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Mundo surreal Epílogo

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De certa forma tudo está se encaixando. É sublime achar que algo nos afeta tão longe de nós. Mas naquele dia não foi assim, eu senti que o destino estava contra mim, que alguma coisa muito ruim estava para acontecer, mas como prever algo que você não tem ideia do que seja? De algo que você sente, mas não pode provar ser real?

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Mundo surreal

Epílogo

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De certa forma tudo está se encaixando. É sublime achar que algo nos afeta tão longe

de nós. Mas naquele dia não foi assim, eu senti que o destino estava contra mim, que

alguma coisa muito ruim estava para acontecer, mas como prever algo que você não tem

ideia do que seja? De algo que você sente, mas não pode provar ser real?

Neste dia tudo estava completamente real, exceto pelo fato de minhas subjetivas

visões. Alice estava como sempre com seus cabelos longos e ruivos trançados ao lado da

cabeça e seu vestido vermelho, escolhido pela mãe desde o natal. Carmem estava virada

de costas para nós, mas já dava para saber que o seu estado não era tão comum como nos

velhos tempos, mas mesmo assim ela insistia em contrapor a todas nossas ideias, não que

fosse implicância ou algum tipo de rixa, mas era o que ela sempre dizia ao seu favor –“ Eu

sei que vocês têm suas opiniões, mas não é por isso que terei de concordar com vocês.” –

não sempre com as mesmas palavras, mas tudo se resumia a isto. Em certo modo eu devia

concordar com ela, não seria justo apenas fingir para agradar as pessoas. Mas com a

gente era diferente, e assim eu e Alice já sabíamos o que fazer com Carmem, mas nada

pode estragar a surpresa, nem mesmo meu pensamento tagarelante e minha suposta

síndrome de impaciência.

Nós estávamos em nosso quintal, local em que sempre nos reuníamos, a não ser nos dias

chuvosos e de neve. Hoje não, o céu estava aberto e claro, o sol estava quente - motivo

pelo qual minha mãe me fez passar quase um litro de protetor - e a piscina caía como uma

luva ao calor. Mas de que piscina estamos falando? Desde meu sétimo verão em Campus

que imploro a construção de uma piscina aos meus pais, mas a resposta deles é sempre a

mesma- “Não temos tempo e nem dinheiro para construir e nem manter uma piscina em

nosso quintal, ainda mais em um local em que neva mais do que vamos ao banheiro”-

imaginar meus pais falando isso soava engraçado, mas para mim surgia uma raiva enorme,

porque eu sabia que nem ganhando milhões de dólares eles não cumpririam nenhum de

meus desejos, só para manter a rotina, eu sendo a filha bastarda e semi revoltada, e a

“queridinha Sofia Amelians” filha mais velha e mais tudo. Tudo bem, já me acostumei ao

fato de ser tratada sempre como ultima opção. Não é atoa que tenho amigos, coisa que

aquela cadela esmiolada não tem de jeito nenhum.

Vou esclarecer um pouco. Sofia Amelians é apenas a filha querida dos ricos

empresários Robert Amelians e Demi Amelians. Estuda na melhor escola de Boston e

finge ter os melhores amigos e amigas, os melhores namorados, as melhores roupas, as

melhores qualidades, ah, e claro, era líder dos Johnson, time oficial de Boston. E eu,

bom eu sou só Mary Amelians, cujo sobrenome nunca coube bem em meu vocabulário, por

isso todos me conheciam como Mary London, sobrenome que pertence a minha querida

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avó, Jersey London. Desde então ela sempre fora minha melhor amiga, companheira, ou

até uma segunda mãe, já que havia tanto desprezo pela primeira, digamos assim.

- Mary, o que você acha? Laços azuis ou vermelhos para a cesta?

- Acho que os azuis combinariam mais com os enfeites, mas as luzes são vermelhas,

então não sei bem qual vai combinar melhor. – Alice sempre estava disposta a fazer e

organizar tudo, não seria diferente com nossa festa pascoal. Nós estávamos organizando

em minha casa, apesar de termos que transferir tudo para casa de Alice, pois no dia

combinado o nosso quintal seria ocupado pela minha “querida irmã”, fato que meus pais o

cederam mesmo sabendo que nós havíamos combinado isso há muito tempo antes dela

pensar em fazer a sua festa incrivelmente falsa e chamar todos os seus amiguinhos

fajutos.

- Tudo bem, acho que os enfeites estão em maior quantidade do que as luzes, então vou

colocar laços vermelhos para destacar e dar maior contraste. – Alice sempre sabe

perfeitamente o que fazer, não que seja exper no assunto, mas sempre dava um jeito de

se superar mais e mais.

- Ok, acho que assim vai ficar perfeito, como sempre fica. – acho que quando há uma

coisa realmente boa devemos falar, é isso que venho fazendo, mas quando há algo ruim

acho melhor fechar a boca, no caso de minha família algo assim me seria fatal.

- Tá bom. Mas eu estava pensando em não fazer em minha casa essa festa. Pensei em

fazer na colina de Campus, porque o espaço é bem maior e tudo se encaixaria com maior

facilidade. – outra maravilhosa ideia de Alice.

- Sim, afinal seria ótimo ser engolida viva por mosquitos e pernilongos enquanto ouvimos

o maravilhoso som da mata. – mas é claro que Carmem iria discordar, não era o que ela

sempre fazia nos últimos dias?

-Carmem, eu acho que seria ótimo poder contar com o maravilhoso som da mata, e quem

não agrada com mosquitos, acho que um repelente não seria nada mal, não é mesmo

Alice? – eu fazia questão de sempre discordar do discordamento de Carmem, isso já

estava ficando mais do que chato.

- Tudo bem, acho que um repelente não me faria mal.

- Está mesmo tudo bem com você Carmem? Você devia ir á um psiquiatra. – Alice

conseguia sempre soar confusa quando na verdade queria literalmente zoar com a cara

dos outros.

- Tem razão Alice, acho que vou mesmo a um psiquiatra, mas não pense que ficará imune

na perfeita tentativa de acabar com a minha vida.

Page 4: Mundo Surreal

Realmente ela não estava bem. Mas como entender uma mente dessas enquanto tenho

tantos problemas para resolver?

Continuando a preparação, eu fiz os laços e Alice terminou de embrulhar os ovos, e

Carmem por incrível que pareça ajudou com as cestas e coelhos de pelúcia. Nesse ano

decidimos deixar tudo mais simples, pois a casa de Alice não era muito grande, e por sua

ideia genial ter sido depois da hora, agora não mudaríamos os enfeites.

