mundo surreal
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De certa forma tudo está se encaixando. É sublime achar que algo nos afeta tão longe de nós. Mas naquele dia não foi assim, eu senti que o destino estava contra mim, que alguma coisa muito ruim estava para acontecer, mas como prever algo que você não tem ideia do que seja? De algo que você sente, mas não pode provar ser real?TRANSCRIPT
Mundo surreal
Epílogo
De certa forma tudo está se encaixando. É sublime achar que algo nos afeta tão longe
de nós. Mas naquele dia não foi assim, eu senti que o destino estava contra mim, que
alguma coisa muito ruim estava para acontecer, mas como prever algo que você não tem
ideia do que seja? De algo que você sente, mas não pode provar ser real?
Neste dia tudo estava completamente real, exceto pelo fato de minhas subjetivas
visões. Alice estava como sempre com seus cabelos longos e ruivos trançados ao lado da
cabeça e seu vestido vermelho, escolhido pela mãe desde o natal. Carmem estava virada
de costas para nós, mas já dava para saber que o seu estado não era tão comum como nos
velhos tempos, mas mesmo assim ela insistia em contrapor a todas nossas ideias, não que
fosse implicância ou algum tipo de rixa, mas era o que ela sempre dizia ao seu favor –“ Eu
sei que vocês têm suas opiniões, mas não é por isso que terei de concordar com vocês.” –
não sempre com as mesmas palavras, mas tudo se resumia a isto. Em certo modo eu devia
concordar com ela, não seria justo apenas fingir para agradar as pessoas. Mas com a
gente era diferente, e assim eu e Alice já sabíamos o que fazer com Carmem, mas nada
pode estragar a surpresa, nem mesmo meu pensamento tagarelante e minha suposta
síndrome de impaciência.
Nós estávamos em nosso quintal, local em que sempre nos reuníamos, a não ser nos dias
chuvosos e de neve. Hoje não, o céu estava aberto e claro, o sol estava quente - motivo
pelo qual minha mãe me fez passar quase um litro de protetor - e a piscina caía como uma
luva ao calor. Mas de que piscina estamos falando? Desde meu sétimo verão em Campus
que imploro a construção de uma piscina aos meus pais, mas a resposta deles é sempre a
mesma- “Não temos tempo e nem dinheiro para construir e nem manter uma piscina em
nosso quintal, ainda mais em um local em que neva mais do que vamos ao banheiro”-
imaginar meus pais falando isso soava engraçado, mas para mim surgia uma raiva enorme,
porque eu sabia que nem ganhando milhões de dólares eles não cumpririam nenhum de
meus desejos, só para manter a rotina, eu sendo a filha bastarda e semi revoltada, e a
“queridinha Sofia Amelians” filha mais velha e mais tudo. Tudo bem, já me acostumei ao
fato de ser tratada sempre como ultima opção. Não é atoa que tenho amigos, coisa que
aquela cadela esmiolada não tem de jeito nenhum.
Vou esclarecer um pouco. Sofia Amelians é apenas a filha querida dos ricos
empresários Robert Amelians e Demi Amelians. Estuda na melhor escola de Boston e
finge ter os melhores amigos e amigas, os melhores namorados, as melhores roupas, as
melhores qualidades, ah, e claro, era líder dos Johnson, time oficial de Boston. E eu,
bom eu sou só Mary Amelians, cujo sobrenome nunca coube bem em meu vocabulário, por
isso todos me conheciam como Mary London, sobrenome que pertence a minha querida
avó, Jersey London. Desde então ela sempre fora minha melhor amiga, companheira, ou
até uma segunda mãe, já que havia tanto desprezo pela primeira, digamos assim.
- Mary, o que você acha? Laços azuis ou vermelhos para a cesta?
- Acho que os azuis combinariam mais com os enfeites, mas as luzes são vermelhas,
então não sei bem qual vai combinar melhor. – Alice sempre estava disposta a fazer e
organizar tudo, não seria diferente com nossa festa pascoal. Nós estávamos organizando
em minha casa, apesar de termos que transferir tudo para casa de Alice, pois no dia
combinado o nosso quintal seria ocupado pela minha “querida irmã”, fato que meus pais o
cederam mesmo sabendo que nós havíamos combinado isso há muito tempo antes dela
pensar em fazer a sua festa incrivelmente falsa e chamar todos os seus amiguinhos
fajutos.
- Tudo bem, acho que os enfeites estão em maior quantidade do que as luzes, então vou
colocar laços vermelhos para destacar e dar maior contraste. – Alice sempre sabe
perfeitamente o que fazer, não que seja exper no assunto, mas sempre dava um jeito de
se superar mais e mais.
- Ok, acho que assim vai ficar perfeito, como sempre fica. – acho que quando há uma
coisa realmente boa devemos falar, é isso que venho fazendo, mas quando há algo ruim
acho melhor fechar a boca, no caso de minha família algo assim me seria fatal.
- Tá bom. Mas eu estava pensando em não fazer em minha casa essa festa. Pensei em
fazer na colina de Campus, porque o espaço é bem maior e tudo se encaixaria com maior
facilidade. – outra maravilhosa ideia de Alice.
- Sim, afinal seria ótimo ser engolida viva por mosquitos e pernilongos enquanto ouvimos
o maravilhoso som da mata. – mas é claro que Carmem iria discordar, não era o que ela
sempre fazia nos últimos dias?
-Carmem, eu acho que seria ótimo poder contar com o maravilhoso som da mata, e quem
não agrada com mosquitos, acho que um repelente não seria nada mal, não é mesmo
Alice? – eu fazia questão de sempre discordar do discordamento de Carmem, isso já
estava ficando mais do que chato.
- Tudo bem, acho que um repelente não me faria mal.
- Está mesmo tudo bem com você Carmem? Você devia ir á um psiquiatra. – Alice
conseguia sempre soar confusa quando na verdade queria literalmente zoar com a cara
dos outros.
- Tem razão Alice, acho que vou mesmo a um psiquiatra, mas não pense que ficará imune
na perfeita tentativa de acabar com a minha vida.
Realmente ela não estava bem. Mas como entender uma mente dessas enquanto tenho
tantos problemas para resolver?
Continuando a preparação, eu fiz os laços e Alice terminou de embrulhar os ovos, e
Carmem por incrível que pareça ajudou com as cestas e coelhos de pelúcia. Nesse ano
decidimos deixar tudo mais simples, pois a casa de Alice não era muito grande, e por sua
ideia genial ter sido depois da hora, agora não mudaríamos os enfeites.
