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um mundo onde Foucault possa reclinar a cabeça Ney Ferraz Paiva

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Ney Ferraz Paiva sugere a releitura das obras de Francesca Woodman e Michel Foucault – “Um mundo onde Foucault possa reclinar a cabeça” – propondo-nos um encontro entre formas de pensar absolutamente distintas, mas que se atravessam no plano de um compromisso artístico, no campo minado que é propriamente o da imagem (Izabela Leal).

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Page 2: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Projeto contemplado pelo Edital de Pautas 2014 da GTB/FCPTN

Galeria Theodoro Bragade 03 a 31 julho 2014Av. Gentil Bittencourt, 650(91) [email protected]

Contatos do artista:[email protected]

Capa: Série Vigília. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

Page 3: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Francesca Woodman. Série Espaço². Providence, Rhode Island. 1976.

Page 4: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Francesca Woodman. Série Espaço². Providence, Rhode Island. 1976.

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Talvez a atitude que mais caracterize o pensamento de Michel Foucault seja a problematização do presente, considerando a história como um método de interroga-ção de nosso próprio tempo. Não que esteja em jogo qualquer busca de identidade, tanto para dar uma feição ao mundo como a nós mesmos, mas sim a dissipação das formas estabelecidas; apagamento e construção de outras possibilidades de vida. Movimento de mão dupla, que ao mesmo tempo em que solicita o comprometimento com o mundo, uma visão aproximada das coisas, exige também o distanciamento, um olhar em perspectiva. Um modo de efetuar a relação entre o pensamento e essa possível leitura do presente se dá quando nos deixamos atravessar pela dimensão da imagem, quando nos rendemos à passagem da visualidade ao corpo, melhor dizendo, aos efeitos que a imagem produz sobre o corpo, modos de afetação. É por essa via que Ney Ferraz Paiva sugere a releitura das obras de Francesca Woodman e Michel Foucault – “Um mundo onde Foucault possa reclinar a cabeça” – propondo-nos um encontro entre formas de pensar absolutamente distintas, mas que se atravessam no plano de um compromisso artístico, no campo minado que é propriamente o da imagem.

A transversalidade que caracteriza a proposta de Ney Ferraz Paiva põe em jogo imagens que revisitam as fotografias de Woodman numa interseção com o pen-samento de Foucault, criando uma superfície de inscrição em que a vida poderia enfim se tornar estilo, obra de arte. Trata-se da produção de cenas que evocam um mundo fragmentado, repleto de dejetos, rastros e destroços, assombrado pela perda, marcado pela morte, onde as forças da permanência e da transitoriedade disputam objetos que não cabem em seu próprio tempo; mundo também da escrita, da arte, do pensamento, do ir e vir incessante que é a imagem em sua oscilação, com irrupções e mergulhos, linhas retas, desvios. São também objetos captados em sua concretude – uma porta, uma escada, uma bacia, o fragmento de uma fachada – não para asse-gurar a preservação de um determinado visível, mas para deslocar o próprio sentido do visível. Esse gesto de deslocamento inocula uma dose de instabilidade nos objetos mais palpáveis, que agora se tocam no fundo cintilante das imagens projetadas em tecidos, onde o que permanece é a própria impermanência, efeito de luz.

