podemos combater o pior dos males, o ressentimento, visto que nenhuma chama nos devora to rapidamente quanto os afetos do ressentimento (Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to esperto, 6). Embora Nietzsche, como vimos, no queira nos escritos autobiogrficos

    oferecer um guia de conduta, ele pretende sim mostrar como possvel, atravs dos remdios adequados a cada constituio fisiopsicolgica,

    curar-se do ressentimento. Assim como o melanclico espinosano reativo, j que todas as suas foras esto voltadas para a supresso da causa geradora da tristeza8, para Nietzsche as principais caractersticas do tipo ressentido so, tambm, a reatividade e o superdesenvolvimento mnsico. Por isso, em Ecce Homo, ele diz que sempre procurou ter cautela para no reagir imediatamente a um estmulo nocivo (tcnica que ele chama de fatalismo russo) e esquecer rapidamente o que lhe afetou, de modo que uma m lembrana no se tornasse para ele uma ferida supurante. Com efeito, a seu ver, numa situao adversa melhor no reagir, quando uma reao produziria um rpido consumo de energia nervosa e o aumento de secrees prejudiciais, por exemplo, de blis no estmago (Cf. Nietzsche 11, EH/EH, Porque sou to esperto, 6). Nesses casos, a soluo reagir com a menor freqncia possvel, em situaes e relaes em que teramos que suspender nossa iniciativa e nos tornarmos apenas reagentes (Cf. Nietzsche 11, EH/EH, Porque sou to esperto, 8). Tambm, na Genealogia da Moral, quando Nietzsche analisa os modos de valorao dos tipos, ele defende a inevitabilidade do ressentimento no tipo fraco, enquanto o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reao imediata, por isso no envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inmeros casos em que inevitvel nos impotentes e fracos (GM/GM 8, I, 10). Em sua diagnose tipolgica, ele reconhece um tipo saudvel, uma ndole bem lograda, como aquele que sabe esquecer (Cf. Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to sbio, 2). Por esse critrio, o ressentido seria um dispptico, pois tendo a

    capacidade de esquecimento comprometida, no conseguiria digerir suas vivncias, no sendo capaz de dar conta de nada (Cf. Nietzsche 9, GM/GM, II, 1). Segundo Nietzsche, a soluo encontrada para isso no

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    levar a srio por muito tempo os inimigos, as desventuras, recorrendo para isso fora plstica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento (Nietzsche 8, GM/GM, I, 10). O que ele chamar mais adiante de fora inibidora, ativa, positiva do esquecimento que, sem a qual no poderia haver felicidade, jovialidade, esperana, orgulho, presente (Nietzsche 9, GM/GM , II, 1).

    Esquecimento e fatalismo russo foram, ento, os medicamentos que Nietzsche encontrou para evitar o ressentimento, que, infelizmente, a mais natural inclinao do enfermo. No prefcio a Humano demasiado humano, ele conta que ao se colocar como mdico e doente em uma pessoa, elaborou uma diettica e disciplina para, em momentos de sofrimento, vencer a luta contra o ressentimento, o pessimismo do cansao de viver (Cf. Nietzsche 8, VM/OS, prefcio, 5). Assim, se a psicologia de Nietzsche visa identificar os afetos do ressentimento, e combat-los, sua medicina

    consiste em saber escolher os remdios mais apropriados contra eles, o que exige uma postura ativa daquele que est disposto a tomar-se nas mos e curar-se a si prprio (Cf. Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to sbio, 2). Mdico, ajuda a ti prprio, diz ele em Assim falava Zaratustra, assim ajudas tambm a teu doente. Seja esta tua melhor ajuda, que ele veja com seus olhos aquele que cura a si prprio (Nietzsche 8, Za/ZA. Da virtude que d, 2). Em Ecce Homo, Nietzsche explica que enquanto os tipos doentios escolhem sempre os remdios errados, o tipo sadio, instintivamente, sempre escolhe os remdios certos, pois age segundo um princpio seletivo, que lhe permite escolher o que lhe mais apropriado e deixar de lado o que lhe pernicioso, em questes de alimentao, moradia, clima, amigos, recreaes etc. Ou seja, ele nunca foi um tipo doentio, dcadent, pois em momentos de enfermidade e baixa vitalidade, instintivamente, sempre escolheu os remdios certos sua cura, evitando sucumbir ao pessimismo e aos afetos do ressentimento. Na autodiagnose