Já de tardizinha estava tudo lindo e em seus devidos lugares. As cestas deram um
toque suave ás luzes vermelhas, e tudo parecia dançar em sincronia.
- Acho melhor irmos embora. Já está ficando tarde e sabe como é. – Carmem estava de
certa forma diferente – para melhor- e mais educada também, o trabalho em equipe
costuma fazer isso com as pessoas afinal.
- É mesmo. Então tudo bem se você guardar os enfeites, aliás, podemos deixar aqui
mesmo, ainda faltam quatro dias para a festa. Amanhã eu passo aqui com minha mãe e
vamos pegar tudo.
- Tudo bem Alice. Então até amanhã.
- Até. – as duas disseram juntas e saíram rumo á porta.
Capítulo 2
Tudo estava perfeito, a previsão não era de chuva e muito menos de neve, então não
haveria nenhum problema em deixar tudo ali fora. Tranquilamente entrei pela porta de
vidro com florais brancos desenhados ao longo da mesma. A porta de meu quarto
também era reconhecível, a única que havia vários adesivos, eu os colocara para tentar
ter um pouco de privacidade – como “stop” e “ não entre”- mas isso não adiantava muita
coisa, entravam a hora que bem entendiam, e por isso sempre tinha poder sobre a chave,
mesmo não podendo usá-la.
Como já havia comido panquecas, não estava com muita fome, então fui diretamente
para a cama e capotei, figurativamente, mas capotei. Não foi difícil acordar, o frio me
abalou completamente e acordei tremendo. Na mesma hora me lembrei dos enfeites. Não
disseram que faria calor? Mas lá fora não havia nada a mais do que neve, neve e neve. E
os enfeites? Meu Deus! Os enfeites!
Corri o mais rápido possível esquecendo até do agasalho, e lá fora estavam todos os enfeites,
eu teria me aliviado se não fosse o fato de que estavam todos destruídos. Eu não tive reação, só
consegui ficar parada congelando no tempo. Não havia nada a fazer, os enfeites estavam
completamente massacrados e detonados. O que a gente ia fazer? Afinal, o que eu iria fazer? Eu
não sei, e o problema é exatamente esse.
E o meu problema aumentou significativamente quando ouvi o barulho do carro de Alice
e sua mãe chegando. Seria um problema ter de enfrentar isso. Nós estávamos tão
animadas. Por que nossos enfeites tinham de ser destruídos assim?
Respirei fundo três vezes e decidi que estava na hora de enfrentar o nosso problema.
Peguei o primeiro agasalho que vi pela frente e fui atender a porta. Ver o entusiasmo
estampado no rosto de Alice só piorou a minha situação.
- Bom dia Mary! –disseram animadas mãe e filha.
- Bom dia gente. –o meu desânimo só preparava o momento da notícia.
- O que foi com você?
- Alice, aconteceu uma coisa de que você não vai gostar muito. Sei que a culpa foi minha
então se você quiser...
- Os enfeites! – Alice era rápida para entender as coisas, e assim saiu correndo em
direção ao quintal. Não tentei contê-la até porque não adiantaria muita coisa. – Os
enfeites! O que aconteceu? Todos! – agora ela não só gritava como chorava também.
- Alice calma, falaram que não iria chover, por isso deixei tudo aqui, mas não precisa se
preo...
- Não diga que não preciso me preocupar! Você tinha que ter guardado, sabe que as
previsões do tempo nunca são corretas! A culpa é sua e vai ter que consertar isso!
Maravilha, eu sou mesmo uma pessoa de sorte. Ontem tudo o que eu tinha era minha
amiga, e hoje olha só o que eu tenho: nada.
- Tudo bem, tudo bem. Eu vou refazer tudo, faço tudo o que quiser, fico o dia inteiro
trabalhando nisso, vai dar tudo certo, sério.
- Não, você não conseguiria fazer nem a terça parte do que eu fiz! Você é mesmo uma
fracassada idiota! Eu nunca quis acreditar no que as pessoas falavam, tentei investir em
você! Mas agora eu vejo que foi uma idiotice minha querer pensar que você fosse
diferente! Nunca foi diferente! Você sempre tem que estar presente e estragar tudo!
Mas fique sabendo que não vou me prejudicar por sua conta, dane-se!
As palavras dela foram como uma facada no meu estômago. O que eu estava fazendo
ali? Por que eu não podia morrer? Agora tudo ficou claro. O problema desde o começo
não era na minha irmã perfeitinha, nem os meus pais ricos e nem as minhas amigas super-
legais. O problema era comigo. Eu era o problema para ser mais específica.
Agora além da dor em meu coração, lágrimas desciam sem sessar me deixando sem
quase nenhuma visão. E então desejei do fundo do meu coração nunca ter existido. Nunca
ter pensado em existir. E a única coisa que consegui sussurrar foi quase que inaudível,
mas era o único sentimento que podia expressar.
- Me desculpe. - e então a minha ex melhor amiga se foi, e a ultima imagem sua que
consegui captar foi a de desprezo.
Capítulo 3
Depois disso eu fiquei vazia, era como se eu não conseguisse sentir e nem fazer nada. A
neve caia sobre mim levemente, e o frio só aumentava, e foi então que me joguei no chão,
sem pensar, eu não estava mais sobre meu controle. Agora eu não tinha nada e nem
ninguém. Era só nisso que consegui pensar por longas três horas.
E com um súbito choque me recuperei só que agora alguma coisa estava diferente. Ao
abrir os olhos o céu estava aberto com um enorme sol brilhando bem ao centro, e o
cheiro de rosas e jasmim estava por toda parte. Me levantei e avistei várias criaturas
não muito distantes, elas eram bem pequenas, usavam roupas uniformes como um
macacão, mas não tinha o aspecto bruto do mesmo. Tinham os cabelos curtos ou puxados
para trás em um delicado rabo de cavalo. E percebi então que eram duendes. Todos
carregavam cestas com ovos de páscoa e vinham diretamente em minha direção.
Eu fora transportada ou estava tendo visões, o que de um modo ou de outro não me
parecia muito agradável.
E foi então que um deles falou comigo, mas o pior que parecia uma língua nativa,
fazendo com que eu não entendesse absolutamente nada. Mas de repente meu corpo
estava sem controle de novo. Ou alguém, que não fosse eu, estava o controlando. E então
varias palavras, parecendo derivadas da mesma língua nativa dos duendes, saíram de
minha boca, mas não fui eu quem as dissera. De repente me movi, acenando e falando,
como se estivesse de intrusa em um corpo. E assim fui direcionada a uma casinha muito
peculiar, seu teto era de palha, mas não uma palha qualquer, era uma palha resistente de
textura grotesca e delicada ao mesmo tempo. As paredes eram de tijolo aparentemente
resistente e delicadamente pintadas de um laranja fosco incandescente.