Já de tardizinha estava tudo lindo e em seus devidos lugares. As cestas deram um

toque suave ás luzes vermelhas, e tudo parecia dançar em sincronia.

- Acho melhor irmos embora. Já está ficando tarde e sabe como é. – Carmem estava de

certa forma diferente – para melhor- e mais educada também, o trabalho em equipe

costuma fazer isso com as pessoas afinal.

- É mesmo. Então tudo bem se você guardar os enfeites, aliás, podemos deixar aqui

mesmo, ainda faltam quatro dias para a festa. Amanhã eu passo aqui com minha mãe e

vamos pegar tudo.

- Tudo bem Alice. Então até amanhã.

- Até. – as duas disseram juntas e saíram rumo á porta.

Capítulo 2

Tudo estava perfeito, a previsão não era de chuva e muito menos de neve, então não

haveria nenhum problema em deixar tudo ali fora. Tranquilamente entrei pela porta de

vidro com florais brancos desenhados ao longo da mesma. A porta de meu quarto

também era reconhecível, a única que havia vários adesivos, eu os colocara para tentar

ter um pouco de privacidade – como “stop” e “ não entre”- mas isso não adiantava muita

coisa, entravam a hora que bem entendiam, e por isso sempre tinha poder sobre a chave,

mesmo não podendo usá-la.

Como já havia comido panquecas, não estava com muita fome, então fui diretamente

para a cama e capotei, figurativamente, mas capotei. Não foi difícil acordar, o frio me

abalou completamente e acordei tremendo. Na mesma hora me lembrei dos enfeites. Não

disseram que faria calor? Mas lá fora não havia nada a mais do que neve, neve e neve. E

os enfeites? Meu Deus! Os enfeites!

Corri o mais rápido possível esquecendo até do agasalho, e lá fora estavam todos os enfeites,

eu teria me aliviado se não fosse o fato de que estavam todos destruídos. Eu não tive reação, só

consegui ficar parada congelando no tempo. Não havia nada a fazer, os enfeites estavam

Page 5: Mundo Surreal

completamente massacrados e detonados. O que a gente ia fazer? Afinal, o que eu iria fazer? Eu

não sei, e o problema é exatamente esse.

E o meu problema aumentou significativamente quando ouvi o barulho do carro de Alice

e sua mãe chegando. Seria um problema ter de enfrentar isso. Nós estávamos tão

animadas. Por que nossos enfeites tinham de ser destruídos assim?

Respirei fundo três vezes e decidi que estava na hora de enfrentar o nosso problema.

Peguei o primeiro agasalho que vi pela frente e fui atender a porta. Ver o entusiasmo

estampado no rosto de Alice só piorou a minha situação.

- Bom dia Mary! –disseram animadas mãe e filha.

- Bom dia gente. –o meu desânimo só preparava o momento da notícia.

- O que foi com você?

- Alice, aconteceu uma coisa de que você não vai gostar muito. Sei que a culpa foi minha

então se você quiser...

- Os enfeites! – Alice era rápida para entender as coisas, e assim saiu correndo em

direção ao quintal. Não tentei contê-la até porque não adiantaria muita coisa. – Os

enfeites! O que aconteceu? Todos! – agora ela não só gritava como chorava também.

- Alice calma, falaram que não iria chover, por isso deixei tudo aqui, mas não precisa se

preo...

- Não diga que não preciso me preocupar! Você tinha que ter guardado, sabe que as

previsões do tempo nunca são corretas! A culpa é sua e vai ter que consertar isso!

Maravilha, eu sou mesmo uma pessoa de sorte. Ontem tudo o que eu tinha era minha

amiga, e hoje olha só o que eu tenho: nada.

- Tudo bem, tudo bem. Eu vou refazer tudo, faço tudo o que quiser, fico o dia inteiro

trabalhando nisso, vai dar tudo certo, sério.

- Não, você não conseguiria fazer nem a terça parte do que eu fiz! Você é mesmo uma

fracassada idiota! Eu nunca quis acreditar no que as pessoas falavam, tentei investir em

você! Mas agora eu vejo que foi uma idiotice minha querer pensar que você fosse

diferente! Nunca foi diferente! Você sempre tem que estar presente e estragar tudo!

Mas fique sabendo que não vou me prejudicar por sua conta, dane-se!

As palavras dela foram como uma facada no meu estômago. O que eu estava fazendo

ali? Por que eu não podia morrer? Agora tudo ficou claro. O problema desde o começo

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não era na minha irmã perfeitinha, nem os meus pais ricos e nem as minhas amigas super-

legais. O problema era comigo. Eu era o problema para ser mais específica.

Agora além da dor em meu coração, lágrimas desciam sem sessar me deixando sem

quase nenhuma visão. E então desejei do fundo do meu coração nunca ter existido. Nunca

ter pensado em existir. E a única coisa que consegui sussurrar foi quase que inaudível,

mas era o único sentimento que podia expressar.

- Me desculpe. - e então a minha ex melhor amiga se foi, e a ultima imagem sua que

consegui captar foi a de desprezo.

Capítulo 3

Depois disso eu fiquei vazia, era como se eu não conseguisse sentir e nem fazer nada. A

neve caia sobre mim levemente, e o frio só aumentava, e foi então que me joguei no chão,

sem pensar, eu não estava mais sobre meu controle. Agora eu não tinha nada e nem

ninguém. Era só nisso que consegui pensar por longas três horas.

E com um súbito choque me recuperei só que agora alguma coisa estava diferente. Ao

abrir os olhos o céu estava aberto com um enorme sol brilhando bem ao centro, e o

cheiro de rosas e jasmim estava por toda parte. Me levantei e avistei várias criaturas

não muito distantes, elas eram bem pequenas, usavam roupas uniformes como um

macacão, mas não tinha o aspecto bruto do mesmo. Tinham os cabelos curtos ou puxados

para trás em um delicado rabo de cavalo. E percebi então que eram duendes. Todos

carregavam cestas com ovos de páscoa e vinham diretamente em minha direção.

Eu fora transportada ou estava tendo visões, o que de um modo ou de outro não me

parecia muito agradável.

E foi então que um deles falou comigo, mas o pior que parecia uma língua nativa,

fazendo com que eu não entendesse absolutamente nada. Mas de repente meu corpo

estava sem controle de novo. Ou alguém, que não fosse eu, estava o controlando. E então

varias palavras, parecendo derivadas da mesma língua nativa dos duendes, saíram de

minha boca, mas não fui eu quem as dissera. De repente me movi, acenando e falando,

como se estivesse de intrusa em um corpo. E assim fui direcionada a uma casinha muito

peculiar, seu teto era de palha, mas não uma palha qualquer, era uma palha resistente de

textura grotesca e delicada ao mesmo tempo. As paredes eram de tijolo aparentemente

resistente e delicadamente pintadas de um laranja fosco incandescente.

