naguib mahfuz - as noites das mil e uma noites

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  • 8/3/2019 Naguib Mahfuz - As Noites Das Mil e Uma Noites

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    As Noites das Mil e Uma Noites

    NAGUIB MAHFUZDirio de Notcias

    Digitalizao e Arranjo

    Agostinho CostaE-mail: [email protected]

    Naguib Mahfuz (Cairo, 1911), o "escritor da alma partida do Egipto", econsiderado o mais importante e reverenciado prosador rabe contemporneo.O Beco dos Milagres, Trilogia do Cairo, Filhos do nosso Bairro, so obras de

    caracter realista que reflectem a vida quotidiana da sua cidade natal. Outras, comoO Ladro e os Ces, A Codorniz e o Outono ou Miramar,so fbulas que insinuam uma significao transcendente.

    A sua ultima produo est constituda por relatos como Lua de Mel, O Crime ou

    O Amor Sobre as Pirmides.

    Ttulo original: Layali alf-layla

    Traduo

    Cristina Rodriguez e Artur Guerra

    Traduo cedida por Difel, S.A.

    1982 Naguib Mahfuz

    First published in Arabic in 1982

    As Noites das Mil e Uma Noites

    Naguib Mahfuz

    Prmio Nobel 1989

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    ndice

    ShahriarXerazade

    O xequeO Caf dos EmiresSanaan Al-GamaliGamasa al-Bulti .O transportador

    Nur al-Dine DoniazadeAs aventuras do barbeiro UgrAnees al-GaleesQutal-QuloubAladino com os sinais no rosto

    O sultoO gorro da invisibilidadeO sapateiro MarufSindbadOs que choram

    Shahriar

    Depois da orao da aurora, enquanto nuvens de escurido desafiavam osraios de enrgica luz, o vizir Dandan foi chamado a apresentar-se perante o sultoShahriar. A sua compostura dissipou-se e no peito palpitou o seu corao de pai.

    Enquanto se vestia, balbuciou: Agora cumprir-se- o destino, o teudestino, Xerazade.

    Foi pelo caminho que sobe montanha montado num rocinante seguido porum grupo de guardas. Precedia-os um homem que levava um archote numaatmosfera impregnada de orvalho e de uma agradvel frescura. Passara trs anosentre medo e expectativa, entre morte e esperana. Tinham decorrido ao mesmotempo que as histrias, graas s quais a vida de Xerazade se prolongara trs anos.

    No entanto, como tudo, as histrias tambm tm um fim, e haviam-se acabado no

    dia anterior. Que destino te esperar, minha querida filha?, interrogou-se.Entrou no palcio situado no cimo da montanha. O camareiro conduziu-o auma varanda traseira que dava para um jardim. Shahriar estava sentado luz deuma nica lmpada, de cabea descoberta, mostrando o negro e espesso cabelo; osseus olhos brilhavam no rosto comprido e a sua ampla barba espalhava-se pela

    parte superior do peito. Dandan beijou o cho frente dele e sentiu, apesar da sualonga relao, medo de um homem cuja histria estava cheia de severidade,

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    impiedade e sangue inocente. O sulto mandou apagar a lmpada. A escuridoreinou; as silhuetas das rvores que exalavam um fragrante aroma mergulharamnuma semiobscuridade.

    - Que tudo fique escuro para que eu possa contemplar a efuso da luz -sussurrou Shahriar.

    - Que Deus conceda a vossa majestade a fruio de tudo o que h de melhorna noite e no dia - exclamou Dandan com um laivo de esperana.Silncio. Dandan no conseguiu vislumbrar no seu rosto alegria ou aborrecimentoat que o sulto disse com tranquilidade:

    - nosso desejo que Xerazade continue como nossa esposa. Dandanergueu-se e depois inclinou-se sobre a mo do sulto

    beijando-a com fervor, enquanto lgrimas de agradecimento se agitavam no seuinterior.

    - Que Deus apoie a vossa governao para todo o sempre.- A justia - disse o sulto, como se recordasse as suas vtimas - tem

    diversos mtodos, entre eles a espada e o perdo. Deus tem a Sua sabedoria.- Que Deus guie os passos de vossa majestade para a Sua sabedoria.- As suas histrias possuem uma branca magia - disse o sulto, satisfeito -,

    abrem mundos que convidam reflexo.O vizir calou-se, brio de alegria, e o sulto continuou:- Deu-me um filho e apaziguaram-se os tormentos da minha alma agitada.- Que vossa majestade goze de felicidade neste mundo e no outro.- Felicidade! - murmurou o sulto rispidamente. Dandan sentiu uma

    preocupao indefinida enquanto se ouviao canto dos galos. Como que falando consigo mesmo, o sulto disse:

    - A existncia o maior enigma do mundo. - No entanto, o seu tom deperplexidade aligeirou-se quando exclamou: - Olha, ali!Dandan olhou para o horizonte e viu o seu brilho com sagrada alegria.

    Xerazade

    Dandan pediu permisso para ver a sua filha Xerazade. Foi acompanhadopor uma ama at aos aposentos cor-de-rosa com tapetes e cortinas da mesma cor edivs e almofadas em tons de vermelho. Ali foi recebido por Xerazade e a sua irm

    Doniazade.- Estou a transbordar de alegria, graas a Deus, Senhor dos mundos.Xerazade sentou-o a seu lado enquanto Doniazade se retirava para a sua

    cmara privada.- Salvei-me de um destino sangrento, graas a Deus - disse Xerazade.Ainda mal o homem balbuciava os seus agradecimentos j ela acrescentava

    com amargura:

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    - Que Deus tenha misericrdia das virgens inocentes.- Como s sensata e corajosa!- Mas tu sabes, pai, que no sou feliz.- Tem cuidado, filha, pois nos palcios os pensamentos materializam-se e

    falam.

    - Sacrifiquei-me para deter a torrente de sangue - reconheceu ela comtristeza.

    - Deus tem a Sua sabedoria - murmurou ele.- E o diabo os seus amigos - disse ela com rancor.- Ele ama-te, Xerazade - alegou o pai.- A arrogncia e o amor no podem habitar no mesmo corao. Ele ama-se

    unicamente a si mesmo.- O amor tambm faz milagres.- De cada vez que se aproxima de mim respiro o cheiro do sangue.- O sulto no como o resto dos homens.

    - Mas o crime o crime. Quantas virgens ele matou! Quanta gente piedosae temente a Deus ele aniquilou! No reino s restam os hipcritas.- A minha confiana em Deus nunca foi abalada.- Quanto a mim, sei que o meu valor espiritual a pacincia, como me

    ensinou o grande xeque.- Que excelente mestre e que excelente aluna! - disse Dandan, sorrindo.

    O xeque

    O xeque Abdullah al-Balkhi vivia numa casa modesta no bairro velho. Oseu olhar sonhador reflectia-se nos coraes de muitos dos seus antigos e tambmdos mais recentes estudantes e ficava profundamente gravado nos coraes dosseus discpulos. Nele a devoo total no era mais do que um prlogo, pois era umXeque do Caminho, depois de ter alcanado um alto grau no plano espiritual doamor e da satisfao.

    Quando saiu do seu lugar de recluso para ir para a sala de recepo,Zobeida, a sua jovem e nica filha, foi ao seu encontro e disse-lhe com alegria:

    - A cidade est jubilante, pai.- Ainda no chegou o doutor Abdul Qadir al-Mahini? - perguntou sem

    prestar ateno s suas palavras.- Talvez venha a caminho, pai, mas a cidade est jubilante porque o sultoquis que Xerazade fosse sua esposa e renunciou a derramar mais sangue.

    Nada perturbava a calma do xeque: a alegria do seu corao nem diminuanem aumentava. Zobeida, filha e discpula, ainda estava no princpio do Caminho.Ao ouvir que batiam porta, ela levantou-se dizendo:

    - O teu amigo veio fazer a sua visita.

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    Abdul Qadir al-Mahini entrou; deram um abrao e depois o doutor sentou-se ao lado do seu amigo. Como de costume, a conversa teve lugar luz de umalmpada num nicho.

    - Certamente j sabes da boa notcia - disse Abdul Qadir.- Sei o que me compete saber - disse com um sorriso.

    - As vozes erguem-se em orao por Xerazade, o que demonstra que s tuquem tem mais mrito - replicou o doutor.

    - O mrito s do Amado - replicou o outro.- Eu tambm sou crente, mas sigo as promessas e os resultados. Se

    Xerazade no tivesse sido tua discpula, apesar do que dizes, no teria encontradohistrias para afastar o sulto do derramamento de sangue.

    - Ai, meu amigo! O nico defeito que tens a tua exagerada submisso aointelecto - afirmou o xeque.

    - o principal atributo do homem.- atravs do intelecto que conhecemos os limites do intelecto.

    - H crentes que so da opinio que no tem limites - contestou AbdulQadir.- Fracassei na tentativa de conduzir muitos pelo Caminho, principalmente a

    ti.- Os seres humanos so pobres criaturas, mestre, e precisam de algum que

    os ilumine nas suas vidas.- Quem possuir uma alma pura poder salvar um povo inteiro - respondeu o

    xeque com confiana.- Ali al-Saluli o governador do nosso bairro. Como que se pode salvar o

    bairro da sua corrupo? - perguntou o doutor, repentinamente mostrando irritao.- Mas os que se esforam so de diferentes classes - respondeu o xeque com

    tristeza.- Eu sou mdico, e o que bom para o mundo o que me interessa. - O

    xeque deu umas pancadinhas suaves na sua mo e o mdico afirmou sorrindo: -Mas tu s a bondade e a sorte em pessoa.

    - Dou graas a Deus por permitir que a alegria no me perturbe e a tristezano me tenha tocado - respondeu o xeque.

    - Em compensao eu, querido amigo, estou triste. De cada vez que melembro dos homens tementes a Deus que foram martirizados por dizer a verdade e

    protestar contra o derramamento de sangue e o saque das propriedades, a minhatristeza aumenta.

    - Com que fora nos agarramos s coisas materiais! - exclamou o xeque.- Foi martirizada gente nobre e piedosa - contestou Abdul Qadir com dor. -Como eu tenho pena de ti, cidade minha, que agora ests a ser governada porhipcritas! Porqu, mestre, resta no estbulo s o pior gado?

    - Como so numerosos os que amam coisas vis!Ouviram sons de flautas e tambores e aperceberam-se de que as pessoas

    estavam a festejar a feliz notcia. Ento o doutor decidiu ir ao Caf dos Emires.

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    O Caf dos Emires

    O caf ficava situado no lado direito da longa rua comercial. Espaoso e deplanta quadrada, com a entrada para o passeio pblico, as suas janelas davam para

    ruas laterais e casas vizinhas. Ao longo das paredes havia almofadas para osclientes distintos, e no centro, dispostos em crculo, tapetes para as pessoasvulgares se sentarem. Serviam-se bebidas variadas, quentes e frias, consoante asestaes, e tambm se podiam encontrar xaropes medicinais e haxixe da melhorqualidade. noite viam-se ali muitos clientes distintos, como Sanaan al-Gamali eo seu filho Fadil, Hamdan Tuneisha e Karam al-Asil, Sahloul e Ibrahim al-Attar eo seu filho Hasan, Galil al-Bazzaz, Nur al-Din e o corcunda Shamloul.

    Tambm havia muita gente do povo, como o transportador Ragab e o seuamigo Sindbad, Ugr o barbeiro e o seu filho Aladino, o aguadeiro Ibrahim e osapateiro Maruf. A alegria reinava nessa noite feliz. O doutor Abdul Qadir al-

    Mahini juntou-se ao grupo que estava no caf, bem como Ibrahim al-Attar, Karamal-Asil, o milionrio, e Sahloul, o mercador de mobilirio e obras de arte. Nessanoite tinham-se libertado do medo que os invadia e todos os que tinham belasfilhas virgens sentiam-se tranquilos: finalmente podiam dormir em paz, livres deespectros assustadores.