WOODMAN/FOUCAULT – UM CONVITE A RECLINAR A CABEÇAIzabela Leal

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Uma imagem, mesmo a mais simples, pode carregar em si um fundo de inqui-etação a partir do qual nos tornamos vítimas de uma despossessão do olhar. É o que sugere Walter Benjamin ao mencionar as fotografias de Atget das ruas de Paris, de-sertas, despidas da presença humana, ao mesmo tempo repletas de vestígios, inter-pelando o observador e capturando-o, arrastando-o para um lugar em que a contem-plação livre não é possível. É a presença desses vestígios que faz com que se abra na imagem uma temporalidade outra, para a qual somos convocados não somente como receptores, mas também como intérpretes, exigindo a produção de um trabalho típico da memória, um trabalho sobre os traços que promove a irrupção do passado no presente, fazendo eclodir o que estava soterrado e rompendo as configurações estan-ques do agora. Nas fotografias de Francesca Woodman essa potência inquietante é buscada pela apresentação de imagens instáveis, marcadas pelo desvanecimento da figura humana, em vias de desaparecer. Trata-se da superfície que adquire profundi-dade, que remete ao acúmulo do tempo, aos traços da sedimentação que agora explo-dem no espaço inscrito entre sujeito e objeto. A imagem nos convoca num movimento de mão dupla entre olhar e ser olhado, como se ela produzisse uma exigência de sen-tido, como se demandasse do olhante uma espécie de tarefa; trabalho arqueológico de Foucault. Nesse sentido, a imagem é uma formação crítica, ela faz com que nos detenhamos diante dela, solicitando uma resposta diante do vazio que se abriu. A obra de arte evidencia uma dinâmica da operação de perda implicada na visualidade; a aparição de algo que só aparece tornando-se ao mesmo tempo distante, algo único e estranho, que impede o reconhecimento, que problematiza a ordem do saber. É nesse sentido que podemos falar de um caráter de inquietação que a obra de arte carrega e que Didi-Huberman traduziu como “o poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: ‘isto me olha’” .

Foucault, nos momentos de exaustão, talvez tenha reclinado a cabeça para des-cansar nos lugares mais improváveis, nas salas empoeiradas das bibliotecas, nos banheiros das casernas alemãs, nos pátios penitenciários, nas salas de correção, numa cabana em Marahu, mas é certamente no mundo da arte, pensa Ney Ferraz Pai-va, que Foucault reclina a cabeça não para descansar, mas como alguém que reflete, ou como alguém que procura uma perspectiva inaudita, um ângulo improvável. Esse é também o olhar de Francesca Woodman em sua captura das coisas, registrando um mundo evanescente, que se oferece em estado de dissolução. Nas imagens que temos agora diante de nós, reclinar a cabeça pode, em última instância, anunciar um convite a pensar o elemento do não saber, a entregar-se a essa beleza estranha – poder desagregador que inquieta e deslumbra.

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Série Dervixe. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Francesca Woodman. Série Espaço².

Providence, Rhode Island. 1976.

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MERCADO DAS IMAGENS FLAGRADAS EM DELITO Nilson Oliveira

As imagens que chegam até nós na exposição Um mundo onde Foucault possa reclinar a cabeça desvelam um mundo cujo reflexo incide numa superfície falseada, devidamente planejada por uma poética do falso. O que não se reduz a uma contraposição ao verdadeiro. O falso nas teias de Foucault se desdobra como máquina produtora de uma experiência que se duplica na direção de uma outra maneira de pensar – na outra margem do jogo binário: verdadeiro-falso – que visa constituir-se como potência plástica em sintonia com a vida, numa composição cujo signo é uma vontade de ilusão, ou seja, potência do falso: vontade artística.

É nessa dimensão que, pelos experimentos que propõe Ney Ferraz Paiva, acontece o encontro entre Francesca Woodman e Michel Foucault. Atravessamento exterior às articulações identitárias – para além do binômio: imagem-representação – no qual o falso enuncia, como um jogo de simulacros, um plano ilimitado de possibilidades. Agenciamento que vem pela força dos simulacros, constituindo linhas diversas, verdadeira heterogeneidade, a partir do qual o pensamento alcança sua duplicidade, ecoando numa atmosfera cuja imagem (a imagem do pensamento) só é possível numa conformação plural. Constelação imagética em ininterrupta variação, sinuosa afirmação da diferença, ou melhor, experiência desempregada tanto da contradição lógica, quanto da síntese dialética. Trata-se de um agenciamento que não fixa ou representa, mas que opera por deslizamentos, transformações e metamorfoses.

O mundo no qual Foucault pode reclinar a cabeça é, nesta instigante exposição, o mundo-limite-dos-espectros, mundo outro de Francesca Woodman, fértil em disjunções, incisões, simulacros. Orbe-fronteiriço entre a decomposição do corpo e a recomposição das imagens, para além do rastro de Francesca, na fronteira do que pode uma experiência. Mundo no qual se configura, nesse estilhaçamento entre imagem/corpo, uma arrebatadora produção de outramento, entre os quais: Paiva-Woodman-Foucault/Woodman-Paiva/Foucault-Woodman. Percurso inquieto para o fundo sem fundo dos abismos da imagem-pensamento.

