mostra cinema pernambucano

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Catálogo de mostra no CCBB SP

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organizadores José de Aguiar, Julio Bezerra e Marina Pessanha

Ministério da Cultura apresentaBanco do Brasil apresenta e patrocina

Conde de irajá ProduçõesRio de Janeiro 1ª Edição 2014

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O Ministério da Cultura e o Banco do Brasil apresentam O Novo Cinema Pernambucano, retrospectiva dedicada à exibição de filmes realizados por cineastas pernambucanos, desde 1997, quando o filme Baile Perfumado de Lírio Ferreira e Paulo Caldas marcou a retomada do cinema no estado, até os dias de hoje. Inclui curtas e longas-metragens, documentários e ficções, dirigidos por diferentes cineastas.

Considerada por críticos como a cinematografia mais autoral da retomada do cinema brasileiro, os filmes pernambucanos vêm conquis-tando diversos prêmios em festivais nacionais e internacionais. Marcado por diversidade temática e de linguagens, as obras têm em comum uma severa crítica à questão social brasileira, entre a presença no mundo urbano globalizado e os resquícios de uma cultura profundamente violenta e patriarcal.

Com esta retrospectiva, o Centro Cultural Banco do Brasil oferece ao público a oportunidade de assistir às obras mais significativas destes dezessete anos da nova produção pernambucana. Além disso, reforça o compromisso com a valorização da produção nacional, com exibição de filmes de diretores contemporâneos relevantes.

— Centro Cultural Banco do Brasil

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Em 1997, entra em cena o filme Baile Perfumado, dos diretores Lírio Ferreira e Paulo Caldas. O filme é considerado o grande marco da reto-mada do cinema de Pernambuco. De lá pra cá, dezessete anos depois, o estado já produziu mais filmes que nos cem anos anteriores, o que revela que Baile Perfumado inaugurou um período de continuidade na produção cinematográfica do estado. Esta consolidação também demonstra a relevância de uma nova força fora da região sudeste, e hoje Pernambuco é o terceiro polo cinematográfico brasileiro, ficando atrás apenas de Rio de Janeiro e São Paulo.

Um dos elementos importantes da produção pernambucana é, sem sombra de dúvida, a qualidade dos filmes. Nestas quase duas décadas de retomada, já é possível notar uma coexistência de gerações de talentosos diretores. Além dos já citados Ferreira e Caldas, diretores como Claudio Assis, Marcelo Gomes e Hilton Lacerda também fizeram parte deste início da retomada e lançaram filmes que foram sucesso de público e de crítica. Depois deles, já vemos uma nova geração estabelecida, com Kléber Mendonça Filho, Marcelo Lordello, Daniel Aragão, Renata Pinheiro, dentre outros. E novos nomes surgem com seus primeiros curtas-metragens, como Tião, diretor do filme Muro, premiado em 2008 na Quinzena dos Realizadores em Cannes.

Algo comum na recepção de todos esses filmes é o grande número de prêmios e participações em festivais. Desde a retomada em 1997, vários títulos pernambucanos já passaram e muitas vezes foram premiados em festivais como Berlim, Veneza, Sundance, idFa, Brasília e Gramado, o que demonstra para alguns críticos que o cinema pernambucano é de longe o mais autoral e potente que o Brasil vem produzindo na atualidade.

apresentação

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Dessa retomada, destacam-se também diversos atores, com in-terpretações marcantes como as de Matheus Nachtergaele, Dira Paes, João Miguel e Chico Diaz. Assistimos também à evolução de alguns atores como Irandhir Santos, que surge fazendo uma ponta em Cinema, Aspirinas e Urubus e depois protagoniza os longas Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, Febre do Rato, dentre outros.

Apesar da maioria dos filmes produzidos no estado ser ficção, cresce o número de documentários. Cineastas como Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso destacam-se pelo olhar altamente criativo e pela renovação estética que agregam a este cinema, seja na concepção dos dispositivos, na maneira como montam, no ponto de vista que implantam.

Embora todos esses filmes tenham a mesma origem, há preocupa-ções temáticas e estilos muito diferentes entre eles. Um dos pontos em comum talvez seja a dualidade: moderno-global-urbano versus passado patriarcal. Assim, existe nesta nova produção uma crítica profunda ao futuro da cidade, à violência e ao caos da vida urbana, mas tal crítica quase sempre se confunde com signos do passado, com resquícios das relações patriarcais.

Esta diversidade cinematográfica, que ao mesmo tempo se une por esta tensão, faz com que a mostra O Novo Cinema Pernambucano tenha um caráter amplamente rico, diverso e voraz para o grande público. Esta será, portanto, uma oportunidade única de assistirmos às obras mais relevantes da retomada pernambucana unidas numa mesma mostra.

Boa mostra a todos.

— Marina Pessanha

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11 TexTos críTicos

12 um PerCurso Cinema em PernambuCo dos Primeiros temPos aos anos 1970 Luciana Corrêa de Araújo

18 a antena e a raiz Cinema PernambuCano ContemPorâneo José Geraldo Couto

22 quando as imagens tomam Posição Juliano Gomes

27 enTrevisTas

81 seção de foTos

107 filmografia comenTada

154 sobre os autores

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textos CrítiCos12

um percurso cinema em pernambuco dos primeiros tempos aos anos 1970por Luciana Corrêa de Araújo

No Recife, o século do cinema começou com as projeções do Cinemató-grafo Lumière, em janeiro de 1900, exibindo diversas vistas animadas. A primeira sala fixa talvez tenha sido o Cinema Pathé, inaugurado em 1909. Alguns anos depois, o mesmo cinema estaria exibindo filmes com assuntos locais, como Procissão dos Passos em Recife (1915), da empresa pernambucana Martins & C.

Nos anos seguintes, a produção de filmes naturais (de não ficção) fica por conta de firmas locais e de cinegrafistas itinerantes. Percebe-se que gradualmente vai se intensificando a atividade e a circulação de cinegrafistas pela cidade, o que faz circular também equipamentos, informações, experiências. E os espectadores recifenses passam a ter cada vez mais oportunidades de ver sua cidade e também eles mesmos nas telas. Já em 1917, uma nota do jornal A Província explicava que a extraordinária assistência reunida para uma partida de futebol não tinha como principal interesse acompanhar a disputa, pois se tinha como certa a vitória do América sobre o Torre. O público fora ao campo

“muito mais para se ver nos filmes do sr. Leopoldis do que para apre-ciar a partida”, garantia o jornal. Poucos dias antes, Leopoldis havia exibido seu Pernambuco‑Jornal, no cinema Moderno, um cinejornal com imagens de parada militar, meeting, missa, sessão de domingo no Moderno, entre outros aspectos. Os cálculos publicitários anunciavam:

“15.000 mil pessoas cinematografadas em Pernambuco passarão na tela do Moderno”. Ao que parece, outras tantas esperavam se ver no Pernambuco‑Jornal n.2 (1917), que iria trazer imagens do jogo de futebol e também do cangaceiro Antônio Silvino. O artista e produtor italiano Leopoldis, por sua vez, teria uma longeva carreira em Porto Alegre, a partir dos anos 1930.

A partir de 1920, há registro de naturais realizados pelo cinegrafista pernambucano A. Grossi, pela produtora Comelli & Ciacchi Films (prova-velmente dos sócios Carlos Comelli, italiano que se fixou em Porto Alegre, e Victor Ciacchi, cinegrafista com maior atuação no Rio de Janeiro) e pelo

A Província 16 maio 1917 p.2

A Província 10 maio 1917 p.8

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13um PerCurso

mineiro Aristides Junqueira. É durante a gestão do governador Sérgio Loreto (1922–1926) que a produção de filmes naturais recebe maior estímulo, se beneficiando de uma estratégia política de modernização conservadora com forte investimento na propaganda. Destaca-se, neste momento, o trabalho da Pernambuco-Film, dos sócios Ugo Falangola e J. Cambieri, que realiza dois longas-metragens para divulgar as prin-cipais obras do governo Loreto: Recife no Centenário da Confederação do Equador (1924) e Pernambuco e sua Exposição de 1924 (1925). Uma seleção de cenas dos dois filmes resulta em Veneza Americana (1925), cujo cuidadoso trabalho com enquadramentos, movimentação de câmera e uso da cor fica evidente na cópia restaurada em 2007 pela Cinemateca Brasileira.

Em meio à produção de naturais, os jovens Gentil Roiz e Edison Chagas, este com alguma experiência no laboratório de João Stamato, no Rio de Janeiro, se juntam para realizar um filme de enredo, Retribuição, feito em condições amadoras. Ao estrear em março de 1925, Retribuição é acolhido com palavras de estímulo na imprensa e atrai grande número de espectadores, curiosos para assistir a uma produção local de enre-do. O filme permanece doze dias em cartaz, percorrendo um circuito que tem início no Cinema Royal e segue por mais outras cinco salas. A repercussão inesperada e tão positiva impulsiona a produção de mais filmes e o surgimento de outras produtoras.

Até 1930, haverá uma significativa produção de filmes em Pernambuco. Não só se produz como também se consegue exibir mais de quarenta títulos, entre longas e curtas, filmes naturais e de enredo. Das tantas produtoras que anunciam sua criação nos jornais, pelo menos doze chegam a lançar algum filme. Recife torna-se um dos principais focos de produção no país, especialmente nos anos de 1925 e 1926. Há um gradual movimento de profissionalização, sobretudo na Aurora-Film, de Roiz e Chagas, que passa de um empreendimento em bases amadoras, bancado por dois jovens sem recursos, a uma empresa que tem como sócio principal o comerciante João Pedrosa da Fonseca, responsável por injetar capital no negócio, conferindo lastro econômico e prestígio social à produtora. A partir de 1927, porém, volta-se a esquemas mais amadores, com os próprios realizadores bancando as produtoras e com menos lançamentos de filmes de enredo. Em 1930, entram em cartaz os dois últimos longas de enredo pernambucanos do período silencioso, No Cenário da Vida (Luis Maranhão, 1930) e Destino das Rosas (Ary Severo, 1930), lançados no mesmo ano em que o grupo Severiano Ribeiro trazia o cinema sonoro ao Recife. A nova e dispendiosa tecnologia do cinema

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textos CrítiCos14

sonoro vem se juntar a um panorama de produção já enfraquecido pelos esquemas amadores e à dificuldade em exibir os filmes em circuito consistente, de maneira a garantir o retorno dos custos e o sustento dos profissionais.

Mesmo levando em conta as irregularidades e entraves enfrentados pela produção, o período entre 1924 e 1930 aponta uma atividade cinematográfica rica e diversa. Os catorze filmes de enredo (incluindo as duas versões de Aitaré da Praia, de 1925 e 1929) percorrem gêneros diversos, desde filmes de aventuras como Retribuição, Jurando Vingar (Ary Severo, 1925) e Sangue de Irmão (Jota Soares, 1927), realizado na cidade de Goiana, a melodramas urbanos (A filha do Advogado, Jota Soares, 1926; No Cenário da Vida) e de caráter regional (Aitaré da Praia; Revezes…, Chagas Ribeiro, 1927; Destino das Rosas), passando pelo drama religioso de reconstituição histórica em História de Uma Alma (Eustórgio Wanderley, 1926), à comédia em Herói do Século XX (Ary Severo, 1926) e até mesmo um curta-metragem de propaganda, Um Ato de Humanidade (Gentil Roiz, 1925), com enredo que ilustrava os benefícios da Garrafada do Sertão.

Entre os filmes naturais, há fitas de propaganda financiadas direta ou indiretamente pelo governo Loreto, mas também uma série de títulos que registram acontecimentos e instituições da vida no Recife e em cidades do interior, como carnaval, concurso de miss, saída dos frequentadores de um cinema. Sobre a passagem do hidroavião Jahú pelo Recife, que mobilizou a cidade durante vinte dias, foram realizados dois filmes, As Asas Gloriosas do Brasil (Vera Cruz-Film, 1927) e O Filme do Jahú (1927), produção da Norte-Film, com Edison Chagas como cinegrafista. Existe também uma filmagem amadora, sem identificação de autor, que se encontra disponível no YouTube.

Posteriormente, esse período de acentuada produção viria a ser denominado “Ciclo do Recife” e incluído entre os “ciclos regionais” do cinema silencioso brasileiro. Esses foram termos consolidados pela historiografia clássica, que privilegiava sobretudo as produções de enredo. No entanto, existe uma produção de filmes de não ficção que se mantém no Recife, tanto antes quanto depois do “ciclo”. Embora existente, pouco se conhece dessa produção, sobre a qual ainda faltam pesquisas mais sistematizadas.

Uma consulta à Filmografia Brasileira, banco de dados disponível no site da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br), aponta a Meridional Filmes, de Newton Paiva, como uma produtora bastante ativa no Recife entre as décadas de 1930 e 1940. Entre 1939 e 1940, por

www.youtube.com/watch?v=gxvK2‑hB0AQ

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15um PerCurso

exemplo, há registro de 21 edições do cinejornal Folha da Manhã, além de outros títulos como Quarenta Horas de Vibração Cívica (circa 1940), que cobre a visita de Getúlio Vargas a Pernambuco. A experiência com os cinejornais, para os quais foi adquirido equipamento de som, estimulou a produtora a realizar o primeiro longa-metragem pernambucano sonoro de ficção. Depois de nove meses de trabalho, Coelho Sai é lançado em novembro de 1942 no Art Palácio, o melhor cinema da cidade na época. Adotando o gênero “revista”, o filme apresenta um enredo tênue, que serve de pretexto para uma sucessão de números musicais.

Figura fundamental na produtora, Firmo Neto é quem viabiliza tec-nicamente a realização de Coelho Sai, sendo responsável pela filmagem, revelação, montagem, gravação, copiagem e sincronização do filme. Seu trabalho em documentários e cinejornais se estende para além da Meridional. Dirige curtas como Esquistossomose de Manson (1950) e nos anos 1950, à frente da etC – Empresa Tropical Cinematográfica, lança várias edições do cinejornal Folha da Manhã na Tela. Firmo iria trabalhar até pouco antes de sua morte, em 1998, seja como cinegrafista e em diversas outras funções técnicas, seja como professor de cinema e fotografia. A década de 1950 é também o momento em que se organizam os cinegrafistas amadores da cidade, em torno do Foto Cine Clube do Recife, fundado em 1949, e da aCa – Associação dos Cinegrafistas Ama-dores, presidida por Armando Laroche, diretor de vários e premiados filmes amadores.

A atividade cinematográfica no Recife se faz presente também em termos de crítica e cineclubismo. Já no final dos anos 1920, surge uma primeira geração de críticos de cinema, que inclui Nehemias Gueiros e Evaldo Coutinho, jovens bem informados cujo fascínio pelo cinema os leva a escrever resenhas e colunas no Jornal do Commercio ainda quando estudantes na Faculdade de Direito. Coutinho iria aprofundar seus estudos cinematográficos, entrelaçando cinema e filosofia no livro A imagem autônoma, lançado em 1972, no qual discorre, com erudição e convicção, sobre a imagem silenciosa e em preto e branco, que é para ele o específico fílmico.

Nos anos 1940, críticos de cinema e intelectuais recifenses serão mobilizados para dar sua contribuição ao debate que contrapunha o cinema silencioso ao cinema sonoro, desencadeado pelo então crítico de cinema Vinicius de Moraes na imprensa carioca, por ocasião de uma palestra de Orson Welles, no Rio de Janeiro. Assim como o diretor americano, que pouco depois visitaria o Recife, também a polêmica promovida por Vinicius chega até a cidade. Otávio de Freitas Júnior dá

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textos CrítiCos16

início à enquete no Jornal do Commercio e, entre junho e agosto de 1942, tomam partido pelo cinema silencioso ou sonoro alguns nomes ilustres do meio cultural recifense, como Aderbal Jurema, Paulo do Couto Malta, Vicente do Rego Monteiro e Antônio Maria.