    tipolgica, ele se reconhece como um tipo saudvel, caracterizando uma ndole bem lograda como aquela que s encontra sabor naquilo que lhe compatvel; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do compatvel

    ultrapassada. Adivinha meios de cura contra danos, utiliza acasos ruins em sua vantagem: o que no o derruba, torna-o mais forte (Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to sbio, 2). Isso porque ele acredita que cada

    um tem a sua medida9; tanto de assimilao fisiolgica (alimentar) quanto de assimilao psicolgica (vivencial), que no devem ser excedidas. Em resumo, para o filsofo, caberia ento a cada um diagnosticar em si mesmo

    os sintomas da decadnce e procurar encontrar os remdios certos para combat-la, selecionando aquilo que mais est de acordo com sua configurao fisiopsicolgica singular, de modo a potencializ-la e no

    esgot-la, respeitando a sua medida prpria.J no contexto da crtica genealgica, Nietzsche associa os afetos

    do ressentimento s idias fixas, que sendo inextinguveis, onipresentes e

    inesquecveis no concorreriam com outras idias e hipnotizariam o sistema nervoso (Cf. Nietzsche 8, GM/GM, II, 3). Aqui, a idia de que a vida no vale a pena ser vivida, associada aos sentimentos de vingana e rancor, tomada como o sintoma mais evidente do tipo fraco, dcadent. Com efeito, tal tipo, ante a experincia do sofrimento, recai no dio ao corpo, desejante, impuro e perecvel, e na revolta contra a vida, considerada, pela dor que lhe inerente, cruel e injusta. Destarte, os tipos fracos, dcadents, apregoando uma m-vontade contra a vida, expressando um dio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra a matria, essa repulsa aos sentidos, razo mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparncia, mudana, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo (Nietzsche 8, GM/GM, III, 28), promovem uma

    rebelio contra os mais fundamentais pressupostos da vida e vem-se assim s voltas com um niilismo suicida. Em sua crtica psicologia

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    do cristianismo, Nietzsche fala que o cristo um ressentido, que odeia o corpo, a vida e no v sentido algum em viver, e s no se suicida por conta da morte auto-infligida ser um tabu religioso. Encontrando alento apenas

    na idia de imortalidade da alma e em sua ida para um alm-mundo, o cristo precisa necessariamente opor corpo e alma, separar este mundo do outro mundo, ideal, para o qual a alma se encaminharia aps a morte do corpo. Por outra perspectiva, Nietzsche acredita que uma cultura no deve comear pelo cuidado com a alma, mas pelo lugar correto, e: o lugar correto o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto segue da...

    (Nietzsche 8, GD/CI. Incurses de um extemporneo, 47).

    Por isso, em oposio rebelio contra os mais fundamentais pressupostos da vida, em sua teraputica, Nietzsche se interessa pelas disposies fundamentais da prpria vida, pelas pequenas coisas do cotidiano, consideradas insignificantes: alimentao, lugar, clima, a inteira casustica do amor-prprio (Nietzsche, EH/EH, Porque sou to esperto, 10). Quanto a elas, ele acredita ser necessrio reaprender a no mais desprez-las, mas tom-las por fundamentos de um cuidado de si10, entendido no s como um processo de escolha de modos de vida mais saudveis, mas tambm de reviso de valores e de adoo de uma tica afirmativa da vida. Em vista disso, ele enceta uma empreitada