Tentei ignorar a sensação de estar em um lugar ao qual não pertencia. E foi então,
quando entramos na casinha, que um homem de aparência jovem porem demonstrando
muita maturidade no olhar, me olhou nos olhos, e desta vez eu senti uma coisa que me
fez ver que ele olhava realmente pra mim, e não no corpo pelo qual eu não tinha nenhum
controle. Com seu lindo sorriso me disse algumas palavras, simples e delicadas como tudo
ali, mas que tiraram toda minha razão.
- Eu sei quem você é, sei por que está aqui. E espero que também saiba Srtª London. –
como ele poderia saber, eu até então não sabia de nada.
E foi então que percebi que aquele rosto era familiar de algumas fotos que vovó London
me mostrara. Só parecia mais jovem e com uma maior vivacidade.
Você é Jared London!
Ah, é. E com uma tentativa inútil tentei me comunicar com meu avô desaparecido de
quem minha vó sempre se queixara. Mas tudo foi em vão, ele sabia que eu estava lá, mas
eu era uma invisível a todos os olhares confusos que me cercavam.
- Sei que soa confuso querida, mas vamos resolver tudo isso em questão de poucos dias.
– ele não tinha os costumes dos duendes, mas meu corpo tinha, o que faz com que tudo se
torne mais confuso quando se é influenciada por uma mente do além.
Bom, o que aconteceu depois? O meu corpo alugado foi direcionado a uma casinha igual
à outra, e sua vida se seguiu normalmente. Tirando os detalhes passaram-se assim dois
dias. Só que no terceiro dia a saída àquele estranho mundo me encantou completamente.
Explorar tudo aquilo, mesmo sendo tão normal ao meu até então corpo, era perfeito para
mim. Todos eram unidos por uma amizade tão intensa que me chocava até. Os rios eram
de um azul bebê suave, assim como a brisa acompanhada do cheiro de rosas e jasmim que
sempre nos acompanhava dando-nos boas vindas. O sol apesar de parecer tão próximo
não aquecia como antes. Tudo era extremamente perfeito.
Foi então que a avistei, não foi como os rios ou como a brisa, foi maior. Parecia que tudo
girava e dançava apenas em sua direção. E suavemente virou-se para mim, agora sim pude
perceber o quanto era magnifica.
A mulher, se é que podia ser chamada assim por sua beleza estonteante, tinha cabelos
longos lisos e louros formando pequenos cachos nas extremidades. Vestia um vestido
longo rosa do qual eu nunca tinha visto. Sua pele branca refletia a luz do sol, e seus olhos
azuis por incrível que pareça brilharam a me ver.
Pensando que a perfeição não tinha mais como se manifestar, então sua boca se abriu e
palavras doces vieram diretamente para mim, era como se pudesse senti-las.
- Eu esperei muito por você Mary London. Que seja bem vinda a nossos aposentos.
Espero que tenha gostado de tudo, pois fui eu quem fez e criou tudo ao nosso redor.
Ela se direcionou a mim, e eu senti que mesmo não manifestando nada em meu corpo,
não tive nenhuma ação. Sua beleza e delicadeza explicava tudo o que ela criara ali,
naquele estranho mundo. A cada pequena coisa criada ela colocava um pouco de si.
Bem perto de mim disse:
- Seu avô sempre falou muito sobre você e sua avó também. – não sendo por impressão
minha, mas ao pronunciar o nome de minha avó seus lábios esculpidos se retorceram
formando uma careta inapropriada para o frágil corpo. – Claro que não como você pode
falar agora. –sua risada fez passar um enorme calafrio em mim, que jurei ter abalado
meu corpo de aluguel.
- Não que seja maldade minha, mas até eu ter certeza de que você não vai falar nada
para ninguém você vai permanecer neste corpo. Até porque a promessa de seu avô de te
tirar daí vai ser totalmente inválida quando ele e sua avó não existirem mais.
O que aconteceu em mim foi tão forte ao ouvir aquilo que de repente sem tanto
esforço gritei – Não! – o grito foi tão alto que saiu audível á todos, o que me provocou um
enorme arrependimento ao ver os olhos vermelhos sangue daquela mulher que até pouco
me simpatizara tanto.
- Pode ter conseguido dessa vez! Mas não pense que vai ser fácil sair daí. Tudo o que
você fizer sua avó vai pagar cada centavo! E não pense que eu esteja falando em
dinheiro, porque isso não me seria útil o suficiente. – e num impulso ela saiu do local,
deixando olhares confusos e furiosos, não com a mulher, comigo.
Se eu conseguira me estabelecer uma vez eu conseguiria de novo, não seria fácil, mas
logo aquele corpo seria completamente meu. Ninguém, nem mesmo uma deusa iria
prejudicar minha avó. Nunca.
Capítulo 4
Depois do desgastante acontecimento, todos saíram do local, o que me daria mais
chances. Concentrei-me ao máximo possível e tentei me conectar com o corpo. Primeiro
as mãos. Ótimo, ao me concentrar a ponto de suar se fosse possível vi minhas mãos
fazerem o mesmo movimento que imaginara. Agora sim, tudo vai dar certo. Mas não fui
só eu quem percebeu o movimento, a dona de meu corpo também, o que fez com que ele
saísse correndo a mil na mesma direção de onde a deusa saíra. Percebendo o que iria
acontecer me concentrei aos pés. Eles então pararam e eu não estava correndo mais,
usando o movimento das mãos dei um tapa em minha própria cabeça, mesmo não falando a
mesma língua aquele ser entenderia o que eu quis dizer. E assim foi. Ele não se
manifestou mais.
De certo modo aquilo não teve muita coerência. Até hoje não tinha percebido o que
estava acontecendo, mas era totalmente abismal achar que era um sonho quando fatos
tão reais e absolutamente renegados por mim durante anos aconteciam por toda parte.