    - Vamos recitar a Fatiha pelas almas das vtimas - diziam alguns.- Pelas virgens e pelos homens piedosos.- Adeus s lgrimas.- Graas a Deus, Senhor dos mundos.- E longa vida a Xerazade, a prola das mulheres.- Graas s suas belas histrias.- apenas a descida da misericrdia divina.A alegria e a conversa continuaram, at que se ouviu a voz do transportador

    Ragab dizer com espanto:- Ests louco, Sindbad?Ugr, que gostava de meter o nariz em tudo, perguntou:- O que que lhe deu nesta noite to feliz?- Parece que odeia o seu trabalho e est farto da cidade. No quer continuar

    a ser transportador.- Ser que ambiciona mandar no quarteiro?- Foi ter com o capito de um barco e insistiu at que conseguiu que o

    aceitassem como criado.Ibrahim, o aguadeiro, interveio:- Deve estar realmente louco quem deixa uma vida segura em terra firme

    para correr atrs de uma vida incerta no mar.- O mar que se alimentou de cadveres desde os tempos mais remotos -

    altercou o sapateiro Maruf. Mas Sindbad respondeu com ar de desafio:- Estou farto de ruas e vielas, e tambm de transportar mveis sem

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    esperana de ver algo novo. Ali h outra vida, o rio junta-se ao mar, o mar penetrano desconhecido e o desconhecido pare ilhas e montanhas, seres vivos, anjos edemnios. um apelo mgico a que no consigo resistir. Disse para mim mesmo:experimenta a tua sorte, Sindbad, e atira-te para os braos do invisvel.

    - No movimento h uma bno - assegurou Nur al-Din, o vendedor de

    perfumes.- Uma bonita saudao de um amigo de infncia - respondeu Sindbad.- Queres aparentar ser da classe alta, transportador? - perguntou o barbeiro

    Ugr com ironia.- Sentmo-nos lado a lado na sala de oraes para receber o ensino do nosso

    mestre Abdullah al-Balkhi - disse Nur al-Din.- E, como muitos outros, contentei-me com os rudimentos de leitura e de

    religio - admitiu Sindbad.- A terra seca no ficar diminuda com a tua partida, nem o mar aumentado

    - replicou Ugr.

    Ento, o doutor Abdul Qadir al-Mahini disse:- Vai com Deus, mas agua a tua inteligncia. Seria bom registares todas asvises maravilhosas que encontrares, pois Deus assim no-lo ordenou. Quando

    partes?- Amanh de manh - sussurrou Sindbad. - Deixo-vos com Deus, o Vivo, o

    Eterno.- Como triste separar-me de ti, Sindbad! - exclamou o seu amigo Ragab, o

    transportador.

    Sanaan Al-Gamali

    O tempo deu uma pancada singular dentro dele que o fez acordar. Dirigiu oolhar para a janela perto da cama e viu a cidade envolta em escurido. O sonodespojara-a de movimento e barulho como se permanecesse num silncio repletode calma csmica.

    Separou-se do corpo morno de Umm Saad, levantou-se, e os seus psafundaram-se no suave tapete persa. Estendeu os braos procura do candelabro echocou com um objecto slido.

    - Que isto? - perguntou assustado.estranho queixume que nunca ouvira e no era nem humano nem animal

    privou-o de toda a sensao, era como se se propagasse por toda a cidade.- Tropeaste na minha cabea, cego! - exclamou uma voz zangada.Caiu ao cho com medo. Era um homem sem o mais pequeno tomo de

    coragem: s era bom a comprar, a vender e a regatear.- Tropeaste na minha cabea, homem ignorante - disse a voz.- Quem s tu? - perguntou ele com voz trmula.- Sou Qumqam.

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    - Qumqam?- Um gnio habitante da cidade.Quase a desmaiar de medo, formou-se-lhe um n na garganta.- Magoaste-me e tens de ser punido.A sua lngua foi incapaz de se defender. Qumqam continuou:

    - Ontem ouvi-te dizer, hipcrita, que a morte uma dvida que temos depagar. Porque que agora te mijas de medo?

    - Tem piedade de mim, sou pai de famlia! - suplicou por fim.- O meu castigo recair apenas sobre ti.- No tive qualquer inteno de te magoar.- Mas que criaturas mais inquietas vocs so! Esto sempre ansiosos por

    nos escravizar a fim de conseguirem os vossos vis objectivos. A vossa avidez nofica satisfeita com escravizar os mais fracos de vs?

    - Juro-te...- No me inspira confiana o juramento de um mercador.

    - Peo-te misericrdia e perdo.- O que me levaria a conceder-tos?- O teu grande corao... - disse ele ansiosamente.- No tentes enganar-me como aos teus clientes.- F-lo por nada, por amor a Deus.- No h misericrdia nem perdo sem um preo.Sanaan vislumbrou um raio de esperana e disse com entusiasmo:- Farei o que quiseres.- De verdade?- Com todas as minhas foras - assegurou com impacincia.- Mata Ali al-Salouli - ordenou o gnio com uma calma terrvel. A alegria

    de Sanaan afogou-se numa inesperada decepo, comouma mercadoria que se obtivesse do mar correndo grande risco e depois, aoexamin-la, se descobrisse a sua inutilidade.

    - Ali al-Salouli, o governador do nosso bairro? - perguntou horrorizado.- Ele mesmo.- Mas governador, vive na mais do que guardada Casa da Felicidade e eu

    sou apenas um comerciante.- Ento no haver misericrdia nem perdo - exclamou o gnio.- Senhor, porque no o matas tu prprio?- Traz-me dominado com a sua magia negra - disse com desespero - e

    utiliza-me para fazer coisas que a minha conscincia no aprova.- Mas vocs so uma fora que ultrapassa a magia negra.- No entanto estamos sujeitos a leis especficas. Pra de discutir; ou aceitas

    ou rejeitas.- No tens outros desejos? - perguntou Sanaan. - Possuo muito dinheiro e

    tambm bens da ndia e da China.- No percas tempo inutilmente, louco.

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    - Estou tua disposio - admitiu em desespero terrvel.- Toma cuidado e no tentes enganar-me.- Resignei-me ao meu destino.- Apanhar-te-ei mesmo que te refugies nas montanhas de Qaf, nos confins

    do mundo.

    Ento Sanaan sentiu uma forte dor no brao e deu um grito dilacerante.

    Sanaan abriu os olhos ao ouvir Umm Saad, que lhe dizia: Porque queficaste a dormir at to tarde?. Acendeu o candelabro e comeou a olhar em volta,aturdido. Se no tinha sido mais do que um sonho, porque que o preenchia maisdo que o prprio despertar? No entanto, fora to real que o deixara aterrado.

    Apesar de tudo comeou a tentar pensar noutras coisas e sentiu que renascianele a calma. O mundo voltara sua perspectiva devida depois da runa total.Como a vida era agradvel depois das torturas do inferno!

    - Refugio-me de Satans em Deus - exclamou.

    Umm Saad olhou para ele enquanto metia umas madeixas de cabelo dentrodo leno que lhe cobria a cabea. O sono tinha apagado o esplendor do seu rostotornando-o amarelado.

    - Deus seja louvado, que me salvou de uma imensa aflio - exclamouSanaan, embriagado pela sensao de alvio.- Que Deus nos proteja, pai de Fadil.- Tive um sonho terrvel, Umm Saad.- Se Deus quiser tudo ficar bem.Ela dirigiu-se para a casa de banho e acendeu uma pequena lmpada num

    nicho. Ele seguiu-a, dizendo:- Passei parte da noite com um gnio.- Como que isso possvel, sendo tu um homem temente a Deus?- Vou contar tudo ao xeque Abdullah al-Balkhi. Agora vai em paz, pois vou

    fazer as ablues.Quando estava a lavar o brao esquerdo, parou, tremendo.- Ai meu Deus!Olhou assustado para a ferida, como que de mordedura. No era uma iluso

    o que estava a ver, pois o sangue escorrera de onde as presas haviam penetrado nacarne.

    - No possvel.Correu aterrorizado para a cozinha. Umm Saad perguntou-lhe enquanto

    acendia o forno. -J fizeste as ablues?- Olha - disse ele mostrando-lhe o brao.- O que que te mordeu? - perguntou ela sem flego.- No sei.- Mas tu dormiste to bem! - exclamou ela com grande ansiedade.- No sei o que aconteceu.- Talvez tenha sido durante o dia.

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    - No, no foi durante o dia.Trocaram um olhar de angstia carregada de obscuros pensamentos.- Conta-me o que sonhaste - pediu-lhe ela assustada.-J te disse que era um gnio - replicou Sanaan, preocupado -, mas foi s

    um sonho.

    Mais uma vez trocaram olhares e a dor da ansiedade.- Guardemos o segredo - aconselhou Umm Saad.Sanaan compreendeu que o medo dela correspondia ao seu. Se

    aquilo do gnio se divulgasse no sabia quais as consequncias para a suareputao e para a dos seus filhos, Husniya e Fadil. O sonho poderia trazer a runatotal. Mas tambm no tinha a certeza de nada.

    - Um sonho um sonho - disse Umm Saad -, e o segredo da ferida s Deuso sabe.

    - disso que nos devemos lembrar - respondeu ele sombriamente.- O importante agora curares-te. Vai ver o teu amigo Ibrahim al-Attar.

    Como poderia ele saber a verdade? Estava com uma tal ansiedade que sesentia ferver de clera e de raiva. Parecia-lhe que ia de mal a pior. Os seussentimentos estavam carregados de dio e a sua natureza alterara-se, como setivesse sido criado de novo numa forma que era o oposto da sua suavidadeenraizada. J no conseguia suportar os olhares da sua mulher; comeou a odi-los,

    bem como at os seus pensamentos. Sentiu vontade de destruir tudo o que existia.Incapaz de se conter, trespassou Umm Saad com um olhar rancoroso, como

    se a acusasse de ser culpada da sua situao. Depois virou-lhe as costas e foi-seembora.

    - Este no o Sanaan de antes - murmurou ela.Sanaan encontrou Fadil e Husniya na sala sob a dbil luz que se infiltrava

    pelos buracos da gelosia. Nas suas caras desenhou-se a inquietao medida queerguia a sua voz excitada. A sua raiva aumentou, e gritou-lhes sem qualquermotivo e contrariamente ao seu costume:

    - Saiam da minha vista.Fechou a porta do quarto e comeou a ver o brao. Fadil arriscou ir ter com

    ele:- Espero que estejas bem, pai - disse, ansiosamente.- Deixa-me sozinho - grunhiu ele.- Mordeu-te um co?- Quem que te disse isso?

    - A minha me.Apreciou a prudncia da sua mulher, e confirmou, mas o seu humor nomelhorou.

    - No nada, estou bem, mas deixem-me s.- Devias ir ao farmacutico.- No preciso que ningum mo diga. Depois de sair, Fadil disse a Husniya:- Como o nosso pai est mudado!

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    Pela primeira vez na vida, Sanaan al-Gamali saiu da sua casa sem fazer assuas oraes. Dirigiu-se imediatamente loja de Ibrahim, o farmacutico, umvelho amigo e vizinho na rua comercial. Quando o farmacutico lhe viu o brao,

    perguntou espantado:- Que raio de co foi este? Mas a verdade que h tantos ces vadios... -

    Saiu para fazer uma seleco de ervas, dizendo: - Tenho um remdio infalvel.Ferveu as ervas at largarem uma substncia viscosa. Lavou a ferida com

    gua de rosas, cobriu-a com a substncia, espalhando-a com uma esptula demadeira, e depois fez uma ligadura com musselina de Damasco.

