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Mudanças nas práticas alimentares Kaingang Bruna Gama Gavério 1 Helena Alpini Rosa 2 Oeste catarinense e a Terra Indígena Xapecó A conquista das Américas se caracteriza pela influência de diversas expansões de ideias e pensamentos hegemônicos difundidos no continente europeu, no final do século XV, início do XVI, causando impactos na realidade social e cultural dos povos que aqui viviam. Com tal característica, as frentes pioneiras de expansão tornaram-se um elemento usado sob a égide de políticas expansionistas que iriam afligir a história do Brasil. Essas estratégias tomadas, tanto pelo governo colonial, quanto pelo imperial foram motivadas pelos recursos naturais existentes no território brasileiro (FREITAS, 2008, p. 24). Isto despertou os interesses econômicos e políticos em nome de demandas do sistema capitalista de exploração de recursos e mão de obra, causando conflitos com os povos originários. A invasão colonizadora do oeste catarinense 3 também é marcada pela expansão das frentes pastoris e extrativistas, como parte da geopolítica adotada pelo governo imperial por demanda de terras (BRINGMANN, 2015, p. 58). Terras estas, que já eram ocupadas pelas populações indígenas habitantes da região sul, assim diversos conflitos entre os invasores e a população que habitavam aquela região ocorreram por motivos de terras, principalmente àquelas de fronteiras territoriais, justificando as chamadas “guerras justas” que causou o extermínio de muitos povos indígenas na conquista de território. Ao longo da história do Brasil, a perspectiva eurocêntrica que era concebida como visão de mundo ocidental, perdurou em todas as formas de tratamento relacionadas aos povos indígenas, principalmente por vias das violências tanto simbólicas quanto físicas. A ideologia do progresso econômico, a qual ganhou força no século XIX desencadeou diversas ações governamentais em nome desse ideal de sociedade que contrapõe com “as sociedades 1 Acadêmica do curso Lic/Bel em História/UFSC e Bolsista de Iniciação Científica do Observatório da Educação/OBEDUC 1585: “Ensino, saberes e tradição: elementos a compartilhar nas escolas da Terra Indígena Xapecó/SC” CAPES/DEB/INEP/UFSC/LABHIN. 2 Doutoranda do PPGH/UFSC, Bolsista CAPES no Observatório da Educação/OBEDUC/ CAPES/DEB/INEP LABHIN UFSC. [email protected] 3 As frentes também foram fortes atores na exploração de terra em toda a região Sul do Brasil, considerada como sertões do território brasileiro construído como “vazios demográficos” a fim de justificar as ações do Estado sobre esses territórios. Ver MOTA, 1994, p. 19.

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Page 1: Mudanças nas práticas alimentares Kaingang Bruna Gama ... · provocar confrontos que estabelecem fronteiras diversas entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional, na perspectiva

Mudanças nas práticas alimentares Kaingang

Bruna Gama Gavério1

Helena Alpini Rosa2

Oeste catarinense e a Terra Indígena Xapecó

A conquista das Américas se caracteriza pela influência de diversas expansões de

ideias e pensamentos hegemônicos difundidos no continente europeu, no final do século XV,

início do XVI, causando impactos na realidade social e cultural dos povos que aqui viviam.

Com tal característica, as frentes pioneiras de expansão tornaram-se um elemento usado sob a

égide de políticas expansionistas que iriam afligir a história do Brasil. Essas estratégias

tomadas, tanto pelo governo colonial, quanto pelo imperial foram motivadas pelos recursos

naturais existentes no território brasileiro (FREITAS, 2008, p. 24). Isto despertou os

interesses econômicos e políticos em nome de demandas do sistema capitalista de exploração

de recursos e mão de obra, causando conflitos com os povos originários.

A invasão colonizadora do oeste catarinense3 também é marcada pela expansão das

frentes pastoris e extrativistas, como parte da geopolítica adotada pelo governo imperial por

demanda de terras (BRINGMANN, 2015, p. 58). Terras estas, que já eram ocupadas pelas

populações indígenas habitantes da região sul, assim diversos conflitos entre os invasores e a

população que habitavam aquela região ocorreram por motivos de terras, principalmente

àquelas de fronteiras territoriais, justificando as chamadas “guerras justas” que causou o

extermínio de muitos povos indígenas na conquista de território.