Primeiro tudo o que eu sempre dissera a minha avó sobre meu avô era que sentia muito, e
nunca conversei muito sobre isso. E me lembro também de uma história que ela contava
sobre uma mulher comum que havia desaparecido no mesmo dia e hora constatada pelos
seus familiares que o meu avô. Soava estranho querer misturar duas histórias tão
distintas e conjuntivas ao mesmo tempo, afinal meu avô teria ido pescar como em todos
os sábados à tarde e a mulher teria ido em direção a um deserto, vista pela ultima vez
em um cavalo beira a um ribeirinho. Lugares distantes e distintos, eles não teriam se
envolvido, ou pelo menos naquela época não.
Tagarelar comigo mesma durante horas era meu ponto fraco, me lembrando disso
percebi que estava sentada com as mãos cobrindo os olhos e várias lágrimas descendo.
Não era comum chorar sem perceber, mas meu corpo sabia o que estava acontecendo, ela
era uma escrava daquela mulher cruel, teve que repartir seu corpo com algo estranho –eu
– e agora estava também perdendo seu controle para mim, o que de um modo ou de outro
significava que só uma de nós conseguiria sobreviver a tantas confusões. Eu queria
ajuda-la, queria poder consolar, mas não conseguia, ela agora era minha inimiga natural, o
que não consta amizade ou qualquer gesto de caridade. Eu teria que lutar contra o pobre
ser, e o pior, teria que vencer completamente.
Mais um dia se passou, e minha mente brilhante não estava conseguindo se estabelecer
a ponto de pensar em algo para constatar coisas tão confusas. Meu corpo agia
normalmente, e apesar de estar quase tendo um controle perfeito sobre ele, não me
manifestava para não criar mais problemas.
Estávamos sentadas –só eu e meu corpo na verdade- em um lindo gramado verde pérola
que cercava a estátua da deusa. Só nós, mais ninguém, mas apesar disso eu quase não
sentia a sua presença ultimamente. Mas ao mesmo tempo em que pude pensar isso, pensei
ouvir algo dentro de nós, algo estranho e totalmente não identificável. Mas então o som
foi ganhando forma, e tudo o que eu ouvi era legível.
“- Eu sei que você pode me escutar, então se não me responder juro que meto uma bala
na minha cabeça e o que restar de você não servirá para nada além de um caixão – sua
voz foi fria e dolorosa, e logo pude saber do que se tratava.
- Sim, posso te escutar, aliás, é bem estranho decidir se comunicar comigo
mentalmente, achei até que não falasse minha língua. – achei que se fosse direta e grossa
não teria o risco de ela se fechar de novo, pois se fosse educada demais ela com certeza
perceberia que eu desejava algo.
- Eu falo sim sua língua, sou nativa daqui, mas não sou ignorante, sei até de muita coisa
que você provavelmente não saiba. E a proposito, não me chame de coisa, meu nome é
Cheron. – era incrível o fato de que ela estava tentando se tornar minha amiga, ou não.
- Prazer Cheron, sou Mary, Mary London. – apresentação formal, quem diria hein?!
- Eu sei, aliás, todo mundo sabe. Você é neta de nosso guerreiro Jared London. – meu
avô, claro, mas aqueles duendes não deviam saber da história, ou talvez, eu não soubesse
da história.
- Guerreiro? –percebi ter agido sem pensar e vi que logo seu corpo –nosso corpo- se
enrijeceu.
- É uma longa história, e acho que você precisa saber. – história? Mas é claro, percebi
que aquela deusa não trazia algo bom, sua beleza não significaria muita coisa se
prestássemos atenção aos fatos.
- Comece do início senhorita Cheron. – percebi que estávamos nos tornando amigas, e
também que ela não era a favor da deusa, ou pelo contrário não chamaria meu avô de
nosso guerreiro.
- Tudo bem. Há não muitos anos, nossa deusa queria nos criar e também a nosso mundo,
mas para isso ela teria que se sacrificar. Mesmo parecendo totalmente fora de
cogitação, ela atraiu seu avô para o lago onde aconteceria o ritual, pois a dois o sacrifício
se partiria ao meio e cada um teria sua parte de sofrimento, diminuindo-o assim. Mas seu
avô não teria aceitado isso se ela não tivesse invadido seus pensamentos, o que o fez
pensar que eram um casal e que o com o sacrifício o mundo perdido seria deles. Ele
então, manipulado, aceitou. Eles fizeram o ritual na noite de lua cheia e criaram nosso
mundo perdido. É claro que depois de conquistar o que queria ela se transformou em uma
deusa, tirando os poderes de Jared que o sacrifício havia lhe remunerado, e o fez de seu
escravo como todos nós. Só que há uma profecia, pode perceber isso olhando ao nosso
redor, tudo o que tem aqui é sublime e atrativo, o cheiro, as cores, a delicadeza colocada
em tudo aqui, isso tudo é para atrair mais escravos aqui, na verdade nada disso é
verdadeiro, nada disso soa real. E essa profecia foi criada logo após nossa deusa tirar os
poderes de seu avô, como condição. Nela diz que ao longo de 40 anos, um neto ou alguém
que tenha o mesmo sangue de seu avô, tem que ser sacrificado para que ela possa
continuar sendo sublime como é. E você, bem, é a primeira a realizar a profecia para que
a deusa continue nos mantendo aqui. Somos pessoas normais, nunca fomos duendes, ela
que fez isso com todos nós. Éramos seus empregados na outra vida. E ela conseguiu
permanecer-nos nesse mundo também. – a longa explicação não durou mais que dois
minutos, o que me fez raciocinar com maior dificuldade.
- Então, quer dizer que essa é a mulher que desapareceu junto com meu avô.
- É acho que sim. – era uma afirmação, mas mesmo assim ela confirmou.
- E eu vou ser sacrificada, como? – tudo já estava ruim demais para piorar um pouco, se
eu fosse sacrificada, quarenta anos iam passar para alguém tentar fazer alguma coisa.
Mas não! Não pode ser assim.
- Você já está sendo sacrificada. Na verdade ela acha que a mantendo viva, mas presa,
ela terá mais chances de não cometer erros depois. – ela disse com tanta calma, mas nem
raiva consegui expressar em meu estado de choque absoluto.
- Eu preciso sair daqui. Sabe como posso derrotar ela? – a única pergunta obvia a se
fazer, mas a informação não teria muita utilidade sem a ação.
- Sei, mas é difícil com ela nos perseguindo. Ela sabe que você é forte, sabe que
poderia me dominar, e então está tentando fazer com que isso fique o mais difícil
possível. – claro, nada desse gênero seria fácil.
- Ótimo, só me diz como que eu tento observar e fazer o resto, claro que com sua ajuda
se necessário.