    - Que Deus permita que se cure - disse ele. Ento Sanaan exclamouinvoluntariamente:

    - Ou o Diabo que faa o que quiser.Ibrahim al-Attar olhou interrogativamente para o rosto congestionado do

    seu amigo e, espantado com a mudana, aconselhou-o: - No permitas que umainsignificante ferida mude o teu carcter calmo.

    - No confies neste mundo, Ibrahim - respondeu Sanaan com expressomelanclica.Como ele estava apreensivo! Era como se se tivesse lavado numa poo de

    pimenta picante. O sol estava quente e agreste e a cara das pessoas parecia triste.Fadil tinha chegado loja antes dele e recebeu-o com um sorriso radiante

    que aumentou o seu mau humor. Maldisse o tempo, apesar da sua conhecidaaceitao de todo o tipo de climas, no cumprimentou ningum nem devolveu oscumprimentos, no se alegrou por ver nem ouvir ningum, no se riu das piadasnem se afligiu passagem de um funeral nem ficou contente com uma cara bonita.

    O que se passava com ele? Fadil trabalhou mais intensamente para mediarentre o seu pai e os clientes. Alguns perguntaram-lhe em voz baixa:

    - O que que o teu pai tem hoje? E o jovem respondia:- Est indisposto. Deus queira que nunca te vejas doente.

    Os clientes habituais do Caf dos Emires no tardaram a conhecer a suasituao. Passou junto a eles impassvel e sentou-se em silncio; participou numaou noutra conversa distrada, embora sem fazer qualquer comentrio jocoso. Aseguir levantou-se e saiu do caf.

    - Foi mordido por um co selvagem - garantiu o farmacutico Ibrahim.- Perdemo-lo completamente - comentou Galil al-Bazzaz.- Mas o seu negcio est florescente - altercou Karam al-Asil, o milionrio

    com cara de macaco.- O valor do dinheiro evapora-se quando estamos doentes - sentenciou odoutor Abdul Qadir al-Mahini.

    E Ugr, o barbeiro, o nico entre os que estavam sentados no cho que svezes participava nas conversas dos clientes distintos, resumiu em tom filosfico:

    - O que o homem? A mordedura de um co ou a picada de uma mosca...Mas Fadil gritou-lhe:

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    - O meu pai est bem. Est apenas indisposto, quando nascer o dia j ficarperfeitamente.

    No entanto, Sanaan foi ficando cada vez pior at chegar a um estado que setornou difcil controlar. Finalmente, uma noite tomou uma forte dose deestupefacientes e saiu do caf cheio de energia e pronto a enfrentar o

    desconhecido.Rejeitou a ideia de ir para casa e comeou a dar voltas na escurido guiado

    por loucas fantasias. Desejava que acontecesse algo que dissipasse o seu rebeldeestado de tenso e o aliviasse do seu tormento. Recordou mulheres da sua famliaque tinham morrido h muito tempo e lhe apareciam nuas e em poses sexualmentesugestivas e sedutoras, e lamentou no ter obtido nada de nenhuma delas. Passou

    pelo beco do xeque Abdul-lah al-Balkhi e por instantes pensou visit-lo econfessar-lhe o que lhe tinha acontecido, mas acabou por seguir apressado. luzda lmpada pendurada sobre a porta de uma casa viu uma menina de uns dez anosque levava uma grande vasilha de metal. Correu para ela, bloqueando-lhe o

    caminho e perguntando:- Aonde vais, pequena?- Vou voltar para a minha me - respondeu ela inocentemente.Ele mergulhou na escurido at j no conseguir v-la.- Anda c - disse ele. - Vou mostrar-te uma coisa bonita. Pegou-lhe ao colo

    e a gua do recipiente entornou-se sobre aroupa de seda de Sanaan. Levou-a para debaixo das escadas da escola primria. Amenina estava confusa com a sua estranha ternura e no se sentia bem.

    - A minha me est minha espera - disse ela, nervosa. Contudo, eleprovocava-lhe tanto a curiosidade como medo. Aidade, que lhe fazia lembrar a do seu pai, inspirava-lhe uma certa confiana, masmisturada com uma desconhecida inquietao e com a antecipao de uma espciede sonho extraordinrio. Ela deu um grito lancinante que suscitou na turvaimaginao de Sanaan terrveis fantasmas. Tapou-lhe rapidamente a boca com a

    palma da sua mo trmula. Quando recuperou as suas sensaes foi como umabofetada no seu rosto, e atirou-se ao cho sussurrando:

    - No chores, no tenhas medo...O desespero arrastou-o e derrubou os pilares da sua existncia. Da

    devastao total ouviu passos que se aproximavam. Rapidamente apertou o finopescoo da menina com umas mos que no eram as suas, e como uma besta cujaspatas resvalassem caiu no abismo. Compreendeu que estava sentenciado e ouviu

    uma voz que chamava.- Basima, filha, Basima.Foi inevitvel, disse para si mesmo completamente desesperado.Era claro que os passos se aproximavam do seu esconderijo precedidos pela

    dbil luz de uma lmpada. Foi acometido por um desejo de sair carregandoconsigo o corpo, mas uma pesada presena gravitou sobre a sua abjeco, arecordao do sonho apanhou-o subitamente. Ouviu a voz de h dois dias

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    perguntando:- Foi isto que combinmos?- Ento s real, no s um sonho.- No h dvida que ests louco.- Estou de acordo, mas tu s a causa.

    - Eu nunca te pedi para fazeres coisas ms - respondeu a voz com aspereza.- No h tempo para discutir. Salva-me, assim poderei fazer o que

    combinmos.- Foi por isso que vim, mas tu no percebes.Sentiu-se movido pelo vazio num mundo intensamente silencioso at que

    ouviu de novo a voz:- Ningum encontrar marcas tuas. Abre os olhos e vers que ests diante

    da porta da tua casa. Entra em paz, estarei tua espera.

    Fazendo um esforo sobre-humano, Sanaan conseguiu controlar-se. Umm

    Saad no percebeu que o seu estado tinha piorado. Ocultou-se dela na escuridodas suas plpebras e recordou o que havia feito. Era outra pessoa, o violadorassassino era outra pessoa. A sua alma tinha gerado seres selvagens aos quais noestava habituado. Agora, despojado do seu passado e com todas as suas esperanasenterradas, enfrentava o desconhecido. Apesar de no ter dormido, nada nele

    parecia demonstr-lo. De manh cedo ouviu lamentos. Umm Saad ausentou-se umbocado e depois voltou exclamando:

    - Oh, me de Basima, que Deus esteja contigo!- O que aconteceu? - perguntou ele, baixando o olhar.- O que que deu s pessoas, pai de Fadil? A menina foi violada e

    assassinada debaixo das escadas da escola primria. Uma criancinha, Senhor. Soba pele de certos seres humanos escondem-se bestas selvagens.

    Ele baixou a cabea at que a sua barba se espalhou pelo peito.- Refugio-me de Satans em Deus - murmurou.- Estas bestas no conhecem Deus nem o Profeta. A mulher desatou a

    chorar.Ele comeou a interrogar-se: Teria sido o gnio? Teria sido a droga que ele

    tomara? Ou teria sido Sanaan al-Gamali?

    Os pensamentos de toda a gente no bairro estavam agitados. O crime era onico tema das conversas. Ibrahim, o farmacutico, enquanto lhe preparava mais

    remdio, dizia:- A ferida ainda no sarou, mas j no tem qualquer perigo. Depois, medida que lhe ligava o brao com musselina, perguntou-lhe:

    - Soubeste do crime?- Procuro refgio em Deus - disse ele, contrariado.- O criminoso no humano. Os nossos filhos casam directamente assim

    que chegam puberdade.

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    - um louco, no h dvidas disso.- Ou um daqueles vagabundos que no tm meios para se casar. Percorrem

    as ruas como ces vadios.- H muita gente a dizer isso.- O que que Ali al-Salouli est a fazer na Casa do Governo? Ao ouvir

    aquele nome Sanaan comeou a tremer, recordando opacto que fizera, um pacto que estava suspenso sobre a sua cabea como umaespada.

    - Est ocupado com os seus assuntos, com a contagem das ofertas e dossubornos.

    - No podemos negar os favores que nos fez a ns mercadores - disse ofarmacutico -, mas devia lembrar-se que o seu primeiro dever velar pelamanuteno da ordem.

    Sanaan saiu dizendo estas palavras:- No confies no mundo, Ibrahim.

    O governador do bairro, Ali al-Salouli, soube atravs do seu secretrioparticular, Buteisha Murgan, o que se dizia sobre a segurana. Temia que oscomentrios chegassem ao vizir Dandan e que ele os transmitisse ao sulto, e porisso chamou o chefe da polcia, Gamasa al-Bulti, e disse-lhe:

    - Ouviste o que se comenta acerca da segurana durante o meu mandato?A calma interior do chefe da polcia no se tinha alterado quando soubera

    os segredos do seu superior, os seus actos de corrupo.- Desculpe, governador - disse ele -, mas no fui negligente nem me esqueci

    de enviar os nossos polcias secretos. Contudo, o vilo no deixou rasto e noencontrmos uma nica testemunha. Eu prprio interroguei dezenas devagabundos e pedintes, mas um crime insondvel que no se parece com nadaque tenha acontecido anteriormente.

    - Como tu s ignorante! Prende todos os vagabundos e mendigos. sespecialista em mtodos eficazes de interrogao.

    - No temos prises suficientes para todos - argumentou Gamasa.- Quais prises, camarada? Queres impor ao Tesouro Pblico os gastos da

    sua manuteno? - disse o governador furioso.- Ocupa-te deles a cu aberto, pede ajuda s tropas e traz-me o criminoso

    antes do cair da noite.

    A polcia irrompeu pelas terras baldias e prendeu os pedintes e osvagabundos, depois conduziu-os em grupos para descampados. De nada serviramas queixas e os juramentos. No tiveram contemplaes nem com os ancios.Utilizaram a fora contra eles at rezarem fervorosamente para pedir a ajuda deDeus, do Seu Profeta e dos membros da sua famlia.

    Sanaan al-Gamali seguiu as notcias com inquietao: ele era o culpado,disso no havia dvida, e no entanto andava livre e vontade, tratado com estima.

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    Como que era possvel ter-se tornado o eixo central de todo estesofrimento? E algum desconhecido estava sua espera, indiferente a tudo o queocorrera, enquanto ele se encontrava completamente perdido, rendido semcondies. Quanto ao velho Sanaan, estava morto e enterrado, nada restara deleseno uma confusa memria que ruminava recordaes como se fossem iluses.

    Ouviu um clamor que se estendia pela rua comercial. Era Ali al-Salouli,governador do bairro, que ia cabea de um esquadro de cavalaria para recordars pessoas o seu poder e dissuadir qualquer desordem. medida que avanavarespondia aos cumprimentos dos comerciantes direita e esquerda. Era este ohomem que ele tinha de matar. O seu corao inundou-se de medo e asco. Era esteo segredo do seu tormento. Fora ele que escolhera libertar o gnio da sua magianegra e o gnio fizera tudo isto. A sua salvao dependia da morte de al-Salouli.

    Os seus olhos permaneceram fixos naquele rosto escuro e cheio, na barbapontiaguda e no corpo um tanto baixo. Quando al-Salouli passou junto loja deIbrahim al-Attar, este correu para ele e apertou-lhe a mo efusivamente. Depois,

    quando passou pela sua loja olhou para ele sorrindo, de forma que Sanaan no teveoutro remdio seno atravessar e apertar-lhe a mo. Ento, al-Salouli disse-lhe:- Em breve nos veremos, se Deus quiser.Sanaan al-Gamali entrou na sua loja perguntando-se o que teria ele querido

    dizer. Estaria ele a convid-lo para uma reunio? Porqu? Estaria a aplanar-lhe ocaminho de forma inesperada? Sentiu um estremecimento da cabea aos ps.Como que estonteado, repetiu as suas palavras: Em breve te verei, se Deusquiser.