Nessa atmosfera, o que persiste são metamorfoses. Essas mutações nos provocam uma sensação de estranhamento. Não há miragens, as imagens são como blocos que se espalham em torno do espaço, fragmentando-se ao confim, subvertendo os contornos da própria identidade, no movimento de uma imagem que sempre migra. Esses deslocamentos causam incômodos, mas sua força, seu modo de nos arrancar os olhos, consiste exatamente nesse estranhamento. A imagem mantém-se em nós por uma situação-indescritível-de-despertencimento, tal como algo que vimos,

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mas que não conseguimos apreender, pois essas imagens são demasiadamente fugidias, lisas como um vulto.

É dessa maneira que atravessamos o mundo onde Foucault pode reclinar a cabeça, como vultos perseguindo fantasmas ou, de outra maneira, como aqueles que veem e são vistos, “num inelutável paradoxo no qual o que vemos só permanece em nossos olhos pelo o que nos olha”. Com efeito, “nos olha para que possamos experimentar, com toda evidência o que não vemos”. E nessa experiência – tal como acontece no encontro com as imagens de Woodman –, “sentimos algo que nos escapa” (GDH, 1998. p, 34).

Francesca Woodman figura curiosa que, como suas imagens, seduziu sem deixar pistas. Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: seu devir-outro-fotográfico, sua imagem-vulto: algo que atravessa o espaço intenso do presente refletindo uma outra imagem, o além de si, que vaga desfocada, entranhada entre o tempo e o espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, tal como uma sombra que vaga pelas superfícies, transitando pelas coisas, sem expressar dor, sossego ou vontade.

Os objetos, fotografias e outros experimentos espalhados criativamente no arco da exposição, Um mundo onde Foucault possa reclinar a cabeça, evocam a dispersão do corpo, do rosto e do próprio olhar, numa aposta na qual o corpo jaz enterrado na fronteira entre a ausência e a aparição. Trata-se de um corpo im-possível, exumado do mundo fotográfico, mas sempre de passagem a um outro plano, no interstício de uma situação falha que, quando mirado, se dispersa no outro do mundo. Nesse âmbito não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. Pois esse corpo pouco revela. A verdade de sua aparência é o próprio falso.

A sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas talvez de uma sombra, de algo que é inteiramente vivo e, no entanto, impalpável. Há nessas imagens algo que nos força a pensar, algo que nos arremessa ao encontro de uma experiência (de pensamento) em que vozes se atravessam. Por vezes, no encontro com essas imagens, ouvimos Baudelaire: “as formas fluíam como um sonho além da vista,/Um frouxo esboço em agonia”. O sopro baudelairiano, nesse contexto, nasce do sentimento de transitoriedade que é radicalizado com o advento que confere, no presente, a presença. Mas noutro sentido, na composição com as imagens de Woodman, configura-se como uma experiência de autodestruição criadora, ou melhor, uma imagem (além da vista) que não cessa.

Mas isso, esse turbilhão de coisas e vozes, nas imagens de Francesca, só pode ser apreendido a partir de uma perspectiva da sensação, numa leitura-gozo que faz o olhar mergulhar no diverso e nele se perder. Em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, essas imagens só podem ser sentidas. Não é uma estrutura, mas uma abertura, a fissura pela qual os olhares vazam. Nessa exposição cada imagem parece perdida de uma atmosfera da semelhança, como se estivessem mergulhadas em um contínuo jogo de simulacros em que a origem, a verdade, a matriz, há muito se apagaram.

Page 13: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Série Vigília. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

Page 14: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Série Vigília. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

Page 15: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Série Vigília. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Série Fomos tão longe, acabou. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Foucault – entre os nomes de França (Barthes, Deleuze, Derrida) que formam o quadrilátero da alta modernidade do pensamento filosófico voltado para o valor da diferença e do plural (de lá, da modernidade potente, os quatro produzem e disparam os projéteis críticos e inventivos de que se nutrirão a ideia e a práxis nomeadas de o contemporâneo) – talvez seja aquele que mais se empenhe por levar avante o abalo provocado por Nietzsche quanto ao entender e ao desmontar a vida fraca – não altiva – no Ocidente.