- Está bem. Temos que falar com Jared, ele vai saber te explicar de forma cautelosa,
para que você não dê um ataque. Só devemos esperar essa noite, amanhã a deusa estará
ocupada com as flores que querem voltar a sua forma original.
- Tudo bem, acho que posso esperar. E obrigado mesmo por sua ajuda.
- De nada, na verdade não é só por você. É por todos nós.
- Que seja então Cheron, que seja.”
A conversa foi extensa, embora rápida. Sem que eu percebesse já estávamos na ampla
casinha coberta da brisa leve e cheirosa de Cheron. Era legal saber que agora éramos
amigas. E que de um lado obscuro ou favorecido, tudo seria resolvido.
A noite nos abalou, e todas as informações e preocupações foram desaparecendo à
medida que íamos fechando os olhos. Logo a profundidade e a escuridão da inconsciência
me cobriu.
Capítulo 5
Acordar em outro corpo ainda era estranho pra mim. Tive que me controlar para não
cair em lágrimas diante os tantos problemas. Eu queria voltar ao tempo em que brigar
com minha amiga por causa da destruição dos enfeites da páscoa era meu único
problema. Não, acho que isso não seria possível, aliás, tudo estava se fixando e ficando
mais real a cada dia.
Espera aí! Se fixando e ficando mais real a cada dia? É! Talvez seja isso. Talvez isso
seja uma ilusão, e eu precise arrumar uma maneira de me localizar e voltar de onde eu
estava. Mas se for isso que estiver acontecendo comigo, é o que está acontecendo com
todos. E então preciso arrumar um modo de todos acordarem e saírem da ilusão.
Parece simples, mas não é nem um pouco.
“ – Bom dia Srtª London. – disse a voz melódica da Cheron
- Pode me chamar de Mary. – acordar com alguém invadindo seus pensamentos também
não é algo com que você queira se acostumar.
- Ok, Mary, pronta para falar com Jared? – de todo jeito ela saberia minha teoria,
então, era melhor contar de uma só vez.
- Eu acho que descobri uma coisa. Talvez ela esteja criando uma ilusão que nos faça
crer cada vez mais que estamos mesmo aqui, mas na verdade não estamos. Afinal, em que
outro lugar a não ser imaginário, duas pessoas viveriam em um só corpo? – fui direta, pois
talvez assim tudo saísse mais facilmente.
-Acho que você esteja realmente certa, mas não temos como provar ou fazer nada
ainda. – suas palavras foram como tesouras me podando.
- Mas é exatamente isso, a cada dia acreditamos mais que isso é real, devemos agir
rápido. Lembra que ela falou que por enquanto eu deveria ficar no seu corpo para não
correr riscos? Então, era para eu acreditar que estamos aqui mesmo, e isso só acontece
com o tempo, como está acontecendo com você.
- Realmente talvez seja isso, mas não acha que devemos falar com Jared antes de
fazer qualquer coisa? – é e ela estava certa mais uma vez, se falar com ele não
adiantasse eu iria fazer outra coisa.
- Tudo bem. “
O café da manhã não foi muito de se esperar. Depois que se sabe o que realmente
acontece em um lugar que se passa a gostar ou não dele. Exatamente como eu, que amei a
primeira vista, mas ao saber de tudo, ficou o pior de todos.
Após seguir quase tudo normalmente, fomos direto para a casinha de meu avô, se ainda
restava esperança, eu ainda acreditava que estava nele.
Antes que pudéssemos pegar na maçaneta a porta se abriu, e os olhos cansados de
Jared estavam nos fitando bem nos olhos. Não foi como antes, mas seu sorriso amplo e
jovial se abriu, e isso só aumentou minha esperança.
- Bom dia, Cheron, e bom dia minha linda princesa Mary. – ao saírem as lindas palavras
de sua boca, seu sorriso ficou mais lindo ainda, e tive a impressão de conhece-lo a
décadas.
- Bom dia. – o som saiu da minha boca, mas eu sabia que era Cheron quem havia
pronunciado.
- Como estão vocês? – ele tinha a mesma delicadeza de minha avó, e também parecia
completar ela de certa forma.
- Estamos bem, mas precisamos conversar sobre um assunto que lhe interessa
bastante. – as palavras brutas de Cheron me quebraram o encanto de reencontro
completamente, e logo me lembrei de todos os problemas que nos rodeavam. Meu avô que
antes sorria, pareceu ter a mesma reação.
- Tudo bem, entrem. – sua voz não foi rude, mas triste.
Antes de entrar, nos certificamos de que não havia ninguém nos bisbilhotando, mas
como isso não era suficiente, decidimos ficar com a sorte.
Ao entrar naquela pequena casinha, me lembrei de tudo o que havia deixado ao
adormecer na profunda tristeza que me rodeava depois de uma singela briga com minha
melhor amiga. Isso agora parecia tão simples e banal.
Sentamos no sofá verde um pouco desbotado que ficava de frente a uma tevê que podia
ter 29 polegadas. Recusamos o chá ou o biscoito e decidimos ir direto a onde devíamos
ir: ao assunto.
- Bom Jared, é compreensível que você não queira falar sobre o assunto que ninguém
aqui aceita casualmente, é complicado, mas devemos tomar decisões que podem salvar
todos nós, e isso não depende apenas de nós duas, depende de você também. – do modo
que ela falou, era como se isso tocasse bem a fundo algo que Jared nunca iria querer se
lembrar, mas que era super preciso.
- Ela está se comunicando com você? – não foi por impressão, mas vi seus lindos olhos
verde musgo brilharem e sorrindo, como se fossem pular de alegria por alguma
esperança.
- Bem, sim, viramos um tipo de amigas na verdade. Ela é muito forte, é diferente de
todos que já vi, ela conseguiu dominar completamente meu corpo, e conversa comigo
diariamente com pensamentos, mas quando ela não quer, eu não consigo saber o que ela
está pensando. É bem complicado lidar com sua força e seu incentivo. –ela disse palavras
tristes, mas sorria ao pronuncia-las.
- Ótimo, sempre soube que ela era forte o bastante para encarar esse tipo de
problema, ela não é como os outros de nossa família, é como a avó, guerreira. –agora ele
estava sussurrando, como se não quisesse que ninguém escutasse além de nós, e
provavelmente não queria mesmo. – ela pode escutar o que eu digo?
- Sim, está escutando agora mesmo. E ela ama mesmo você, e quer nos salvar, quer nos
devolver a humanidade. Se fosse outra pessoa, teria caído em prantos na mesma hora em
que acordou aqui. – ora, eu não sou especial, tive mesmo vontade de chorar muito e
desistir, aliás, tenho essa vontade até hoje, mas não quer dizer que eu vá fazer isso.