    Nessa noite, quando se deitou para dormir, a outra presena imps-se e avoz disse zombeteiramente:

    - Tu comes, bebes e dormes, enquanto eu espero com pacincia!- uma tarefa dura. Os que possuem tanto poder como tu no sabem como

    rduo - disse Sanaan com tristeza.- No entanto mais fcil do que matar uma menina.- Que desperdcio! Durante muito tempo fui considerado o melhor de entre

    os bons.- As aparncias externas no me enganam.- No so s aparncias.- Esqueceste-te de coisas que fariam transpirar qualquer um de vergonha.- A perfeio s de Deus - respondeu aturdido.

    - Tambm no nego os teus mritos, por isso te propus a salvao.- Se no tivesses irrompido na minha vida, no me teria envolvido nestecrime.

    - No mintas - disse ele, secamente. - S tu s responsvel pelo teu crime.- No te percebo.- Realmente julguei-te demasiado bem.- Se ao menos me deixasses em paz!

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    - Sou um gnio crente e disse para mim prprio: A bondade deste homemultrapassa a sua maldade. certo que tem relaes suspeitas com o chefe da

    polcia e no hesitava em aproveitar-se da inflao, mas o mais honesto dosmercadores, tambm caridoso, cumpre as devoes religiosas e tem compaixo

    pelos pobres. Por isso te escolhi para seres salvo, para que livrasses o bairro da

    corrupo e para que te salvasses a ti mesmo dos teus pecados. Mas em vez decumprires uma tarefa to clara, a tua estrutura desmoronou-se e perpetraste estecrime repugnante.

    Sanaan suspirou e permaneceu em silncio, enquanto a voz continuou:- O desafio mantm-se.- E o crime? - perguntou ele sem esperana.- A vida d oportunidade para a reflexo e para o arrependimento.- Mas o homem uma fortaleza inexpugnvel - argumentou Sanaan,

    agarrando-se a um vestgio de esperana.- Convidar-te- a encontrares-te com ele.

    - Parece-me pouco provvel.- Convidar-te-, mantm-te calmo e preparado. Sanaan pensou durante umbocado, depois perguntou:

    - Prometes-me a salvao?- Escolhi-te a ti s para a salvao.Sanaan estava to exausto que mergulhou num sono profundo.

    Estava a preparar-se para ir ao caf quando Umm Saad disse:- Est um mensageiro do governador tua espera na sala de recepo.Encontrou o secretrio particular, Buteisha Murgan, espera dele com os

    seus olhos brilhantes e barba curta.- O governador quer ver-te.O seu corao bateu acelerado. Compreendeu que ia cometer o crime mais

    grave na histria do bairro. Preocupava-o talvez o facto de Buteisha Murgan estarao corrente da sua misso, mas confiava na promessa de Qumqam.

    - Espera um pouco que me vou vestir.- Vou frente para no chamar a ateno.Ento o homem procurava manter a natureza secreta do encontro,

    facilitando-lhe assim a sua tarefa. Untou-se com almscar enquanto Umm Saadolhava para ele embargada pela inquietao que no a abandonava desde a noite dosonho. Tinha a sensao de estar a viver com outro homem e de que o antigo

    Sanaan se evaporara na escurido. Sem ela dar por isso, enfiou no bolso um punhalcom um cabo de prata pura que lhe tinham trazido como oferta da ndia.

    Ali al-Salouli recebeu-o no jardim da sua manso oficial de Vero,aparecendo com uma ampla tnica branca e com a cabea descoberta, o quediminua a dignidade que o seu cargo lhe conferia. sua frente havia uma mesacom garrafas de gargalo longo, copos, nozes, frutas secas e doces que davam um

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    sinal de boas-vindas. Disse-lhe que se sentasse numa almofada ao seu lado e pediua Buteisha Murgan que ficasse.

    - Bem-vindo, mestre Sanaan, verdadeiro mercador e homem nobre.Sanaan murmurou algo, escondendo a sua confuso com um sorriso.- Graas a vs, delegado do sulto.

    Murgan encheu trs copos. Sanaan perguntou-se se Murgan permaneceriaali durante toda a reunio. Talvez aquela fosse uma oportunidade que no serepetiria, ento o que fazer?

    - Est uma agradvel noite de Vero - disse al-Salouli. - Gostas do Vero?- Gosto de todas as estaes.- s uma daquelas pessoas com quem Deus est contente, e para Seu

    contentamento total que comeamos uma vida nova e produtiva.

    Impelido pela curiosidade, Sanaan respondeu:- Peo a Deus que nos conceda os seus favores. Beberam e sentiram-se

    relaxados e revigorados com o vinho.- Limpmos para vocs o nosso bairro da gentalha - continuou al-Salouli.- Que firmeza e determinao! - disse ele com tristeza secreta.- Agora raramente ouvimos falar de um roubo ou de outro crime - disse

    Buteisha Murgan.- J descobriram o culpado? - perguntou Sanaan com cuidado.- Confessaram o crime cerca de cinquenta pessoas - disse al-Salouli, rindo.Murgan tambm se riu, mas disse:- Sem dvida que o verdadeiro culpado est entre eles.- Isso um problema de Gamasa al-Bulti - disse al-Salouli.- Tambm temos de aumentar as exortaes nas mesquitas e nas celebraes

    religiosas - disse Murgan.Sanaan estava a comear a desesperar, mas ento al-Salouli fez um sinal a

    Murgan, que abandonou a sala. Mesmo assim, os guardas encontravam-seespalhados pelo jardim e no havia forma de escapar. Mas nem por um instante elese esqueceu da promessa de Qumqam.

    - Vamos encerrar a discusso sobre crimes e criminosos - disse al-Salouli,mudando o tom de voz.

    - Que a vossa noite vos seja agradvel, senhor - disse Sanaan sorrindo.- A verdade que te convidei por mais do que uma razo.- Estou vossa disposio.

    - Eu gostaria de casar com a tua filha - disse ele em tom de confidncia.Sanaan estava espantado. E tambm ficou triste por causa de umaoportunidade que o destino fizera abortar antes de nascer. Mas mesmo assim disse:

    - uma grande honra, senhor, a maior das alegrias.- E tambm tenho uma filha como presente para o teu filho Fadil.Afastando o seu aturdimento, Sanaan respondeu:- um jovem afortunado.

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    Por momentos o outro permaneceu silencioso e depois continuou:- Quanto ao pedido final, uma questo que se relaciona com o servio

    pblico.Nos olhos de Sanaan brilhou um olhar inquiridor, ao qual o governador

    respondeu:

    - O contratador Hamdan teu parente, no ?- , sim, senhor.- A questo que decidi fazer uma estrada atravs do deserto que passe

    pelo bairro.- um projecto excelente.- Quando que mo trazes c? - perguntou ele com um tom significativo.Sentindo como a situao era irnica, Sanaan respondeu:- Fica marcado para amanh tarde, senhor.Al-Salouli lanou-lhe um olhar penetrante e perguntou-lhe sorrindo:- Vir adequadamente preparado?

    - Tal e qual ordenares - respondeu Sanaan com sagaz subtileza.Al-Salouli riu-se e disse jovialmente:- s inteligente, Sanaan. E no te esqueas que vamos ser parentes.Sanaan de repente temeu que ele chamasse Buteisha Murgan, e disse para si

    prprio: agora ou a sorte desvanecer-se- para sempre.O homem facilitara-lhe as coisas, sem saber, ao relaxar esticando as pernas

    e deitando-se para trs de olhos fechados. Sanaan mergulhou em pensamentos quegiravam em torno do crime e interrogou-se sobre qual a sorte que o destino lhedepararia. Tirou o punhal, apontou-o ao corao e cravou-o com uma fora vindada determinao, do desespero e do desejo final de fugir. O governador deu umestremeo violento, como que lutando com uma fora desconhecida.

    O seu rosto contraiu-se e ficou com o olhar fixo de louco. Comeou aquerer juntar os braos como que para agarrar o punhal, mas no conseguiu. Osseus olhos aterrorizados murmuraram palavras inaudveis, e depois ficou inerte

    para sempre.

    Tremendo, Sanaan olhou para o punhal, cuja lmina desaparecera de vista, e para o sangue que jorrava. Afastou os olhos com dificuldade e olhou muitoassustado para a porta fechada. O silncio era quebrado pelo latejar nas suastmporas, e pela primeira vez reparou nos candeeiros pendurados nas esquinas.

    Tambm reparou no atril de madeira decorado com madre-prola onderepousava um grande exemplar do Alcoro. Na sua agonia invocou Qumqam, oseu gnio e o seu destino. A presena invisvel envolveu-o e ele ouviu a voz adizer com satisfao:

    - Bem feito! - e acrescentou com alegria: - Agora Qumqam libertou-se damagia negra.

    - Salva-me - disse Sanaan -, pois odeio este lugar e esta cena.

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    A voz disse com calma compreensiva:- A minha f impede-me de interferir agora que recuperei a minha livre

    vontade.- No percebo o que ests a dizer - disse ele aterrorizado.- O teu mal, Sanaan, no pensares como um ser humano.

    - Oh meu Deus, no h tempo para discusses. Tencionas abandonar-me aomeu destino?

    - exactamente isso que o meu dever me impe.- Como s desprezvel! Enganaste-me.- No, pelo contrrio, dei-te uma oportunidade de salvao raramente dada

    a um ser vivo.- No interferiste na minha vida e me levaste a matar este homem?- Eu estava ansioso por me libertar da magia negra, por isso te escolhi pela

    tua f, apesar da forma como flutuavas entre o bem e o mal. Reconheo quemereces mais do que qualquer outro salvar o teu bairro e a ti mesmo.

    - Mas no me expuseste com clareza os teus pensamentos - disse eledesesperadamente.- Expu-los com clareza suficiente para quem pensa.- Foi uma artimanha indigna. Quem disse que eu era responsvel pelo

    bairro?- uma crena geral de que ningum est livre, sobretudo as pessoas como

    tu, que no so desprovidas de boas intenes.- No me salvaste do meu delito debaixo das escadas da escola primria?- Com efeito, foi-me difcil aceitar que irias, por causa da minha

    interveno, sofrer o pior dos fins sem esperana de expiao ou arrependimento,por isso decidi dar-te uma nova oportunidade.

    - E agora j cumpri aquilo que me obriguei a fazer para ti, por isso teudever salvar-me.

    - Ento uma conspirao e o teu papel nela a de instrumento; omerecimento, a reflexo, o arrependimento e a salvao acabaram-se.

    Caiu de joelhos e pediu:- Tem piedade de mim. Salva-me.- No desperdices o teu sacrifcio.- um resultado bem negro.- Aquele que faz o bem no se preocupa com as consequncias.- No quero ser um heri - gritou aterrado.

    - S um heri, Sanaan. esse o teu destino - disse Qumqam compadecido.A voz foi-se desvanecendo enquanto ele dizia:- Que Deus te acompanhe. Pedir-Lhe-ei perdo para ns dois. Sanaan deu

    um grito que chegou aos ouvidos de Buteisha Murgan e aos guardas l fora.

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    Gamasa al-Bulti

    O esprito de Sanaan al-Gamali flutuava no ar do Caf dos Emires, e a dorembargava os seus clientes.

    Tinham presenciado o julgamento e ouvido a sua confisso completa, etinham visto a espada de Shabeeb Rama, o verdugo, a decapit-lo. Gozava de

    prestgio entre os comerciantes e os notveis e pertencia rara minoria que eraapreciada pelos pobres. Perante todos eles fora executado e a sua famlia destitudade tudo. A sua histria circulava de boca em boca, e os coraes do bairro e detoda a cidade estavam comovidos. O sulto Shahriar recordava-a muitas vezes e nocaf, cuja atmosfera se suavizara com a proximidade do Outono, Hamdan

    Tuneisha, o contratador, disse:- Deus o Criador e o Senhor, Aquele que dispe segundo os seus desejos.