Ao longo da história do Brasil, a perspectiva eurocêntrica que era concebida como

visão de mundo ocidental, perdurou em todas as formas de tratamento relacionadas aos povos

indígenas, principalmente por vias das violências tanto simbólicas quanto físicas. A ideologia

do progresso econômico, a qual ganhou força no século XIX desencadeou diversas ações

governamentais em nome desse ideal de sociedade que contrapõe com “as sociedades

1 Acadêmica do curso Lic/Bel em História/UFSC e Bolsista de Iniciação Científica do Observatório da Educação/OBEDUC

1585: “Ensino, saberes e tradição: elementos a compartilhar nas escolas da Terra Indígena Xapecó/SC”

CAPES/DEB/INEP/UFSC/LABHIN. 2 Doutoranda do PPGH/UFSC, Bolsista CAPES no Observatório da Educação/OBEDUC/ CAPES/DEB/INEP – LABHIN

UFSC. [email protected] 3 As frentes também foram fortes atores na exploração de terra em toda a região Sul do Brasil, considerada como sertões do

território brasileiro construído como “vazios demográficos” a fim de justificar as ações do Estado sobre esses territórios. Ver

MOTA, 1994, p. 19.

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indígenas das terras baixas da América do Sul tendem a representar seus territórios como

espaço-tempo indissociáveis da vida de seus habitantes” (FREITAS, 2008, p. 18). Isto vai

provocar confrontos que estabelecem fronteiras diversas entre as sociedades indígenas e a

sociedade nacional, na perspectiva de que as fronteiras definem os grupos, sendo que a

fronteira étnica conduz a vida social (BARTH, 1997, p. 195), ou seja, esse contato social entre

culturas diferentes por vezes sustentam a conservação das mesmas.

Esses territórios passaram a serem construídos socialmente como “vazios

demográficos” como afirma Mota (1994, p. 65) referindo-se os usos constantes do discurso

ocultador da presença indígena. Então política oficial adotada referente à imigração europeia

de meados do século XIX propicia a ocupação colonial (BRINGMANN, 2015, p.40). E para o

recebimento desses imigrantes europeus, na maioria alemães e italianos, o Estado precisava

de cada vez mais terras. Logo, ao enraizarem o discurso pejorativo construído sobre as

sociedades indígenas, suas terras foram diretamente atacadas para o uso de exploração da

terra, com o intuito de produção agrícola extensiva. Com relação às terras no oeste

catarinense, onde está localizada a Terra Indígena Xapecó/SC4 sofreu diretamente os impactos

das políticas adotadas e direcionadas aos territórios dos povos indígenas em razão dos “vazios

demográficos” como era considerada a região onde habitavam. Neste caso os Kaingang, mas

toda territorialidade utilizada pelos povos indígenas para as perambulações também foram

assim consideradas.

A intensidade desse contato ocorreu no século XIX, quando os Kaingang lutaram

para defender suas terras, que haviam sido ocupadas de maneira forçada pelos

colonizadores a fim de explorar as terras, principalmente para o gado e

posteriormente, a madeira. Essa expansão econômica do período imperial levou à

redução considerável dos territórios indígenas, pois o espaço passou a ser habitado

pelos colonos. É nesse momento que, no sul do Brasil, as políticas de concentração

dos indígenas em apenas um lugar – os chamados aldeamentos – intensificaram,

liberando espaço para a colonização, estabelecendo um novo modo de vida aos

indígenas. (NÖTZOLD; ROSA, 2011, p. 18).

Esta região do oeste catarinense e paranaense é habitada pelas populações Kaingang, o

que evoca questões de fronteira, devido às disputas e conflitos com a vizinha Argentina e

disputas territoriais internas também entram em jogo. Fator este, que leva o governo de então,

iniciar a instalação de Colônias militares do Xapecó e Chopim em 1859 (SALVARO, 2009, p.