Outro cineasta, desta vez o brasileiro Alberto Cavalcanti, iria per-manecer mais longamente no Recife, filmando o longa-metragem O Canto do Mar, entre 1952 e 1953. O filme estreia em outubro de 1953, no luxuoso cinema São Luiz, inaugurado no ano anterior e até hoje em atividade. Para seu grande espanto, Cavalcanti encontra no Recife uma crônica cinematográfica ativa e numerosa (não sem sarcasmo, ele teria declarado que em parte alguma do mundo havia visto uma terra tão profícua em entendidos do cinema como o Recife). Por essa época, jovens críticos, jornalistas veteranos e eventuais colaboradores escrevem nas colunas de cinema dos cinco jornais diários. A cultura cinematográfica, que se fortalece em tantas cidades após a Segunda Guerra Mundial, também é exercida com particular vigor no Recife do início dos anos 1950, abrangendo a crítica especializada e a atividade cineclubista, estendendo-se também a programas de rádio como “Epopeia do cine-ma” e “Cinelândia”. Em 1950, é criado o Cine Clube do Recife. No ano seguinte, surge o Vigilanti Cura que, apoiado na sólida estrutura do loC – Serviço de Cinema da Liga Operária Católica, promove exibições, debates, cursos e palestras. Na virada da década, surge o Centro de Estudos Cinematográficos da Faculdade de Arquitetura, incentivado pelo professor Evaldo Coutinho. E, nos anos 1960, entra em atividade o cineclube Projeção 16, capitaneado por Francisco Bandeira de Mello, Cristina Tavares e Carlos Garcia, que além de promover exibições também chegou a realizar filmes institucionais.

A produção cinematográfica, no entanto, só ganha impulso nos anos 1970, graças à praticidade e ao baixo custo proporcionados pelo Super 8. Em 1973, nada menos do que onze filmes pernambucanos nesta bitola amadora se inscreveram na ii Jornada Nordestina de Curta-metragem, em Salvador. A partir daí, e até o início da década seguinte, são realizados mais de duzentos curtas-metragens. Constituiu-se uma movimentada cena cinematográfica que viu surgir também o Grupo de Cinema Super-8 de Pernambuco e as três edições do Festival de Cinema Super-8 do Recife (1977, 1978 e 1979). Na produção, engajam-se tanto críticos e cineclubistas das décadas anteriores (Jomard Muniz de Britto, Fernando Spencer, Celso Marconi) quanto jovens realizadores como Kátia Mesel, Geneton Moraes Neto, Amin Stepple, entre tantos outros. A produção de cinema Super 8 em Pernambuco é numerosa e heterogênea, incluindo ficção,

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documentário, filme experimental, impressões de viagem – com espaço também para as experimentações do artista plástico Paulo Bruscky.

No início da década de 1980, o Super 8 vai perdendo espaço nos festi-vais e a praticidade enquanto bitola amadora começa a ser comprometida e a se tornar obsoleta com a chegada do vídeo. O que se costuma tomar como ponto final desse momento vigoroso do Super 8 em Pernambuco marca também o início de uma nova geração, que iria se firmar e se desenvolver nas décadas seguintes. Considerado o último filme em Super 8 do período, Morte no Capibaribe (1983) tem direção de Paulo Caldas e equipe formada por seus colegas no curso de Comunicação Social, entre eles futuros realizadores como Lírio Ferreira e Adelina Pontual. Começa a se articular uma geração que iria renovar o cinema pernambucano, inicialmente com a produção de curtas-metragens e, nos anos 1990, com a realização do longa-metragem Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996).

obras Consultadas

Araújo, Luciana Corrêa de. “O cinema em Pernambuco nos anos 1920”. In: I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. São Paulo: CinemateCa brasileira, 2007.

—. A crônica de cinema no Recife dos anos 50. Recife: Fundarpe, 1997.Cunha Filho, Paulo Carneiro da. A imagem e seus labirintos. Recife: nektar, 2014.

Figueirôa, Alexandre. O cinema super 8 em Pernambuco. Recife: FundarPe, 1994.

Ramos, Fernão e Miranda, Luiz Felipe. Enciclopédia do cinema brasileiro. 3ªed. Ampliada e atualizada. São Paulo: senaC, 2012.

sites Consultados

Filmografia brasileira. Cinemateca Brasileira. Disponível em: www.cinemateca.gov.br

A Província. Biblioteca Nacional Digital. Disponível em: bndigital.bn.brA Scena Muda. Biblioteca Digital das Artes do Espetáculo. Disponível em: www.bjksdigital.museusegall.org.br

Youtube. Disponível em www.youtube.com

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textos CrítiCos18

a antena e a raiz cinema pernambucano contemporâneopor José Geraldo Couto

Não há de ser mera coincidência que o cinema mais rico e vigoroso que se faz hoje no Brasil venha da terra de Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e outros argutos estudiosos de nossa formação social. É como se os cineastas pernambucanos de várias gerações tivessem bebido junto com o leite materno uma compreensão profunda de nossas históricas contradições, em especial, do processo de modernização conservadora que caracteriza nossa trajetória como povo e como nação.

A tensão entre modernidade e atraso, entre a cena global contempo-rânea e as raízes patriarcais, é o que unifica e dá vitalidade, a meu ver, à variada produção cinematográfica pernambucana dos últimos vinte anos. “Canta a tua aldeia e serás universal”, pregava Leon Tolstoi, e os artistas de Pernambuco parecem seguir à risca essa máxima, quaisquer que sejam o tema, o gênero e o estilo de suas obras.

Baile Perfumado, o longa-metragem realizado em 1997 por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, é tido geralmente como marco inicial desse novo e perene ciclo pernambucano (sete décadas depois do breve “ciclo do Recife” dos anos 1920), embora alguns curtas de Claudio Assis e do próprio Lírio Ferreira tenham antecipado sua eclosão.

a Construção da imagem

O filme é exemplar sob vários aspectos. Não se trata de uma mera reciclagem do cangaço, mas de uma releitura do gênero a partir de outras bases, de outros códigos. Distante tanto da pegada de aventura dos filmes de Carlos Coimbra como das alegorias políticas do Cinema Novo, Baile Perfumado, ao tomar como protagonista o fotógrafo e cineasta itinerante Benjamin Abrahão, concentrou seu interesse numa questão muito contemporânea, a da construção e difusão da imagem.

Mostrar um Lampião aburguesado e vaidoso, acumpliciado com poderosos coronéis, filmar um sertão verdejante, não crestado pela seca, apostar no humor, utilizar o maracatu eletrificado de Chico Science

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19a antena e a raiz

na trilha sonora foram algumas das ousadias que sacudiram o então renascente cinema brasileiro.

Cunhou-se então, para batizar a novidade, a expressão “árido movie”, que seria uma espécie de versão cinematográfica do “mangue beat” desenvolvido na época por Science e outros músicos pernambucanos. Nos dois casos, tratava-se de buscar uma inserção altiva, não coloniza-da, na cena cultural globalizada. Tradição e modernidade justapostas, alimentando-se mutuamente.

Baile Perfumado abriu alas para toda uma produção que vinha fermen-tando em Recife desde a década anterior. Agora em parceria com Marcelo Luna, Paulo Caldas apresentou em 2000 o visceral documentário Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas. Dois anos depois, o veterano Claudio Assis lançou seu primeiro longa, Amarelo Manga, praticamente um desdobramento de seu curta Texas Hotel, de 1999. Surgia assim para o país um dos cineastas mais fortes e controversos da atualidade.

o arCaiCo e o moderno

Mas o filme de Assis que articula mais claramente os atritos entre tradição (vista aqui como atraso, peso morto, atavismo) e modernidade (torta e superficial) talvez seja Baixio das Bestas (2006), seu longa seguinte, no qual um grupo de rapazes da elite, com suas picapes 4x4, sua música pop e suas roupas modernas, recicla práticas ancestrais de opressão social e sexual no entorno de um engenho em ruínas.

Outra obra marcante do mesmo período é o segundo longa-metragem de Lírio Ferreira, batizado com o sugestivo e autoirônico título de Árido Movie. Aqui, a equação tradição/modernidade se desenrola em outra chave, mais bem-humorada e menos ácida, mas não menos contundente.

O polo moderno, em Árido Movie, é um jovem “homem do tempo” de telejornal, que vive e trabalha numa metrópole do sudeste do país. Com a morte repentina do pai, ele tem que voltar aos confins do sertão e acertar contas familiares. A viagem equivale ao mergulho num passado violento, patriarcal, pré-moderno. Como pano de fundo, o eterno tema da seca, aqui, visto sob novos ângulos culturais, econômicos e políticos.

Àquela altura – meados da primeira década do século 21 – o cinema pernambucano se diversifica e começam a entrar em cena outros reali-zadores. Entre eles, destaca-se Marcelo Gomes, que estreou tardiamente no longa-metragem com Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), depois de dirigir vários curtas e escrever roteiros para outros cineastas (entre eles o de Madame Satã, de Karim Aïnouz).

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textos CrítiCos20

Choque Cultural

Em Cinema, Aspirinas e Urubus o entrechoque cultural é ambientado no sertão nordestino durante a Segunda Guerra Mundial. A busca de um entendimento possível é entre um homem do sertão e um alemão que percorre o interior exibindo filmes de cinema e publicidade. Mais uma vez reaparece a questão da imagem, sob novos termos, e o cinema reflete sobre si mesmo.

O próprio Marcelo Gomes faria, alguns anos depois, outro insólito road movie, desta vez em parceria com Karim Aïnouz: Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009). Com uma construção narrativa sui generis, que embaralha, ou antes contrapõe, documentário e ficção, o filme é todo narrado em off pelo protagonista – um geólogo em crise depois da separação da mulher – sobre imagens dos lugares percorridos por ele, numa viagem de estudos para a transposição de um rio. Outra vez se conjugam aqui os temas da mudança e da permanência, do ho-mem em movimento e da terra que o puxa para baixo, para o passado, para as raízes.

De certo modo, a obra que enfeixa mais claramente e eleva a um patamar superior as questões que estamos abordando aqui – e que podemos resumir na fórmula “as antenas e as raízes” – é O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, o filme brasileiro de maior repercussão internacional dos últimos dois anos.

Ali, temas de candente atualidade, como a verticalização de Recife, a guetização do espaço urbano, a privatização da segurança, o medo da emergência dos excluídos, o consumismo pós-moderno, articulam-se a uma renitente herança coronelista e patriarcal. O velho persistindo sob a capa do novo.

novos territórios

Os longas-metragens destacados acima sedimentaram o terreno, forneceram régua e compasso para a exploração de novos territórios, como o homoerotismo e a liberdade sexual em Tatuagem (2013) e o universo da música brega recifense em Amor, Plástico e Barulho (2014). Esses dois filmes têm também em comum o fato de representarem a estreia na direção de longas de ficção de dois tarimbados profissionais que participaram ativamente dessa duradoura primavera pernambu-cana: respectivamente, o roteirista Hilton Lacerda e a diretora de arte Renata Pinheiro.

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21a antena e a raiz

A mesma bússola certamente tem servido a uma nova geração, formada, entre outros, por nomes como Marcelo Lordello e Gabriel Mascaro. O primeiro marca presença na programação da mostra com Eles Voltam (2012), misto de road movie e romance de formação, em que uma pré-adolescente desgarrada dos pais descobre o país cheio de arestas e desvãos que existe fora da sua redoma de menina de classe média urbana. Mascaro, por sua vez, comparece com dois documentários longos – Avenida Brasília Formosa e Doméstica – e um curto (A Onda Traz, o Vento Leva) que problematizam, ampliando as fronteiras de seu gênero, os temas recorrentes que detectamos na produção ficcional pernambucana: as velhas contradições sociais sob novas roupagens, a força da cultura popular, as mudanças na paisagem urbana, a sobre-vivência do arcaico no moderno.

Faltou falar da rica e heterogênea produção de curtas-metragens, da qual a programação oferece uma amostragem significativa. Mas este texto já vai longo e, para usar o título de um delicioso curta de Lírio Teixeira, That’s a Lero‑Lero. O importante é ver os filmes com olhos livres, deixar-se impregnar por eles. Bom proveito e diversão a todos.

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textos CrítiCos22

Quando as imagens tomam posiçãopor Juliano Gomes

Já é mais do que lugar comum falar da produção documental brasileira no final dos anos noventa e da década seguinte como terreno predo-minante dentro de um panorama possível de um cinema de invenção brasileiro. Assumindo esse lugar comum como ponto de partida, é possível então perceber um conjunto de filmes se formando desde o final da última década que parece querer violar os patamares colocados por Eduardo Coutinho, Andrea Tonacci, Cao Guimarães, entre outros. Mais especificamente, a partir de Pacific (2009), se torna incontornável a presença da produção documental contemporânea de Pernambuco dentro do panorama de renovação estética das práticas documentárias no cinema brasileiro.

O aparecimento do longa de Marcelo Pedroso, filme absolutamente crucial na narração do Brasil contemporâneo, parece trazer novas e velhas questões à tona, que permanecem sendo constantemente testadas, esmiuçadas dentro dessa cena da capital pernambucana. Um dado objetivo já é possível notar dentro dessa produção: sua frequência. O que se observa é um ritmo bastante acelerado de produções, em relação à média brasileira, que permite essa clareza de uma pesquisa, mesmo que com abordagens distintas, em curso. Não se pode separar a produção da emergência de políticas continuadas de editais que proporcionaram o financiamento de boa parte dessas obras, e que se infiltram nos filmes (os créditos de abertura do curta Em Trânsito, também de Pedroso, parecem a evidência maior dessa relação), tornando-se também um elemento que atravessa os filmes, que alimenta suas contradições.

O que se pode notar na superfície de filmes como Pacific, Câmara Escura, Doméstica, Avenida Brasília Formosa, Um Lugar ao Sol, Em Trânsito é o retorno de certos elementos de uma agenda macropolítica brasileira ao centro da tela. Volta-se a falar de classe, de elite, vigilância, representação política, capital, economia com uma frontalidade e um despudor que parecem característicos deste momento. Uma aproximação com um repertório do documentário brasileiro clássico, mas que parece

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23quando as imagens tomam Posição

bastante consciente do seu poder de invenção estética nesses campos que pareciam estar exaustos e estéreis como matéria de exploração. A tendência subjetiva, teleobjetiva, epidérmica, anterior abre um campo de possibilidades de exploração desses grandes conjuntos pensando-os não como enunciados puros, mas como material estético no qual só se pode atuar transformando por dentro. Não se trata de diagnosticar a sociedade, mas de atuar dentro dela percebendo suas formações como produção, como algo que é dado, mas que não é natural. Daí procurar formas onde estas produções se dão, fazê-las aparecer em ato, na tela, na pele, mas sem perder o conjunto de vista. É disso que se trata aqui, afinal.

Nem particular nem universal, o que esses filmes parecem querer é atuar dentro dos mecanismos que formam as relações nas cidades para dobrar-lhes na raiz. É estar dentro, contra, junto, sujando as mãos, transformando, intervindo, tecendo relações, deliberadamente, pois é sempre disso que se trata. Não que os inimigos estejam invisíveis (pelo contrário, Em Trânsito e Um lugar ao Sol, por exemplo, despudorada-mente dão nome aos reis), mas a questão é nunca isolá-los, é encontrar e performar o que me liga a eles, ou mesmo o momento onde eu sou eles. Parte do efeito cômico de Pacific é justamente sua habilidade de construção de identificação. Afirma-se a diferença, constituem-se os contornos, mas esse jogo de espelhos enviesados também sou eu (cineasta, espectador, classe média alta, novo rico). A ferramenta para isso não é a reflexividade, a presença do cineasta como performer diretamente, mas a criação de mecanismos onde possa ser visível essa linha onde nos tornamos nossos inimigos, onde somos produção de desigualdade de nós mesmos, um campo de produção de diferença, e de relações complexas com o mundo, e de uma ideia de história como conjunto de combustões provocadas e a provocar.