    Diz Seja e . Qual de vs seria capaz de imaginar o destino de Sanaan al-

    Gamali? Sanaan violando e estrangulando uma menina de dez anos! Sanaanmatando o governador do bairro no seu primeiro encontro com ele?- Se se considerar o gnio como algo inverosmil, a histria torna-se um

    enigma - observou Ibrahim, o farmacutico.- Talvez tenha sido mordido por um co - disse o doutor Abdul Qadir al-

    Mahini. - Se foram essas as causas de origem, ento as fantasias de uma doenamaligna que no foi tratada como deve ser tornaram-se possveis.

    - No h ningum com mais experincia do que eu no tratamento demordeduras de co - replicou Ibrahim, o farmacutico, indignado. - O ltimo foiMaruf, o sapateiro. No assim, Maruf?

    Ao que Maruf, do seu lugar entre a gente simples, respondeu:- Deus seja louvado, que me concedeu a bno da cura.- E porque que no acreditamos na histria do gnio? - perguntou Ugr, o

    barbeiro.- Eles ultrapassam em nmero os seres humanos - declarou o aguadeiro

    Ibrahim.- A morte no precisa de causas - acrescentou Sahloul, o mercador de

    mveis.- Eu tive tantas experincias com gnios - disse Maruf, o sapateiro, ao que o

    corcunda Shamloul, o bobo do sulto, respondeu:- Sabemos que os gnios se afastam da tua casa com medo da tua mulher.

    Maruf fez um sorriso de submisso ao seu destino, apesar de a brincadeirano ter tido eco no desolado ambiente.- Tanto Sanaan como a sua famlia se arruinaram - sentenciou Galil al-

    Bazzaz.Karam al-Asil, o milionrio com cara de macaco, disse:- Estender a mo sua famlia seria considerado como um desafio

    autoridade. No h fora nem poder seno em Deus.

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    - Aquilo que mais temo - disse Ibrahim, o farmacutico - que as pessoasvirem as costas sua famlia com medo do poder malfico dos gnios.

    - Est fora de causa que algo v mudar a minha relao com Fadil Sanaan -garantiu Hasan, o filho de Ibrahim al-Attar.

    - Ele diz Seja e - repetiu Hamdan Tuneisha, o contratador.

    Gamasa al-Bulti, o chefe da polcia, dirigiu-se para o rio a fim de praticar oseu passatempo favorito: pescar.

    No o fizera durante quarenta dias em sinal de luto pelo seu superior, Ali al-Salouli. Tambm sentia pena do assassino, porque tinham sido vizinhos e existiauma estreita amizade entre as duas famlias. Fora ele quem o prendera, ele quem oatirara para a priso, e ele quem o enviara para o ptio e finalmente ele quem oentregara ao verdugo, Shabeeb Rama; tambm fora ele quem dependurara a suacabea por cima da sua casa, confiscara os seus bens e expulsara a famlia de casa

    para a runa. Apesar de ser conhecido pela sua severidade e dureza, a sua

    serenidade fora perturbada e o seu corao estava triste - pois ele tinha corao,apesar de muitos julgarem que no. Com efeito, esse corao amava Husniya, filhade Sanaan, e teria ido pedir a sua mo se no tivesse havido interveno dosacontecimentos.

    Hoje o tempo estava bonito e lmpidas nuvens de Outono vagueavam pelocu, mas o seu amor tinha sido esmagado pela roda das circunstncias.

    Deixou a sua mula com um escravo, depois empurrou o barco para o meiodo rio e lanou a rede: gotas de tranquilidade no oceano do rduo e brutal trabalho.Sorriu. Em pouco tempo uma compreenso mtua nascera entre ele e o novogovernador, Khalil al-Hamadhani. Onde que Shahriar ia buscar aquelesgovernadores? O homem denunciara-se ao primeiro teste - os bens confiscados deSanaan. Apoderara-se de uma parte considervel deles e dera outra parte aButeisha Murgan; tambm dera o seu quinho a Gamasa. O que restou foi entregueao Tesouro. Gamasa aceitara a sua parte apesar da tristeza que sentia pelo destinodo seu amigo, dando a si prprio a desculpa que recusar significaria um desafio aonovo governador; no seu corao havia um lugar para as emoes e outro para aavidez e dureza. Dissera a si prprio: Quem demasiado honesto passa fomenesta cidade, pensou com ironia. O que seria de ns se um governador justotomasse conta dos nossos assuntos? O prprio sulto no matara centenas devirgens e muitos homens piedosos? Como ficavam leves as suas balanas quandocomparadas com as dos grandes governantes!

    Respirou profundamente: estava um dia realmente lindo, o cu salpicado denuvens, o ar suave e perfumado com o aroma da erva e da gua, a rede enchendo-se de peixes. Mas onde estava Husniya? A famlia de Sanaan vivia agora numquarto num edifcio residencial, depois de todo o luxo, as jias e os estbulos.Agora Umm Saad fazia doces que encantavam os hspedes, enquanto Fadil os iavender. Quanto a Husniya, espera um noivo que no vir. Foi realmente um gnioque te destruiu, Sanaan, ou foi a mordedura de um co? No me esquecerei do teu

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    olhar perdido nem do teu pedido de socorro: A minha famlia, Gamasa!. Estfora de questo algum estender uma mo para ajudar a tua famlia. O teu filhoFadil tambm tem o seu orgulho. Tu morreste, Sanaan, e o que passou passou. Se oteu gnio for um verdadeiro crente, ele que faa algo. Que sultanato toextraordinrio este, com o seu povo e os seus gnios! Exulta a Deus e ao mesmo

    tempo mergulha na sujidade.De repente a sua ateno foi atrada para a sua mo. O peso da rede

    pressagiava algo bom. Puxou-a alegremente at se encontrar ao nvel do barco.Mas no viu um nico peixe!

    Gamasa al-Bulti estava espantado. A rede continha apenas uma bola demetal. Pegou nela irritado, examinou-a e depois atirou-a para o fundo do barco.

    Fez um som profundo e algo estranho aconteceu: era como se estivesseprestes a explodir. Emanava dela algo parecido com poeira, ascendeu em remoinhopelo ar at alcanar as nuvens outonais. Depois o p esfumou-se deixando uma

    presena que o oprimiu, e Gamasa sentiu que era poderosa. Apesar da suafamiliaridade com situaes perigosas, tremeu de terror. Percebeu que seencontrava na presena de um gnio que fora libertado de uma garrafa. Noconseguiu impedir-se de gritar:

    - Proteco do perigo, por nosso senhor Salomo!- Como doce a liberdade depois do inferno da priso! - disse uma voz queGamasa nunca tinha ouvido.- A tua libertao aconteceu graas a mim - respondeu amavelmente, com a

    garganta seca.- Diz-me, antes de mais, o que que Deus fez a Salomo.- O nosso senhor Salomo morreu h mais de mil anos. O outro balanou a

    cabea com alegria e disse:- Bendita seja a vontade de Deus, que imps sobre ns o decreto de um ser

    humano cujo p no ascende ao nosso fogo, e que esse humano seja aquele que mecastigou por um erro do corao. Que Deus na Sua Misericrdia perdoe o malcausado.

    - Parabns pela tua libertao. Vai e goza-a.- Vejo que ests desejoso por escapar - disse ele trocista.- E eu fui o meio da tua libertao.- Fui libertado apenas pelo destino.- E eu fui o instrumento do destino - respondeu Gamasa com impacincia.

    - Durante o meu longo cativeiro enchi-me de dio e desejo de vingana.- Perdoar quando se pode uma das caractersticas da gente nobre -implorou Gamasa.

    -Vocs destacam-se pela memria, pelas citaes e pela hipocrisia. E asvossas contas devem ser proporcionais aos vossos conhecimentos. Ento, que omal caia sobre vs!

    - Ns travamos uma luta contnua contra ns prprios, contra as pessoas e

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    contra a vida - disse Gamasa al-Bulti -, e a luta tem inmeras vtimas. A esperananunca se perde na misericrdia do Misericordioso.

    - A misericrdia para aquele que a merece - sentenciou o gnio comseveridade. - Os campos de Deus esto cheios de oportunidades concedidas aosque aderiram sabedoria. Por isso a misericrdia dada aos que se esforam, de

    outro modo os maus ventos manchariam a pureza do ar iluminado pela divina luz.No faas, pois, da corrupo uma desculpa para a corrupo.

    - Acreditamos na misericrdia mesmo quando cortamos pescoos eceifamos cabeas.

    - Como tu s hipcrita! Qual a tua profisso?- Chefe da polcia.- Mas que ttulo! Cumpres o teu dever de forma que agrade a Deus?- O meu dever cumprir ordens - disse Gamasa apreensivamente.- Um lema apropriado para encobrir todo o tipo de malfeitorias.- No estou em posio de mudar isso.

    - Se te chamam para fazer o bem dizes que s incapaz e se te chamam parafazer o mal apressas-te a faz-lo em nome do dever.Gamasa estava encurralado. As acusaes caam-lhe em cima e ele

    retrocedera at ponta do barco, tremendo. Ao mesmo tempo sentiu a penetraode uma nova presena a controlar o lugar. Sabia que tinha chegado outro gnio eestava convencido de que no tinha salvao. O recm-chegado dirigiu-se ao

    primeiro gnio:- Parabns pela tua libertao, Singam.- Graas a Deus, Qumqam.- No te vejo h mais de mil anos.- Como so curtos quando comparados com a vida, e longos quando

    passados numa garrafa!- Tambm eu ca nas redes da magia, que em tortura como a priso.- No h mal que nos aflija que no nos venha dos seres humanos.- Durante a tua ausncia aconteceram muitas coisas, por isso talvez queiras

    recuperar o tempo perdido.- Sim, mas gostaria de tomar uma deciso acerca deste humano.- Deixa-o por agora. No h forma de poder escapar ao teu alcance se

    precisares dele, mas no tomes decises enquanto estiveres furioso. Nenhum dens alguma vez morreu excepto levado pela ira. Vamos at s montanhas de Qaf ecelebrar a tua libertao.

    - At vista, chefe da polcia - disse Singam, dirigindo-se a al-Bulti.As presenas controladoras comearam a afastar-se at desaparecerem aomesmo tempo. Gamasa recuperou o domnio dos seus membros, mas caiu no

    barco, sem foras. Ao mesmo tempo inebriava-o a esperana de fugir.

    Gamasa al-Bulti saltou para terra e foi recebido pelo escravo com umareverncia e que depois foi apanhar a rede.

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    - No h um nico peixe na rede - observou.- Estavas a olhar na minha direco enquanto eu estava no barco? -

    perguntou Gamasa, com a garganta seca.- Durante todo o tempo, senhor.- E o que que viste?

    - Vi-vos atirar a rede e depois vi-vos esperar e retir-la. Por isso quefiquei espantado por v-la vazia.

    - No viste fumo?- No, senhor.- E no ouviste um som estranho?- Nada.- Talvez tenhas adormecido.- Nada disso, senhor.Era-lhe impossvel ter dvidas sobre o que acontecera. Era mais real do que

    a prpria realidade. Na sua memria estava gravado o nome de Qumqam, tal como

    o de Singam. Recordou de forma diferente as confisses de Sanaan e agora parecia-lhe que o seu velho amigo fora uma infeliz vtima. Interrogou-se cominquietao sobre o que o invisvel tinha guardado para ele.

    Enterrou o seu segredo no peito. Nem mesmo a sua mulher Rasmiya oconhecia. Era um segredo que lhe pesava, mas que podia ele fazer? Se um dia odivulgasse, prejudicaria a sua posio e perderia o seu posto.