4 A partir desse momento passarei a me referir a Terra Indígena como TI.

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26). Com longas disputas jurídicas pelo território, o conflito se encerra “após uma decisão por

meio do arbitramento internacional que foi favorável ao Brasil, com o argumento de que a

região em disputa continha em sua maioria habitantes brasileiros” (FERRARI, 2010, p. 72-

73). As regiões envolvidas de ambos os países, desenvolveram economias com a extração de

erva-mate e da madeira como principais economias extrativistas.

Além de disputas internacionais, em 1916 houve as disputas internas, como

mencionado acima, relativo a definição dos limites entre os estados do Paraná e Santa

Catarina, onde passa a ocorrer uma nova forma de ocupação de terras. Posteriormente a esse

ano há um “processo de concessão de terras públicas, indígenas, caboclas para as empresas

colonizadoras” (BRIGHENTI, 2012, p. 80) que atuaram nessa atividade de imigração

europeia para o sul do país, concedendo aos imigrantes, terras devolutas da união, através da

ação do governo de Santa Catarina. Em 1902 o presidente da província do Paraná, Francisco

Xavier da Silva, assinou o decreto nº 7 reservando o direito à terra dos Kaingang que

habitavam a região do Rio Chapecó e o Rio Chapecozinho:

Art. Único [sic]. Fica reservada para o estabelecimento da tribu de indígenas

coroados ao mando do cacique Vaicrê, salvo direito de terceiros, uma área de terras

compreendida nos limites seguintes: A partir do rio Chapecó, pela estrada que segue

para o sul, até o passo do rio Chapecósinho, e por estes dous rios até onde elles fazer

barra. (1902, apud SILVA, 2014 p. 40).

Essa marcação inicial do que hoje se configura como TI Xapecó passou por diversas

modificações ao longo dos anos, como destaca Brighenti (2012) sobre a relação existente

entre o indígena com o não indígena no oeste catarinense “deve ser tomada como um conflito

“entre sistemas” que se projetou com um modelo de colonização e que somente foi possível

através das colonizadoras e da limpeza étnica, ou seja, com a ação forte do Estado brasileiro”

(2012, p.87). Portanto, podemos observar, que essa intervenção estatal juntamente com a

criação do órgão indigenista no início do século XX: o Serviço de Proteção ao Índio/SPI,

contribuindo para grandes modificações na área indígena até que em 1991, a terra passa a ser

legalizada por meio do decreto nº 297 de homologação da Terra Indígena Xapecó com 15.623

hectares5.

5 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D297.htm. Acesso: 15/05/2016.

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Figura 01: Mapa do atual limite da Terra Indígena Xapecó/SC

Fonte: Elaborado pelo geógrafo Alexandre L. Rauber e por Carina S. de Almeida a partir de base cartográfica

IBGE, 2011. Acervo LABHIN/UFSC.

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI)

O “problema indígena” sempre foi pensado e disputado por duas correntes. A primeira

é a via religiosa, que usou a catequese como solução única para esses povos poderem integrar-

se à sociedade, e segundo, a laica, que acreditava na assistência e proteção total (tutela) do

estado para solução do “problema indígena”.

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Nesse intuito que é criado o Serviço de Proteção ao Índio, SPI, em 1910. Inicialmente

o órgão de estado se chamava Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores

Nacionais6, SPILTN, mas logo “nos anos seguintes esta regulamentação seria modificada em

alguns pontos essenciais. Já em 1914, reconhecendo-se a especificidade do problema

indígena, o SPI passaria a tratar exclusivamente dele” (RIBEIRO, 1996, p. 158) separando

assim as especificidades de cada questão, a indígena e a trabalhadora.

A política indigenista foi criada devido à necessidade ao tratamento com os povos

indígenas, pois com as políticas de expansão seus territórios passaram a serem invadidos

constantemente. Devido à forte ideologia de extermínio das populações indígenas em todo o

país, denúncias foram levadas a cabo internacional expondo a situação desses povos no XVI

Congresso Internacional de Americanistas em Viena (1908) (ALMEIDA, 2015, p. 291),

movimento este que contribuiu para a criação do órgão oficial.