    mais ampla, a de elaborao de uma medicina para a civilizao, j que v o ressentimento, ou seja, a condenao da vida, a revolta contra ela, no s como o mal do seu sculo, mas como um mal que j domina os pensadores h sculos, pois nasce com o platonismo e atravessa toda a histria do pensamento ocidental, com a idia de um mundo verdadeiro, em oposio a este mundo, o efetivo (Nietzsche 8, GD/CI. Histria de um erro. Como o verdadeiro mundo acabou por se tornar uma fbula). Assim, em contraposio a estes pensadores doentios, que at ento defenderam valores que alimentam o dio efetividade, Nietzsche aspira

    a um esprito criador que seja capaz de, em um tempo vindouro, fazer diferentes ensaios, experimentar outras formas de valorar e criar novas tbuas de valores, que no mais expressem um profundo mal-estar com os processos efetivos11. Espera a vinda de homens dotados de grande sade que possam livrar a efetividade da maldio deposta sobre ela (Cf. Nietzsche 8, GM/GM, II, 24). At chegar esse momento, ele

    mesmo, como um tipo da grande sade, quer a partir da exposio de sua trajetria de vida abrir caminhos para outras e inmeras possibilidades de criao de valores que sejam afirmativos em relao aos processos

    dinmicos da efetividade.Assim, se na teraputica nietzschiana h a necessidade de realizar

    o diagnstico de como se processa a nossa dinmica afetiva, como forma de fazer o combate aos afetos do ressentimento, sendo central a idia de seleo daquilo que nos potencializa, igualmente, para Espinosa, necessrio conhecer adequadamente como se d nosso funcionamento afetivo e realizar encontros que aumentem nossa potncia de agir, selecionando aqueles que so teis ao fortalecimento do conatus, como uma forma de expulsar a melancolia, evitar a flutuao do nimo e as obsesses de toda ordem. E se

    considerarmos que para ambos os filsofos o aumento da potncia de agir

    est diretamente relacionado criao de novos valores; na medida em que

    eles procuram fazer frente tristeza e impotncia, ou seja, aos afetos que limitam nosso agir no mundo, abrem caminho para uma tica de afirmao

    da vida, para a qual at mesmo a doena, como momento crtico, no resvala necessariamente no ressentimento e na melancolia, mas pode ser vivida como oportunidade de descoberta de potencialidades, pelo ensaio e experimentao de outras maneiras de querer, sentir e pensar e pela reviso de valores que ela comumente impe. Com isso, Espinosa12 e Nietzsche13 nos levam a pensar que uma teraputica que objetiva de fato promover sade deve ser entendida como uma arte de despertar potencialidades e de criao

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    de novas formas ou modos de agir no mundo, um processo essencialmente afetivo, que visa a tomada de conscincia de quais afetos esto em jogo na realizao de toda e qualquer atividade cotidiana, o que tambm implica escolhas e aes salutares prprias, e no uma moralizao dos atos da vida diria, encontrada nos manuais de psicologia do comportamento e de higiene coletiva. Afinal, considerando que cada indivduo singular,

    a teraputica ser estritamente pessoal, pois no h nenhuma frmula ou receita que seja universal, prescritivo-normativa para a conquista da sade, pois o que est em jogo, no caso de Nietzsche, a elevao da potncia que prpria a cada corpo, ou, de acordo com Espinosa, o que se almeja o fortalecimento do conatus de cada indivduo, como coisa singular.

    NIETzSCHE AND SPINozA: FUNDAmENTS FoR A

    THERAPEUTICS oF AFFECTIoNS

    Abstract: In this article, from the analysis of the concepts of body and power present in Spinozas and Nietzsches philosophies, we aim to show that both philosophers criticize transcendent values, affirming the necessity of creating new values. They

    show that, in order to make possible an affirmative ethical life, one has, above all, to

    increase the potency of the whole body/mind, obtained through a therapeutics based on the affective dynamics. Considering that both, Nietzsche and Spinoza, had used the same affection, the joy, to cure powerlessness and that both offer a strictly personal therapy, refusing the creation of a normative ethics, we conclude that a therapy which truly proposes to bring health should be an essentially affective process, based on healthy choices and acts that people should take of their own, instead of a moralization of everyday acts, operated by behavioral psychology manuals and collective hygiene. keywords: body health power therapeutics affectivity

    REFERNCIAS BIBLIogRFICAS

    1. DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prtica (trad: Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). So Paulo, Escuta, 2002.