- Minha linda, - agora ele falava comigo, era como se ele olhasse realmente em meus
olhos, como se ele me visse lá dentro. – eu quero que você não desista, sei que vamos
encontrar um jeito de tudo dar certo, - agora ele estava chorando – eu te amo. Muito
mesmo. Não quero que se esqueça disso. – mas isso soou como uma despedida, mas eu não
quero que isso seja uma despedida.
Não sabia se seria uma tentativa inútil, mas decidi tentar mesmo assim. Sem realmente
pensar nas consequências do que estava fazendo me concentrei ao máximo e tomei posse
de nosso corpo.
- Não vou desistir enquanto não conseguirmos colocar essa mulher pra correr, quem ela
pensa que é para mexer com a gente e ficar imune? E você tem que nos ajudar, não vai
ser muito difícil já que para tudo ela depende dos seus escravos. – e então eu estava
falando, tudo saiu tão normalmente que não soube distinguir se era pensamento ou fala, o
que devia ser por causa da falta de costume.
- Você... –seu sorriso radiante agora tomava lugar a muitas palavras, o que me fez
sorrir também, mental e fisicamente. – isso é ótimo! Tudo ficará mais fácil assim, mas
não deixe ela saber que você consegue ter poder sobre o corpo, não sei o que ela poderia
fazer se descobrisse. – e ignorando Cheron completamente me deu um abraço, que eu
pude sentir de verdade, como não sentia há muito tempo.
- Ótimo, ela faz isso só pra me mostrar que tem poder sobre o corpo, que ótimo então,
tomara que eu não acabe morrendo. –mas é claro que não, eu só devia mostrar para ele
não ter duvidas.
- Tudo bem, ela fez certo, não se preocupe. – seu sorriso ainda era jovial e
descontraído, mas não o bastante. Os traços de sofrimento ainda rodeavam tudo ali, e
não era a falsa beleza que faria esquecer tudo vivido. – Nós vamos fazer o seguinte:
ninguém vai demonstrar que está contra a deusa, e muito menos que está dominando um
corpo alheio. – ele olhou pra mim e sorriu, novamente. – precisamos arrumar um modo de
concentração.
- Sim, quando acordamos hoje, percebi que a cada dia estamos ficando mais distantes
da realidade. É como se estivéssemos nos aprofundando em um sonho sem fim. – falei
novamente, e para minha surpresa, isso já soava normal.
- E sua tese está certa minha querida London. Isso na verdade não é real de certa
forma, os corpos de todos nós estão em perfeito estado, mas depende da nossa mente
se vamos acordar ou não.
- Mas como podemos acordar de verdade? – a voz de Cheron ficou confusa, e sem
querer falar alto demais, ela acenou com as mãos.
- Não sei bem, mas já faz algum tempo que tento descobrir alguma maneira, não sei se
vai ser fácil, porque para ela ter planejado algo assim seria inútil da nossa parte tentar
acabar com tudo dentro de segundos.
Claro, talvez seja isso mesmo. Todos nós sempre sonhamos quando estamos dormindo,
mas nosso subconsciente decide o que, mas se nós estamos em um mundo no
subconsciente de alguém, devemos fazer essa pessoa acordar, mas como fazê-la
acordar? Esse agora era o maior problema.
- Precisamos fazê-la acordar. – falei em um súbito suspiro, o que saiu rápido demais
para todos absorverem realmente o que falei.
- Já pensei nisso, mas nunca tive nenhuma ideia que tivesse realmente lógica. Por isso
não quis tentar nada maior para ela não desconfiar.
- Então agora, temos que buscar fazer algo que realmente funcione, temos que contar
com a sorte, e que ela esteja ao nosso lado. – Cheron falou e então brotou sorrisos,
finalmente sinceros de esperança.
Depois disso, não continuamos nossa discussão de quem iria fazer o que e como o
faríamos, mas ao invés disso, fomos –eu e Cheron, embora fossemos uma só- para nossa
humilde casa.
Eu não me liguei muito no que ela fazia, apenas estava pensando em um modo de buscar
alguma salvação. Ao continuar com nossa linha de pensamento, tentei me encontrar na
deusa, descobrir o que ela realmente queria por trás disso.
Nada.
Em minha cabeça só se passava um imenso vazio de escuridão. Não tinha ideia do que
fazer e, apesar da pequena esperança criada com a revelação, parecia que tudo iria
desabar a qualquer momento.
E aí agora se traçava o meu maior desafio, o qual não seria só meu: não desistir. Para
muitos seria muito fácil desistir de tudo, porque mesmo que muitos dependam de
mínimas escolhas, eu não teria nada a perder nesse exato momento.
Capítulo 6
A vida nesse incrível mundo subconsciente deveria acabar. Durante a noite, tentei
pensar em tudo que poderia de alguma forma se relacionar com a nossa “prisão” mental.
E como eu esperava, não adiantou muito.
Mas, perdida em meus pensamentos, comecei a perceber que eu não estava dando muito
espaço ao passado, ao que me acontecera antes mesmo de abrir os olhos nesse estranho
lugar. E, na mesma hora, comecei a pensar em tudo o que se acumulara, todas as
dificuldades, todas as brigas entre minha família, todos os abraços de minha avó, todas
as vezes que discutimos eu e Carmem, e por fim, na minha pior discussão com Alice. Ao
lembrar dessa discussão, pensei que não significava muito agora, e achei estranho algo
que antes me parecia tão fatal agora parecer tão insignificante.
E aí que me veio outro pensamento.
Lembrei que tudo estava se tornando difuso aqui. Não era apenas essa lembrança em
especial, mas também todas as outras estavam ficando vagas e sem importância.
E então me veio um súbito choque. Talvez esse fosse o segredo. Talvez esse fosse o
plano. Como acordar de um sonho e voltar a uma realidade que você mal possa lembrar?
Não tem como. Por isso não poderíamos lembrar de nada da nossa realidade.
Mas esse era o problema. Como não esquecer? Em todos esses dias, todo esse tempo
tentando lembrar algo, algo que talvez nem mesmo em vida real eu não me lembrava, mas
tudo em vão. Nada vinha em mente. Mas o tempo era pouco, a pressão era muita, a cada
minuto uma nova descoberta, mas descobertas que deveriam ser importantes aqui, nesse
mundo criado totalmente a favor de outra pessoa, e não no mundo real, o mundo que
devemos voltar. Mas é claro que é isso! Tempos passados aqui e só agora que fui
perceber que tudo pode ser sim uma armadilha, mas uma armadilha que nós mesmos
criamos para nós, nós mesmos estamos nos prendendo aqui, parece fácil, mas é fácil.