Assim, quando na mirada das coisas ditas humanas, cuida Foucault de convocar que desenvolvamos a habilidade reflexiva, plástica e criadora capaz de ver e exibir como grande parte da História nossa construiu-se por meio de modos brutos de assenhorear-se dos (ser a dona de) sentidos, dobrando-os para servirem a intentos políticos privados; e isso, valendo-se de toda sorte de atos de violência postos a serviço de orientar e de moldar os sentidos das coisas prendendo-os em formas fixas, submetidos, portanto, ao império de uma vontade monopolizante.

Foucault contrapõe-se a tal vontade de domínio centralista que tanto asfixia a ‘vida-ela-mesma’ quanto a vida do pensar e do criar e do agir; propõe que olhemos as Histórias, as nossas, como algo a exercer-se no movimento de uma espiral – a cada ida, o retorno; a cada retorno, as tantas e tantas variações: multiplicar, diferir, lancetar, verbos de Foucault; ver o micro do micro do micro, arranhar os cruzamentos entre poderes e saberes, proposições de Foucault.

No terreno de Foucault: o estudo das formações dos saberes; a martelada na ideia de sujeito anônimo e geral da História; a quebra da noção de totalizações culturais e artísticas; o desmanche de toda ilusão de unidades homogêneas. Nessa tarefa de desmontagem de concepções presas à busca infinita de fontes e origem, bem como da busca do fundo guardado de uma verdade-eixo a controlar a diversidade, Foucault diz sim: à dispersão e à exterioridade.

E para compreendermos o destino das formas já construídas e inventarmos mais e mais formas (incluindo-se aí o poder do informe), outro recurso não resta senão o de fazermos, diz Foucault, a genealogia dos instrumentos de que dispomos, e com eles, polidos e reconfigurados, assinalarmos nas diversas emergências de um acontecimento suas transfigurações: ir à riqueza do transfigurar, uma riqueza que das artes fortes advém. Os sentidos das coisas são muitos e são móveis e são plásticos, estão disponíveis: trazem consigo as marcas de suas possibilidades e rumos. A nós, expectantes ativos e afirmativos, cabe reconhecer, na superfície do que seja, os sinais de onde o vigor e a saúde vitais pulsam. Por heterotopias, pois!

A vida heterotópicaRoberto Corrêa dos Santos

Page 18: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

Série Clausura. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Série Eu estou sempre disponível. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Série Cadeira para a possível fadiga de deus. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Série Eu estou sempre disponível. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

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Série Filme ensaio poesia. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

Page 23: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman

IMPRESSÕES Roger Pol-Droit

O que se encontra no começo histórico das coisasnão é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.A história ensina também a rir das solenidades da origem.

MICHEL FOUCAULT“Nietzsche, a genealogia, a história”

A voz é, no início, surda, pouco audível, desconfiada. Ela clareia e torna-se nítida quando ele se sente seguro. Isto é apenas um detalhe, ínfimo, entre centenas de outros. No entanto, nunca mais ouvi ninguém dizer “alô?” daquele jeito, ao mesmo tempo amedrontado, atento, à espreita. Como se, no segundo seguinte, tudo fosse se tornar possível, uma guerra ou um riso, uma ameaça, uma interrogação, alguma armadilha ou um embate.

Foucault, dizendo “alô”, estava alerta. Pronto para tudo, lutar e esquivar-se, brincar ou brigar. Ao que me parece, tinha esta atitude com relação a tudo. Em todas as situações, ou quase, ele aparecia de sobreaviso. Não na defensiva, nada circunspeto, prudente ou reservado. Antes, espreitando, vigilante, pronto para qualquer eventualidade. Penso na famosa frase de Diógenes o Cínico: “O que a filosofia me ensinou? Estar pronto para qualquer eventualidade”. Era isto, sim, a eventualidade. O sentimento do aleatório. A acuidade do guerreiro: quem vem lá? amigo? inimigo? quem quer o que de mim? Mas, dissimuladamente, em voz baixa, sufocada, quase terna: “Alô?”.