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Tentei ignorar a sensação de estar em um lugar ao qual não pertencia. E foi então,

quando entramos na casinha, que um homem de aparência jovem porem demonstrando

muita maturidade no olhar, me olhou nos olhos, e desta vez eu senti uma coisa que me

fez ver que ele olhava realmente pra mim, e não no corpo pelo qual eu não tinha nenhum

controle. Com seu lindo sorriso me disse algumas palavras, simples e delicadas como tudo

ali, mas que tiraram toda minha razão.

- Eu sei quem você é, sei por que está aqui. E espero que também saiba Srtª London. –

como ele poderia saber, eu até então não sabia de nada.

E foi então que percebi que aquele rosto era familiar de algumas fotos que vovó London

me mostrara. Só parecia mais jovem e com uma maior vivacidade.

Você é Jared London!

Ah, é. E com uma tentativa inútil tentei me comunicar com meu avô desaparecido de

quem minha vó sempre se queixara. Mas tudo foi em vão, ele sabia que eu estava lá, mas

eu era uma invisível a todos os olhares confusos que me cercavam.

- Sei que soa confuso querida, mas vamos resolver tudo isso em questão de poucos dias.

– ele não tinha os costumes dos duendes, mas meu corpo tinha, o que faz com que tudo se

torne mais confuso quando se é influenciada por uma mente do além.

Bom, o que aconteceu depois? O meu corpo alugado foi direcionado a uma casinha igual

à outra, e sua vida se seguiu normalmente. Tirando os detalhes passaram-se assim dois

dias. Só que no terceiro dia a saída àquele estranho mundo me encantou completamente.

Explorar tudo aquilo, mesmo sendo tão normal ao meu até então corpo, era perfeito para

mim. Todos eram unidos por uma amizade tão intensa que me chocava até. Os rios eram

de um azul bebê suave, assim como a brisa acompanhada do cheiro de rosas e jasmim que

sempre nos acompanhava dando-nos boas vindas. O sol apesar de parecer tão próximo

não aquecia como antes. Tudo era extremamente perfeito.

Foi então que a avistei, não foi como os rios ou como a brisa, foi maior. Parecia que tudo

girava e dançava apenas em sua direção. E suavemente virou-se para mim, agora sim pude

perceber o quanto era magnifica.

A mulher, se é que podia ser chamada assim por sua beleza estonteante, tinha cabelos

longos lisos e louros formando pequenos cachos nas extremidades. Vestia um vestido

longo rosa do qual eu nunca tinha visto. Sua pele branca refletia a luz do sol, e seus olhos

azuis por incrível que pareça brilharam a me ver.

Pensando que a perfeição não tinha mais como se manifestar, então sua boca se abriu e

palavras doces vieram diretamente para mim, era como se pudesse senti-las.

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- Eu esperei muito por você Mary London. Que seja bem vinda a nossos aposentos.

Espero que tenha gostado de tudo, pois fui eu quem fez e criou tudo ao nosso redor.

Ela se direcionou a mim, e eu senti que mesmo não manifestando nada em meu corpo,

não tive nenhuma ação. Sua beleza e delicadeza explicava tudo o que ela criara ali,

naquele estranho mundo. A cada pequena coisa criada ela colocava um pouco de si.

Bem perto de mim disse:

- Seu avô sempre falou muito sobre você e sua avó também. – não sendo por impressão

minha, mas ao pronunciar o nome de minha avó seus lábios esculpidos se retorceram

formando uma careta inapropriada para o frágil corpo. – Claro que não como você pode

falar agora. –sua risada fez passar um enorme calafrio em mim, que jurei ter abalado

meu corpo de aluguel.

- Não que seja maldade minha, mas até eu ter certeza de que você não vai falar nada

para ninguém você vai permanecer neste corpo. Até porque a promessa de seu avô de te

tirar daí vai ser totalmente inválida quando ele e sua avó não existirem mais.

O que aconteceu em mim foi tão forte ao ouvir aquilo que de repente sem tanto

esforço gritei – Não! – o grito foi tão alto que saiu audível á todos, o que me provocou um

enorme arrependimento ao ver os olhos vermelhos sangue daquela mulher que até pouco

me simpatizara tanto.

- Pode ter conseguido dessa vez! Mas não pense que vai ser fácil sair daí. Tudo o que

você fizer sua avó vai pagar cada centavo! E não pense que eu esteja falando em

dinheiro, porque isso não me seria útil o suficiente. – e num impulso ela saiu do local,

deixando olhares confusos e furiosos, não com a mulher, comigo.

Se eu conseguira me estabelecer uma vez eu conseguiria de novo, não seria fácil, mas

logo aquele corpo seria completamente meu. Ninguém, nem mesmo uma deusa iria

prejudicar minha avó. Nunca.

Capítulo 4

Depois do desgastante acontecimento, todos saíram do local, o que me daria mais

chances. Concentrei-me ao máximo possível e tentei me conectar com o corpo. Primeiro

as mãos. Ótimo, ao me concentrar a ponto de suar se fosse possível vi minhas mãos

fazerem o mesmo movimento que imaginara. Agora sim, tudo vai dar certo. Mas não fui

só eu quem percebeu o movimento, a dona de meu corpo também, o que fez com que ele

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saísse correndo a mil na mesma direção de onde a deusa saíra. Percebendo o que iria

acontecer me concentrei aos pés. Eles então pararam e eu não estava correndo mais,

usando o movimento das mãos dei um tapa em minha própria cabeça, mesmo não falando a

mesma língua aquele ser entenderia o que eu quis dizer. E assim foi. Ele não se

manifestou mais.

De certo modo aquilo não teve muita coerência. Até hoje não tinha percebido o que

estava acontecendo, mas era totalmente abismal achar que era um sonho quando fatos

tão reais e absolutamente renegados por mim durante anos aconteciam por toda parte.

Primeiro tudo o que eu sempre dissera a minha avó sobre meu avô era que sentia muito, e

nunca conversei muito sobre isso. E me lembro também de uma história que ela contava

sobre uma mulher comum que havia desaparecido no mesmo dia e hora constatada pelos

seus familiares que o meu avô. Soava estranho querer misturar duas histórias tão

distintas e conjuntivas ao mesmo tempo, afinal meu avô teria ido pescar como em todos

os sábados à tarde e a mulher teria ido em direção a um deserto, vista pela ultima vez

em um cavalo beira a um ribeirinho. Lugares distantes e distintos, eles não teriam se

envolvido, ou pelo menos naquela época não.