    2. FOUCAULT, M. Les techniques de soi. In: Dits et crits. Paris, Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813.

    3. GADAMER, H-G. O mistrio da sade: o cuidado da sade e a arte da medicina. Lisboa, Edies 70, 1997.

    4. MARTINS, A. Nietzsche, Espinosa, o acaso e os afetos: encontros entre o trgico

    e o conhecimento intuitivo. O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, v. 14, p. 183-198, 2000.

    5. MARTON, S. Extravagncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche (Coleo Sendas e Veredas). Discurso Editorial / Editora UNIJU, 2 edio. 2001.

    6. NIETZSCHE, F. El Anticristo (trad: Andrs Snchez Pascual). Madrid, Alianza Editorial, 1974.

    7. ______________ Assim falava Zaratustra (trad. Mrio da Silva). Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1998.

    8. ______________Obras Incompletas (trad: Rubens Rodrigues Torres Filho). OS PENSADORES. So Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999.

    9. _____________ Genealogia da Moral (trad. Paulo Csar de Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 1999.

    10. ______________ Alm do Bem e do Mal (trad. Paulo Csar de Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 2000.

    11. ______________ Ecce Homo (trad. Paulo Csar de Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 2000.

    12. . ______________ A Gaia Cincia (trad. Paulo Csar de Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 2001.

    13. SANTIAGO, H. O filsofo espinosista precisa criar valores? Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(1): 127-149, 2007.

    14. SANTIAGO GUERVS, L.E. Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expresso

    vital da dana (trad: Alexandre Filordi de Carvalho). Cadernos Nietzsche 14, So Paulo, 2003. pp.83-30.

    15. SPINOZA, B. tica (Traduo e notas de Tomaz Tadeu). Belo Horizonte, Autntica Editora, 2007 [edio bilnge latim/portugus].

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    16. ZATERKA, L. Conatus e vontade de potncia: semelhanas e dessemelhanas. Cadernos Espinosanos II (I), So Paulo, 1997, pp.07-31.

    NoTAS

    1. Concordamos integralmente com Santiago quando defende que Nietzsche e Espinosa no compartilham somente a crtica aos valores transcendentes, atravs do questionamento da moral vigente, mas tambm a ideia de que os filsofos tm a tarefa

    de criar novos valores. Ou seja, ele acredita que aps a anlise crtica dos preconceitos e da moral, Espinosa chega a dar um passo semelhante ao de Nietzsche, que advogar a necessidade de criao de novos valores que favoream a vida, isto , favoream os encontros alegres e firmem-nos na busca da felicidade, que proporcionem o aumento

    de nossa potncia de agir (Cf. Santiago 13, p.133).2. Estamos tambm de acordo com Martins quando afirma que, num primeiro

    momento, podemos pensar que no h proximidade entre as filosofias espinosana e

    nietzschiana, por Espinosa ser um racionalista que prope a moderao dos afetos e das paixes e a minimizao do acaso, e Nietzsche um crtico da razo, que os aceita integralmente. Ao contrrio, o comentador acredita que o maior incmodo de Nietzsche em relao ao racionalismo de Espinosa, mais a seu mtodo do que a suas ideias. Ademais, atravs de uma anlise mais detida, possvel ver que nem Espinosa pretende estabelecer um domnio total sobre os afetos, nem Nietzsche advogar o poder absoluto dos afetos e do acaso sobre ns (Cf. Martins 4). Portanto, como tambm

    julgamos, quando estudamos as filosofias de Espinosa e Nietzsche, encontramos mais