Entre Um Lugar ao Sol e A Onda Traz, O Vento Leva, apesar das suas evidentes diferenças, se pode perceber esse gosto pelas interações, pelo estabelecimento de conjuntos, de relações, dos homens entre si, com o espaço e com suas produções subjetivas e afetivas. O que não vai se ver aqui é isolamento, ou a singularidade como sinônimo de isolamento. O mecanismo é justamente o contrário: a ordem é do choque. Os sentidos parecem ser produzidos justamente nessa esfera da relação, da troca mútua, seja ela injusta, suja ou desigual. Acabado o filme, o mundo existe, esses enunciados não são abstrações, mas a função dos filmes é fazer perceber a maneira como podem ser criados, mexidos, entortados por uma imagem, pois é isso que eles são. Essas fricções estão dentro e fora dos filmes: na formulação dos dispositivos, nas estratégias de

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textos CrítiCos24

montagem e na concepção dos enquadramentos, cores e sombras. Daí a histórica contribuição de Pacific, como descrição precisa, como inventário do seu tempo, e também como matéria metafórica. Trata-se de um organismo, de corpos e objetos, produtores de cena, fábricas de auto mise‑en‑scéne, midiática, arquitetônica, que funciona como um microcosmo rumo ao paraíso perdido para onde a classe média vai. E esse desejo é meu, espectador de cinema, ansioso pelos choques perceptivos que uma imagem sempre me promete: um êxtase, um deleite ou suspiro.

A moldura do quadro é trincheira na qual essas composições com-plexas de desejos – muitas vezes conflitantes – se desenham. Ao mes-mo tempo, esses universos colidentes não raro assumem formas cuja plasticidade manifestada no quadro reconfigura os vetores desses feixes de embates. É notável a importância da composição em tableau em filmes como Avenida Brasília Formosa, Em Trânsito, A Onda Traz, o Vento Leva, por exemplo. Uma aparente harmonia composicional é a superfície deste estabelecimento de diferenças e perspectivas da relação do corpo humano com os espaços variados e com suas formas de ocupá-los. O notável plano em Avenida Brasília Formosa onde o pescador em sua casa dá as costas para as duas ostensivamente grandes torres emolduradas pela sua janela é somente um dos momentos onde esta síntese do estabelecimento de escalas atinge seu maior grau. Ali onde a posição do corpo, a dinâmica visual do quadro, o tamanho dos elementos, as diferenças marcadas de luz refletem esse estado de desejo e recusa intensivo, numa imagem manifestamente linda, cruel, porém justa, pois se sustenta como tensão, como relação ativa.

Um corpo no espaço nunca é só. A tensão corporal organizada no espaço visual está intimamente ligada a esta visão das construções estéticas como conjuntos de conflitos ativos. Doméstica é também um dos exemplos mais acabados disto. A estabilidade daquelas relações entre os filhos dos patrões e as domésticas é também a estabilidade que afinal soa artificial como conjunto, da câmera do filme. O mundo prévio e o mundo produzido pelo filme não se espelham, mas se põem um diante do outro, inimigos seduzidos mutuamente. A docilidade, a cumplicidade, a crueldade e a hipocrisia se irmanam como se andassem sempre juntas, num lampejo de imagem, como por exemplo a da do-méstica que cuida da casa de outra colega de profissão. O claro-escuro dos tijolos da favela são a contradição exata do dispositivo do regime amador das imagens do filme. A instabilidade da estrutura é ela mesma matéria da instabilidade das relações que o filme produz, é sua perfor-matização, que faz as imagens de Pacific parecerem action paintings.

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Uma estabilidade que não se sabe se é cordialidade ou clausura, carinho ou perversão, escravidão ou amizade, século xvii ou xxi.

O dispositivo não se encerra como si mesmo, não se fetichiza, isto é, não se separa do campo de relações no qual ele intervém, mas jus-tamente mergulha nelas, de cabeça. Em Pacific, a tela se torna youtube, e as imagens atingem, por fim, seu destino desejado: a tela. Mas qual tela? Importa afinal? Onde será que começa o filme nesse caso? Na casa dos personagens, nos preparativos? Na presença das suas pequenas câmeras? Perceber e dobrar as encenações do mundo sobre si mesmas, se engajar com elas, junto delas e contra elas. Assim também em relação ao próprio cinema: Godard, Homero, Bíblia, filme de família, blockbuster, tudo isso se combina, se choca produzindo a experiência do filme. Um retrato de classe local, territorial e também toda a história do ocidente. A subjetividade como máquina e a máquina como subjetividade: de quem são aqueles olhos? De quem é aquela direção? Negociar os desejos, essa é a tarefa desses artistas ao tecer tais imagens em sua composição.

A frontalidade, o gosto pelo grande tema faz com que estes artistas tenham desenvolvido essa extraordinária capacidade de composição de conjuntos (tableaus) e de dramas, conflitos, na imagem. Olhar de frente, cinema direto, onde a delicadeza só emerge como força contrapontística diante do cruzamento de forças brutas. Daí essa notável capacidade de encenar os conflitos, de naturezas variadas: no terrorismo de Câmara Escura, dos homens e seus trajetos cartográficos em Avenida Brasília Formosa, da tagarelice dos objetos técnicos em A Onda Traz, O Vento Leva, da tomada como produção de antagonismo em Doméstica, entre outros mais. Os indivíduos dão lugar à emergência desses processos de individuação, essas composições variadas que geram formações múltiplas independente da vontade das partes iniciais. Um cinema da posição relativa, da composição, da escala e da perspectiva, numa espécie de

“transformalismo”, que não ignora a dimensão inerentemente formal da imagem, mas potencializa sua intervenção pela precisão com que trans-forma, altera e solicita a alteridade da política na imagem, esse lugar onde elas podem talvez diferir de si mesmas, de suas intenções ou premissas. Nem encontro nem confronto puros, mas uma estética da produção, que quer encontrar essa casca de unidade no que é necessariamente múltiplo. Que quer, afinal, que esses polos possam coexistir nos elementos do filme. A tarefa é árdua, mas o ritmo e o sucesso com que esses artistas encaram o desafio, em sua complexidade, não é menos intensivamente extraordinário. A ver, as cenas dos próximos episódios.

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entrevista Lírio ferreirapor Julio Bezerra

revista de Cinema Gostaria de que você falasse um pouco sobre sua trajetória. Como você foi parar no cinema?

lírio Ferreira Tudo começou em Recife, quando assisti ao primeiro filme de minha vida, A paixão de Cristo, num cinema lá em Casa Amarela (Recife). Na cena da ressurreição de Lázaro, fechei os olhos, morrendo de medo. Aliás, não é à toa que tem um personagem em Árido Movie chamado Lázaro (Paulo César Pereio) e que ressuscita. Enfim, foi uma paixão mesmo. Coisa de cinefilia. Apesar de ter uma tradição cinematográfica muito importante, que vem desde o ciclo de Recife na década de 20, não há escola de cinema em Pernambuco. Muito mal tínhamos acesso ao equipamento cinematográfico. Então era uma coisa de paixão mesmo. Tinha que ter paixão para entrar nessa. Isso foi culminar em 1983, quando entrei para a faculdade de jornalismo, numa turma que tinha Paulo Caldas, Adelina Pontual, Samuel Holanda… Cláudio Assis não era da turma, mas namorava uma das meninas de lá. Quer dizer, era um grupo de jornalistas totalmente movido pelo cinema. Criamos até um clube, o Van-Retrô, que, aliás, achávamos que era a vanguarda do submundo da cidade. Aquelas coisas de jovens. Foi mais ou menos por aí que escrevi meu primeiro curta, chamava-se “Biodegradável”. Acabou que ele nunca saiu do papel, mas o projeto foi como que o nascedouro dessa vontade e possibilidade de juntos fazermos cinema. Meu primeiro trabalho foi como continuísta e still do curta do Paulo (Caldas), O bandido da sétima luz (1986). No ano seguinte, trabalhei como assistente do Cláudio Assis no primeiro curta dele, Henrique (1987). Neste mesmo ano, escrevi com Paulo o roteiro daquele que viria a ser meu primeiro curta, O crime da imagem (1991), sobre o mito do Antônio Conselheiro. Combinou com o fim da Embrafilme, o apagar das luzes do cinema brasileiro. Sacanagem, né? Eu ficava pensando comigo: demorei tanto pra chegar, quando chego, está acabando!? (risos). O filme chegou a participar de alguns festivais na Europa em 1992.

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Nada acontecia no Brasil e acabei morando na Inglaterra por um tempo. Na época estava casado com minha ex-mulher, mãe de minha filha Julia. No ano seguinte, voltamos para Recife. E este foi um momento muito feliz. Julia estava nascendo, a cena musical estava passando por uma revolução com o mangue beat. Havia um sentimento de orgulho muito grande no ar. E o cinema fez parte desse processo. Logo que cheguei, escrevi junto com o Amin Stepple o roteiro de That’s a Lero‑Lero (1994), meu segundo curta, sobre a passagem de Orson Welles por Recife. Nessa época também sentei com o Paulo e começamos a trabalhar no roteiro do Baile Perfumado. Fazia 20 anos que Pernambuco não produzia um longa. E o Baile foi um marco pra toda a nossa geração. Foi o primeiro longa de todo mundo.

revista de Cinema Além do cinema, você alimenta alguma outra paixão, um hobby? O que você gosta de fazer quando não está fazendo cinema?

lírio Rapaz, você sabe que eu me preparei bem para levar a vida desre-grada que levo hoje (risos). Quando eu era garoto, sempre pratiquei esporte. Sou grande torcedor do Sport Clube do Recife. Na verdade, cheguei a treinar no Sport. Quase virei jogador profissional. Joguei no juvenil. Também fui surfista e pratiquei vôlei de praia, tendo, inclusive, participado de campeonato. Eu me preparei bem mesmo. Mas houve mesmo um momento, pouco antes do vestibular, em que cheguei a pensar em levar a carreira de jogador adiante. Quem sabe? Eu poderia estar hoje na Coreia, Ucrânia… (risos).

revista de Cinema Como você se prepara para as filmagens? Faz muitos ensaios? Storyboard?

lírio Como a gente passa muito tempo captando, demoramos muito pra filmar. Então, trabalhamos muito no roteiro. Em geral, ficamos três anos captando e escrevendo o roteiro. Trabalhamos muito essa parte para chegarmos bem preparados na hora da filmagem, para nos sentirmos livres o suficiente para improvisar sobre essa forte base. Não faço storyboard. Gosto muito de decupar na hora, na locação. Eu sei o que quero passar. E dependendo do clima dos atores, da equipe e o do estado em que me encontro, eu improviso. Vou te dar um exemplo. Na sequência final do Árido Movie, pouco depois do Jonas (Guilherme Weber) tomar aquele chá alucinógeno, o personagem volta para o posto e tem todo aquele delírio. A locação era muito longe do hotel, uns 70 quilômetros. No caminho pra lá, eu via todo mundo naquele plano, menos o Jonas. E o Guilherme

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ali do meu lado. De repente, tive aquele estalo: se não estou vendo o Jonas, é porque ele não deve estar. Eu ensaiei tudinho com o Guilherme, fiz todas as marcas e o dispensei. O Guilherme foi para o hotel e o Murilo (Salles, o fotógrafo do filme) sentou na cadeira e fez a subjetiva do Jonas. É mais ou menos isso. Apesar de saber o que quero, muito do que é filmado, surge ali no ato.

revista de Cinema Você costuma rever seus filmes?lírio Eu vejo. Semanas atrás, em São Paulo, tomei até um susto. Eu fui

lá prestigiar um festival latino-americano e tinha uma sessão com um filme mexicano, um peruano, o Superoutro (1989), de Edgard Na-varro, e O Crime da imagem. Antes de começar o meu curta, aparecia uma imagem minha, apresentando o filme. Uma apresentação que nem lembrava ter feito, há 12 anos. Tomei um susto. Todo aquele cabelo (risos). Mas eu gosto de rever os meus filmes sim. E de vez em quando, descubro coisas que fiz meio que de maneira inconsciente. É engraçado. O plano de abertura de meu primeiro filme é um plano aberto do sertão com um velho cego entrando no quadro e tateando o chão com seu cajado. Ele sai do quadro, seguido por uma romaria do Antônio Conselheiro. Hoje, percebo que essa sequência é como uma metáfora daquele momento de minha vida. Eu cego, entrando num terreno místico, que é o sertão e tateando pra ver que tipo de cinema eu realmente queria fazer. Eu comecei assim.

revista de Cinema Apesar do difícil acesso a certos equipamentos, do fato de não haver escolas de cinema ou maiores incentivos estatais para o setor, Pernambuco tornou-se não somente um dos estados mais produtivos do país mas também um reduto de qualidade. Como é isso?

lírio Hoje a coisa é mais fácil. Naquela época, não existia câmera digital. Eu me lembro de que nos poucos editais pernambucanos de cinema, tinha uma média de dez projetos inscritos, todos do nosso grupo. Atualmente, se você for ver o concurso em Pernam-buco, vão ter 60 projetos. E a distância do Rio e de São Paulo não é mais tão grande. Sem falar que, para as gerações mais novas, nós funcionamos como uma espécie de exemplo mesmo. Cinco filmes já foram feitos. Outros quatro estão vindo por aí. Enfim, este dese-jo, contra todas as probabilidades, de colocar o Estado no mapa cinematográfico serve hoje como um incentivo. Acho que tem uma coisa de geração mesmo. Apesar de termos nossas muitas diferen-ças, sempre conversávamos e discutíamos sobre cinema. Víamos os mesmos filmes e depois saíamos para beber e falar sobre eles.

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Acredito que o ponto de intercessão a ligar todos nós é o nosso método de produção, criado pela grande dificuldade que era fazer cinema em Recife. Esse mecanismo de produção que criamos, imprime no nosso cinema um sentimento de se arriscar, um frescor, uma ousadia de não se engessar nos nossos projetos. Não sei se isso é um privilégio de Pernambuco. Mas é claro que tudo isso de que falei tem um enorme embasamento no riquíssimo caldo cultural pernambucano. Pernambuco é um estado que tem 400 anos de decadência econômica, porém sempre teve uma posição política muito forte e uma cena cultural muito efervescente.

revista de Cinema É possível perceber uma espécie de política da amizade perpassando os trabalhos de Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes… Este tom de cumplicidade (também entre os atores e equipe) parece por vezes reger a própria encenação e a relação do filme com o público. É curiosa essa política da amizade que alinhava os filmes de vocês – ainda mais se tratando de uma arte que, desde os anos 50, preza a figura autoral do diretor. Você poderia falar um pouco sobre isso?

lírio Cinema é uma arte de irmãos. Nasceu com os irmãos Lumière. Em Pernambuco, devido a todos os problemas que mencionei, essa irmandade foi fundamental. Criamos um vínculo muito forte, o que é uma coisa muito bacana e muito arriscada ao mesmo tempo. Se por um lado é muito legal trabalhar com os amigos, do outro, é muito difícil cobrar. Mas eu curto muito este contato com os amigos. Acredito até que por estar cercado de amigos, tenho mais controle. As pessoas perguntavam muito pra mim e para o Paulo sobre o Baile Perfumado. Era curioso, parecia que tínhamos ensaiado. Não tivemos nenhuma briga na filmagem. Não tinha isto de um plano dele e um meu. Era uma coisa consentida por ambos. Havia muita pressão, era projeto grande. Discutimos muito na montagem. Ali era permitido. Enfim, consegui desenvolver esse método de trabalho com irmãos e tem dado supercerto.

revista de Cinema Neste sentido, o título do filme funciona como uma espécie de homenagem, não é?

lírio O Árido Movie é aquele momento em que minha geração come-çava a colocar Pernambuco de volta no mapa do cinema, quando Cláudio, Adelina, Marcelo Gomes, todos estavam trabalhando em novos projetos. Foi por aí que o Amin cunhou essa expressão em contraponto ao luxurioso e fértil Mangue Beat. O Árido Movie era uma coisa mais seca, mais tórrida, que nunca virou um movimento ou

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manifesto, mas representava essa mística. Uma celebração àqueles momentos em que se bebia muito e se discutia sempre sobre cinema, era uma ideia na cabeça e um copo de whisky na mão (risos). Aliás, essa frase está ficando célebre! (risos)

revista de Cinema Em Árido Movie, o sertão é algo misterioso que – como no diálogo alucinógeno entre Jonas e o índio – não se vê de primeira. Alguns críticos argumentam que o filme se perde em seu percurso, quando, no entanto, parece-me que é o sertão que se perde por estes caminhos (a nostalgia de sei lá qual sabedoria, o fascínio pelo atraso e por suas tradições violentas, a sedução de um cenário insólito). Como é isso?

lírio Eu sei que poderia ter optado por um final mais fechado, mais simples. Mas bati o pé mesmo. Eu achava que depois da experiência alucinógena do Jonas, o filme tinha que dar uma virada radical. E nada mais simbólico do que essa inversão se passar nesta cena em que o personagem toma o chá, e o sertão entra de maneira profunda dentro dele. E nada mais simbólico do que a fala do Zé Elétrico. Assim como ele prepara o Jonas para o que vem a seguir, o filme prepara o espectador para o próximo capítulo. Os caminhos do sertão são mesmo vários, optamos por alguns. Não me arrependo. O Árido Movie é um longa de lenta digestão. Nada nele é de graça. As pessoas veem o longa mais de uma vez e me trazem diferentes comentários a cada revisão. Talvez eu não faça mais na minha carreira um filme, na minha concepção, tão belo e imperfeito.

revista de Cinema É curioso como a brincadeira que Bob (Selton Melo) faz em relação a Vidas Secas traduz, sintetiza uma das propostas do filme: essa junção sem nenhum pudor da tradição com o pop, com o novo. Você poderia falar um pouco sobre isso?

lírio Assim como o filme tem muitas influências do Sérgio Leone, do Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975) do Antonioni, também tem uma dívida para com o cinema novo. Não é à toa que temos uma cidade que se chama São Paulo e um vilarejo chamado Rocha. Essa citação ao Graciliano Ramos, um de meus escritores favoritos, também faz por tabela uma homenagem ao filme Vidas Secas (1963), do Nelson Pereira dos Santos. Todos esses signos denunciam essa busca do Árido Movie por um sertão meio perdido. Tentamos mesmo resgatar esse sertão, aquela luz do Vidas Secas, do Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, do Fuzis (1964), de Ruy Guerra.

revista de Cinema Que tipo de realismo te interessa?lírio Pra mim, quanto mais você mentir melhor. Cinema pra mim é isso.