Tagarelar comigo mesma durante horas era meu ponto fraco, me lembrando disso

percebi que estava sentada com as mãos cobrindo os olhos e várias lágrimas descendo.

Não era comum chorar sem perceber, mas meu corpo sabia o que estava acontecendo, ela

era uma escrava daquela mulher cruel, teve que repartir seu corpo com algo estranho –eu

– e agora estava também perdendo seu controle para mim, o que de um modo ou de outro

significava que só uma de nós conseguiria sobreviver a tantas confusões. Eu queria

ajuda-la, queria poder consolar, mas não conseguia, ela agora era minha inimiga natural, o

que não consta amizade ou qualquer gesto de caridade. Eu teria que lutar contra o pobre

ser, e o pior, teria que vencer completamente.

Mais um dia se passou, e minha mente brilhante não estava conseguindo se estabelecer

a ponto de pensar em algo para constatar coisas tão confusas. Meu corpo agia

normalmente, e apesar de estar quase tendo um controle perfeito sobre ele, não me

manifestava para não criar mais problemas.

Estávamos sentadas –só eu e meu corpo na verdade- em um lindo gramado verde pérola

que cercava a estátua da deusa. Só nós, mais ninguém, mas apesar disso eu quase não

sentia a sua presença ultimamente. Mas ao mesmo tempo em que pude pensar isso, pensei

ouvir algo dentro de nós, algo estranho e totalmente não identificável. Mas então o som

foi ganhando forma, e tudo o que eu ouvi era legível.

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“- Eu sei que você pode me escutar, então se não me responder juro que meto uma bala

na minha cabeça e o que restar de você não servirá para nada além de um caixão – sua

voz foi fria e dolorosa, e logo pude saber do que se tratava.

- Sim, posso te escutar, aliás, é bem estranho decidir se comunicar comigo

mentalmente, achei até que não falasse minha língua. – achei que se fosse direta e grossa

não teria o risco de ela se fechar de novo, pois se fosse educada demais ela com certeza

perceberia que eu desejava algo.

- Eu falo sim sua língua, sou nativa daqui, mas não sou ignorante, sei até de muita coisa

que você provavelmente não saiba. E a proposito, não me chame de coisa, meu nome é

Cheron. – era incrível o fato de que ela estava tentando se tornar minha amiga, ou não.

- Prazer Cheron, sou Mary, Mary London. – apresentação formal, quem diria hein?!

- Eu sei, aliás, todo mundo sabe. Você é neta de nosso guerreiro Jared London. – meu

avô, claro, mas aqueles duendes não deviam saber da história, ou talvez, eu não soubesse

da história.

- Guerreiro? –percebi ter agido sem pensar e vi que logo seu corpo –nosso corpo- se

enrijeceu.

- É uma longa história, e acho que você precisa saber. – história? Mas é claro, percebi

que aquela deusa não trazia algo bom, sua beleza não significaria muita coisa se

prestássemos atenção aos fatos.

- Comece do início senhorita Cheron. – percebi que estávamos nos tornando amigas, e

também que ela não era a favor da deusa, ou pelo contrário não chamaria meu avô de

nosso guerreiro.

- Tudo bem. Há não muitos anos, nossa deusa queria nos criar e também a nosso mundo,

mas para isso ela teria que se sacrificar. Mesmo parecendo totalmente fora de

cogitação, ela atraiu seu avô para o lago onde aconteceria o ritual, pois a dois o sacrifício

se partiria ao meio e cada um teria sua parte de sofrimento, diminuindo-o assim. Mas seu

avô não teria aceitado isso se ela não tivesse invadido seus pensamentos, o que o fez

pensar que eram um casal e que o com o sacrifício o mundo perdido seria deles. Ele

então, manipulado, aceitou. Eles fizeram o ritual na noite de lua cheia e criaram nosso

mundo perdido. É claro que depois de conquistar o que queria ela se transformou em uma

deusa, tirando os poderes de Jared que o sacrifício havia lhe remunerado, e o fez de seu

escravo como todos nós. Só que há uma profecia, pode perceber isso olhando ao nosso

redor, tudo o que tem aqui é sublime e atrativo, o cheiro, as cores, a delicadeza colocada

em tudo aqui, isso tudo é para atrair mais escravos aqui, na verdade nada disso é

verdadeiro, nada disso soa real. E essa profecia foi criada logo após nossa deusa tirar os

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poderes de seu avô, como condição. Nela diz que ao longo de 40 anos, um neto ou alguém

que tenha o mesmo sangue de seu avô, tem que ser sacrificado para que ela possa

continuar sendo sublime como é. E você, bem, é a primeira a realizar a profecia para que

a deusa continue nos mantendo aqui. Somos pessoas normais, nunca fomos duendes, ela

que fez isso com todos nós. Éramos seus empregados na outra vida. E ela conseguiu

permanecer-nos nesse mundo também. – a longa explicação não durou mais que dois

minutos, o que me fez raciocinar com maior dificuldade.

- Então, quer dizer que essa é a mulher que desapareceu junto com meu avô.

- É acho que sim. – era uma afirmação, mas mesmo assim ela confirmou.

- E eu vou ser sacrificada, como? – tudo já estava ruim demais para piorar um pouco, se

eu fosse sacrificada, quarenta anos iam passar para alguém tentar fazer alguma coisa.

Mas não! Não pode ser assim.

- Você já está sendo sacrificada. Na verdade ela acha que a mantendo viva, mas presa,

ela terá mais chances de não cometer erros depois. – ela disse com tanta calma, mas nem

raiva consegui expressar em meu estado de choque absoluto.

- Eu preciso sair daqui. Sabe como posso derrotar ela? – a única pergunta obvia a se

fazer, mas a informação não teria muita utilidade sem a ação.

- Sei, mas é difícil com ela nos perseguindo. Ela sabe que você é forte, sabe que

poderia me dominar, e então está tentando fazer com que isso fique o mais difícil

possível. – claro, nada desse gênero seria fácil.

- Ótimo, só me diz como que eu tento observar e fazer o resto, claro que com sua ajuda

se necessário.

- Está bem. Temos que falar com Jared, ele vai saber te explicar de forma cautelosa,

para que você não dê um ataque. Só devemos esperar essa noite, amanhã a deusa estará

ocupada com as flores que querem voltar a sua forma original.