Em boa parte do século XX as políticas indigenistas econômicas adotadas como

medidas de proteção tutelar visaram à transformação do índio em trabalhador rural,

introduzindo a lógica de produtividade capitalista como forma de integração nacional e em

nome do desenvolvimento (ALMEIDA, 2015, p. 286). O principal expoente no SPI Marechal

Cândido Mariano da Silva Rondon possuía ideias positivistas, advindas da forte influencia do

Estado Positivo da filosofia de Isidore Auguste Comte, que em suma apregoava que a

humanidade possuía estágios de evolução, como do “primitivo” ao “moderno”. A ideia

difundida então era que o índio fazia parte de uma etapa transitória, baseando-se nesse

evolucionismo humano, etapista, que “os índios, quando para isto amadurecidos, seriam

localizados em núcleos agrícolas, ao lado de sertanejos” (RIBEIRO, 1996, p. 158). Pode-se

observar a consolidação do ideal de progresso, na qual o índio entraria, nessa lógica, como

trabalhador rural integrado a sociedade nacional, produzindo para o desenvolvimento

econômico do Brasil.

A fim de compreender os processos vivenciados na TI Xapecó entre 1930 e 1980 é

fundamental associar as práticas de proteção tutelar e políticas indigenistas aos

contextos regional e nacional de desenvolvimento promulgados pelos contínuos

governos. (...) a agência indigenista do SPI promoveu as primeiras experiências de

cunho econômico capitalista nas terras Kaingang (...). (ALMEIDA, 2015, p. 286)

6 Ver RIBEIRO, 1996, p. 147-169.

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A instalação do Posto Indígena Xapecó/PI7 foi realizada em 1941. Anteriormente em

Santa Catarina o SPI esteve presente na região de Ibirama, onde habita atualmente a

população Xokleng/Laklãnõ, com um posto de atração criado a partir da “pacificação” de

19148.

No Posto Indígena Xapecó, o encarregado da administração era o chefe de posto,

como aborda Santos (1970, p. 49), o desenvolvimento de suas administrações, geralmente

eram de ações paternalistas, para então utilizar a mão de obra indígena compulsoriamente

visando o desenvolvimento agrário da área, como meio de integração na economia dos

mercados regionais.

Estes chefes, assim como faziam os administradores de aldeamentos do século XIX,

possuíam a incumbência e o poder de controlar a comunidade por meio do trabalho

compulsório, sobretudo nas lavouras do Posto, utilizando-se da coerção física,

castigos e punição. O SPI procurou transformar o índio num trabalhador rural, ou

mesmo num agricultor. Contudo, enquanto povo seminômade e que praticava uma

agricultura de subsistência e itinerante, desvinculado das fronteiras políticas

estabelecidas pelo governo brasileiro, e, dessa forma, com outras experiências de

circulação e domínio do espaço e território, os Kaingang não se enquadravam no

modelo de trabalhador rural ou camponês. (ALMEIDA; NÖTZOLD, 2013, p. 01).

Cada Posto Indígena deveria conseguir sua autossuficiência através da “renda

indígena” por meio do trabalho na roça e/ou lavoura do PI, teoricamente esse dinheiro deveria

ser direcionado às comunidades (SANTOS, 1970, p. 55), mas ao invés disto, os rendimentos

sempre tomavam caminhos dos interesses particulares dos funcionários do Posto. A partir da

década de 1940, a nova fase do nacional-desenvolvimentismo brasileiro, no período varguista,

novos métodos de exploração capitalista passaram a serem utilizados, sendo assim, o PI

Xapecó passa a integrar a cadeia produtiva regional (ALMEIDA, 2015, p. 285).

Práticas como arrendamentos de terras, concessões para terceiros a fim de exploração

extrativista dentro da área indígena, entre outros, foram muito comuns durante as

administrações exercidas pelos funcionários do órgão indigenista no PI Xapecó. No entanto,

devido às diversas conduções conturbadas realizadas pelos encarregados do Posto surgiram

inúmeras denúncias, culminando na abertura de uma comissão de investigação no período da

ditadura civil-militar. Ocasionando então a extinção do SPI, em 1967, onde “as acusações de

corrupção do órgão representa uma das facetas menos aviltantes das denúncias uma vez que

pesava sobre a agência revelações acerca das diversas formas de violências delegadas aos

7 A partir desse momento passarei a me referir a Posto Indígena como PI. 8 Ver WITTMANN, 2007.

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povos indígenas (...)” (ALMEIDA, 2015, p. 295). Com o fim do órgão indigenista criado no

início do século XX, surgiu nos mesmos moldes e práticas a Fundação Nacional do Índio/

FUNAI.