    pontos em comum do que divergncias.3. Para as citaes das obras de Nietzsche, adotamos a conveno proposta pela edio Colli/Montinari das Obras completas do filsofo. Para facilitar a leitura das

    referncias, as siglas em alemo so acompanhadas das siglas em portugus: FW/GC - Die frhliche Wissenschaft (A Gaia Cincia); Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra); JGB/BM - Jenseits Von Gut und Bse (Para Alm de Bem e Mal); GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral); GD/CI - Gtzen- Dmmerung (Crepsculo dos dolos); AC/AC - Der Antichrist (O Anticristo); EH/EH - Ecce Homo. Na citao, o algarismo arbico indicar o pargrafo (ex: AC/AC, 12). Na citao de GM/GM e de FW/GC, o algarismo romano anterior ao arbico remeter parte do livro (ex: GM/GM, II, 16). Em Za/ZA, o algarismo romano remeter

    parte do livro e a ele seguir o ttulo do discurso (ex: Za/ZA, I, Dos desprezadores do corpo). No caso de GD/CI e EH/EH, o algarismo arbico que se seguir ao ttulo do captulo indicar o pargrafo (ex: EH/EH, Porque sou to esperto, 10).4. O conceito vontade de potncia (Wille zur Macht) aparece na obra publicada e, em grande parte, em fragmentos pstumos. Neste contexto, Nietzsche tambm usa o termo fora (Kraft), sendo a vontade de potncia o carter intrnseco dela. Caracterstica do mundo efetivo, a vontade de potncia tambm o que constitui o homem: - Esse mundo a vontade de potncia - e nada alm disso! E tambm vs prprios sois essa vontade de potncia e nada alm disso! (Nietzsche 8, NF/FP, 1067).5. As leituras de Santiago Guervs, em seu artigo Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expresso vital da dana, e de Scarlett Marton em A dana desenfreada da vida caminham nesta direo, mostrando as relaes entre vida, dana, alegria e grande sade. Guervs defende que a insistncia do filsofo em utilizar o simbolismo da

    dana em seus escritos outra maneira de exaltar e reivindicar o valor do corpo, e a alegria seria a expresso da liberdade bailarina do pensamento, prpria do tipo saudvel. Por isso, Zaratustra sempre apresentado como um danarino: Afinal, quem aquele que expressa melhor a alegria e a grande sade, quem aquele que

    melhor sabe rir e o que melhor festeja a vida, a no ser o danarino? (Santiago Guervs 14, p.97). J Marton mostra como Nietzsche associa o movimento da dana

    ao movimento mesmo da vida, no sendo por acaso que Zaratustra, seu alter ego, faa dela sua principal aliada. Personagem que possui o pressuposto fisiolgico da grande

    sade, Zaratustra entoa seus cantos de dana para expressar no s a mutabilidade da vida, mas tambm a alegria que a caracteriza: Igual vida, dana movimento (...) Movimento, cadncia e leveza, a dana ainda alegria (Marton 5, p. 57-65).6. Sobre a impossibilidade de uma tica normativa em Espinosa e em Nietzsche, so relevantes os comentrios de Zaterka. Para a autora, ambos os filsofos operam

    uma naturalizao dos valores, mostrando sua origem humana, demasiado humana, e rompendo com a idia de qualquer transcendncia moral: Espinosa mostra que os homens so essencialmente apetites e desejos. Portanto, o filsofo

    da tica rompe com qualquer transcendncia moral ou se preferirmos, os valores

    esto para alm de bem e mal. (...). A filosofia nietzschiana, sabemos, tem como

    fio condutor esta mesma impossibilidade. Nietzsche, atravs do procedimento

    genealgico, mostra a origem humana, demasiado humana de todos os nossos

    valores (Zaterka 16, p.44-45).