Tão fácil que ao mesmo tempo pensei o quanto isso parecia surreal. É claro que não
poderia ser tão fácil, até mesmo porque se fosse meu avô teria descoberto.
E assim eu desabei. Minha mente se perdeu em um choro agudo e silencioso, e aos
poucos fui caindo na inconsciência, à verdadeira inconsciência. Sem nenhum pensamento,
sem nenhum sonho, talvez fosse essa a verdadeira realidade, sem nenhuma contorção da
verdade ou do que quer que seja.
No outro dia, foi difícil acordar. Se ainda estivesse com meu corpo, o sentiria dolorido,
com os olhos vermelhos e inchados, e com uma enorme fome. Mas na atual circunstância,
o que senti foi uma dor de cabeça mental, que também parecia atingir não só a mente,
mas a cabeça de Cheron.
Ela começou a andar, e não deixou nenhum objeto a sua frente intacto. Ela tropeçava, e
às vezes fazia o possível para não cair.
Fiz questão de não fazer nenhum movimento com seu corpo, e tentei lhe dar o máximo
de privacidade possível, mas de qualquer modo, eu não conseguiria. A dor de cabeça só
aumentava, e aos poucos tudo foi ficando embaraçado e escuro. Parecia que de certo
modo eu estava perdendo todos os meus sentidos. Então, abalada pela tentadora paz da
inconsciência, deixei que meus sentidos fossem levados.
Abri os olhos, mas tudo parecia como se eles estivessem fechados. Olhei para todos os
lados da escuridão. Não me veio na cabeça que estivesse morta, pois ultimamente não
considerava ter uma vida. Tentei voltar a dormir, mas não foi possível.
A ideia de que permaneceria ali para sempre não foi agradável, o que me fez pensar que
seria muito pior do que viver no corpo de outra pessoa. Então, afastei todas as ideias
paranoicas de minha cabeça, e foi quando, ao mesmo tempo, vi um feixe de luz. Era fraca,
mas era um sinal de esperança, afinal, não sabia o que tinha acontecido, e de onde quer
que tenha vindo essa luz, deveria também vir uma explicação.
Tentei olhar de onde a luz vinha, mas minha cabeça parecia estar presa em alguma
coisa.
Ouvi passos vindos em minha direção, e eram de sapatos de salto alto, os quais apenas
mulheres usariam. Mas o arrepio que veio seguido revelou de quem exatamente seriam
aqueles sapatos.
- Ora, ora, Mary London! Você deve estar bastante satisfeita agora, não é mesmo
minha querida?
É claro que era ela, a “deusa” do subconsciente.
- Vejamos... quem diria que você seria tão útil! Mas, as pessoas nos surpreendem. Às
vezes acho que o que eu fiz foi falta de tempo, já que todos somos imortais enquanto
estivermos aqui... Mas, por outro aspecto, penso que isso pode ser bom, você não acha? É
claro que acha. Mas também, não é o mundo que permanece imortal, são apenas nossos
corpos, eles estão lá, intocáveis, em perfeito estado, enquanto pessoas que nós amamos,
como sua vovozinha, e até pessoas que odiamos, como sua mamãezinha, estão morrendo,
ficando a cada segundo mais velhos e inúteis. Sim, eu sei que você ama tanto sua avó que
daria a vida por ela, mas o que você pode fazer presa em um mundo subconsciente? Sim,
sim. Você já devia desconfiar não é mesmo? Nenhum outro lugar na vida real criado por
seres humanos ignóbeis seria tão inspirador... Eu sei. Te darei alguns segundos para
perguntas, mas vou avisar que gritos histéricos não vão te salvar agora. – agora toda a
sala estava iluminada, e a linda mulher que me causava repulsa estava em meu campo de
visão.
-Tudo isso, por quê? Só pelo prazer de manter vidas inocentes presas nesse seu
mundinho fútil? Você acha que assim vai conseguir ser superior? Nem aqui, nem na vida
real, e nem em qualquer lugar que possa existir você vai ser alguém que preste!
- Ah sim, sim. Vamos responder uma de cada vez. O porquê é simples, mas pode ser
cansativo pela extensão da história. Mas se você quer saber... Tudo começou numa
cidade chamada Boston, bastante conhecida, e era onde eu morava. Lá, também morava
um menino que se chamava Robert Amelians. Esse menino sempre foi muito cobiçado por
todas as meninas, porque era bonito, educado, e por suas condições financeiras. E ele
também era meu melhor amigo. Então, certo dia, ele me levou em um parque, mas não era
qualquer parque, era o nosso parque, todas as coisas importantes acontecidas entre nós
aconteciam ali, e aquele dia não seria diferente, ele tinha me chamado ali para algo muito
importante. E foi como esperei, ele disse que estava apaixonado por mim, e por incrível
que pareça eu também estava por ele, que me pediu em namoro, mas isso não terminou
como qualquer final feliz. Se ela não tivesse aparecido, se ela não tivesse ao menos
nascido, você não existiria! Você é um fruto daquele amor doentio que Robert disse ter
por aquela miserável. – ela soava como louca, e isso estava me tirando do sério.
- Olha, eu não tenho culpa se seu romancezinho não deu certo. – eu teria dito mais
coisas se não estivesse com os pulsos e tornozelos atados por um nó seguro.
- Calminha. Não terminei de responder suas perguntas. Não, não criei esse mundo pelo
prazer de prender pessoas inocentes, até porque você não chega nem perto de ser
inocente. E não que eu queira te deixar abatida, mas vai ser muito difícil você sair desse
lugar.
- Você disse que iria responder todas as minhas perguntas.
-Sim, sim.
- Então como posso sair daqui?
- Ei queridinha, não pode perguntar coisas indiscretas. – coisas indiscretas? Essa
mulher devia ser presa. Maluca.
- Achei que você fosse de palavra, esqueço que não posso confiar em pessoas como
você.
- Tudo bem, tudo bem. Minha honra pela sua pergunta. Você deve atravessar as
barreiras do seu pensamento e atingir o seu próprio mundo. Não pode mudar nada naquilo
que não é seu, mas a verdade estará sempre escondida dentro do seu coração. Não perca
tempo, em 48 horas vocês não vão existir aqui ou em lugar algum. –mas que raio de
enigma era esse ?