Os Kaingang e a Alimentação

O povo Kaingang tem como seu território tradicional regiões de planalto nos estados

de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Localidades que possuem matas de

araucárias, da qual tem o pinhão como fruto. Por muito tempo este alimento constituiu-se a

base nutricional alimentar dos Kaingang como relatado por Mabilde (1983).

Inicialmente, os Kaingang foram identificados como “coroados” pelos viajantes

cronistas europeus, devido o seu corte de cabelo. O contato entre o não indígena e os

Kaingang ocorreu de maneira mais intensa no século XIX e início do século XX no oeste

catarinense, pois chegou um momento onde este se tornaria inevitável apesar de cada vez

mais adentrarem as matas, em tentativas de evitar o contato. O crescimento da sociedade

envolvente encurralou os indígenas, tirando sua área de mobilidade, ocasionando

modificações no modo de vida tradicional Kaingang limitando e até impossibilitando diversas

práticas cotidianas. O intervencionismo de Estado, simbolizado pelo órgão SPI, em 1941

instala o Posto Indígena Xapecó dentro da área indígena Kaingang. Com a instalação desse

Posto é um momento onde acentuadas interferências na forma da qual as práticas cotidianas

Kaingang eram feitas. Havendo assim a necessidade de ressignificações culturais do cotidiano

como meio de sobrevivência e mesmo como modo de resistências diante da forte imposição

das formas de trabalho e sua produtividade, nesse caso aplicando uma lógica de produção

competitiva que não havia entre aqueles indígenas.

Segundo relatos de viajantes cronistas, como Borba (1908) e Mabilde (1983), o povo

Kaingang era seminômade e pouco praticante da agricultura, baseando assim sua alimentação

da caça e coleta. A coleta do pinhão era um elemento importante da cultura tradicional

Kaingang, devido à importância desse fruto na alimentação diária. Sendo que este possui uma

carga nutricional de alto valor energético, de fibras alimentares e de proteínas9.

Quando chegam os meses de maio, junho e julho, quando as pinhas estão bem

maduras e antes que debulhem por si, os coroados sobem nos pinheiros e, com uma

taquara, desprendem as pinhas, fazendo-as caírem no chão. As mulheres juntam as

9 Disponível em: http://www.tabelanutricional.com.br/pinhao-cozido. Acessado em 15/05/2016.

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pinhas em cestos que carregam as costas para um lugar areento e úmido, onde são

enterradas. Assim as conservam para comerem nos meses em que aquela fruta falta

nas árvores. (MABILDE, 1983, p. 125).

As áreas de pinheirais, segundo Mabilde (1983) demarcavam o território onde cada

povo indígena que habita o estado residia. Os chamados territórios dos pinheirais ao ocorrer

uma invasão, qualquer que seja, causava conflitos e guerras entre os indígenas. O interesse no

pinhão como forma de subsistência que fomentavam por muitas vezes os conflitos

interétnicos.

A coleta do pinhão, que por sua vez “era umas das práticas fundamentais dos

Kaingang” (OLIVEIRA, 2009, p. 60) atualmente está impossibilitada, já que as economias

extrativistas sugaram os recursos naturais que haviam em abundância na TI Xapecó. A

extração da erva-mate, que foi “extremamente importante, sobretudo na região sul do Brasil a

partir da segunda metade do século XIX, até aproximadamente 1930” (FERRARI, 2010, p.

135). Logo em seguida acontece a forte exploração da madeira resultando na escassez de

diversas matérias-primas e da biodiversidade local. Oliveira (2009) aborda sobre relatos dos

indígenas mais velhos da comunidade que “no tempo dos antigos” tinha fartura das caças e

matas para a coleta das comidas do mato, essencial no cotidiano Kaingang.