    Passou noites acordado a pensar nas consequncias e resolveu ser cauteloso.Singam, ao que parecia, era um gnio crente e reconheceria a boa aco deGamasa ao libert-lo, mesmo tendo sido por acaso. Adormeceu durante a oraoda aurora e depois acordou com melhor disposio. Era forte por natureza e sabiaarrostar com as dificuldades e os escrpulos. Tivera uma relao afvel com al-Saluli e agora com al-Hamadani, e Singam no seria mais intratvel do que eles.

    Quando estavam a tomar o leite do pequeno almoo, Rasmiya disse-lhe:- Ontem veio visitar-me a nossa antiga vizinha, Umm Saad.De repente, os seus nervos ficaram tensos. Apercebeu-se do perigo daquela

    visita, pois um polcia conhece as facetas ocultas de determinadas circunstncias.- Uma pobre viva, e no entanto... - disse ele enfadado. Hesitou uns

    instantes e depois acrescentou: - Mas a sua visita prejudica a minha posio.- A situao dela corta o corao.- a situao do mundo, Rasmiya, mas deixemos com Deus o que Lhe diz

    respeito.- Ela veio na esperana de que poderias ajud-la a fazer uma petio aogovernador para lhe restituir os bens da famlia.

    - Que mulher tola! - exclamou ele.- Ela disse que Deus no carrega os filhos com os pecados dos pais.- Foi o prprio Shahriar quem pronunciou a sentena. - Depois acrescentou

    com franqueza: - Sanaan era meu amigo, mas o que foi decretado tem de se

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    cumprir. Talvez o assassnio da menina depois de a violar no signifique nada emcomparao com as matanas perpetradas pelo governador do bairro. Mas o sultoconsidera os golpes contra os seus representantes como se fossem dirigidos contraa sua prpria pessoa, e ainda um governante sedento de sangue, apesar dainesperada mudana do seu corao. Por isso no a animes a fazer-te visitas porque

    cair sobre ns uma desgraa, uma desgraa perante a qual somos impotentes.A mulher permaneceu silenciosa, com o corao aflito.- Estou to triste como tu - disse ele -, mas no podemos fazer nada.

    Gamasa tinha sido sincero: a sua tristeza pela famlia de Sanaan no sedissipava e a origem disso no era s o seu apaixonado amor por Husniya.Apreciara o homem antes de gostar da sua filha. Nem sempre era desprovido de

    bons sentimentos e recordaes religiosas, mas no tinha qualquer objeco empraticar a corrupo num mundo corrupto. A verdade que em todo o bairro nohavia um corao como o seu para misturar o preto com o branco. Por isso

    convidou Fadil Sanaan a ir secretamente a sua casa.O jovem apresentou-se com uma tnica e umas sandlias, a vestimenta deum vendedor ambulante. Gamasa sentou-se a seu lado e disse-lhe:

    - Alegra-me, Fadil, que enfrentes o teu destino com essa coragem.- Dou graas a Deus por ter preservado a minha f depois de perder a

    posio e a riqueza - respondeu Fadil.Muito impressionado, Gamasa retorquiu:- Chamei-te em considerao nossa antiga amizade.- Deus o abenoe, senhor.- Se no fosse por isso, eu prprio te teria prendido.- Prender-me? Porqu, senhor? - perguntou Fadil, assustado.- No finjas que no sabes. O mal que te atingiu ainda no foi suficiente

    para ti? Procura a vida longe da companhia de elementos destrutivos que soinimigos do sulto.

    - No sou mais do que um vendedor ambulante - disse Fadil,empalidecendo.

    - Deixa de dissimular, Fadil. Nada se oculta a Gamasa al-Bulti e a minhaprimeira tarefa, como sabes, perseguir xiitas e carijitas.

    - No sou um deles - disse Fadil em voz baixa. - Antes fui discpulo doxeque Abdullah al-Balkhi.

    - Tambm eu fui seu discpulo. Da escola de Al-Balkhi saem muitos, gente

    do Caminho e gente do profeta Sunna, sufis e sunitas e tambm demnios que sedesviam do Caminho.- Garanto-vos, senhor, que estou o mais distante que posso desses

    demnios.- Tens muitos companheiros entre eles.- Nada tenho a ver com as suas doutrinas.- Tudo comea por uma inocente amizade e depois vem a degenerao.

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    Esto loucos, acusam os governantes de infiis e enganam os pobres e osescravos. Nada os satisfaz, nem mesmo o jejum do ms de Ragab. como se Deusos tivesse excludo de Seus adoradores. Tem cuidado e no caias no mesmodestino do teu pai, pois o demnio tem todo o tipo de artimanhas. Quanto a mim,s sei o que do meu dever. Declarei a minha lealdade ao sulto e tambm ao

    governador do bairro para exterminar os apstatas.- Garanto-vos, senhor - disse Fadil num tom dolente -, que estou muito

    longe dos apstatas.- Dei-te um conselho de pai, no te esqueas - disse Gamasa.- Obrigado pela vossa amabilidade, senhor.Gamasa comeou a perscrutar-lhe o rosto procura de pontos de

    semelhana entre ele e a sua irm Husniya. Por momentos perdeu-se em xtaseamoroso. Depois disse:

    - Mais uma coisa: gostaria que informasses a tua me que presentementeuma petio para recuperar os bens da famlia seria considerado um desafio ao

    sulto. No h poder nem fora seno em Deus.- Essa tambm a minha opinio, senhor - disse Fadil com submisso.

    O encontro acabou como tinha comeado, no maior segredo. Gamasapensou que talvez um dia tivesse a sorte de convocar Fadil para lhe pedir a mo deHusniya.

    Talvez o crime de Sanaan al-Gamali tenha sido o nico acontecimentotranscendental que ocorrera desde que Gamasa al-Bulti comeara a exercer as suasfunes. Ningum o acusou de ser responsvel por isso, especialmente depois dese conhecer a interveno do gnio na questo. Mas isso no se aplicava, porm,ao que estava a acontecer actualmente no bairro, pois sucediam-se os roubosdentro e fora dos muros da cidade com inquietante frequncia: levavam dinheiro e

    bens e os homens eram assaltados. Gamasa al-Bulti sentiu a clera de um polciacapaz cheio de autoconfiana. Distribuiu polcias vestidos de forma simples peloslugares afastados e manteve patrulhas de dia e de noite. Ele prprio investigou emlugares suspeitos, mas os incidentes continuavam a ocorrer, fazendo troa da suaactividade, sem que um nico criminoso fosse preso.

    Karam al-Asil, o milionrio, disse no Caf dos Emires:- A segurana era melhor no tempo do falecido al-Salouli.- No havia um nico ladro durante o seu mandato, alm dele - disse o

    doutor Abdul Qadir al-Mahini, rindo.- Gamasa al-Bulti - disse o barbeiro Ugr - no podia ser pior. Ele via comose comportavam aqueles cavalheiros quando lhes

    prestava os seus servios como barbeiro nas suas casas.- A segurana - acrescentou Ibrahim al-Attar - a espinha dorsal do

    comrcio e o comrcio a subsistncia das pessoas. Proponho que alguns de nsconstituam uma delegao para falar com al-Hamadhani, o governador do nosso

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    bairro.

    Khalil al-Hamadhani convocou Gamasa al-Bulti Casa do Governo e disse-lhe com severidade:

    - A cidade vai arruinar-se enquanto tu ressonas num sono profundo.

    - No tenho dormido nem me tenho distrado - disse o chefe da polcia comum tom de frustrao.

    - Pode-se julgar pela forma como as coisas esto a correr.- Tenho as mos atadas.- O que que queres?- Os vagabundos que antes foram presos esto agora a comear a vingar-se.- Ficou estabelecido pela confisso de Sanaan que eles eram inocentes.- E por isso que eles esto a vingar-se. Tm de ser novamente presos.- O vizir Dandan ficou irritado por eles terem sido presos da primeira vez e

    no vai permitir isso de novo - disse o governador com aspereza.

    - De todos os modos estou a travar um combate contra uma fora que noconhece a indulgncia.- Tens de manter a segurana sob controlo, seno demito-te. Gamasa al-

    Bulti deixou a casa do governador sentindo-se humilhado pela primeira vez na suavida.

    Estava irritado por ter sido insultado e a sua natureza forte e desafiadoraapoderou-se dele. As suas tendncias para o bem ficaram submersas em

    profundidades distantes. Reagiu derrota com a selvajaria de um homem queconsidera que tudo permitido em defesa da sua autoridade. A autoridadeabsorvera-o por completo e convertera-o num ser novo ao ponto de esquecer as

    boas palavras aprendidas com o xeque na sala de oraes nos tempos da inocncia.Rapidamente reuniu os seus homens e fez recair neles a torrente que tinham

    vertido sobre ele na sala de recepes do governador, abrindo de par em par as janelas do fogo do inferno. Sempre que se dava um novo incidente prendiadezenas de pessoas e torturava-as impiedosamente. Como resultado disto, diminuiua sua perseguio aos xiitas e carijitas, de forma que puderam redobrar a suaactividade. Publicaram panfletos secretos cheios de acusaes contra o sulto e osgovernadores e onde pediam que o Alcoro e a Suna fossem a base do governolegal. Ao ficar fantico, tambm prendeu muitos deles, at que o medo inundoutodo o bairro. Al-Hamadhani achou que a violncia das medidas tomadas era

    chocante. No entanto, fechou os olhos, com o desejo de que os incidentesacabassem. Apesar de tudo isso, aumentaram em nmero e violncia.

    Embora derrotado, Gamasa al-Bulti recusava-se a admiti-lo. Comeou apassar muitas noites no quartel da polcia at que a presso do trabalho comeou aafectar a sua prodigiosa fortaleza. Uma vez foi vencido pelo sono na sala ondetrabalhava e rendeu-se a ele como um leo ferido. No conseguiu o descanso

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    desejado, pois o peso de um ser tomou conta de todo o seu corpo.- Singam! - sussurrou com espanto. A voz chegou-lhe, invadindo o seu ser:- Sim, chefe da polcia.- O que que te levou a aparecer?- A estupidez daqueles que apregoam ser inteligentes. De repente na mente

    de Gamasa fez-se luz.- Agora compreendo o segredo dos ladres cujo rasto nunca se encontra.- S agora?- Como que eu podia adivinhar que eras tu o seu mestre?- Admite, apesar da tua vaidade, que s estpido.- E como que ests to pouco preocupado em roubar os bens das pessoas

    quando a referncia a Deus est constantemente nos teus lbios - perguntou-lhe emdesafio.

    - A minha ira caiu apenas sobre aquele grupo de pessoas que se aproveitamde outros seres humanos!

    Gamasa suspirou e disse, como que falando para si prprio:- Perderei o meu emprego por causa disto.- Tu tambm pertences ao grupo dos corruptos.- Sou exemplar no cumprimento do meu dever.- E o dinheiro conseguido de forma desonesta?- Apenas migalhas que caem das mesas dos grandes.- Uma desculpa vergonhosa.- Vivo no mundo dos humanos.- E que sabes dos poderosos?- Tudo at aos mais pequenos pormenores. No passam de uns ladres e de

    uns patifes.- No entanto, tu protege-los com a tua espada afiada - disse a voz

    desdenhosamente - e atacas os seus inimigos, que so pessoas honradas, judiciosase esforadas.

    - Executo ordens e o caminho que trao claro.- No entanto s perseguido pela maldio de proteger criminosos e

    perseguir gente respeitvel.- Qualquer homem que pense ao desempenhar funes como as minhas

    morre.- Ento s apenas um instrumento sem cabea.- A minha cabea est apenas ao servio do meu dever.

    - Uma desculpa que tende a anular a humanidade de um humano.Na mente de Gamasa brilhou uma ideia que lhe abriu todas as portas ejanelas.

    - A verdade que eu no estou satisfeito comigo mesmo! - disse comtranquilidade.