- Tudo bem, acho que posso esperar. E obrigado mesmo por sua ajuda.

- De nada, na verdade não é só por você. É por todos nós.

- Que seja então Cheron, que seja.”

A conversa foi extensa, embora rápida. Sem que eu percebesse já estávamos na ampla

casinha coberta da brisa leve e cheirosa de Cheron. Era legal saber que agora éramos

amigas. E que de um lado obscuro ou favorecido, tudo seria resolvido.

Page 12: Mundo Surreal

A noite nos abalou, e todas as informações e preocupações foram desaparecendo à

medida que íamos fechando os olhos. Logo a profundidade e a escuridão da inconsciência

me cobriu.

Capítulo 5

Acordar em outro corpo ainda era estranho pra mim. Tive que me controlar para não

cair em lágrimas diante os tantos problemas. Eu queria voltar ao tempo em que brigar

com minha amiga por causa da destruição dos enfeites da páscoa era meu único

problema. Não, acho que isso não seria possível, aliás, tudo estava se fixando e ficando

mais real a cada dia.

Espera aí! Se fixando e ficando mais real a cada dia? É! Talvez seja isso. Talvez isso

seja uma ilusão, e eu precise arrumar uma maneira de me localizar e voltar de onde eu

estava. Mas se for isso que estiver acontecendo comigo, é o que está acontecendo com

todos. E então preciso arrumar um modo de todos acordarem e saírem da ilusão.

Parece simples, mas não é nem um pouco.

“ – Bom dia Srtª London. – disse a voz melódica da Cheron

- Pode me chamar de Mary. – acordar com alguém invadindo seus pensamentos também

não é algo com que você queira se acostumar.

- Ok, Mary, pronta para falar com Jared? – de todo jeito ela saberia minha teoria,

então, era melhor contar de uma só vez.

- Eu acho que descobri uma coisa. Talvez ela esteja criando uma ilusão que nos faça

crer cada vez mais que estamos mesmo aqui, mas na verdade não estamos. Afinal, em que

outro lugar a não ser imaginário, duas pessoas viveriam em um só corpo? – fui direta, pois

talvez assim tudo saísse mais facilmente.

-Acho que você esteja realmente certa, mas não temos como provar ou fazer nada

ainda. – suas palavras foram como tesouras me podando.

- Mas é exatamente isso, a cada dia acreditamos mais que isso é real, devemos agir

rápido. Lembra que ela falou que por enquanto eu deveria ficar no seu corpo para não

correr riscos? Então, era para eu acreditar que estamos aqui mesmo, e isso só acontece

com o tempo, como está acontecendo com você.

- Realmente talvez seja isso, mas não acha que devemos falar com Jared antes de

fazer qualquer coisa? – é e ela estava certa mais uma vez, se falar com ele não

adiantasse eu iria fazer outra coisa.

Page 13: Mundo Surreal

- Tudo bem. “

O café da manhã não foi muito de se esperar. Depois que se sabe o que realmente

acontece em um lugar que se passa a gostar ou não dele. Exatamente como eu, que amei a

primeira vista, mas ao saber de tudo, ficou o pior de todos.

Após seguir quase tudo normalmente, fomos direto para a casinha de meu avô, se ainda

restava esperança, eu ainda acreditava que estava nele.

Antes que pudéssemos pegar na maçaneta a porta se abriu, e os olhos cansados de

Jared estavam nos fitando bem nos olhos. Não foi como antes, mas seu sorriso amplo e

jovial se abriu, e isso só aumentou minha esperança.

- Bom dia, Cheron, e bom dia minha linda princesa Mary. – ao saírem as lindas palavras

de sua boca, seu sorriso ficou mais lindo ainda, e tive a impressão de conhece-lo a

décadas.

- Bom dia. – o som saiu da minha boca, mas eu sabia que era Cheron quem havia

pronunciado.

- Como estão vocês? – ele tinha a mesma delicadeza de minha avó, e também parecia

completar ela de certa forma.

- Estamos bem, mas precisamos conversar sobre um assunto que lhe interessa

bastante. – as palavras brutas de Cheron me quebraram o encanto de reencontro

completamente, e logo me lembrei de todos os problemas que nos rodeavam. Meu avô que

antes sorria, pareceu ter a mesma reação.

- Tudo bem, entrem. – sua voz não foi rude, mas triste.

Antes de entrar, nos certificamos de que não havia ninguém nos bisbilhotando, mas

como isso não era suficiente, decidimos ficar com a sorte.

Ao entrar naquela pequena casinha, me lembrei de tudo o que havia deixado ao

adormecer na profunda tristeza que me rodeava depois de uma singela briga com minha

melhor amiga. Isso agora parecia tão simples e banal.

Sentamos no sofá verde um pouco desbotado que ficava de frente a uma tevê que podia

ter 29 polegadas. Recusamos o chá ou o biscoito e decidimos ir direto a onde devíamos

ir: ao assunto.

- Bom Jared, é compreensível que você não queira falar sobre o assunto que ninguém

aqui aceita casualmente, é complicado, mas devemos tomar decisões que podem salvar

todos nós, e isso não depende apenas de nós duas, depende de você também. – do modo

Page 14: Mundo Surreal

que ela falou, era como se isso tocasse bem a fundo algo que Jared nunca iria querer se

lembrar, mas que era super preciso.

- Ela está se comunicando com você? – não foi por impressão, mas vi seus lindos olhos

verde musgo brilharem e sorrindo, como se fossem pular de alegria por alguma

esperança.

- Bem, sim, viramos um tipo de amigas na verdade. Ela é muito forte, é diferente de

todos que já vi, ela conseguiu dominar completamente meu corpo, e conversa comigo

diariamente com pensamentos, mas quando ela não quer, eu não consigo saber o que ela

está pensando. É bem complicado lidar com sua força e seu incentivo. –ela disse palavras

tristes, mas sorria ao pronuncia-las.

- Ótimo, sempre soube que ela era forte o bastante para encarar esse tipo de

problema, ela não é como os outros de nossa família, é como a avó, guerreira. –agora ele

estava sussurrando, como se não quisesse que ninguém escutasse além de nós, e

provavelmente não queria mesmo. – ela pode escutar o que eu digo?

- Sim, está escutando agora mesmo. E ela ama mesmo você, e quer nos salvar, quer nos

devolver a humanidade. Se fosse outra pessoa, teria caído em prantos na mesma hora em

que acordou aqui. – ora, eu não sou especial, tive mesmo vontade de chorar muito e

desistir, aliás, tenho essa vontade até hoje, mas não quer dizer que eu vá fazer isso.