O desmatamento ocorrido em larga escala originou a “necessidade de o indígena

vender sua mão de obra para garantia de uma renda” (SANTOS, 1970, p. 49), o que acaba

influenciando diretamente nos hábitos alimentares e de saúde em geral do povo. Portanto O

trabalho na agricultura tornou-se muito comum, após as políticas de concentração das

populações utilizada com os povos indígenas e as imigrações na região sul, limitando as

práticas do modo de vida e na alimentação deste povo.

O trabalho compulsório do qual os funcionários do SPI, encarregados pelo PI,

impuseram para a população da TI segundo Bringmann (2015) foi um instrumento de controle

social usado por meio da institucionalização da tutela, empregando programas de

nacionalização, intervenções econômicas e educacionais.

Esse sistema de trabalho obrigatório que usou compulsoriamente a mão de obra

indígena introduzido pelo órgão indigenista deu-se através das “lavouras comunitárias”, onde

a atuação do Serviço de Proteção ao Índio causou “uma ruptura com as atividades de

subsistência dos antigos. O SPI foi responsável por sistematizar a produção agrícola ao

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implantar modalidades produtivas com finalidades comerciais”, configurando então o sistema

de panelões como um modelo de produção. (BRINGMANN, 2015, p.236).

No regime de trabalho então implantado, os índios deixavam de ter direito de

trabalhar em suas roças, sendo obrigados a trabalhar nas roças do posto “a troco de

comida”: os homens para um lado, e as mulheres para outro. A comida era feita em

um cantina, em grandes panelas o que levou esse sistema a ficar conhecido como

“panelão”. (VEIGA, 2006, p. 05).

Esse sistema de produção que se tornou os panelões foi introduzido como meio de

estímulo para que os indígenas passassem a produzir cada vez mais para o mercado

agropecuário. Instalando uma sobre as terras agricultáveis, da qual foi incorporada as terras

indígenas no processo de produção e de demandas agrícolas (VEIGA, 2006, p.06-08).

Introduzida pelas ações estatais, a noção de propriedade privada estimulou entre as pessoas da

comunidade o sentido de competitividade, isto porque anteriormente, a propriedade, em terras

Kaingang era pensada de maneiras mais coletivas, onde “o cultivo da terra e a repartição dos

recursos obtidos com o plantio, caça e coleta, eram regrados pelas relações sociais derivadas

do parentesco, de modo que não se conhecia o aproveitamento individual da terra e a

apropriação individual dos seus produtos” (VEIGA, 2006, p. 02).

A partir dessa contextualização, o povo Kaingang passou por um processo de

mudança em seus aspectos culturais, afetando a língua materna, os costumes, o modo de vida

e a maneira de se alimentar. Os velhos da comunidade Kaingang chamados de Kofá, sobre o

consumo de alimento no “tempo dos antigos” não era preciso fazer muitas compras nos

mercados da região já que havia abundância de caças e comidas do mato. (OLIVEIRA, 2009,

p. 54). Atualmente, entre os Kaingang, a caça deixou de ser praticada como forma de

obtenção do alimento, passando a ser realizada como lazer, assim como a pesca, mesmo que

realizada em menor escala.

A roça é muito utilizada por toda a comunidade, mesmo que em tempos de SPI para

muitos o cultivo ficava difícil em razão das extensas horas de trabalho nas “lavouras

coletivas” do Posto, impossibilitando o plantio próprio. A criação de animais tais como porco

e galinha, também foi estimulada pelo SPI e ainda são presentes na região (ALMEIDA;

NÖTZOLD, 2013, p. 07).

Muitas das famílias da Terra Indígena Xapecó vivem sem uma renda fixa, sendo as

famílias que mais fazem uso de suas roças e hortas (OLIVEIRA, 2009, p. 48) no quintal da

casa. Portanto pode-se perceber o papel importante do cultivo como meio de subsistência. A

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fartura nas matas, de fauna e flora, a alimentação era muito mais barata e saudável para a dieta

diária do povo, pois aquilo que era de necessidades básicas era retirado da natureza.