    - Isso so puras mentiras!- Nunca consegui fazer brotar as nobres vozes interiores. Conversam

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    comigo sempre no silncio da noite.- No encontro qualquer trao delas na tua vida.- Falta-me uma fora em que me apoiar quando preciso - disse

    astuciosamente.- Mas persegues as vozes nobres, tal como persegues as pessoas honestas.

    - Ponho-me prova - respondeu desafiante.- Explica claramente o que queres dizer.- Utiliza a tua fora para me apoiar, no para me destruir.- O que que queres?- Acabar com os criminosos e governar o povo justa e honestamente.O gnio soltou uma gargalhada que encheu o universo e disse:- Queres enganar-me para realizar os teus sonhos ocultos de poder e

    autoridade.- Como mtodo, no como objectivo.- O teu corao ainda est mergulhado na escravido.

    - Pe-me prova, se quiseres.- Sou crente e nunca ultrapasso os meus limites.- Ento afasta-te em paz do meu caminho - disse Gamasa mais uma vez, em

    desespero.- A questo que estive a pensar tranquilamente no alto dos montes de Qaf

    e convenci-me de que me prestaste um servio inestimvel, mesmo sem querer.Decidi, portanto, retribuir o favor com outro semelhante e sem ultrapassar

    os meus limites.- Mas ests a fazer precisamente o contrrio.- Como tu s estpido!- Explica-me o teu propsito - suplicou Gamasa.- Tu possuis inteligncia, vontade e alma.Estava quase a pedir-lhe algo mais, mas o gnio soltou uma gargalhada de

    desdm, depois a sua presena debilitou-se rapidamente e acabou por sedesvanecer.

    Foi despertado com uma pancada na porta. O seu subordinado entrou para oinformar que tinha sido chamado ao governador al-Hamadhani.

    Desejava que o tivessem deixado em paz para repensar as coisas, mas notinha outro remdio seno ir.

    No esperava nada de bom daquele encontro. As rstias de esperana no

    cu de Outono desapareceram e os tambores da vitria permaneceram silenciosos.Iria oscilar durante muito tempo entre o governador e as partidas de Singam.Mergulhou num torvelinho sem fim de suposies enquanto seguia na sua

    mula a caminho da Casa do Governo, um caminho cheio de movimento e som.Cercavam-no as exigncias da vida, seguido desdenhosamente pelos olhos das

    pessoas. Uma pessoa desprezvel e cheio de ignomnia - Singam convencera-o queassim era ele. A sua nica consolao era ser uma espada do Estado. Mas a espada

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    ficara romba e a segurana decara, e por isso o que restava dele? Um ladroassassino, um protector de criminosos, torturador de homens inocentes. Esquecera-se de Deus at que um gnio Lho havia recordado.

    Encontrou Khalil al-Hamadhani de p no meio da sala de recepo, como

    uma lana disposta para o combate.- A paz de Deus esteja convosco, emir - disse Gamasa calmamente, ao que

    o governador gritou com uma voz trmula de raiva:- Paz com a tua presena no existe!- Mato-me a trabalhar.- Ento por isso que as jias das minhas mulheres so roubadas dentro da

    minha prpria casa!Isto era mais do que ele esperara. Perguntava-se o que Singam teria andado

    a fazer. Estava mudo de espanto.- No s mais do que um viciado em haxixe e um scio de ladres.

    - Sou o chefe da polcia - respondeu ele com voz rouca.- Ver-nos-emos esta noite - gritou o governador -, seno destituo-te e corto-te a cabea.

    De que serviria procurar? O que podiam os seus homens fazer perante opoder de Singam? Seria destitudo e perderia a sua honra e tambm a cabea. Eraum destino para o qual conduzira outras pessoas, por isso como poderia culp-lo?

    Mas Gamasa no aceitaria o seu destino sem se defender - e ferozmente. Aliestava a sua vida aberta diante dos seus olhos como uma pgina: um testemunhoconcreto e aterrador. Comeara com um pacto com Deus e acabara com um com oDiabo. Tinha de o romper antes de morrer. As palavras do xeque chegaram-lhecomo um sopro de brisa num quente dia de Vero: pairavam, transportadas por

    puros pensamentos de nostalgia. Disse a si prprio: Este o seu tempo. Saiu damais profunda das profundezas quando as tristezas dilaceraram a dura crostamanchada de sangue.

    Encontrou-o no simples aposento de recepo, como que sua espera.Inclinou a cabea, em silncio, e depois sentou-se numa almofada em frente dele.As recordaes aspiravam-se como o perfume de uma rosa murcha e no vaziomaterializavam-se sua frente os versos do Alcoro e as Palavras do Profeta, bemcomo as reminiscncias das boas intenes, como gotas de sangue. Bebeu toda aimanncia da paz divinamente inspirada at se sentir envergonhado.

    - Posso ler os vossos sentimentos para comigo, mestre - disse, com tristeza.- Esse conhecimento s Deus o possui - respondeu Abdullah al-Balkhi coma sua imutvel calma -, por isso no digas o que no sabes.

    - Na opinio das pessoas, sou um polcia sedento de sangue - confessoucom tristeza.

    - Porque ser que os sanguinrios me visitam?- Como sois agradvel, mestre! - disse, recuperando a coragem. - A verdade

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    que tenho uma histria que gostaria que ouvisses.- No desejo ouvi-la - disse o outro com altivez.- Tenho de tomar uma deciso e no h forma de o seu significado ser

    entendido sem contar a histria.- A deciso suficiente para a compreenso da histria.

    - O assunto requer tomar conselho - disse ele pouco vontade.- No, a deciso s tua.- Ouvi a minha histria extraordinria - pediu ele.- No. Uma s coisa me diz respeito - disse ele calmamente.- O que , mestre?- Que tomes tu a deciso apenas por amor a Deus.- por isso que necessito da vossa opinio - respondeu sem esperana.O xeque retorquiu com calma decidida:- A histria s tua e a deciso tambm.

    Saiu da casa do xeque dividido entre dvidas e certezas. Era como se oxeque conhecesse a sua histria e a sua deciso, e como se a bendissesse, com acondio de ele actuar pela causa de Deus. O desespero no desempenhara um

    papel? E a autodefesa no tivera outro? E tambm o desejo de vingana? Oarrependimento, interrogou-se, diminuiria se fosse precedido por um pecado? Oque era preciso ter em considerao era a inteno final e persistir nela at ao fim.De qualquer forma, estava a enterrar o antigo Gamasa e a evocar um outro.

    Depois de ter tomado a deciso deu um profundo suspiro de alvio. A suaenergia duplicou. Foi a sua casa e sentou-se com Rasmiya, a sua mulher, e a suafilha Akraman. O seu corao inundou-se de ferventes e misteriosas emoes queo fizeram sentir cada vez mais a sua solido. At Singam o tinha deixado sozinho.

    No entanto, a sua resoluo era decisiva e no conhecia hesitaes. Enfrentou asituao mais perigosa da sua vida com rara coragem e deciso inabalvel.

    De regresso ao seu local de trabalho libertou, por sua iniciativa, os xiitas ecarijitas, o que causou grande espanto entre os soldados e vtimas. Assim queescureceu foi a casa do governador. Afastou o olhar dos rostos e dos lugares queencontrou sua passagem como se j no lhe dissessem respeito. Finalmente viuKhalil al-Ha-madhani espera com calma deciso, e no teve dvidas de quetambm ele chegara a uma concluso. A sala das recepes envolveu-os, sem maisningum presente para alm dos sofrimentos humanos acumulados por detrs dasalmofadas e belas tapearias, e as testemunhas de todas as geraes passadas. Sem

    o saudar, o governador perguntou-lhe friamente:- O que tens a dizer?- Est tudo bem - disse Gamasa al-Bulti com firmeza.- Prendeste o ladro? - perguntou o outro com sbito optimismo.- Foi com esse objectivo que vim.- Pensas que est em minha casa? - interrogou o governador, franzindo o

    sobrolho.

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    Gamasa apontou para ele:- Aqui est ele, o que fala sem vergonha.- Pelo Senhor da Kaaba, enlouqueceste! - gritou Khalil al-Ha-madhani.- a verdade falada pela primeira vez.Quando o governador se preparava para agir, Gamasa puxou da espada:

    - Vais receber o que mereces.- Enlouqueceste, no sabes o que fazes.- Cumpro o meu dever - disse calmamente.- Pensa bem, ests a atirar-te para as mos do verdugo - exclamou al-

    Hamadhani cheio de confuso e medo.Gamasa desferiu-lhe um golpe mortal no pescoo. Os gritos aterradores do

    governador transformaram-se em gemidos enquanto o sangue jorrava como umafonte.

    Gamasa al-Bulti foi preso e a espada arrancada da sua mo. No tentou

    fugir. No resistiu: acreditava que a sua tarefa estava concluda. E por isso foiinvadido por uma sensao de calma e serenidade, cobriu-o uma onda de coragemextraordinria que o fez sentir-se acima dos seus verdugos, que era maior do queimaginara e que as aces corruptas que cometera no eram dignas dele e quesubmeter-se s suas influncias tinha sido uma degradao que o levara queda e alienao da sua natureza humana. Disse a si prprio que estava agora a praticaruma forma de culto cuja pureza limparia a sujidade de longos anos de dissipao.

    Com a brisa outonal divulgou-se a notcia, que se tornou no tema deconversa das pessoas da classe alta e baixa. Houve grande consternao e surgiraminmeras perguntas. As muitas profecias contraditrias e os desvarios dos loucosinflamaram-se enquanto a desordem fazia a sua apario no bairro, e a cidade erumores de agitao chegavam at ao palcio do sulto. O vizir Dandan teve de sedirigir para a Casa do Governo frente de um esquadro de cavalaria.

    Levaram Gamasa al-Bulti agrilhoado perante o trono na Sala deJulgamentos. Shahriar apareceu com o manto vermelho que usava quando sesentava para julgar. Na cabea trazia um alto turbante adornado com raras jias. sua direita estava Dandan e sua esquerda homens de Estado; os guardassituavam-se dos dois lados. Por detrs do trono encontrava-se Rama, o verdugo.

    O sulto tinha o olhar grave, carregado de pensamentos. Perscrutou o rostodo chefe da polcia durante longo tempo, e depois perguntou-lhe:

    - Admites que te concedi o meu favor, Gamasa?- Sim, meu sulto - respondeu o homem com voz forte e agitada.O sulto esperou por um sinal de desafio do prisioneiro apesar de este estar

    acorrentado.-Admites ter matado Khalil al-Hamadhani, o meu delegado no teu bairro?- Sim, meu sulto.- O que te levou a cometer to repugnante crime?

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    - Era para cumprir ajusta vontade de Deus - disse claramente e sem sepreocupar com as consequncias.

    - E sabes o que Deus Todo-Poderoso deseja?- Nisso me inspirei atravs de uma histria extraordinria que mudou o

    curso da minha vida.

    O sulto, atrado pela palavra histria, perguntou:- E que histria essa?Gamasa contou-lhe a sua histria: o seu nascimento numa famlia de classe

    baixa, os seus estudos com o xeque Abdullah al-Balkhi, a sua separao do xequedepois de ter aprendido os rudimentos de religio, leitura e escrita; o seu fsicoforte que o qualificara para prestar servio na polcia, a sua nomeao como chefeda polcia pela sua extraordinria capacidade, a sua progressiva corrupo at seconverter em protector dos corruptos e em verdugo das pessoas judiciosas; aapario de Singam na sua vida; as crises que atravessara; e - finalmente - o seusangrento acto de arrependimento.

    Shahriar ouviu-o com ateno, mostrando reaces contraditrias perante assuas palavras. Disse com frieza:- O Singam de Gamasa sucede ao Qumqam de Sanaan al-Ga-mali. Parece

    que estamos na poca dos gnios, que no tm nada melhor para fazer do quematar governadores.