- Minha linda, - agora ele falava comigo, era como se ele olhasse realmente em meus

olhos, como se ele me visse lá dentro. – eu quero que você não desista, sei que vamos

encontrar um jeito de tudo dar certo, - agora ele estava chorando – eu te amo. Muito

mesmo. Não quero que se esqueça disso. – mas isso soou como uma despedida, mas eu não

quero que isso seja uma despedida.

Não sabia se seria uma tentativa inútil, mas decidi tentar mesmo assim. Sem realmente

pensar nas consequências do que estava fazendo me concentrei ao máximo e tomei posse

de nosso corpo.

- Não vou desistir enquanto não conseguirmos colocar essa mulher pra correr, quem ela

pensa que é para mexer com a gente e ficar imune? E você tem que nos ajudar, não vai

ser muito difícil já que para tudo ela depende dos seus escravos. – e então eu estava

falando, tudo saiu tão normalmente que não soube distinguir se era pensamento ou fala, o

que devia ser por causa da falta de costume.

- Você... –seu sorriso radiante agora tomava lugar a muitas palavras, o que me fez

sorrir também, mental e fisicamente. – isso é ótimo! Tudo ficará mais fácil assim, mas

não deixe ela saber que você consegue ter poder sobre o corpo, não sei o que ela poderia

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fazer se descobrisse. – e ignorando Cheron completamente me deu um abraço, que eu

pude sentir de verdade, como não sentia há muito tempo.

- Ótimo, ela faz isso só pra me mostrar que tem poder sobre o corpo, que ótimo então,

tomara que eu não acabe morrendo. –mas é claro que não, eu só devia mostrar para ele

não ter duvidas.

- Tudo bem, ela fez certo, não se preocupe. – seu sorriso ainda era jovial e

descontraído, mas não o bastante. Os traços de sofrimento ainda rodeavam tudo ali, e

não era a falsa beleza que faria esquecer tudo vivido. – Nós vamos fazer o seguinte:

ninguém vai demonstrar que está contra a deusa, e muito menos que está dominando um

corpo alheio. – ele olhou pra mim e sorriu, novamente. – precisamos arrumar um modo de

concentração.

- Sim, quando acordamos hoje, percebi que a cada dia estamos ficando mais distantes

da realidade. É como se estivéssemos nos aprofundando em um sonho sem fim. – falei

novamente, e para minha surpresa, isso já soava normal.

- E sua tese está certa minha querida London. Isso na verdade não é real de certa

forma, os corpos de todos nós estão em perfeito estado, mas depende da nossa mente

se vamos acordar ou não.

- Mas como podemos acordar de verdade? – a voz de Cheron ficou confusa, e sem

querer falar alto demais, ela acenou com as mãos.

- Não sei bem, mas já faz algum tempo que tento descobrir alguma maneira, não sei se

vai ser fácil, porque para ela ter planejado algo assim seria inútil da nossa parte tentar

acabar com tudo dentro de segundos.

Claro, talvez seja isso mesmo. Todos nós sempre sonhamos quando estamos dormindo,

mas nosso subconsciente decide o que, mas se nós estamos em um mundo no

subconsciente de alguém, devemos fazer essa pessoa acordar, mas como fazê-la

acordar? Esse agora era o maior problema.

- Precisamos fazê-la acordar. – falei em um súbito suspiro, o que saiu rápido demais

para todos absorverem realmente o que falei.

- Já pensei nisso, mas nunca tive nenhuma ideia que tivesse realmente lógica. Por isso

não quis tentar nada maior para ela não desconfiar.

- Então agora, temos que buscar fazer algo que realmente funcione, temos que contar

com a sorte, e que ela esteja ao nosso lado. – Cheron falou e então brotou sorrisos,

finalmente sinceros de esperança.

Page 16: Mundo Surreal

Depois disso, não continuamos nossa discussão de quem iria fazer o que e como o

faríamos, mas ao invés disso, fomos –eu e Cheron, embora fossemos uma só- para nossa

humilde casa.

Eu não me liguei muito no que ela fazia, apenas estava pensando em um modo de buscar

alguma salvação. Ao continuar com nossa linha de pensamento, tentei me encontrar na

deusa, descobrir o que ela realmente queria por trás disso.

Nada.

Em minha cabeça só se passava um imenso vazio de escuridão. Não tinha ideia do que

fazer e, apesar da pequena esperança criada com a revelação, parecia que tudo iria

desabar a qualquer momento.

E aí agora se traçava o meu maior desafio, o qual não seria só meu: não desistir. Para

muitos seria muito fácil desistir de tudo, porque mesmo que muitos dependam de

mínimas escolhas, eu não teria nada a perder nesse exato momento.

Capítulo 6

A vida nesse incrível mundo subconsciente deveria acabar. Durante a noite, tentei

pensar em tudo que poderia de alguma forma se relacionar com a nossa “prisão” mental.

E como eu esperava, não adiantou muito.

Mas, perdida em meus pensamentos, comecei a perceber que eu não estava dando muito

espaço ao passado, ao que me acontecera antes mesmo de abrir os olhos nesse estranho

lugar. E, na mesma hora, comecei a pensar em tudo o que se acumulara, todas as

dificuldades, todas as brigas entre minha família, todos os abraços de minha avó, todas

as vezes que discutimos eu e Carmem, e por fim, na minha pior discussão com Alice. Ao

lembrar dessa discussão, pensei que não significava muito agora, e achei estranho algo

que antes me parecia tão fatal agora parecer tão insignificante.

E aí que me veio outro pensamento.

Lembrei que tudo estava se tornando difuso aqui. Não era apenas essa lembrança em

especial, mas também todas as outras estavam ficando vagas e sem importância.

Page 17: Mundo Surreal

E então me veio um súbito choque. Talvez esse fosse o segredo. Talvez esse fosse o

plano. Como acordar de um sonho e voltar a uma realidade que você mal possa lembrar?

Não tem como. Por isso não poderíamos lembrar de nada da nossa realidade.

Mas esse era o problema. Como não esquecer? Em todos esses dias, todo esse tempo

tentando lembrar algo, algo que talvez nem mesmo em vida real eu não me lembrava, mas

tudo em vão. Nada vinha em mente. Mas o tempo era pouco, a pressão era muita, a cada

minuto uma nova descoberta, mas descobertas que deveriam ser importantes aqui, nesse

mundo criado totalmente a favor de outra pessoa, e não no mundo real, o mundo que

devemos voltar. Mas é claro que é isso! Tempos passados aqui e só agora que fui

perceber que tudo pode ser sim uma armadilha, mas uma armadilha que nós mesmos

criamos para nós, nós mesmos estamos nos prendendo aqui, parece fácil, mas é fácil.