Em recente levantamento realizado por meio do Projeto Observatório da

Educação/OBEDUC: “Ensino, saberes e tradição: elementos a compartilhar nas escolas da TI

Xapecó/SC”, são comuns nas plantações alimentos como batata-doce, folhas verdes,

mandioca, milho e verduras e os menos plantados são abóbora, cebola, pepino, salsinha e

soja10. O cultivo na Terra Indígena Xapecó pode ser feito tanto “pro gasto” como apontado

por Oliveira (2009), como por exemplo, “o cultivo do feijão (...) pode reduzir

consideravelmente o custo mensal de uma família com alimentação, já que o feijão é um

alimento consumido diariamente” (2009, p. 46) quanto o cultivo para a fonte de renda

caracterizada por plantações maiores. As famílias que praticam a agricultura com fins de

complementação de renda têm a mesma mais estável mensalmente e por sua vez passam a

comprar mais comida, nos mercados regionais, preferindo isso, a consumir do seu próprio

plantio.

Foi aplicado um instrumento de coleta de dados, direcionado aos estudantes indígenas

das escolas na TI Xapecó, no qual se questionou sobre a configuração das roças e hortas

plantadas em suas casas. E os resultados do detalhamento para cada grupo escolar deu-se da

seguinte maneira: nas escolas multisseriadas da TI, se percebeu apenas o cultivo de alface e

almeirão. Já para a escola Mbya Limeira os produtos de cultivo mais citados foram: batata-

doce, feijão, mandioca e milho e os menos citados: chuchu, cebola, louro e salsa. Para a

escola Paiol de Barro o cultivo está voltado para: folhas verdes, mandioca e verduras, sendo

que as menos cultivadas são: abobrinha, alho e louro. Ao coletar os dados da escola

Pinhalzinho nota-se que os mais citados são: feijão, milho e salada e os menos citados:

almeirão, batata-doce e mandioca. Na escola Linha Matão a batata, a mandioca e a salada

foram os mais citados e os menos citados; o alho, a cebola e a batata-doce. Na EIEB Cacique

Vanhkrê percebeu-se grande cultivo de: batata-doce, feijão, mandioca, milho e salada. Sendo

que as menos citadas foram: amendoim, batata, cebolinha, salsinha e pepino11.

10 Projeto Observatório da Educação/OBEDUC: “Ensino, saberes e tradição: elementos a compartilhar nas escolas da TI

Xapecó/SC – CAPES/DEB/INEP/MEC. Sob coordenação da Profª Drª Ana Lúcia Vulfe Nötzold, realizado no Laboratório de

História Indígenas/LABHIN da Universidade Federal de Santa Catarina. Dados extraídos do instrumento 2/2013, aplicado no

âmbito do OBEDUC 2012 “Ensino, Saberes e Tradição: elementos a compartilhar nas Escolas da Terra Indígena

Xapecó/SC”: Doc. LABHIN/UFSC, 2013. (in mímeo). 11 Dados extraídos do instrumento 2/2013, aplicado no âmbito do OBEDUC 2012 “Ensino, Saberes e Tradição: elementos a

compartilhar nas Escolas da Terra Indígena Xapecó/SC”: Doc. LABHIN/UFSC, 2013. (in mímeo).

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Assim sendo podemos observar certas mudanças nas práticas de alimentação dos

Kaingang, analisando que o que escreveu Mabilde (1983) sobre as formas de adquirir

alimento pelo povo através da caça e coleta, modo de vida com que esses indígenas

interpretaram a partir de sua relação com o meio que habitam. Até a pesca que o autor expõe

como “desconhecida entre esses indígenas” (1983, p. 125) e que em Borba (1908) aborda a

existência dessa prática através dos parys12 (1908, p. 10-11) mesmo que realizada em menor

escala. Ao longo processo que a região passou e as interações culturais, observa-se o maior

uso do plantio como forte meio de sobrevivência entre as famílias da Terra Indígena

Xapecó/SC, adaptando as práticas culturais Kaingang por meio de ressignificações a cada

geração.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Carina Santos de. As múltiplas faces da proteção tutelar: O indigenismo

brasileiro. In:__. Tempo, memória e narrativa kaingang no oeste catarinense: a tradição

kaingang e a proteção tutelar no contexto da transformação da paisagem na terra indígena

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