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Aliás, essa foi uma das razões de eu nunca ter levado o jornalismo a sério. Aquela fidelidade aos fatos. Eu ficcionalizava as coisas e acabava brigando com os professores por causa disso. Quanto melhor você mentir, melhor o cinema. No bom sentido, é claro (risos). O realismo que procuro vai por esse caminho. Por mais estranheza que passe o Árido Movie – muito por causa do protagonista, alto e loiro, que quase não cabia no quadro do cinemascope – tudo aquilo ali representado é fruto das experiências que eu e Hilton (corroteirista) tivemos com o sertão. Você veja que o cantor Otto, que assina a trilha do filme, nasceu a 20 quilômetros de onde estávamos filmando. Por mais mentiroso que o longa possa parecer, ele está calcado em experiências e na tradução honesta delas.

revista de Cinema Hoje o grande público deixou de frequentar os ci-nemas e não existe mais nem circuito exibidor para ele. E Árido Movie apresenta certamente um desejo por público. Como é conviver com isso num país em que cinema não é mais essencialmente popular?

lírio Existe hoje um processo de emburrecimento do audiovisual no mundo todo. Acho que a cara do cinema brasileiro é mesmo a diversidade. Tem espaço para todo mundo. O problema é quando uma maneira de se fazer cinema se torna hegemônica. Hoje, o cine-ma tem que ser comercial, se ele não atender o público, não estará cumprindo sua função. No entanto, sem renovação e ousadia não se faz uma indústria, nem uma cinematografia. É este o cinema que defendo. Um cinema da dúvida, que não mostra o óbvio. Cinema pra mim não é a maior diversão. Eu quero um cinema do mal-estar. Se quero me sentir bem, relaxar, posso fazer uma aula de yoga ou beber com os amigos. Obviamente eu não sou o público, sou um público. Agora, quando começam a dizer que um filme que dá 20 mil espectadores não está atendendo a demanda, fico irritado mesmo. Filmes palatáveis, que as pessoas saem achando que a vida está uma maravilha. O que me pergunto é se vale termos esse desejo por público, carregarmos essa pressão. Esses filmes interessam ao público brasileiro? As pessoas ficam orgulhosas que o Marcelo Gomes fez um longa maravilhoso, ganhando prêmios em vários lugares. Mas no Brasil, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) teve somente 115 mil espectadores. O Cidade Baixa (2005) do Sérgio Machado estreou com mais cópias na Inglaterra do que no Brasil. O público torce pelo filme lá fora, mas quando é hora de prestigiá-lo aqui, eles não vão. Fico triste porque esse pessoal que está realmente pensando o cinema no Brasil entra na estatística do fim do ano só para arredondar.

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Somos bucha de canhão. Acredito piamente que é possível mudar isso. É uma briga dura, mas necessária. Estes trabalhos precisam ter um melhor planejamento. Não dá pra lançar e tirar duas semanas depois. Eu sei das pressões, da falta de salas e tal… Um filme como o do Marcelo tinha que ser exibido durante um ano.

revista de Cinema É curioso como por vezes a narrativa do filme meio que se autossabota, recorrendo sempre à montagem paralela. Na verdade, não parece existir uma sequência narrativa. O filme parece corrompido por uma lógica cannabis sativa. Você poderia falar um pouco sobre a montagem do filme?

lírio Fico muito feliz com esta observação. É isso mesmo. Na montagem, eu e Vânia Debs (montadora de Árido Movie) cunhamos o termo montagem maconhal. Aquela coisa de quando você fuma um base-ado e vê um filme. O tempo e sua apreensão dele é completamente diferente. Talvez seja uma homenagem a Godard (risos). Mas eu acho o trabalho da Vânia primoroso. Passamos quase um ano montando. O primeiro corte tinha quase quatro horas. O filme ficou com uma 1h45. Precisava de muita maconha pra cortar tudo isso (risos).

revista de Cinema Você poderia falar um pouco sobre Cartola? O que te levou a fazer um documentário sobre o sambista carioca?

lírio Quando eu estava me mudando para o Rio, o Instituto Cultural Itaú (hoje, Itaú Cultural) encomendou um roteiro sobre Cartola pra mim e Paulo. Acho que eles se encantaram com aquele negócio do olhar estrangeiro do árabe no sertão do Baile e pensaram em dois pernambucanos para escrever um roteiro sobre este ícone carioca. Nós chamamos o Hilton e fizemos o roteiro, mas o Instituto não levou o projeto adiante. A Raccord Produções se interessou pelo projeto. Como o Paulo tava filmando o Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000), convidei o Hilton para dirigir comigo. O Cartola teve tudo a ver assim com a descoberta da cidade do Rio. É um filme de pesquisa, depoimentos e imagens de arquivo. Ele vai estrear no Festival do Rio, em setembro.

revista de Cinema Você já tem outros projetos pela frente?lírio Vamos lançar o dvd do Baile Perfumado no início de 2007, quan-

do o lançamento do filme completa dez anos. Eu nunca gostei de making of e tivemos que garimpar muito pra descobrir algumas coisas para os extras. Mas achamos algumas surpresas. Estamos programando um pequeno evento com a exibição do Baile e um debate em São Paulo e em Recife. No Rio também, caso alguém se interesse. Queremos mesmo pensar esse tempo todo aí de dez

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anos. A trilha também vai ser relançada. Eu também estou fazendo um documentário sobre a vida e a obra do compositor, advogado, deputado federal e criador das leis de direito autoral, Humberto Teixeira. Ele era parceiro do Luiz Gonzaga, coautor de Asa Branca. Nem culpo as pessoas por não o conhecerem. O Luiz Gonzaga, uma figura pop, o ofuscava. A atriz Denise Dummont, filha de Humberto, quis resgatar a história do pai, e estamos juntos nesse projeto há três anos. O filme vai se chamar O Homem que Engarrafava Nuvens.

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entrevista cLaudio assispor Cleber Eduardo

Claudio Assis lança ainda em agosto o muito aguardado Amarelo Manga, que estreou no Festival do Rio de 2002 e desde então colecionou prêmios em Brasília e no Cine Ceará, além de uma passagem feliz pelo Festival de Berlim. Trata-se, desde já, de uma das mais contundentes estreias da fase pós-95 do cinema nacional, nem só pelo filme quanto pela postura e personalidade afeitas à polêmica do seu diretor. Conversamos com Assis sobre isso tudo e muito mais.

ContraCamPo O filme situa muito bem os personagens em seus ambientes físicos e em seus universos sociais, em uma descrição documental de seus meios, mas a ficção é assumida como tal naquela realidade. Ela faz questão de interferir no real por meio de uma afirmação de estilo.

Claudio assis Nosso desafio era sair da ficção, entrar no documen-tário e voltar para a ficção. O desafio era fazer isso sem agredir o espectador. Queríamos fazer mais cenas documentais, mas na rua o bicho pega. Não teríamos como manter controle.

ContraCamPo Você parece estar em busca de uma marca com o filme. Tão importante quanto os personagens e a descrição do mundo deles é a maneira escolhida para se filmar. Isso foi planejado anteriormente ou surgiu no processo?

Claudio Eu não faço storyboard. Não gosto de quando sei o que vai acontecer no set. Não quero aprender a fazer assim, não tenho von-tade e não tem nada a ver comigo. Quero emoção e que as pessoas sintam o que estão fazendo naquele momento, o da filmagem, e isso a gente descobre na hora. Não cenografo apenas uma parte do cenário para só filmar aquele canto. A câmera vai para todo o canto, tem de estar tudo cenografado, senão fico escravo de um limite. Amarelo Manga é um filme difícil. Trata da miséria humana. Se não buscarmos uma elegância no movimento de câmera, no enquadramento, no desenho das cenas, fica um negócio feio e podre. Uma das minhas

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preocupações era fazer com que as coisas não ficassem restritas. A gente se preocupou ao máximo para haver prazer em se ver o filme. Isso interfere em todo o processo. É como o americano faz, mas do nosso jeito, filmando nosso povo.

ContraCamPo Qual a origem do filme?Claudio Um crítico da Set disse que o Amarelo Manga, veja isso, é

consequência do Texas Hotel (1999). Mas quem disse isso a ele? Por que ele não me ligou? Quando eu fiz o Texas, já existia o roteiro do Amarelo Manga. Há apenas o mesmo ambiente. Então estou plagiando a mim mesmo?

ContraCamPo Mas qual a ideia inicial? Você queria estrear em longa e foi atrás de um filme, ou queria estrear com este filme em específico?

Claudio assis Walter Carvalho chegou um dia a pedir para eu desistir desse projeto. Disse que não ia. Passei seis anos viabilizando esse filme e só me interessava fazer ele. O projeto surgiu de várias coisas. Eu tinha um TL cujo nome era Amarelo Manga, que foi incendiado em uma oficina. Também tinha o púbis de uma garconete, que eu conhecia, e queria usar de alguma forma no filme. E isso veio a calhar com aquele poema do Renato Carneiro Campos. Mas o filme não existe por causa do poema e, sim, por causa do meu carro e do púbis de uma mulher. Daí surgiu o nome. E o amarelo é a cor do Nordeste.

ContraCamPo Mas para além do púbis da mulher e de seu carro você já tinha ideia de filmar esse ambiente social?

Claudio Já sim. A ideia me veio de uma provocação gerada em mim pelo cinema americano. Eu odeio americano, mas é o filme deles a que a gente assiste, pois é o que chega aqui, né? E eles fazem filmes em que os heróis saem matando gente, uma violência urbana desnecessária. O cara fica puto com o trânsito e sai matando o povo. Caralho. Violência por violência. Então, ficava pensando: a gente tem uma violência nossa, cotidiana, dentro da nossa própria casa, que é tão violenta quanto filmes de Hollywood. Queria fazer um filme sobre essas pequenas violências, que fosse poético e violento ao mesmo tempo. Por isso o Jonas Bloch mata cadáver, quem já está morto, porque é um vício inofensivo, simbólico. Os outros elementos surgem daí, dessa violência dentro de nós.

ContraCamPo A fala da Leona Cavalli, no final, reflete uma impotência. E o filme evidencia essa impotência do povo para sair da situação na qual vive, principalmente naquela sequência, já no fim, na qual surgem vários rostos sem nenhuma esperança na expressão.

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Claudio O que gerou a sequência dos rostos, no final, é a impotência e um chamado. É como se aqueles rostos dissessem: “Olhem para mim, eu sou esse tipo na miséria, tenho algo a dizer, quero comer, tenho tesão, quero me divertir”. É um grito em silêncio para chamar atenção.

ContraCamPo As personagens da Dira Paes e do padre em crise, em suas falas e atitudes, matam a possibilidade do sagrado, em um mundo de opressões, e a inevitabilidade do profano. Isso afasta o filme de uma visão comum, quando se filma personagens simples e populares, principalmente no Nordeste, de que o pobre é reserva ética do Brasil.

Claudio Quem filma assim tem culpa e faz filmes de culpa. Por isso mostram que o pobre é bonzinho. Mas a vida não é assim não. Esses diretores precisam primeiro resolver o problema da alma deles

ContraCamPo E quais filmes dos últimos anos retrataram o povo de forma satisfatória em sua visão?

Claudio Assis: Os de Eduardo Coutinho. Ele mostra o povo de forma honesta. Ele o respeita.

ContraCamPo O que não é respeitar?Claudio assis É você maquiar, tratar de maneira folclórica, glamouri-

zar a pobreza. Não há verdade. Fazem entretenimento próprio para enganar os outros. Como nós podemos imitar os americanos? Temos uma cultura rica. Eles fazem o cinema deles muito bem. Temos de fazer o nosso.

ContraCamPo O que você chama de imitar? Imita o quê?Claudio No formato, na maneira de contar a história, de construir

personagens, criar conflitos. Os americanos tem know‑how de contar história. Nossas histórias precisam ser contadas de outra maneira. Somos outro povo. Não temos de imitar para ser aceitos. Eu não quero. Não quero ganhar Oscar. Temos de ganhar o povo da América Latina, temos de ter conversa com esse cinema, temos de buscar nossa identidade, que um dia tivemos, perdemos e estamos atrás dela de novo. Mas a maioria quer ir para o Oscar. Isso para mim não interessa.

ContraCamPo Mas é importante o cinema brasileiro estar dentro da discussão de um cinema mundial. Para isso, é preciso se projetar para fora do país. Não competir ao Oscar, mas existir internacionalmente.

Claudio assis Claro. Mas temos de ter antes, uma política para chegar ao exterior. Sou contra fazer filmes com características que achamos ser as que agradarão lá fora.

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ContraCamPo O Nordeste é uma ótima matéria prima para esse tipo de cinema rechaçado por você.

Claudio Porque é folclórico, o Brasil rural e arcaico. Mas também tem filme urbano assim, imitação de Tarantino.

ContraCamPo Você se sente mais próximo do Cinema Novo, que tinha uma visão romântica e depositava no povo uma esperança de transformação social, ou do Cinema Marginal, que tem uma visão mais de impasse e não acredita mais em nada?

Claudio A menina da Folha de São Paulo me perguntou se eu queria ser o novo Glauber Rocha. Pô… Não quero ser ninguém. O cinema pode flertar com várias cinematografias. E quero fazer coisas diferentes, até um infantil, pois os infantis brasileiros são babacas e escrotos, um absurdo, tratam as crianças feito idiotas. Mas voltando à sua pergunta, acho que o filme aproxima-se mais do Marginal. Não pensei em fazer assim, mas trata de uma marginalidade. E é marginal também, pelo preço que foi. Deve ser mesmo uma nova leitura do cinema marginal. E isso me agrada muito

ContraCamPo Mas a proximidade com o Marginal talvez esteja em uma visão de impasse. Há um grande bode, uma grande ressaca. Há até textos em off em que expressam ideias sobre uma falência da esperança. Principalmente no texto do padre que não vê mais sentido em nada.

Claudio É. Mas deixa eu te contar uma coisa. Aquela cena em que o Chico Diaz entra no templo evangélico, sabe? A gente entrou filmando lá sem pedir autorização. Ele vinha vindo pela calçada e fomos entrando filmando. Não estava previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no templo, com o povo gritando “sai satanás, fora capeta”, aconteceu de verdade. É uma loucura o que a religião faz com o povo. Ela acaba com as culturas. Não permite que você beba, não permite que você dance. Em todo o canto, tem essa peste. Por isso o filme tem tanta igreja.