- Como assim ?
- Já respondi sua pergunta, nada de truques menininha mal educada. E tenho a certeza
de que essa resposta não vai ajudar em nada.
- Não pode dar respostas que não sejam verdadeiras.
- Ela é verdadeira, sim. Mas você deve pensar muito para resolvê-la.
Atravessar barreiras do meu pensamento? Atingir meu próprio mundo? A verdade
estará sempre escondida no meu coração. Mas como? Se eu tenho que atravessar
barreiras... espera! Eu já atravessei, consegui comandar um corpo que não era meu
apenas atravessando barreiras em meus pensamentos. Se eu já fiz isso....
- Muito bem, continue pensando. Enquanto isso vou dificultar um pouco as coisas...
- O que acha que é isso? Um jogo?
- Não, mas se parece com um. Você vai adorar ficar de cabeça para baixo, ou não, seria
muito fácil, que tal girar também?
- Isso seria tortu...
De repente estava de cabeça para baixo e aos poucos começando a girar. Seria mesmo
mais difícil pensar assim, e meu estômago já começava a se contorcer.
Onde eu estava? Onde eu estava... Barreiras! Atravessei barreiras, mas... Ai! Meu
estômago, juro não conseguir ficar aqui por muito tempo.
Concentra! Concentra! Barreiras, eu atravessei uma barreira. Mas deve ter mais uma.
Ah! Talvez possa ser esta, de não conseguir pensar direito. Tudo bem, tudo está indo
muito bem. Posso considerar que já atravessei outra barreira, mas falta uma. Como vou
conseguir chegar ao meu próprio mundo? Não, não. Você vai conseguir! Pensa! Hum...
Todos estão dormindo, mas estão acordados, é um sonho, de uma só pessoa. Se
estivermos no mundo subconsciente de uma pessoa, como reverter a situação? Como
transportar todo mundo para o meu sonho? Mas tem uma coisa. Eu não criei um mundo,
nunca pensei em ter um mundo assim. Então, vamos criar um mundo.
Tudo bem, olhos fechados, vamos pensar. Todo coberto de grama. Uau! Como posso ver
tão nitidamente assim? Então... o sol vai clarear, mas não aquecer, tudo deve ser suave, a
brisa, árvores para todos os lados, e pássaros. E deve ter um lago bem ali, isso! Está
ficando perfeito! E bem aqui terá um alçapão. Trancado, só eu conseguirei abrir. Lá
embaixo pode ter tudo para uma pessoa viver, mas ela não pode sair de lá, nunca. Isso,
acho que assim está bom. Agora eu me imagino lá dentro, me transportando aos poucos.
De uma hora para outra tudo parou de girar. Aos poucos comecei a sentir uma leve
brisa, a grama nos pés, os baixos murmúrios dos passarinhos. E lá no fundo, bem lá no
fundo ouvi um grito de raiva e extremo ódio. Eu tinha conseguido. Mas como? Seria tudo
tão fácil assim desde o começo?
“Não minha querida, nada foi fácil, nada nunca será fácil. Tudo isso você conquistou, no
final parece sim um caminho curto, mas veja, ainda não acabou. Lute por ele, continue.“
Era a voz de Jared. Eu devia continuar. Abri os olhos, e tudo estava ali, como havia
imaginado. Mas faltava algo.
Aos poucos comecei a imaginar todos. Meu avô, bem ali ao meu lado, Cheron, claro... E
de um em um, fui sentindo a presença de todos ali, mesmo com os olhos fechados, tudo
me era familiar.
- E então Mary, como é criar um mundo assim? Parece tão lindo.
Abri os olhos devagar, e simultaneamente um sorriso. Era Cheron. Ela estava linda com
um vestido laranja de cetim, como eu jamais havia visto. Antes que pudesse me segurar
lá estava, dando um enorme abraço em minha melhor amiga.
- É fácil, mas precisa de certos cuidados com o pensamento. – e precisava mesmo.
Qualquer coisa que eu imaginasse poderia se tornar real.
- Entendo. – ela disse quando nos soltamos de um longo e apertado abraço.
- Em momentos difíceis você foi a única que me entendeu.
- Sim, você já fez bastante coisa, mas ainda não terminou. Devemos cuidar dela, não
podemos deixa-la. – Jared disse, em tom de preocupação.
- Sim, fiz esse lugar pensando nela.
E aos poucos fui imaginando ela naquele lindo lugar, subterrâneo, onde ela ficaria para
repensar suas atitudes. E lá estava ela, podia sentir.
- Ela já está aqui.
- Mas onde? – Cheron tinha certa razão por sentir medo, mas estávamos em meu
mundo, e nada aconteceria.
- Tem um alçapão escondido, mas tem tudo o que puderem imaginar, ela vai sobreviver,
mas vai ficar sozinha por um bom tempo.
- Tem certeza de que quer deixa-la? – Jared se certificou.
- Sim, mas é temporariamente. Devo voltar depois.
- Tudo bem.
- Querem voltar para casa?
- Acho que seria ótimo. Não vejo a hora de me deitar em uma cama e ter um ótimo
sonho.
O comentário de Cheron gerou risos em todos.
- Acho que é melhor mesmo. – disse rindo.
Assim, aos poucos fui voltando, como todos os outros, para a realidade.
Minha cabeça latejava e estava tremendo. Abri os olhos e vi um céu, nublado e frio, e
senti o gelo frio em minhas costas. Ainda estava deitada no quintal, logo após ter a maior
briga de toda a minha vida. Me levantei, tentando eliminar a dor de cabeça que sentia, e
vi de relance todos os enfeites acabados pela neve, mas não me preocupei, precisava de
algo quente para vestir e tomar.
Antes mesmo que pudesse me agasalhar, ouvi um telefone tocar.
- Oi?
- Ah! Ainda bem Mary! Você meu deu um tremendo susto. Escuta, eu sei que fui uma
idiota com você, eu estou de castigo então não pude ir pedir desculpas pessoalmente. Sei
que não devia ter falado todas aquelas coisas e você é minha melhor amiga, eu estava
com raiva, me desculpa Mary, eu amo você, não queria...
- Calma Alice! – ela estava falando sem parar. – Tudo bem, eu entendo que você tenha
ficado com raiva por toda a confusão que fiz, e você não teve culpa. E depois de tudo o
que aconteceu...
- Como assim tudo o que aconteceu?
Ah, sim. Alice continuava perceptiva como sempre.