    - No acrescentei, e Deus minha testemunha, uma nica palavra aos factos- disse Gamasa.

    - Talvez tenhas imaginado isso para te salvares do castigo.- A minha coragem afirma que no me preocupo - contestou ele com

    desdm.Confuso, Shahriar disse:- Ento a tua cabea ser cortada e pendurada na porta da tua casa. E as tuas

    propriedades sero confiscadas.

    Numa cela subterrnea, na escurido, Gamasa lutou contra as suas dores eagarrou-se sua coragem. Tinha despertado a ira do sulto e vencera-o, deixando-o no seu trono ruminando a derrota. Recordou com tristeza Rasmiya e Akraman,mas tambm Husniya rondou os seus pensamentos. A sua famlia iria sofrer amesma ignomnia que a de Sanaan, mas a misericrdia de Deus era mais forte doque o universo. Pensou que iria ficar acordado, mas na realidade dormiu

    profundamente, acordando apenas com um grande barulho e luzes de archotes.

    Talvez fosse de manh e aqueles os soldados que vinham para o levar para aexecuo. A praa estaria cheia de gente que vinha por curiosidade, e haveria umaonda de emoes contraditrias. Que assim seja. Mas que estava ele a ver? Estavaa ver os soldados a dar pontaps a Gamasa al-Bulti e a acordarem o homematerrado. O que significava aquilo? Estava a sonhar? Se aquele era Gamasa al-Bulti, quem era ele? Como que ningum tinha reparado nele, como se noestivesse ali? Ficou aturdido e teve medo de perder a razo, embora talvez j a

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    tivesse perdido. Estava a ver Gamasa al-Bulti precisamente diante dele. Ossoldados levavam-no para fora e ele - ao contrrio do outro - estava cheio de terrore abatimento. Tambm se encontrou livre das suas grilhetas. Decidiu sair da cela eseguir os outros. Ningum lhe prestou ateno.

    Toda a cidade se apinhava na praa onde o castigo iria ter lugar - homens,

    mulheres e crianas. Presidindo ao acto estavam o sulto e os homens de Estado. Otapete de couro para a execuo encontrava-se no centro e, ao lado, Shabeeb Ramae os seus assistentes. Nem Rasmiya nem Akraman tinham ido, o que era bom.

    Quantas caras conhecidas e com quem tivera boas relaes! Mudou-se delugar para lugar, mas ningum se apercebeu dele. Quanto a Gamasa al-Bultiaproximava-se da venda de couro ladeado pelos guardas. Uma nica cara lheapareceu vrias vezes e surpreendeu-o: era o rosto de Sahloul, o mercador demveis e pedras preciosas. Quando se produziu o impressionante silncio e avenda o separou do olhar de todos, o seu corao bateu muito depressa e pareceu-lhe que daria o seu ltimo suspiro quando casse a cabea do outro. Num momento

    de silncio pesado a espada de Shabeeb Rama ergueu-se, depois caiu como umraio, a cabea caiu, e a histria de Gamasa al-Bulti acabou.Gamasa al-Bulti esperara a morte, no entanto, passara por ela e seguira. O

    seu espanto duplicou ao mesmo tempo que acompanhava a corrente humana que partia deixando a praa completamente vazia. Perguntou a si prprio: SouGamasa al-Bulti?. Ento a voz de Singam respondeu:

    - Como podes duvidar?O homem, numa extrema excitao, gritou:- Singam, foste tu o autor deste milagre?- Ests vivo. O que mataram foi apenas uma imagem que eu fiz.- Estou em dvida para contigo pela minha vida, por isso no me abandones.- No. Agora estamos em paz. Deixo-te sob a proteco de Deus.- Mas como que posso aparecer s pessoas? - perguntou alarmado.- impossvel que algum te reconhea. V-te no primeiro espelho que

    encontrares.

    O transportador

    Sobre a porta da casa estava pendurada a cabea de Gamasa al-Bulti. Osque passavam olhavam-na, paravam alguns momentos e depois seguiam, entre eleso verdadeiro Gamasa al-Bulti. Observavam por curiosidade, pena ou malcia.Quanto a ele, olhava com estupefaco. Ainda no recuperara do desgosto de ver aexpulso da sua mulher e da sua filha de casa. Ambas haviam passado por ele semlhe prestar ateno porque tinha adoptado o aspecto de um etope magro com

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    cabelo encaracolado e uma ligeira barba. O seu espanto relativamente suaaparncia nunca mais acabava, nem a tristeza pela sua famlia. Dava voltas emredor da casa e ouvia os comentrios que se faziam sob a cabea pendurada. As

    pessoas da classe alta, como Aram al-Asil, al-Attar e al-Bazzaz, maldiziam-no sempiedade enquanto que o povo expressava piedade por ele. O novo governador,

    Yusuf al-Tahir, o seu secretrio particular, Buteisha Murgan, e o novo chefe dapolcia, Adnam Shouma, supervisionaram a confiscao da sua casa. Interrogou-sequanto do dinheiro iria para a Casa do Tesouro e quanto encontraria caminho nosseus bolsos. Permaneceu perto da cabea pendurada olhando, reflectindo eouvindo. Viu Ugr, o barbeiro, apontar a cabea e dizer a Ibrahim, o aguadeiro:

    - Mataram-no pelo nico acto bom que realizou na sua vida.- Porque que o seu gnio muulmano no o salvou? - inquiriu o aguadeiro.- No te metas no que no conheces - avisou o barbeiro, e Maruf, o

    sapateiro, confirmou as suas palavras.Gamasa viu Sahloul, o mercador de mveis, que se virava para observar a

    cabea sem qualquer preocupao e lembrou-se da sua extraordinria energia nodia da execuo. Quando o mercador ficou sozinho, Gamasa aproximou-se dele eperguntou:

    - Poderia contar a um estrangeiro a histria do homem a que pertencia estacabea?

    Sahloul dirigiu-lhe um olhar que o fez arrepiar dos ps cabea. Sentiu queo penetrava at s profundidades, e o homem constituiu para ele ainda um maiormistrio. Afastando-se dele, Sahloul disse-lhe:

    - No sei mais do que os outros.Gamasa seguiu-o com o olhar at que ele desapareceu, depois disse a si

    prprio: Talvez se considere demasiado importante para falar com um estrangeiroetope.

    Lembrou-se da sua histria como antigo polcia, conhecedor das actividadesdas pessoas, e reparou que Sahloul tinha sido o nico mercador importante que notinha mantido uma relao suspeita com ele ou com o governador. Masrapidamente o esqueceu mergulhado nas suas reflexes. Depois viu Ragab, otransportador, juntar-se ao grupo de Ugr, Ibrahim e Maruf, e foi ter com ele,impelido por um plano que j idealizara. Saudou-o e disse:

    - Sou um emigrante etope e gostaria de trabalhar como transportador.Ragab lembrou-se do seu primeiro amigo, Sindbad, e respondeu:- Vem comigo, pois Deus um generoso provedor.

    Revoluteava em torno da sua famlia em esprito e corpo. Que valor teria asua vida se tivesse de estar separado tanto da sua famlia como da sua cabea?Continuou a seguir Rasmiya e Akraman at elas entrarem no albergue onde

    se alojava a famlia de Sanaan. Sem hesitar, alugou para si prprio um quarto nomesmo edifcio e deu-se a conhecer como o transportador Abdullah. No meio dasua inquietao, alegrou-se por ter sido Umm Saad a conduzir a sua famlia aonovo lar, e a no ter esquecido a sua antiga vizinhana e os esforos de Rasmiya

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    para a ajudar na adversidade. Ela associar-se-ia a Rasmiya para fazer os doces eFadil Sanaan vend-los-ia, com vantagem para as duas famlias. Estava muitocontente por isso e tambm por t-los perto. Gostava de os ver e saber que estavam

    bem. Tentava exprimir o seu carinho e assumia as obrigaes de um esposo e umpai, amando de longe, mas ningum conhecia a sua situao. Esperava que Fadil

    viesse a casar com a sua filha Akraman, como combinado com Sanaan, tal comoele sonhara um dia casar com Husniya, a irm de Fadil.

    Continuou com aquela estranha vida, por vezes sentindo-se vivo, outrasmorto.

    Com efeito, era tanto Abdullah, o vivo, como Gamasa, o morto: umaestranha experincia nunca conhecida por um homem. Trabalhando para o sustentona companhia de Ragab, recordava que estava vivo; depois, ao atravessar a rua por

    baixo da cabea suspensa, ou ao ver Rasmiya e Akraman, lembrava-se que estavamorto. Nunca perdendo de vista que tinha escapado milagrosamente da morte,decidiu ir at ao fim pelo caminho da piedade. Encontrava prazer na adorao e

    sentia-se bem na sua solido ao recordar Deus. Dirigia-se sua cabea pendurada edizia para si prprio: Que permaneas um smbolo da morte de um homem perverso que jogou muito tempo com a sua alma, embora o seu coraocontinuamente se enchesse de nostalgia pela sua pessoa de curta vida, aquela

    pessoa que coroara a sua vida com um sincero arrependimento, sempreimpressionado pelo facto de um homem poder morrer sem deixar de viver ou

    poder viver estando morto. Quem poderia acreditar que ele era Gamasa al-Bulti nasua essncia escondida? Seria possvel que s ele possusse este segredo parasempre?

    At Rasmiya e Akraman olhavam para ele como se fosse um estranho deterras estrangeiras. Sentia ento perante o seu olhar indiferente uma cruel sensaode alienao e de injustia torturada. Nem uma nica vez tinham reparado nointenso amor que se escondia por detrs dos seus olhares furtivos, no seaperceberam dos seus sentimentos. Nos seus olhos a cena da execuo repetia-setodas as manhs e noites bem como a dor de o recordarem a ser separado da suaalma sempre que mergulhava nas preocupaes do dia-a-dia. Nunca iriam acreditarque a vida lhe fora concedida por milagre, nem seriam capazes de aceitar estefacto. Tinham engolido as agonias da sua morte e tinham sofrido o desgosto.

    Tinham conhecido a vida sem ele e sarem da sua nova situao seria todifcil como fora entrar. Ele no arriscaria sequer beliscar a nova estrutura, noseria capaz. Aquele que tinha morrido tinha de continuar na morte em

    considerao para com os que ele amava. Cabia-lhe a ele habituar-se sua mortena sua nova vida - a ser o transportador Abdullah e no Gamasa al-Bulti e aencontrar a sua felicidade no trabalho e na adorao. No entanto, o seu trabalholevava-o muitas vezes s casas dos seus antigos amigos e s manses daqueles quetinham influncia e posies de poder: o mundo da piedade aparente e corrupolatente. Tudo aquilo o levava a pensar em si mesmo e nas circunstncias das

    pessoas, e isso perturbava a serenidade da sua paz espiritual. Era perseguido por

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    desonestidade e desvio como se os seus membros lhe tivessem sido levados pelatempestade e as suas funes negadas. Disse a si prprio que do mesmo modo queas estrelas seguem o seu caminho em perfeita ordem, assim tambm deveacontecer com as preocupaes das criaturas de Deus.

    - Mas continuei a viver por milagre para poder trabalhar como

    transportador? - perguntou a si prprio com inquietao.Shahriar olhou para a silhueta das rvores que sussurravam na noite. O

    sulto reclinou-se no seu assento da varanda traseira apesar de o Outono estar aretirar-se perante os pressgios do Inverno.

    Suportava melhor o frio do que a luta contra o dilvio dos seuspensamentos. Voltando-se para o vizir Dandan perguntou-lhe:

    - No gosta da escurido?- Gosto do que agradar a vossa majestade - respondeu o vizir com lealdade.Perguntava continuamente a si prprio se o sulto teria realmente mudado

    ou se seria uma etapa passageira. Mas sejamos