ContraCamPo Quais as dificuldades adicionais para um nordestino fazer cinema no Nordeste?

Claudio Todas. Temos de levar tudo para lá. Não temos caminhão gerador, câmera 35mm, técnicos suficientes. Tem uma câmera 16mm, mas que não é, não dá para usar. Não tem nada, nem na Paraíba, em Alagoas, no Ceará. Na Bahia, tem uma Super 16mm, boa, mas é só. Isso impossibilita a formação de mão de obra. Temos de importar tudo. Por isso quando o equipamento chega lá, a gente aproveita para fazer alguma outra coisa.

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ContraCamPo Amarelo Manga gerou algum outro trabalho com esse equipamento?

Claudio Eu e o Walter Carvalho fomos filmar na Paraíba um curta dele que está virando um longa. É um filme chamado Cinema, sobre cinemas abandonados do Interior.

ContraCamPo E a dificuldade de se captar, estando em Recife?Claudio É um terror. Os governos abrem as pernas para os diretores

paulistas e cariocas para filmar no Nordeste, mas tratam a nós como coitadinhos e dão uma miséria para a gente. Também existe esse absurdo de, com o filme pronto, ser chamado de cinema pernam-bucano, não de brasileiro.

ContraCamPo Mas você é contra diretores fora do Nordeste filmarem no Nordeste?

Claudio Seria burrice e maniqueísmo achar isso. Sou contra é privilegiar os de fora e contra as visões deturpadas de nossa cultura.

ContraCamPo Como você conseguiu se viabilizar financeiramente nos seis anos em que ficou atrás de dinheiro para filmar?

Claudio É uma luta. Faço documentário, institucional, pesquisas, ganho aqui e ali, pouco, mas dá para viver. Tenho uma vida simples e não tenho grandes ambições. Quero apenas viver e vivo da minha profissão. Não quero “enricar”, mas quero viver melhor.

ContraCamPo Mas para viver melhor é preciso que os filmes tenham mais visibilidade.

Claudio No Brasil, é muito doido. Nos eua, menos de 10% do mercado é para os filmes estrangeiros. Aqui, nós temos 10%. E a soberania nacional, onde está? Era para a gente dizer: “aqui a gente só passa filme nacional e os americanos têm direito a 10%. Quer?”. Mas não. Todo filme americano tem a bandeira, o hambúrguer, o milkshake, fora a ideologia imperialista. Na televisão, está cheio de enlatado. E todo mundo aceita. Eles não querem só ganhar dinheiro, querem também dominar o mundo ideologicamente. É preciso botar ordem na casa e acabar com a bagunça.

ContraCamPo Seu filme custou R$ 450 mil. Não acha que alguns filmes excedem no orçamento?

Claudio Tem de ter um teto de R$ 3 milhões para filmes feitos com dinheiro público.

ContraCamPo Os diretores brasileiros têm fama de não irem ao cinema, não conhecerem o que está acontecendo no cinema mundial e não pensarem o cinema além dos próprios filmes. Você acha fundamental a formação como espectador antes de ir para a realização?

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41Claudio assis

Claudio Não tive escola de cinema. Fiz dois anos de comunicação e dois anos de economia. Minhas aulas de cinema foram as discussões nos três cineclubes que ajudei a organizar em Caruaru e em Recife. Mas não tenho memória para cinema. Vejo muito filme que, sem lembrar, já tinha visto. Conheço diretores que fazem citações, o Brian de Palma faz isso. Admiro esses caras, mas não saberia fazer, nem quero. Quando estou fazendo, tudo o que vi está lá. Isso vai contruibuir para meu trabalho, mas não de forma racional, que me leve a seguir essa ou aquela linha. Não quero essa memória para mim.

ContraCamPo E como foi a experiência como cineclubista?Claudio Projetei muitos filmes. Pegava o trem com o equipamento

para exibir filme na rua e em escolas.ContraCamPo Você tem esboçado um projeto de cinema a ser seguido?Claudio Meu projeto é fazer filmes nos quais acredito. Quero ser

verdadeiro. Tenho de acreditar em meus filmes. Mas tenho uma tendência a tratar as questões de frente, de cara, mostrar como a vida é, de preferência com questões ligadas ao povo, com as minhas ideias. Esse é meu universo, o meu caminho, isso é que bate na minha cabeça, sem visões românticas e idealizadas. Isso dá samba, dá maracatu, dá festa.

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entrevista kLeber mendonça fiLhopor Leonardo Sette

CinétiCa Como surgiu o roteiro e quanto de autobiográfico ou de você mesmo há nele?

kleber mendonça Filho O Som ao Redor é provavelmente um filme sobre um certo estado de espírito. De uma maneira geral, meus filmes talvez se dividam entre os que trazem experiências pessoais (Vinil Verde, Noite de Sexta Manhã de Sábado) e os que são observações pessoais (A Menina do Algodão, Recife Frio, Crítico). No fundo, é tudo a mesma coisa, talvez algo impossível de ordenar. Essa mistura de cenas vividas e cenas vistas, ou de cenas reimaginadas, me dá uma certa segurança. Outro dia, uma amiga, que já tem mais de 70 anos e um supersenso de humor, me disse que hoje em dia só atravessa a rua com o palhaço do Detran. Achei engraçado e muito real em termos de espaço público brasileiro, certamente no Recife. É só um exemplo, algo que ouvi, mas que me interessa pela verdade: o humor é natural, a ironia real, me pareceu uma boa história, ou um bom pedaço de história.

O filme, portanto, tem muita coisa da minha experiência não só com a ideia de espaços construídos, ou espaços ociosos, mas com temas que talvez sejam políticos. Eu acho que o roteiro veio de sentir um certo clima no Brasil dos últimos anos, e por consequência, ou reflexo, em Pernambuco. Me interessa a arquitetura como sintoma de uma sociedade que não é saudável, a arquitetura como diagnóstico brutalista, como algo que deu e está dando errado. Acho que meus filmes normalmente surgem como respostas, um pouco como um leitor que decide escrever para um jornal, revista ou site porque um determinado assunto o incomoda, ou o deixou com o desejo de colocar seu ponto de vista. Me interessa uma sensação de que a percepção do “pobre” e do “rico” talvez esteja mudando no país, ainda com o desprezo e o medo recíproco e histórico das camadas de cima e de baixo, se transformando em uma demanda maior por respeito, por parte das classes mais baixas, sem tanta resignação católica construída na falta de educação.

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43kleber mendonça Filho

Já sentia isso há um bom tempo, e eis que me vi de frente para um deadline do MinC em 2008 para projetos de Baixo Orçamento. Eu já não havia participado nos anos anteriores, acho que por me sentir ainda verde em relação a seja lá o que estava querendo fazer, mas achei que, desta vez, não me perdoaria se deixasse o prazo passar. Isso foi numa sexta-feira, o que me dava uma semana para escrever a primeira versão desse roteiro. Escrevi e saiu rápido. Eu não conseguia parar de escrever, pois eu mesmo queria saber como as coisas se desenvolveriam, o que iria acontecer nas próximas páginas, para aonde iria. Foi muito bom e extremamente desgastante emo-cionalmente. O roteiro ficou entre os 20 finais, não ganhou daquela vez, mas eu tinha o roteiro. É muito importante ter o papel em mãos e há uma diferença grande entre a ideia narrada aos amigos e esse monte de papéis com páginas numeradas. Ganhou no ano seguinte, mais desenvolvido.

CinétiCa Além desse artifício do deadline do MinC, como foi o processo de escrever algo mais longo?

kleber É como eu falei, escrevi em 8 dias, o que é muito pouco tempo para 80 páginas, e as coisas saem simplesmente, você ali escrevendo e tudo sai. Os personagens começam a conversar entre eles, e não é bem o que eu quero que eles falem, eles simplesmente falam. Eu acho que essa é a melhor escrita em qualquer coisa, em jornalismo, na literatura e no escrever um roteiro. Você simplesmente canaliza o que as ideias estão falando e espera que no dia, semana ou mês seguinte não ache tudo uma merda. É muito bom escrever.

CinétiCa Havia uma certa cobrança já, não é?kleber É natural e totalmente insensato. Desde o Vinil Verde (2004)

que as pessoas perguntavam quando eu faria o longa, uma série de cobranças… Na verdade, são cobranças sociais, não são cobranças estéticas ou narrativas, é cobrança, tipo, você está namorando e alguém pergunta “vão casar quando?”; aí você casa e perguntam

“vão ter filho quando?”. É a mesma coisa, um misto de carinho com curiosidade. A cobrança nunca leva em conta se você realmente tem o que dizer ou se você tem um roteiro. É só uma vontade bem genérica de ver um filme que dure mais do que 25 minutos feito por você, acrescida de uma admiração pelo seu trabalho, que é algo que respeito muito.

Escrevi o roteiro com 39 anos, hoje eu tenho 42. A rispidez com a qual escrevi o roteiro de O Som ao Redor mostra que eu tinha já muita coisa guardada. Não existia um bloco de anotações, tudo meio que…

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uma coisa puxava a outra… Dessa primeira versão até a da filmagem, tenho essencialmente o mesmo roteiro, o que aconteceu é que ele passou por pequenas expansões, ele agregou detalhes, e esse texto tem muitos detalhes. De qualquer forma, nenhuma cena caiu do roteiro original, elas foram expandidas em relação à primeira versão.

Isso das locações tão próximas de você não aparece apenas nesse novo filme, está também em Eletrodoméstica, Enjaulado, Vinil Verde. Só que dessa vez havia caminhões com equipamento em torno do teu prédio, muito mais gente trabalhando, durante muito mais tempo – enfim, dava a impressão de que você estava fazendo um longa-metragem no teu próprio jardim.

Eu já ouvi algumas vezes que eu supostamente adoro meu bairro, Setúbal, por sempre retratá-lo. Esse bairro, na verdade, é onde eu tenho a minha casa, que eu adoro, é a minha casa. O bairro, no en-tanto, ilustra tudo o que há de errado na vida em comunidade hoje no Recife, ou no Brasil, da casta que é a classe média, média alta. É um bairro de cimento e concreto onde vizinhos podam árvores que dão farta sombra no verão porque as árvores sujam o pátio com folhas e mangas. Os muros altos de prédios de 25 andares tornam a coisa toda inóspita, como se você estivesse sobrando na rua. As casas já foram, ou as últimas estão sendo demolidas. É claramente uma comunidade dodói, cuja ideia de arquitetura se resume a barrar o elemento externo e proteger quem está dentro, e a altura de uma morada seria o escudo mais natural e desejado. Por tudo isso estar do lado de fora da minha janela, eu ainda sinto o desejo de retratar isso, comentar isso.

De qualquer forma, é muito bom poder gravar um som para a fase de montagem do mesmo ponto de vista da câmera no filme, ali a cinco metros do meu computador. É bem orgânico e as fronteiras entre imaginação, lembrança afetiva e registro factual ficam muito borradas. Enfim, é algo que tem aparecido numa leva de filmes pernambucanos (Menino Aranha, de Mariana Lacerda, Eiffel, de Luiz Joaquim, Um Lugar ao Sol e Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, Recife Frio) que nunca foi coordenada em reunião ou projeto, cada um com um olhar distinto sobre o mesmo tema: a cidade. Como tem ocorrido, são filmes totalmente diferentes entre si, isso é maravilhoso.

CinétiCa Você me contou que reviu todos os filmes de Tarantino antes de filmar, explicando que era mais pra se contagiar pela alegria de filmar que eles transmitem, não pela estética. Além disso, viu outras coisas?

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45kleber mendonça Filho

kleber Eu tinha chegado de Cannes e entrei direto na pré-produção de O Som ao Redor. Estava saturado, de certa forma, não sei se de maneira boa ou ruim. A coisa da energia dos filmes de Tarantino para mim era importante, e os filmes dele têm esse aspecto absolutamente encantador. Revi todos em blu-ray, foi incrível. Juntando ao fato de que nenhum filme dele, nem de longe lembra nenhum filme meu, me pareceu a má companhia perfeita para quem está prestes a filmar. Para além disso, eu não tenho muito como falar sobre referências específicas. Eu já agradeci nos meus curtas a Carpenter, Marker, Monty Python e De Sica, agradecimentos discretos ali no final, mas que viraram faróis de milha em relação a algumas interpretações desses mesmos filmes.

Em O Som ao Redor, estou pensando em deixar tudo mais lacô-nico. Tudo dando certo, o filme será bem claro nas suas intenções, ou, melhor ainda, perfeitamente turvo em relação ao que ele é, ou de onde veio. É lindo quando o observador, ali sentado no cinema, enxerga possíveis laços entre o filme visto e filmes do passado. Mas o assunto partir do artista diretamente pode moldar de maneira muito dura o olhar do observador, e isso é algo que quero evitar, com certeza não nesse processo todo de fazer o filme. Mais uma vez, Tarantino parece sair ileso ao falar tanto sobre suas próprias referências, mas o caso dele, outra vez, é raríssimo. Pensando bem, ele não saiu ileso não, falou demais várias vezes.

CinétiCa Na base de produção (que ocupou um casarão antigo que já ostenta a placa do edifício que será construído em seu lugar) havia uns cartazes de filmes colocados nas paredes. Houve alguma ideia na hora de escolher tal ou tal cartaz, em tal lugar da casa?

kleber Era mera decoração com minha coleção de cartazes encostados ao longo dos anos. Achei que seria uma maneira de decorar a base com o próprio cinema, criar um clima para toda a equipe. Sei lá. Me agrada a ideia de você ser recebido por Mad Max ou Pam Grier grandona no cartaz de Jackie Brown (1997), mesmo que os filmes não tenham nada a ver com esse filme que estávamos fazendo. Foi muito bom, a base era um lugar sensacional.

CinétiCa Como foi a experiência com os atores?kleber Foi algo que eu nunca havia tido nessa escala, moldar o drama

através da repetição e do tempo, com muita conversa boa sobre a vida. Direção e correção também. Mas eu tive sorte porque terminei traba-lhando com o que acabou sendo o mix perfeito de poucos grandes atores profissionais e outras pessoas que não eram exatamente atores,

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mas que pareciam desde sempre entender as situações humanas do filme. Escolhemos um grupo de pessoas que, além de atuarem, têm uma inteligência de vida. É algo que você percebe no primeiro

“teste”, confirma no segundo e segue encantado nos ensaios e na filmagem. Aliado a isso, o trabalho feito com Leonardo Lacca e Amanda Gabriel, preparadores de atores comigo. Um começava a frase, eu e o outro terminávamos, muito bom, trabalhando com os atores e com os rascunhos de cenas.

CinétiCa Com todo mundo, com todas as cenas, você pôde ensaiar?kleber Com todo mundo, em 90% das cenas. Algumas cenas ficaram

descobertas, mas até pela confiança que eu já tinha no ator por causa dos outros ensaios. Quando estava tudo enquadrado e a luz pronta, e Clara (Linhart, assistente de direção) dizia “vamos ensaiar”, eu dizia “não, a gente vai de primeira”. E eu rodei de primeira várias cenas com alguns atores. Com outros não, a gente precisava ensaiar por várias questões – o próprio ator, o foco e a câmera. Mas em várias cenas eu queria o primeiro take daquele ator. Mas ensaiar previamente, claro, é absolutamente essencial porque é ali que você descobre a cena, através do ensaio e da conversa, é aí que você e o ator ganham confiança na cena, é onde eu confirmo que a cena é do caralho, ou que ela não presta. E ele entende exatamente o que ele está fazendo ali.

CinétiCa Você elencou Gustavo Jahn, de Santa Catarina, para um dos personagens principais. Como você chegou à escolha dele, por exemplo, que não é um cara de Recife, se é que isso é uma questão?

kleber Eu gostei do rosto de Gustavo já nos filmes que ele e Melissa (Dullius) fizeram, Éternau (2006) e Triangulum (2008), gosto do jeito dele, é uma presença forte, natural. Além disso tudo, ele tem essa cara de quem acompanha as coisas sacando os códigos, vez ou outra com aquele pânico controlado. Gustavo tem também uma cara de cinema, “a movie face”, e uma inteligência de vida. Iran-dhir (Santos) é outro, que sorte tê-lo no filme. Acompanhava-o desde Amigos de Risco e Baixio das Bestas. Foi incrível trabalhar com ele. Aconteceu de ter muita gente que parecia entender o que eu estava falando, ou que fingia saber o que eu estava propon-do! Maeve Jinkings, WJ Solha, foram muito assim, Irma Brown muito assim, Lula Terra, Yuri Holanda. Foi um privilégio ter essas pessoas no filme.