Do lado oposto, na outra ponta do espectro, o riso. Os risos, aliás. Pois, deles, Foucault tinha uma palheta muito variada. De conveniência: para se despedir, para acolher, para agradecer, um riso mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo. De zombaria: quando um crítico lhe desagradava, se um adversário o tivesse ferido, aparecia um riso sibilante, mais ou menos metálico. Diante do absurdo, da estupidez, da idiotice, da ignorância crassa, era um riso largo, sonoro, ruidoso. Havia também aquele outro tipo de riso que parecia submergi-lo quando uma palavra, uma lembrança, um gesto o faziam mergulhar de novo, subitamente, mesmo que por um instante, no universo da conquista e dos encontros ao acaso.

Eu só frequentei Foucault por alguns meses, o que é bem pouco. Isso foi o bastante para compreender que havia nele algo inatingível. Mas será que se trata de “compreender”? Não, se considerarmos “compreender” uma operação do entendimento que, ao termo de um processo racional, tem um resultado argumentado como conclusão. Reúno, aqui, apenas algumas impressões, vendo claramente que são antigas e fugidias. Isto não parece um motivo suficiente para afastá-las, menos ainda para não confiar nelas.

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Creio, ao contrário, que convém reabilitar as impressões. O que assim nomeamos, na falta de algo melhor, designa, com efeito, algo que não se encontra, finalmente em nenhum outro lugar. E que não é necessariamente acessório nem negligenciável. Tom de voz, brilho do olhar, postura do corpo, modo de se movimentar ou de se calar, ou de rir, ou de se vestir evocam, amiúde, alguma coisa completamente diferente de um detalhe. Ou melhor: quem então decidiu, desde quando, e como, aquilo que é detalhe e aquilo que não é?

Apagar os traços

Dentre as impressões que me restam na memória, faz trinta anos, há Foucault de negro, numa manhã de inverno, na entrada da Biblioteca Nacional, um pouco esbaforido e inflamado, acabando de descer da bicicleta, falando rápido, antes de imergir na jornada dos livros. Foi talvez – eu não sei mais – a primeira vez que o vi. Eu estava evidentemente impressionado por encontrar aquele que alguns de nós estávamos lendo com paixão, há muitos anos. Nós o tínhamos apelidado “a cantora careca”, com uma ironia afetuosa e admirativa. E tendo vindo de bicicleta, isto tinha me impressionado. Um sentido do corpo, uma atenção cuidadosa com o esforço, com o músculo, com a esbeltez, mas sem ostentação, como uma brincadeira, uma maneira de passear, um modo também de flanar pela cidade. A impressão de que ele era livre sempre.

Impressão confirmada, com ou sem razão, por sua aparente disponibilidade. Há pessoas que nunca têm o horário de almoço livre, antes do próximo trimestre, e, às vezes, com um pouco de sorte, só o tempo para o café, mas apenas no mês seguinte. Eu ficava muito surpreso que Foucault, solicitado, célebre, já mundialmente conhecido, causasse sempre a sensação, quando desejávamos encontra-lo, de não ter nada para fazer no dia seguinte. Parecia deixar seu interlocutor escolher o dia e a hora, como se ele tivesse todo o tempo disponível, e nada mais para fazer. Era algo simulado, mas não sem elegância.

Assim, podíamos almoçar. Notadamente no Mercure Galant, atrás da Biblioteca Nacional da rua Richelieu, restaurante que hoje não existe mais. Este lugar parecia corresponder a Foucault. Havia aí, com efeito, um curioso misto de decoração clássica e de universo insólito. O que confirma sua reação às questões que eu lhe colocava, nesta época, nestes lugares. O que me interessava: sua relação com Kant. Ele havia traduzido Antropologia do ponto de vista pragmático. Este trabalho tinha sido, ao lado de História da loucura, sua tese complementar. E depois, aparentemente, mais nada. Por quê? Como? Não havia alguma coisa, apesar de tudo, que perdurasse em segredo? Visivelmente, essas interrogações o irritavam muito rapidamente. Uma resposta cortante caía: “Neste momento, eu me interesso pelas portas das retretes nas casernas alemães do século XVIII”. Clássico, sim, e, ao mesmo tempo, defasado. Modernidade atravessada por misturas.