    7. Deleuze considera Espinosa um imoralista, assim como Nietzsche se considerava

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    um. Isso porque, assim como Nietzsche se coloca para alm do Bem e do Mal, Espinosa considera que no existe o Bem e o Mal, mas o bom e o mau, como aquilo que convm ou no convm a nossa natureza. A oposio de valores (Bem e Mal) substituda pela diferena qualitativa dos modos de existncia (bom e mau). Assim, segundo o comentador, a tica uma tipologia dos modos de existncia imanente, que substitui a Moral, porque esta se relaciona sempre com a existncia de valores transcendentes. O bom ou livre, razovel ou forte, aquele que se esfora tanto quanto pode para organizar os encontros, para se unir a o que convm a sua natureza, e desta forma aumentar a sua potncia. O mau, escravo ou insensato aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as conseqncias dos eventos fortuitos, em gemer e acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrrio ao que desejava, o que lhe revela sua prpria impotncia (Cf. Deleuze, 1).8. Enquanto na alegria a potncia de agir est em expanso, na melancolia nossa potncia de agir est como que imobilizada e direcionada apenas para o afastamento ou supresso da causa geradora de tristeza, e pode esgotar-se no reagir (Cf. Deleuze 1).9. Podemos dizer que Nietzsche retoma a diferena existente entre os gregos entre dois tipos de medida: a que se aplica a um objeto a partir de fora (mtron), atravs de um aparelho de medio, e aquela que reside na prpria coisa (mtrion), como o apropriado a ela. Com efeito, para Gadamer, parte essencial da sade manter-se a si mesma em sua medida prpria, no permitindo que lhe sejam impostos valores padronizados, pois tal imposio seria inadequada para o caso individual: Ali se afirma que h uma medida que no se aplica a partir de fora, mas que algo em si

    mesmo tem. Se quisssemos express-lo em vernculo, poderamos dizer: no h apenas o medido (Gemessene) por meio de um instrumento de medio, mas tambm o conveniente ou apropriado (Angemessene) (Gadamer 3, p.126).10. Nietzsche fala em cuidado de si, amor de si, cultivo de si, defesa de si em oposio idia crist de renncia de si. Foucault (1994) considera que para

    os gregos o preceito do cuidado de si uma das grandes regras de conduta da vida social e pessoal, um dos fundamentos da arte de viver. No obstante, ele foi eclipsado pelo Conhece-te a ti mesmo, porque nossa moral, uma moral do ascetismo, no parou de dizer que o si a instncia que se deve rejeitar. Foucault, ainda, ao analisar a idia de cuidado de si no mundo grego, afirma ser o cuidado mdico permanente um

    de seus traos essenciais, devendo cada um tornar-se mdico de si mesmo (Foucault 2). Em vista disso, podemos dizer que Nietzsche retoma as ideias de cuidado de si e

    medicina de si, para fazer frente ao ascetismo cristo, tal como foi se configurando

    historicamente, como renncia ou abdicao de si: A moral da renncia de si a moral de declnio par excellence (...) Essa nica moral que at aqui foi ensinada, a moral da renncia de si, traz uma vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida (EH/EH, Por que sou um destino, 7).11. Por este critrio, Espinosa no contaria entre tais pensadores doentios, afinal, como

    explica Deleuze, em Espinosa h uma filosofia da vida, que consiste precisamente

    em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra ela: Antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificaes da vida, todos os valores em nome dos quais ns depreciamos a vida: ns no vivemos, mantemos apenas uma aparncia de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida um culto morte (Deleuze 1, p.32).

    12. De acordo com Deleuze, a tica de Espinosa traa o retrato do homem do ressentimento para quem qualquer tipo de felicidade uma ofensa, e que faz da misria ou da impotncia sua nica paixo. Por isso, ela necessariamente uma tica da alegria: somente a alegria vlida, s a alegria permanece e nos aproxima da ao e da beatitude da ao (Deleuze 1, p.34).

    13. A esta outra tica que d Sim vida, Nietzsche d o nome de amor fati: Minha frmula para a grandeza no homem amor fati: no querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trs, nem em toda eternidade (EH/EH, Por que sou to esperto, 10).