CinétiCa Você classificaria o filme como realista? Para além disso, sabendo da tua admiração por esse novo cinema romeno, como você

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vê o filme com a ligação com o real, com o atual, com esse realismo cru, com essa tridimensionalidade com os personagens e não com o representativo social?

kleber Eu gosto muito do cinema romeno, é tão livre de bullshit num mundo que valoriza tanto a frescura como prova de autoralidade. É um cinema tão cheio de pontos de vista pessoais, lembranças de época, humor sentido, um senso de história vivida. Os filmes do Corneliu Porumboiu (A Leste de Bucareste e Policial, Adjetivo), por exemplo, são para mim fontes de identificação enormes. Eu, no entanto, não sou romeno. Sou brasileiro e pernambucano, e uma afinidade com o cinema romeno seria uma feliz coincidência de relações afetivas compartilhadas.

Eu me interesso pela união do cinema com o mundano, e veja que aí, às vezes, o cinema implica trazer o elemento fantástico que, para mim, é sinônimo de cinema. De qualquer forma, aliar-se ao mundano é essencial. O mundano absoluto, como as cozinhas das pessoas, as salas de estar ou áreas de serviço. O problema que eu vejo, e que me desagrada em boa parte dos filmes realistas, mas nunca nos romenos, é que o mundano é tratado de maneira mundana. Não sobra muito interesse, não é mesmo?

É bom poder usar a realidade como base e dar uns tapas bem dados, uma cusparada na cara aqui, um empurrão ali. Dependendo de como você enquadra aquela cozinha absolutamente normal, ela pode se transformar numa cozinha de cinema! De algo que você espera ver numa tela larga, ou pelo menos que eu gostaria de ver numa tela grande. A visão de cinema, para mim, não está tanto num set de estúdio feito sob medida para o filme (pode estar também, aliás), mas em como você transforma o mundano sob suas próprias especificações, no seu próprio cinema, no seu próprio set.

Existe uma escola americana do cinema fantástico onde isso é potencializado com o cinema de gênero, e quando funciona, o prazer é muito grande. Halloween (1978), do John Carpenter, que se passa numa vizinhança totalmente real de classe média, ou ET (1982), de Spielberg, ou A Hora do Espanto (Fright Night, 1985), do Tom Holland, onde dá para quase sentir a tinta descascada na janela de madeira, mas onde temos uma história de vampiro. É fascinante essa união, que eu já experimentei em A Menina do Algodão (2002, com Daniel Bandeira) e Vinil Verde, filmes de gênero, mas “realistas”, ‘agredidos’ aqui e ali pelo ‘fantastique’.

CinétiCa É difícil filmar de maneira realista?

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kleber No realismo, o primeiro obstáculo a ser vencido é parar de abrir uma cerveja toda vez que você filma alguém bebendo um copo inteiro de água em 35mm. Pode ser em digital também. Realismo não é apenas isso, muito embora, quem sabe, talvez estejamos falando de um belo personagem bebendo um maravilhoso copo d’água. Não há manual para isso, no final das contas você termina agindo como curador de situações, de enfoques, é tudo muito intuitivo. Durante a filmagem, eu sempre tentava relaxar e esperar que desse tudo certo com a conivência dos atores. Tudo dando certo, o observador irá não apenas entender mas também reconhecer a importância dos momentos que foram selecionados, algo não muito distante de organizar um grupo de filmes no Cinema da Fundação (nota do entrevistador: Kleber é programador da sala há 13 anos), ou no Janela.

De qualquer forma, uma ideia de realismo que me atrai, dentro de uma visão literal do termo, é estabelecer uma ligação entre o mundo real, o mundo filmado, remixado por mim e pelos meus colaboradores, e aquele indivíduo que está entre as duas coisas: o espectador. As reações na época do Eletrodoméstica (2005) me estimularam muito a perseguir esse tipo de enfoque, pois ouvir alguém dizendo “É exatamente isso…” em relação aos modos, ao look, à ideia de calor, ócio, Brasil, Recife, à própria reinterpretação da realidade vivida.

CinétiCa Foi curioso visitar aquele set noturno na praia e perceber Pedro (Sotero) como diretor de fotografia, com aquela câmera Aaton 35mm em cima de uma grua, porque me lembrei dele como ator improvisado no Noite de Sexta Manhã de Sábado, sete anos antes, diante de uma camerazinha digital operada por você mesmo naquela mesma praia. Como você se sentiu dentro dessa mudança de estrutura técnica e orçamentária?

kleber É como um músico que sempre fez coisas legais com um tecla-dinho Casio dos anos 80 e de repente, tem o Casio e três Yamahas e um Moog num estúdio, incluindo um piano de cauda. Se tudo correr bem, o artista irá se sobrepor aos meios. Eu sempre fiz meus curtas da maneira que eu quis e pude fazer, e isso envolvia meter a mão na câmera e fazer o filme, fotografando-o, seja em vhs, hi8, mini-dv, foto still, hvx-200, 5d, etc. Curiosamente, eu nunca me apresentei como fotógrafo, mas como ‘o diretor que fotografou o filme’. O Som ao Redor não é esse tipo de filme. Eu sempre achei que ele seria 35mm 2:35:1, é assim que eu o via. Significa que eu estou tecnicamente abandonando os formatos anteriores para chegar a um novo formato.

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Tratei tudo sem nenhuma cerimônia, dentro do possível. Nesse sentido, eu temia algo que vem da própria estrutura do fazer cine-matográfico e que me irrita muito só de ouvir falar, que é um senso de hierarquia dos formatos, algo que eu vivi duramente nos anos 90, quando meus filmes eram vistos como meros “vídeos”, enquanto eu os enxergava como obras, independentes de qualquer formato. Ou seja, antes de qualquer coisa, de serem bons ou ruins, eram “vídeos”. Uma forma peculiar de racismo aplicada ao cinema. Nessa década de 2000, já vi o oposto, pois o Eletrodoméstica foi rodado em 35mm e ficava no ar um “respaldo maior” em relação ao filme por causa disso. Isso já deveria ter caído em desuso, mas permanece em alguns espaços. Portanto, em O Som ao Redor criou-se uma mística em torno do 35mm/Scope 2:35 e as pessoas me sugeriam nomes bem graúdos para a fotografia, que eu respeito muito e admiro, mas que não me interessavam, talvez por limitação minha.

CinétiCa Lembro-me de como você hesitou na escolha do fotógrafo, você tinha um certo medo de…

kleber Eu não conhecia de perto essas pessoas e não queria, em hipótese alguma, lutar pelo meu filme considerando que, na maior parte dos meus trabalhos anteriores, era eu quem mexia na câmera e fazia o que bem entendia. Eu não queria medir autoridade com ninguém nem contra-argumentar mais do que o que seria natural com alguém que está administrando a câmera, se isso realmente ocorresse, e que teria, em tese, mais experiência do que eu. É claro que a colaboração maravilhosa com o fotógrafo é uma coisa desejável, mas falo de diferenças de visão mais próximas do conflito relaciona-das ao tom: o enquadramento. A princípio, sou eu quem enquadro. Obviamente que por mais paranoico que tudo isso possa parecer, digamos que tenho alguma experiência de acompanhar filmes de amigos, colegas, e das histórias vistas, contadas, ao longo do tempo.

Surgiu então a ideia, coerente com o que eu sempre fiz nos meus filmes, de trabalhar com alguém que é talentoso e que é um grande amigo, Pedro Sotero. De Amigos de Risco, Um Lugar ao Sol, Laura (2011) e do Mens Sana in Corpore Sano (2011), Pedro tem uma energia incrível e já mais do que comprovada, além de ser um fotógrafo zero frescura. Nos entendemos muito bem, sempre, como amigos. Bizarramente, trabalhei com Pedro em 2003 no Noite de Sexta Manhã de Sábado, que eu fotografei em mini-dv (1 CCd!), e ele era ator. Em 2009, ele fez uns 30% das imagens de Recife Frio em hd. Somos amigos há dez anos.

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CinétiCa Foi a primeira direção de fotografia em película dele?kleber Primeira direção de fotografia em película, mas ele já tinha a

segurança profissional a partir de muitos trabalhos, e o resultado é excelente, totalmente dentro do que eu queria. Nos cercamos de uma equipe excelente. Pedro trabalhou de maneira muito próxima com Fabrício Tadeu, que é um puta operador de câmera. Fui vendo como ele é bom quando eu dirigia a cena, mas nunca os pequenos respiros que a câmera exige durante um plano, e estava tudo lá, com o ator, com a cena. Fabrício é ninja, e Gustavo Pessoa, no foco, foi muito bom. Me senti tranquilo. Claro que existiam medos quando começamos, eu sempre conversava com Pedro e Fabrício sobre en-quadrar scope 2.35. No final, veio de maneira muito natural, numa era onde a tv hd dita uma nova janela, o 1.78. Ouvimos dez vezes temores de técnicos e produtores amigos sobre o uso do 2.35 como sendo inadequado para vendas na tv… Não seria por isso que eu abandonaria o formato.

CinétiCa E decupagem dos planos, você preparou bem antes ou foi muito na locação, na hora?

kleber Eu preparei no roteiro, nos ensaios e nas visitas de locação. Tinha sempre comigo minha câmera para fotografar e gravar em vídeo planos e set‑ups de câmera. Em alguns casos, a locação mudou para melhor. Era melhor que o roteiro. Eu tinha já tudo bem encaixado na minha cabeça, mas sem storyboard. No último dia, eu mostrei a Pedro uma imagem feita três meses antes de filmar à vera, na locação, e era exatamente a mesma cena rodada para o filme. De certa forma, o filme estava esperando sair já há um bom tempo.

CinétiCa Você chegou a filmar com duas câmeras simultaneamente?kleber Algumas cenas sim, mas a segunda câmera, uma bl Evolution,

era uma espécie de reserva/segunda unidade, e virou titular nos últimos dias, pois a principal foi para A Febre do Rato, de Cláudio Assis, que começou a filmar também no Recife. Conseguimos uns takes importantes com a bl, que é pesadona, acho que dos anos 80. A Aaton Penelope era a câmera principal, com duas perfurações, formato Techniscope, que permite que um mesmo rolo de 120 metros dure cerca de dez minutos e não quase cinco na janela 1: 2,35, como nas câmeras convencionais.

CinétiCa E com relação à textura, paleta de cores, digo, à imagem em si, fora enquadramento e movimento de câmera, o que vocês buscavam?

kleber A única coisa que eu falei pra Pedro foi que queria que esse filme tivesse uma imagem associável a uma ideia de “cinema”, tipo

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‘movie‑movie’, mas que fosse também naturalista. Sobre paleta de cores, é algo que me lembra perguntas sobre “o arco do persona-gem”… Se a superequipe de Juliano (Dornelles) na arte conseguiu traçar paletas misteriosas que eu não fiquei sabendo, e que eu nem percebi, maravilha. Confiei neles. Minha energia foi mais em outras áreas, como a direção de arte no sentido de objetos, feeling para os espaços, e o quadro em si. Se me parece bom e natural, está tudo certo. Se os três personagens em pé conversando não estão todos de vermelho, beleza.

Não sei se esse é um filme onde um sentido orquestrado de cores aqui e ali é algo que me interessa, pois esse tipo de realismo já parece vir nas situações e como é enquadrado. Talvez num outro filme sim, e um exemplo óbvio é Recife Frio, onde eu evitei sol, céu azul e as cores berrantes da nossa cultura. Em O Som ao Redor, estava tudo liberado: sol, chuva, nuvem e as cores berrantes daqui. O que também me levou a não querer filmar com a red (nota do entrevistador: câmera digital de alta definição, usada em A Rede Social, por exemplo). Recife tem uma luz muito dura e eu e Pedro achamos que não era o que queríamos. Esse nosso branco total do sol de uma hora da tarde, em digital a tendência é ficar bem, sei lá, digital. Não era para esse filme. Terminou que incorporamos muitas mudanças de luz nos planos, eu adoro isso, reflete muito da expe-riência de luz que tivemos filmando em julho aqui no Recife. Tudo muda muito rápido, de sol a nublado com sol e chuva. Numa única tarde, rolou um stress que hoje é engraçado, mas realmente parecia que São Pedro estava de sacanagem, brincando com o interruptor.

CinétiCa Vocês não assistiram a filmes juntos ou coisas assim? kleber Mais pelo prazer e as good vibes de ver um belo filme do que

“olha aí, vamos fazer algo parecido”. Lembro que vimos Amantes (Two Lovers, 2008), do James Gray, que se passa em Nova York no inverno. Vimos Poltergeist também, onde aflorou mais uma vez o debate em torno da autoria do filme (Spielberg ou Hooper?), e constatamos chocados o quão bem fotografado é o filme.

CinétiCa E o som, afinal? kleber É curioso que muitos me perguntam sobre o som e o peso

do título – O Som ao Redor – parece gerar a expectativa de que teremos um filme espetacular sonoramente, e não sei se é bem por aí. De qualquer forma, adoro trabalhar com som e, sim, quero que soe bom, mas bom o suficiente. Eu trabalhei com Nicolas Hallet e Simone Brito. Queria trabalhar com eles há muito tempo porque

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acho que há ali uma filosofia diferente de gravação do que eu tenho ouvido do cinema brasileiro em geral. Engraçado que nos meus filmes eu sempre fiz o som, a gravação do som e a montagem, e essa foi a primeira vez que trabalhei com alguém que faz o som e eu não tenho que me preocupar com muita coisa. Foi bom. Tinha tido uma experiência incrível com Nicolas quando fiz a montagem de som de Muro (2008), de Tião, com Emilie (Lesclaux). O material que recebemos era tão bom que gerava problemas tipo “E agora? O que fazer?”! Não tive muita dificuldade de escolher Nicolas… Mas com as possibilidades que equipamentos baratos te dão hoje, como esse gravador digital Zoom, alguma coisa eu mesmo tenho gravado durante a montagem, especialmente ambiências.

CinétiCa E agora você está montando o filme… Recife Frio você montou com Emilie, e agora você chamou João Maria que é um colaborador já de outros filmes.

kleber Trabalhei com João Maria em Enjaulado (1997) e Eletrodo‑méstica. João não participou da produção desse filme, o que trouxe um desapego interessante pelo material, sem saber que tal cena foi trabalhosa, que choveu naquele dia, etc. Ver na cara dele o entu-siasmo ou a indiferença por determinadas imagens é importante, pois é uma leitura mais pura, e isso era importante para mim. E João é uma figura.

CinétiCa E você estava me falando dessa coisa do material que veio para a montagem todo telecinado em hd e o quanto isso é precioso pra você.

kleber Recife Frio já havia sido montado em hd, seu formato nativo, e tenho um sistema de edição conectado a um projetor Full hd. É duro aceitar passar um ano montando um filme em baixa resolução, um boneco feio do material que você terá no final do processo. Portanto, pedimos à Mega para receber tudo escaneado em hd. Além disso, posso projetar isso grande, sentir como está o material e os detalhes. Fazemos isso depois de terminar uma cena. Há coisas que você só descobre quando vê o filme projetado, pois a tela do computador engana. A Mega foi superparceira nisso, e é o primeiro filme no Brasil com as brutas em hd no formato Apple Pro Res 2k, que não é tão pesado como poderia ser.

CinétiCa E algum pensamento pra isso? Para a montagem? kleber Eu sempre digo que todos os processos me interessam no

cinema. E todos são muito fortes. Eu nunca havia passado por uma filmagem como a que tivemos em julho e agosto, misto de circo com

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53kleber mendonça Filho

acampamento e gulag. De qualquer forma, agora estou na montagem e tem sido igualmente punk, mas de maneira diferente. Em primeiro lugar, acho que esse processo deve necessariamente ser longo. Por limitação minha, eu preciso de muito tempo, e já estamos no nono mês. Entre outubro e dezembro, é verdade que a coisa foi meio on‑off, mas de janeiro pra cá, tem sido intenso.