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Mesma impressão no apartamento de Foucault, no último andar de um prédio moderno, não longe da estação de metrô Vaugirard. A primeira vez que fui lá, tudo me pareceu curiosamente moderno. Até me surpreendi, não sei porque, que a cozinha tivesse um microondas e que Foucault, com uma camisa de gola rolê branca, preparasse, ele mesmo, um prato de frango ligeiramente cremoso. E depois ele me explicou, rindo, como a parede do fundo, que parecia uma estante de livros fixa, deslizava, para comunicar o seu apartamento com outro, onde morava seu companheiro. Conforme os visitantes, esta divisória ficava fechada ou aberta.

Na decoração contemporânea, quase design, deste apartamento luminoso, subsistia então, com esta divisória de correr, um quê de uma sombra antiga. Brincadeira de piratas, esconderijo, armadilha, censura. Não é uma piscadela para a história antiga das portas ocultas e das passagens secretas que está aqui em questão. Também não se trata do cuidado que Foucault tinha em só viver abertamente de maneira seletiva. É algo muito difícil de entender, mas interessante, talvez.

Parece que em sua casa existem, um pouco por toda parte, gavetas secretas, fundos por detrás de outros, disfarçados. Não que sua obra seja esotérica, evidentemente. Fora de questão inscrevê-la na linhagem dos ocultistas e outros autores criptônimos. Porém, as relações de um livro com outro, por exemplo, geralmente se ocultam. As continuidades são marcadas. Na vida do homem, parece-me que o mesmo acontece. Se Foucault tem tantas faces que, frequentemente, não se encaixam, ou tão mal, é também porque ele queria apagar os traços, organizar lacunas, deixar silêncios. É também uma maneira de ser livre.

E havia muita liberdade em Foucault, de modo sempre singular. Fiquei surpreso com as posturas, nas vezes em que o encontrei em sua casa. Ao falar, ele tinha maneiras não fixas, pouco comuns, de segurar a cabeça com uma só mão, ou de cruzar uma perna, ou ainda de deixar pender um braço. Não vejo aí, simplesmente, sinais de descontração, atitudes descontraídas de alguém que está em casa e que pode, falando, sentar-se sobre a perna ou meio que se atirar no sofá.

Certamente isto acontecia. Mas também outra coisa. Como um gestual do corpo codificado de modo diferente do que nas convenções que regem também a descontração. Uma maneira livre de se portar, diferente, prestes a perturbar a ordem das posturas ditas normais do corpo em sociedade. Talvez fosse necessário aproximar isto de tudo aquilo que Foucault estudou sore o adestramento dos corpos na sociedade disciplinar, em que se trata justamente de restringir ou de anular a parte do movimento corporal livre e espontâneo.

O que é curioso, é que, até onde eu me lembre, essas posturas atípicas, essas maneiras de se portar diferentes, nunca davam a impressão de um desleixo qualquer. Foucault podia ser desengonçado, nunca estava relaxado nem desleixado. Porque, parece-me, havia nele como que uma vigilância sempre alerta, algum movimento sempre organizado uma retirada, uma distância. Impossível imaginá-lo desatento, impossível também imaginá-lo ingenuamente simples.

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Série Clausura. Fotografia. Ney Ferraz Paiva. 2014.

Page 27: Ney Ferraz Paiva | Exposição: Foucault & Francesca Woodman
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GALERIA THEODORO BRAGA

Governo do Estado do ParáSimão Jatene

Secretaria Especial de Promoção Social

Alex Fiúza de Mello

Presidente da Fundação Cultural Tancredo NevesNilson Chaves

Diretora de Interação CulturalLuciete Bastos de Araújo

Gerente de Linguagem VisualFátima Silva

Gerente da Galeria Theodoro BragaEliane Moura

Equipe da Galeria Theodoro Braga João Paulo do Amaral

Renato TorresSan Rodrigues

Felipe Samir (estagiário)

Projeto GráficoEliane Moura

CenografiaExperiacto Atelier

Montagem e IluminaçãoJoão Paulo do Amaral e San Rodrigues

Realização

Apoio Cultural