Tão fácil que ao mesmo tempo pensei o quanto isso parecia surreal. É claro que não

poderia ser tão fácil, até mesmo porque se fosse meu avô teria descoberto.

E assim eu desabei. Minha mente se perdeu em um choro agudo e silencioso, e aos

poucos fui caindo na inconsciência, à verdadeira inconsciência. Sem nenhum pensamento,

sem nenhum sonho, talvez fosse essa a verdadeira realidade, sem nenhuma contorção da

verdade ou do que quer que seja.

No outro dia, foi difícil acordar. Se ainda estivesse com meu corpo, o sentiria dolorido,

com os olhos vermelhos e inchados, e com uma enorme fome. Mas na atual circunstância,

o que senti foi uma dor de cabeça mental, que também parecia atingir não só a mente,

mas a cabeça de Cheron.

Ela começou a andar, e não deixou nenhum objeto a sua frente intacto. Ela tropeçava, e

às vezes fazia o possível para não cair.

Fiz questão de não fazer nenhum movimento com seu corpo, e tentei lhe dar o máximo

de privacidade possível, mas de qualquer modo, eu não conseguiria. A dor de cabeça só

aumentava, e aos poucos tudo foi ficando embaraçado e escuro. Parecia que de certo

modo eu estava perdendo todos os meus sentidos. Então, abalada pela tentadora paz da

inconsciência, deixei que meus sentidos fossem levados.

Abri os olhos, mas tudo parecia como se eles estivessem fechados. Olhei para todos os

lados da escuridão. Não me veio na cabeça que estivesse morta, pois ultimamente não

considerava ter uma vida. Tentei voltar a dormir, mas não foi possível.

Page 18: Mundo Surreal

A ideia de que permaneceria ali para sempre não foi agradável, o que me fez pensar que

seria muito pior do que viver no corpo de outra pessoa. Então, afastei todas as ideias

paranoicas de minha cabeça, e foi quando, ao mesmo tempo, vi um feixe de luz. Era fraca,

mas era um sinal de esperança, afinal, não sabia o que tinha acontecido, e de onde quer

que tenha vindo essa luz, deveria também vir uma explicação.

Tentei olhar de onde a luz vinha, mas minha cabeça parecia estar presa em alguma

coisa.

Ouvi passos vindos em minha direção, e eram de sapatos de salto alto, os quais apenas

mulheres usariam. Mas o arrepio que veio seguido revelou de quem exatamente seriam

aqueles sapatos.

- Ora, ora, Mary London! Você deve estar bastante satisfeita agora, não é mesmo

minha querida?

É claro que era ela, a “deusa” do subconsciente.

- Vejamos... quem diria que você seria tão útil! Mas, as pessoas nos surpreendem. Às

vezes acho que o que eu fiz foi falta de tempo, já que todos somos imortais enquanto

estivermos aqui... Mas, por outro aspecto, penso que isso pode ser bom, você não acha? É

claro que acha. Mas também, não é o mundo que permanece imortal, são apenas nossos

corpos, eles estão lá, intocáveis, em perfeito estado, enquanto pessoas que nós amamos,

como sua vovozinha, e até pessoas que odiamos, como sua mamãezinha, estão morrendo,

ficando a cada segundo mais velhos e inúteis. Sim, eu sei que você ama tanto sua avó que

daria a vida por ela, mas o que você pode fazer presa em um mundo subconsciente? Sim,

sim. Você já devia desconfiar não é mesmo? Nenhum outro lugar na vida real criado por

seres humanos ignóbeis seria tão inspirador... Eu sei. Te darei alguns segundos para

perguntas, mas vou avisar que gritos histéricos não vão te salvar agora. – agora toda a

sala estava iluminada, e a linda mulher que me causava repulsa estava em meu campo de

visão.

-Tudo isso, por quê? Só pelo prazer de manter vidas inocentes presas nesse seu

mundinho fútil? Você acha que assim vai conseguir ser superior? Nem aqui, nem na vida

real, e nem em qualquer lugar que possa existir você vai ser alguém que preste!

- Ah sim, sim. Vamos responder uma de cada vez. O porquê é simples, mas pode ser

cansativo pela extensão da história. Mas se você quer saber... Tudo começou numa

cidade chamada Boston, bastante conhecida, e era onde eu morava. Lá, também morava

um menino que se chamava Robert Amelians. Esse menino sempre foi muito cobiçado por

todas as meninas, porque era bonito, educado, e por suas condições financeiras. E ele

também era meu melhor amigo. Então, certo dia, ele me levou em um parque, mas não era

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qualquer parque, era o nosso parque, todas as coisas importantes acontecidas entre nós

aconteciam ali, e aquele dia não seria diferente, ele tinha me chamado ali para algo muito

importante. E foi como esperei, ele disse que estava apaixonado por mim, e por incrível

que pareça eu também estava por ele, que me pediu em namoro, mas isso não terminou

como qualquer final feliz. Se ela não tivesse aparecido, se ela não tivesse ao menos

nascido, você não existiria! Você é um fruto daquele amor doentio que Robert disse ter

por aquela miserável. – ela soava como louca, e isso estava me tirando do sério.

- Olha, eu não tenho culpa se seu romancezinho não deu certo. – eu teria dito mais

coisas se não estivesse com os pulsos e tornozelos atados por um nó seguro.

- Calminha. Não terminei de responder suas perguntas. Não, não criei esse mundo pelo

prazer de prender pessoas inocentes, até porque você não chega nem perto de ser

inocente. E não que eu queira te deixar abatida, mas vai ser muito difícil você sair desse

lugar.

- Você disse que iria responder todas as minhas perguntas.

-Sim, sim.

- Então como posso sair daqui?

- Ei queridinha, não pode perguntar coisas indiscretas. – coisas indiscretas? Essa

mulher devia ser presa. Maluca.

- Achei que você fosse de palavra, esqueço que não posso confiar em pessoas como

você.

- Tudo bem, tudo bem. Minha honra pela sua pergunta. Você deve atravessar as

barreiras do seu pensamento e atingir o seu próprio mundo. Não pode mudar nada naquilo

que não é seu, mas a verdade estará sempre escondida dentro do seu coração. Não perca

tempo, em 48 horas vocês não vão existir aqui ou em lugar algum. –mas que raio de

enigma era esse ?