Primeiro, montamos o filme que veio do roteiro, editamos cenas por puro prazer, começando pelo meio do filme, depois voltan-do para o início, depois indo para o final. Aliás, não sei se isso é uma coisa boa. O primeiro corte foi um monstrengo deselegante e lento. Depois, emagreceu o filme, descobrindo o que realmente há de importante. O próximo foi abandonar tudo e voltar depois. Atualmente, estou sozinho com o filme, num processo de imersão muito forte. Fazer intervenções que surgem de um desrespeito sadio pelo roteiro e de ideias que vêm com o tempo de maturação que estou tendo. Não sei quanto tempo ainda terei pela frente. É um processo duro. As sessões de montagem acabavam por volta das 21h, mas minha cabeça continuava, é estranho, você fica um pouco autista. Soluções para uma cena, às vezes, vêm durante o banho ou indo à padaria comprar pão. É também um período de muito entusiasmo, decepção, medo e muita satisfação. Vez ou outra, dá água na boca. Aos poucos, chegam os amigos, e sempre digo que quem tem amigo bom não faz filme ruim, e duas frases importantes ditas por eles são: “por favor, tire isso” ou “por favor, deixe isso”. No final das contas, o mesmo medo de sempre, de todos os filmes:

“será que vai prestar?”.CinétiCa Por você também ser crítico e programador de cinema há

mais de dez anos, isso faz você imaginar ou projetar o lugar do teu próprio filme dentro do cinema brasileiro, por exemplo?

kleber Eu não posso me preocupar com isso. Filmes estão numa dimensão à parte, são matéria orgânica, e se for um filme vivo ele vai agir como a boa bactéria que é (ou que virá a ser) e agir sobre o próprio cinema e nas pessoas, se alojar nelas sem muito esforço da minha parte, exceto por todo o trabalho que deu para fazê-lo. É a melhor coisa que pode acontecer.

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entrevistas54

1:15 amkleber alô me oikleber cheguei em casa e esqueci de lhe falar de grande e real “influência”me ótimo, diga

1:16 am kleber um livro que achei num sebo de Roterdã em janeiro caso claro de

“energia” pura sem coincidência. Defensible Space Crime Prevention Through Urban Design de Oscar Newman, um urbanista e arquiteto sobre mudanças no estilo de vida das cidades americanas fim dos anos 60 e a ideia de espaço privado e público

1:18 amme que massa kleber eu li 2 vezes, é muito interessanteme mas em que ponto vc chegou nesse livro, foi antes de escrever o

roteiro ou depois servindo mais de apoio?

Entrevista gravada no Café Castigliani, no Cinema da Fundação (Recife), complementada e editada via emails e chat.

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55kleber mendonça Filho

1:19 amkleber não, foi há 8 meses apenas, já tudo bem encaminhado mas

formalizou o q eram observações minhasme entendo kleber através de estudos e pesquisas e interpretaçõesme sim, entendi que ótimo issokleber tava lá, de bobeira, fora de catálogo, 9 euros

1:23 amme a capa é como? kleber deFensible sPaCe vermelha, letras garrafais me sem imagem na capa?

1:29 am kleber sem imagem.

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entrevista hiLton Lacerdapor Inácio Araújo

ináCio araújo Você tem sido roteirista por vários anos, desde pelo menos “Baile Perfumado”. Como sentiu a passagem à direção?

hilton laCerda Apesar de estar mais diretamente ligado ao roteiro, a direção sempre esteve presente em meu horizonte. Desde os curtas que dirigi (Simião Martiniano, O Camelô do Cinema e A Visita), os documentários para a tv e o próprio Cartola – Música Para Os Olhos (2007), onde divido a direção com Lírio Ferreira, o que sempre me guiou foi o processo narrativo do cinema. – e isso levando em consideração todas as nuances que a narração pode trazer. Na grande maioria dos roteiros em que trabalhei, acredito que a cumplicidade com a direção e a produção foi fundamental para a construção dos projetos. E quase sempre estou no set, conversando com a direção, com o elenco… Acho que é uma mecânica que interessa para nosso grupo, quando isso é possível. E isso para, juntos, aproveitarmos o máximo nossas contribuições. E no meio de tudo o embate, a defesa, a problemática.

Mas a natureza do roteiro é bastante diferente da direção. E no filme o que mais interessa é onde você coloca seu olhar, seu enqua-dramento, sua noção narrativa. Então, passar de uma função para outra, principalmente na complexa produção de um longa-metragem de ficção, me puxou para uma responsabilidade mais apurada. Mais autônoma. E muito mais excitante. Costumo brincar dizendo que ago-ra já não posso culpar possíveis deslizes do outro para me justificar.

A passagem do roteiro para direção tem, para mim, uma tomada de posição. E o Tatuagem escrevi com essa intenção. Com a ideia de colocar ali minhas convicções narrativas e minha imensa paixão ao cinema brasileiro. Uma prestação de contas comigo mesmo e usando o público como cúmplice.

ináCio Vendo Tatuagem me pareceu um filme por tantos motivos distante e próximo ao mesmo tempo de seus outros trabalhos. Pró-ximo, por exemplo, de certo gosto iconoclasta do Claudio Assis. E ao mesmo tempo bem diferente, talvez mais próximo do último Pasolini…

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57hilton laCerda

Ao mesmo tempo, tive a impressão de uma estrutura bem livre, bem pouco roteirizada, no sentido de uma organização prévia estrita. Não estou certo do que digo, por isso pergunto como você vê seu novo trabalho, desse ponto de vista…

hilton A liberdade que tenho nos trabalhos com Cláudio Assis, que costumo usar como referência, pois temos uma produção mais contínua – pelo menos uma trilogia palpável – permeia algumas de minhas investigações com relação ao cinema e suas possibilidades. Mas claro que Claudio é uma personalidade muito específica, tem um furor imensamente criativo e iconoclasta. Ele é sua principal marca. E diante disso a paixão de trabalhar com ele passa por essa troca, por esse respeito de um libertar o outro em relação às suas funções. Mas mesmo aí tenho uma afeição muito grande pelo roteiro. Sei que está bem em voga a busca pela libertação das amarras da escrita, da criação no momento, etc. e tal. Mas não consigo escrever levando isso em consideração. Não acho que o roteiro cinemato-gráfico seja uma receita de bolo. Perco muita energia e atenção construindo detalhes, imaginando passagens, detalhando ambientes, dando formas a personagens… Não que isso seja uma fórmula, ou que deva ser cumprida por quem dirige. Provavelmente é um defeito de quem, quando jovem, gostaria de fazer cinema, mas não tinha instrumentos.

Tudo isso é para dizer que a estrutura na qual trabalhamos não foi “bem livre”, mas foi trabalhada para que o filme exalasse essa liberdade. Claro, estávamos mexendo com elementos que nos permi-tiam interferências muito interessantes. O próprio teatro anárquico, a utilização do público nas apresentações do Chão de Estrelas (este não sabia os números que veriam durante as filmagens; queríamos surpreender nosso elenco de apoio). Além de experimentar uma vivência entre o elenco – principalmente do grupo de teatro – que nos emprestasse uma intimidade maior que o tempo que tínhamos para prepará-los. E ali tínhamos atores, bailarinos, fotógrafos… E o grupo tinha participação ativa na construção do espaço, na exe-cução dos figurinos e fantasias. E o grupo, durante as semanas de preparação, montou os textos teatrais que estavam no roteiro. E isso foi um dado importante: trazer os atores pelo teatro, mas colocá-los numa dimensão cinematográfica.

E os atores trouxeram uma carga de participação muito impac-tante. Claro que várias passagens vieram da liberdade desses atores durante as filmagens, as gags, as brincadeiras… Não existia uma

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prisão, obviamente. Mas uma intenção muito clara de não perder de vista o que me interessava.

ináCio Como foi o trabalho com Irandhir? Foi a primeira vez, acho, que o vi fazendo travesti e achei extraordinário. O momento em que ele canta, é de uma força muito grande…

hilton Irandhir Santos é um ator com quem mantenho uma afinidade muito grande. Gosto muito de sua conduta, de sua entrega, de sua generosidade. Um animal cinematográfico bem robusto. É o tipo de ator que você conta como parceiro. Como parte dessa cumplicidade de que já falei anteriormente.

Quando escrevia o roteiro já imaginava Irandhir como o persona-gem Clécio. Ele só veio a saber disso quando o convidei para o papel. A partir daí, estreitamos nossa amizade, nossas conversas, nossas intenções. Ele foi uma peça bastante importante na preparação do filme e peça fundamental, junto com Amanda Gabriel – que nos ajudou na preparação do elenco – a excitar o resto do elenco em busca de uma tomada de posição sobre o que fazíamos. Ele provocava a ação do gesto na construção desse corpo político. Apesar de se passar no fim dos anos setenta, tinha uma discussão sobre pós-gênero que ele entendeu muito rapidamente. Parte importante de nosso projeto da corrupção do olhar.

ináCio Ainda a propósito desses momentos: o musical está bem pre-sente em Tatuagem, não? Mas não como instituição familiar. É uma espécie de musical a serviço da subversão, ou de subversão do musical, talvez… Ou ambos?

hilton Desde o início do Tatuagem, quando ele ganhou uma forma em torno de um grupo de teatro, o musical estava rondando nosso projeto. Claro que um musical subvertido, repensado como processo narrativo, mas que essa junção não tivesse uma leitura fácil. E que bebesse em alguns filmes brasileiros que tocassem nessa questão. E aí é bom lembrar, de maneira muito pessoal, como foram impor-tantes o Sem Essa Aranha (1970), de Rogério Sganzerla e A Lira do Delírio (1978), de Walter Lima Jr. na busca dessa atmosfera. E assim, subvertendo um gênero o colocamos a serviço da subversão.

Dj Dolores, parceiro de longa data, foi acionado para dar musi-calidade às ideias que estavam no roteiro. A maior parte da trilha teve que ser composta para ser interpretada nas filmagens. E todas foram gravadas ao vivo, no set. A única dublagem que temos é a da música “Álcool”, interpretada por uma transformista (Diego Salvador, integrante da trupe).

Apesar de Mair Tavares ter montado meus dois curtas e o Cartola, não é à toa que ele também assina a montagem do Tatuagem.

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ináCio Existem, ainda desse lado da subversão, alguns momentos bem fortes, em que chocar, parece ser o objetivo final, como no número final, o das bundas, ou no da transa entre dois homens. Parece que o filme, nesses momentos, visa, de maneira explícita, a tirar o espectador de sua letargia de espectador, de seu conforto. É mais ou menos isso?

hilton O que pode ser chocante para alguns talvez não esteja em meu rol de preocupações. Mas tenho a dimensão daquilo que demove um olhar mais conservador. E não pela violência. Acredito que nos dois casos que você cita, o da Polka do Cu e as cenas de sexo entre Jesuíta Barbosa e Irandhir Santos – com certo grau de ingenuidade no número musical e de afetividade nas cenas de sexo – existe o propósito de provocar o espectador a sair da letargia e do conforto. Podemos lançar mão de várias artimanhas para atingir um alvo, um interesse. E em cinema sempre me pareceu interessante como podemos nos constranger pelo outro. Como temos vontade de fechar os olhos para não sermos atingidos por determinada imagem. Mas aí duas conflituosas forças entram em cena. Uma mais reativa, que é a moral quando colocada em cheque. A outra, mais provocadora, que é nossa ética, quando colocada à prova. A tentativa do campo de batalha.

Tatuagem foi realizado com uma intenção bastante política no sentido de provocar, de estabelecer discussão que não esteja na superfície do que você vê.

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entrevista marceLo LordeLLopor Inácio Araújo

ináCio araújo Seu filme foi concebido originalmente como um curta-metragem. Quando você sentiu que seria mais conveniente ampliá-lo?

marCelo lordello Quando entendi que o roteiro do curta não repre-sentava mais quem eu era no momento em que pude realizá-lo. Eles Voltam, inicialmente, foi um roteiro que escrevi em 2006. Basicamente o curta seria o prólogo do longa-metragem que o filme se tornou, mas com algumas diferenças. Os protagonistas do curta seriam ambos homens e o filme seria sobre como esses pré-adolescentes lidam com o abandono, a solidão, a sobrevivência e uma compreensão nascente de autonomia. Ganhei um prêmio de realização pelo roteiro, mas demorei 3 anos para realizá-lo. Nesse ínterim, muita coisa aconteceu. Fiz outros filmes que ampliaram minha visão sobre cinema e minha vontade de pesquisa de linguagem e temática. Me casei, tive um filho. Vivi. Quando retomei o roteiro do curta, sentia que ele não me representava mais. Me coloquei num desafio de reescrevê-lo para ver no que dava. Em pouco tempo tinha um calhamaço de quase 110 páginas, que precisava passar por uma pesquisa in loco para poder se sustentar como roteiro de um longa-metragem.

ináCio Os tempos longos do filme nos ajudam a desenvolver hipóteses e mesmo estabelecer uma ligação com o filme. Detestamos os pais por desaparecem, em certo momento. Depois, detestamos o irmão, que também desaparece. Da mesma forma, o menino de bicicleta, que parece ameaçador no primeiro momento depois se mostra dife-rentemente. Como você pensou nessa organização dos sentimentos do espectador, que afinal é o que cria vínculos com o filme?

marCelo Sempre acreditei muito na força do tempo/duração do cinema. Me alegra muito ver filmes de cineastas que sabem nos conduzir temporalmente suas imagens e criar vínculos entre o espectador e seu universo particular. Um ato de “esculpir o tempo” para que possamos senti-lo, valorizá-lo e nos abrirmos pra ele. Quase um ato

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61marCelo lordello

político de nós, que trabalhamos com o tempo, num mundo em que a duração e a sensação do tempo são por demais negligenciadas. Sabia que era importante criar esse elo entre a experiência de Cris e o público. E o que basicamente ela vivencia durante toda sua jornada é compartilhar momentos com outras pessoas, em fugidios mas representativos encontros. Os filmes de Ozu, entre outros, me ensinaram muito sobre isso.

ináCio Ao mesmo tempo, não chegamos a sentir na menina, mesmo quando passa a noite sozinha, uma sensação de desamparo. É como se ela estivesse entregue à situação. No entanto, parece haver ali uma opção sua por evitar a todo custo uma, digamos, solidariedade excessiva com a garota.

marCelo Acho que dois pontos foram importantes quando intuitiva-mente pensava o filme enquanto o fazia. Pra mim, Eles Voltam tem um caráter narrativo fabular. O filme nada mais é que a história de um ser em formação despreparado para o mundo que surge em sua frente. Ela passa por esse desafio enorme de ter que sobreviver enquanto volta pra casa. Cabe a ela tirar proveito dessa situação ou ficar estagnada, sofrendo e esperando, sem perceber a potência do mundo que a convida a se jogar nele. Optei pelo primeiro caminho. Nunca quis fazer um filme que apelasse melodramaticamente para a situação de abandono daquela garota, achando que ali criaria um vínculo com o público. Acho que se esse vínculo surge entre Cris e o público no decorrer do filme, é porque ambos compartilham a mesma vontade interiorizada de se arriscar e buscar sua própria jornada.

ináCio A menina, sobretudo ela, executa um percurso para chegar a si mesma. A ideia de uma grande aventura. É um caminho de Ulisses, de Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), de certa forma. Você pensou em uma aventura que, além de física fosse espiritual?

marCelo A Odisséia, de Ulisses, foi uma referência muito forte quando escrevi o roteiro do longa-metragem. Por trabalhar com um cinema calcado também na narrativa, acaba sendo natural que os livros que li surjam de alguma forma nos roteiros que escrevo. E gosto também de pensar estruturalmente os meus filmes baseados em formas/gêneros narrativos presentes em obras que li durante minha vida. Sobre esse lado espiritual, acho que se ele existe (isso vai da interpretação de cada um), ele é consequência de algumas escolhas da forma de realização do filme. Quando revejo o filme (e aqui te falo enquanto público do próprio filme, que pra mim só aconteceu meses depois de ele ter sido parido), em alguns momentos, sinto uma