- Como assim ?

- Já respondi sua pergunta, nada de truques menininha mal educada. E tenho a certeza

de que essa resposta não vai ajudar em nada.

- Não pode dar respostas que não sejam verdadeiras.

- Ela é verdadeira, sim. Mas você deve pensar muito para resolvê-la.

Atravessar barreiras do meu pensamento? Atingir meu próprio mundo? A verdade

estará sempre escondida no meu coração. Mas como? Se eu tenho que atravessar

Page 20: Mundo Surreal

barreiras... espera! Eu já atravessei, consegui comandar um corpo que não era meu

apenas atravessando barreiras em meus pensamentos. Se eu já fiz isso....

- Muito bem, continue pensando. Enquanto isso vou dificultar um pouco as coisas...

- O que acha que é isso? Um jogo?

- Não, mas se parece com um. Você vai adorar ficar de cabeça para baixo, ou não, seria

muito fácil, que tal girar também?

- Isso seria tortu...

De repente estava de cabeça para baixo e aos poucos começando a girar. Seria mesmo

mais difícil pensar assim, e meu estômago já começava a se contorcer.

Onde eu estava? Onde eu estava... Barreiras! Atravessei barreiras, mas... Ai! Meu

estômago, juro não conseguir ficar aqui por muito tempo.

Concentra! Concentra! Barreiras, eu atravessei uma barreira. Mas deve ter mais uma.

Ah! Talvez possa ser esta, de não conseguir pensar direito. Tudo bem, tudo está indo

muito bem. Posso considerar que já atravessei outra barreira, mas falta uma. Como vou

conseguir chegar ao meu próprio mundo? Não, não. Você vai conseguir! Pensa! Hum...

Todos estão dormindo, mas estão acordados, é um sonho, de uma só pessoa. Se

estivermos no mundo subconsciente de uma pessoa, como reverter a situação? Como

transportar todo mundo para o meu sonho? Mas tem uma coisa. Eu não criei um mundo,

nunca pensei em ter um mundo assim. Então, vamos criar um mundo.

Tudo bem, olhos fechados, vamos pensar. Todo coberto de grama. Uau! Como posso ver

tão nitidamente assim? Então... o sol vai clarear, mas não aquecer, tudo deve ser suave, a

brisa, árvores para todos os lados, e pássaros. E deve ter um lago bem ali, isso! Está

ficando perfeito! E bem aqui terá um alçapão. Trancado, só eu conseguirei abrir. Lá

embaixo pode ter tudo para uma pessoa viver, mas ela não pode sair de lá, nunca. Isso,

acho que assim está bom. Agora eu me imagino lá dentro, me transportando aos poucos.

De uma hora para outra tudo parou de girar. Aos poucos comecei a sentir uma leve

brisa, a grama nos pés, os baixos murmúrios dos passarinhos. E lá no fundo, bem lá no

fundo ouvi um grito de raiva e extremo ódio. Eu tinha conseguido. Mas como? Seria tudo

tão fácil assim desde o começo?

“Não minha querida, nada foi fácil, nada nunca será fácil. Tudo isso você conquistou, no

final parece sim um caminho curto, mas veja, ainda não acabou. Lute por ele, continue.“

Era a voz de Jared. Eu devia continuar. Abri os olhos, e tudo estava ali, como havia

imaginado. Mas faltava algo.

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Aos poucos comecei a imaginar todos. Meu avô, bem ali ao meu lado, Cheron, claro... E

de um em um, fui sentindo a presença de todos ali, mesmo com os olhos fechados, tudo

me era familiar.

- E então Mary, como é criar um mundo assim? Parece tão lindo.

Abri os olhos devagar, e simultaneamente um sorriso. Era Cheron. Ela estava linda com

um vestido laranja de cetim, como eu jamais havia visto. Antes que pudesse me segurar

lá estava, dando um enorme abraço em minha melhor amiga.

- É fácil, mas precisa de certos cuidados com o pensamento. – e precisava mesmo.

Qualquer coisa que eu imaginasse poderia se tornar real.

- Entendo. – ela disse quando nos soltamos de um longo e apertado abraço.

- Em momentos difíceis você foi a única que me entendeu.

- Sim, você já fez bastante coisa, mas ainda não terminou. Devemos cuidar dela, não

podemos deixa-la. – Jared disse, em tom de preocupação.

- Sim, fiz esse lugar pensando nela.

E aos poucos fui imaginando ela naquele lindo lugar, subterrâneo, onde ela ficaria para

repensar suas atitudes. E lá estava ela, podia sentir.

- Ela já está aqui.

- Mas onde? – Cheron tinha certa razão por sentir medo, mas estávamos em meu

mundo, e nada aconteceria.

- Tem um alçapão escondido, mas tem tudo o que puderem imaginar, ela vai sobreviver,

mas vai ficar sozinha por um bom tempo.

- Tem certeza de que quer deixa-la? – Jared se certificou.

- Sim, mas é temporariamente. Devo voltar depois.

- Tudo bem.

- Querem voltar para casa?

- Acho que seria ótimo. Não vejo a hora de me deitar em uma cama e ter um ótimo

sonho.

O comentário de Cheron gerou risos em todos.

- Acho que é melhor mesmo. – disse rindo.

Page 22: Mundo Surreal

Assim, aos poucos fui voltando, como todos os outros, para a realidade.

Minha cabeça latejava e estava tremendo. Abri os olhos e vi um céu, nublado e frio, e

senti o gelo frio em minhas costas. Ainda estava deitada no quintal, logo após ter a maior

briga de toda a minha vida. Me levantei, tentando eliminar a dor de cabeça que sentia, e

vi de relance todos os enfeites acabados pela neve, mas não me preocupei, precisava de

algo quente para vestir e tomar.

Antes mesmo que pudesse me agasalhar, ouvi um telefone tocar.

- Oi?

- Ah! Ainda bem Mary! Você meu deu um tremendo susto. Escuta, eu sei que fui uma

idiota com você, eu estou de castigo então não pude ir pedir desculpas pessoalmente. Sei

que não devia ter falado todas aquelas coisas e você é minha melhor amiga, eu estava

com raiva, me desculpa Mary, eu amo você, não queria...

- Calma Alice! – ela estava falando sem parar. – Tudo bem, eu entendo que você tenha

ficado com raiva por toda a confusão que fiz, e você não teve culpa. E depois de tudo o

que aconteceu...

- Como assim tudo o que aconteceu?

Ah, sim. Alice continuava perceptiva como sempre.