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energia que excede qualquer tipo de concepção criativa ou intenção racional do filme. Descubro coisas nele que me surpreendem . E acho que isso se deve ao fato de ele ter sido quase todo interpretado por atores não profissionais. Pessoas das realidades que o filme tenta representar, que colaboraram e muito com o filme, encenando e expondo corpos, falas, gestos, histórias, vivências na construção de seus personagens e de Eles Voltam. E essa energia, que disse há pouco, aparece pra mim justamente nas cenas dos encontros que o filme propiciou pras personagens/pessoas. Um tipo de sinceridade.

ináCio O que é a família? O que é a vida familiar? Esse conjunto de silêncios e afetos, em que medida fez parte das tuas preocupações no filme?

marCelo A família é uma instituição que permeia todo o filme. Os pais que somem, o irmão que foge, as famílias que acolhem Cris, a família renegada ou hiperprotetora. Pra mim o ambiente familiar é um ambiente formador do ser humano, com seus prós e contras. Digo

“contras” porque é natural na nossa trajetória querermos expandir ou nos libertar de determinadas amarras familiares: preconceitos, limitações, imposições, agressões ou proteções. Mas o que me in-teressa também é o paradoxo relacionado com o conceito de amor dentro da família. Um amor que cria, que educa, mas que, às vezes, quer ter pra si e não permite o pleno desenvolvimento do outro e sua autonomia, como é o caso de Cris. E que, às vezes, não percebe o mal que faz, a partir dos seus equívocos e erros, camuflados de amor.

ináCio Ao mesmo tempo, a família é um grupo perverso. Ela fecha as pessoas em si mesmas, num círculo restrito. Os pais, sem querer naturalmente, ofereceram à menina (sobretudo) a oportunidade de se abrir para o mundo. Até que ponto você considera isso necessário?

marCelo Acho essencial darmos oportunidade aos nossos filhos de se jogarem no mundo. Descobri-lo, descobrindo-se. O ideal é que sejamos responsáveis, no que podemos ser e fazer, com a formação de nossos filhos, prepará-los. Mas o ideal não existe e eles sempre vão descobrir o mundo ainda incompletos. Isso é fato. Eles vão quebrar a cara, vão sofrer, vão errar. E é assim mesmo, isso é a vida. Foi assim comigo e acho que com você. É o risco de viver. Minha mãe sempre repetiu: “Criei os meus filhos pro mundo”. Acho que tive sorte. Mas um complicador desse ato de desprendimento é o medo. Medo que sempre acompanhou a humanidade e vai sempre estar presente. No caso do Brasil esse medo está relacionado à violência. Pais temem que os filhos sejam assaltados, agredidos, violentados,

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assassinados por Outros. Que não voltem pra casa. O que o filme propõe a esse público que teme, é começar a entender as razões desse medo e que contrastes sociais são esses que em certo ponto criam essas tensões sociais. Começar a entender essa Alteridade através desse painel pincelado com tintas sutis sobre o Brasil que o filme propõe. E como Cris se mobiliza pra temer menos, entender mais e agir sobre esse mundo. E era óbvio que tinha que dedicar o filme ao meu filho, Joaquim. Que mesmo pequenininho já tinha me feito pensar e refletir tanto sobre isso tudo.

ináCio Algumas perguntas de cinema: os filmes que chegam de Per-nambuco parecem feitos com pouco dinheiro e muita solidariedade. Parece que dá para ouvir vozes atrás de você dizendo “vai fundo”,

“arrisca o plano-longo”, “aposta no rosto da menina, no jeito dela”, “foge das convenções”, essas coisas… Será que isso é só uma im-pressão minha?

marCelo Ajudei muitas pessoas daqui a fazerem seus filmes sem concessões. Criando junto com elas. E fui ajudado por uma infinidade de amigos a fazer o Eles Voltam. Sem eles, o filme estaria ainda na minha cabeça. Acho que o que rola aqui, e já está rolando há um bom tempo (desde de Claudião, Kleber, Lírio, Paulo, Hilton, Gomes e outros tantos) é uma vontade de fazer cinema, sem amarras, se arriscando mesmo, e sem dever nada a ninguém. Principalmente às expectativas de mercado, público e lucro. Um cinema que acaba respeitando o público.

ináCio Quando você filma pensa em algum modelo? Tipo: “vou filmar como Hitchcock”, “vou fazer parecido com Kiarostami?”

marCelo Não. Sou cinéfilo desde que me conheço por gente. Quantas vezes não ouvi: “Sai da frente dessa tv e vai brincar, menino.” Rato de locadora, Marcelo Cineminha eram alguns dos meus apelidos. Vi tanta coisa (mas tão poucas ainda), descobri tantos autores que se arriscavam em suas formas de fazer cinema que acho que acabei incorporando esse desejo de descobrir que forma se adequa melhor ao tipo de filme que estou me propondo a fazer. Acho que existe um estilo particular de cada autor. Mas esse tal estilo é fruto da vontade de descobrir as potencialidades da linguagem do cinema e da descoberta de como essa linguagem consegue interpretar em imagens e sons pra aquilo que você quer expor na tela. Quando faço meus filmes vou pelo caminho mais difícil: da intuição, advinda da bagagem dos filmes que vi, optando por formas que sejam as mais sinceras possíveis àquilo que realizo.

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ináCio A propósito, quais seriam os cineastas de quem você se sente mais próximo? De repente penso que os cineastas do suspense te atraem, como Hitchcock, Ozu, Kiarostami. Por exemplo, é bem forte a maneira como você introduz um desastre automobilístico via tv e nos leva à suspeita de que talvez algo mais sério tenha acontecido aos pais…

marCelo Hitchcock, Ozu, Kiarostami me agradam muito. Estão real-mente entre meus favoritos. Mas lembro que pra Eles Voltam também revi muito Orlando Senna, Bresson, Truffaut, Rossellini, Hsiao-hsien Hou, Naomi Kawase, entre outros…

ináCio E os cineastas de certa espiritualidade? Te marcam? Penso nesses que citei, mas também em Dreyer, Rossellini… Quero dizer, o percurso dessa menina me lembra filmes desses autores. Há uma espécie de milagre em tudo isso.

marCelo Engraçado que durante a primeira conversa com Caçapa, o compositor da Trilha Original do filme, logo depois de ele ter visto um dos cortes do filme, ele me falou muito de Rossellini. Que via Rossellini ali. Achei estranho. Rossellini, pô…um tremendo de um elogio!!! Corei. Primeiro pensei que ele falava dos filmes do pós-guerra e da maneira que o Neorrealismo soube retratar a realidade local da Itália com as ferramentas e métodos que tinha. Aí parei pra pensar nos filmes que vi dele. Lembrei de Alemanha Ano Zero (Germania, Anno Zero, 1948), e aquele menino galego à deriva naquela cidade destruída, e lembrei-me principalmente dos filmes que Rossellini fez com Ingrid Bergman: Stromboli (1950), Europa ’51 (1952) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1953). Aí pensei comigo mesmo: ”é, realmente, tem alguma coisa aí. A mulher e sua jornada de compreensão do mundo.” Acho que isso tem a ver com essa tal espiritualidade que o Eles Voltam carrega. Mas acho também que isso corrobora o que falei anteriormente sobre a cinefilia e a mistura de referências que gestam algo novo e antigo ao mesmo tempo. Infelizmente nunca vi muito Dreyer. Tá aí um cara que preciso conhecer…

ináCio Claro que existe também um conhecimento do outro, e esse outro é pobre, vive à margem da estrada. Gostaria de que você falasse do contato com esse povo, aliás, como você os viu e como eles te viram.

marCelo Viram-me da forma mais natural possível. Acho que só estranharam esse “doidinho” perguntar tanto sobre a história de vida deles, das coisas do lugar em que eles vivem e ainda por cima, convidá-los pra fazer um filme. A questão da abertura dos cola-boradores pelo filme está intimamente relacionada com a forma

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65marCelo lordello

de aproximação que eu e minha equipe tivemos com eles. Todo o processo de Eles Voltam foi o mais simples possível. Fizemos um filme independente, de orçamento baixíssimo, com uma equipe reduzida e, acima de tudo, com uma vontade de entrar “nas casas alheias” da forma mais respeitosa possível. Acho que por isso que o assentamento Chico Mendes, Gercina, Dona Mara, os avôs de Mallu, nos recebiam tão bem quando íamos filmar em suas casas e nos “dengavam” tanto. E a forma como os vi faz parte do filme que fiz com eles .

ináCio Da primeira vez que vi o filme fiquei com a impressão de que algo faltava ali, o percurso do menino, por que e como ele desaparece etc. E você disse que era uma história tão complexa que era melhor nem mencionar. Hoje estou mais convencido de que você estava certo, mas ficou a curiosidade: o que houve afinal com o menino para ele desaparecer como desapareceu?

marCelo Acho que Peu, o irmão, descobriu sua forma de voltar pra casa. Mas como a energia dele, que tem a ver com a maneira como age e está construindo sua afirmação masculina, fizeram com que o caminho dele fosse mais pedregoso. Lembro que escrevi algumas anotações sobre a trajetória do irmão e o que aconteceria na jornada dele depois do final do filme, mas isso é outro filme. Assim como Elayne, Jennifer, Pri e Geórgia e suas jornadas particulares dão outros tantos filmes.

ináCio Como você trabalhou a direção de atores, especialmente da menina? Como eles se prepararam para o filme?

marCelo Quando estava escrevendo o roteiro do longa-metragem, mudei o personagem principal para uma menina. Isso tinha a ver com o tipo de filme feminino e de encontros que queria fazer. E aí vieram outros tantos personagens femininos. Acho que isso tem a ver também de me colocar numa posição de ter que lidar com uma relação de Alteridade de gênero, tinha me colocado num desafio de ter que entender mais o universo feminino. Outra coisa foi que sempre quis que Eles Voltam fosse interpretado por atores não profissionais. Iracema, uma Transa Amazônica, filmaço do Orlando Senna e do Jorge Bodanzky e Os Incompreendidos (Les Quatre cents coups, 1959), de Truffaut, me deram muita confiança nesse caminho. Mas a chave virou mesmo quando conheci Mallu. Foi ali que tive certeza de todas essas vontades porque encontrei nela a encarnação disso tudo e a confiança de que mesmo sem experiência anterior ela seguraria a onda.

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Mas pra tanto eu também precisava da força de uma profissional que me ajudasse a preparar esse elenco e que fosse uma mulher pra intermediar questões do feminino que fossem surgindo no caminho. Convidei Amanda Gabriel, atriz e preparadora de elenco de Recife, com quem já tinha trabalhado em outros filmes e fizemos um tra-balho intenso com o elenco. Leitura de texto, adequação de falas e conteúdos para que soassem mais sinceros, jogos e atividades para deixar o elenco mais à vontade, ensaio, ensaio e ensaio. Descobrimos as particularidades dos talentos de cada um, seus pontos fortes e fracos e trabalhamos muito com eles. Lembro que Amanda falava muito que o mais importante do elenco de Eles Voltam era a vontade de todos em fazerem o filme acontecer e a inteligência e perspicácia de todos que havíamos convidado para colaborar com o filme. Foi um processo de aprendizado pra mim que não tenho muita formação de trabalho com atores e estou começando a fazer filmes de ficção narrativos, que sempre demandam um trabalho profundo com o ator.

ináCio Qual o tempo de filmagem? Qual o orçamento? Quais as fontes de financiamento do filme?

marCelo Filmamos quase um mês e meio entre janeiro e fevereiro de 2010. Mas como o filme foi feito na raça com equipe reduzida e dependente de muitos apoios, algumas locações foram negadas ou o tempo de filmagem foi muito curto. Sobraram umas 4 sequências, que foram filmadas no decorrer de 2010. Tínhamos um grande pro-blema: o dinheiro tinha acabado e Mallu estava crescendo a olhos vistos. Mas “aos trancos e barrancos” a gente conseguiu filmar tudo.

O orçamento total foi de quase 400 mil reais. 50 mil pra produção (prêmio do roteiro do curta – Firmo Neto/Ary Severo da Prefeitura do Recife, 180 mil pra finalização e 180 mil pra distribuição (ambos atra-vés do Edital do Audiovisual FundarPe do Governo de Pernambuco)

ináCio Você, como o Kleber Mendonça, participa de uma, digamos, nova geração de cineastas pernambucanos. Como se sente diante do grupo dos mais antigos? Existe solidariedade entre vocês? Existem diferenças que os separam ou algo assim?

marCelo Sinto-me muito à vontade em trabalhar e produzir num Estado cheio de gente em busca de um cinema tão autoral e a fim de se arriscar e ser sincero na tela. Conheci Cláudio e Lírio, mais a fundo, há pouco tempo. Tive conversas bem interessantes sobre as experiências deles no cinema enquanto trabalhávamos numa pesquisa de um projeto novo dos dois. Hilton e Gomes, já conheço há mais tempo, e os ajudei um pouco numa fase inicial de projeto deles.

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67marCelo lordello

Trabalho mais com meus amigos e sócios da Trincheira, Leonardo Lacca e Tião (temos 3 longas quase prontos pra lançar em 2014). O clima por aqui é de entusiasmo quando sabemos que todos estão, de alguma forma, conseguindo fazer seus filmes, como Pedroso, Mascaro ou Daniel Aragão. Torcemos uns pelos outros. Às vezes, rolam convites pra ajudarmos uns aos outros em filmagens, pra vermos e opinarmos nos filmes dos outros em fase de montagem, mas isso depende muito de como se montam as equipes e os tipos de afinidades entre os realizadores.

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entrevista gabrieL mascaro e marceLo pedrosopor Victor Guimarães

A conversa a seguir aconteceu durante a mostra “Encontro com cineastas pernambucanos”, organizada pelo sesC Palladium, em Belo Horizonte, entre os dias 5 e 9 de junho deste ano. A mostra foi uma oportunidade valiosa de reencontrar os filmes de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, dois dos olhares mais instigantes do cinema brasileiro contemporâneo. Realizadores que experimentam, a cada filme, maneiras diferentes de se relacionar com a realidade brasileira – e descobrem, no processo, novas possibilidades estéticas –, Marcelo e Gabriel também são dois sujeitos fortemente interessados nas discussões que circundam o cinema: duas vozes singulares (como se poderá perceber), mas que partilham de um mesmo entusiasmo pelo debate e não hesitam em se posicionar diante dos temas mais controversos.

Do começo, com a direção conjunta de KFZ‑1348 (2008), passando pela proposta radical de Um lugar ao sol (2009) – dirigido por Gabriel e montado por Marcelo – até a apropriação das imagens alheias em Pacific (Pedroso, 2009) e Doméstica (Mascaro, 2012), as aventuras pela ficção em Avenida Brasília Formosa (Mascaro, 2010) e Corpo Presente (Pedroso, 2011) ou o experimento terrorista Câmara Escura (Pedroso, 2012), esses dois olhares seguem afirmando, a cada filme, suas singularidades e suas potências. Na conversa de aproximadamente duas horas que tive com eles, convivem a retórica densa de cada um e a abertura ao livre fluxo das ideias compartilhadas, a convicção e a espontaneidade. Alguns dias antes que os protestos escancarassem a indignação de tantos brasileiros nas ruas, palavras como tensão, política e violência já ocupavam o centro do debate.

CinétiCa A cidade parece ser uma questão importante para o cinema de vocês. Como é a relação de vocês com o Recife?

gabriel masCaro Eu tenho me relacionado com uma pesquisa que tenta perceber uma tensão corporal no espaço, uma negociação do corpo no espaço. Para mim, afeto tem violência. Afeto não é doce.

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69gabriel masCaro e marCelo Pedroso

Pode também ser violento. Eu acho que os meus trabalhos, quando se propõem a se relacionar com o espaço urbano, vão incorporar essa relação de tensionar uma experiência corporal no espaço. Num bairro como Brasília Teimosa, que está dentro de um contexto midiático, da eleição do Lula, que foi lá com uma caravana de ministros, eu busco perceber as mudanças, a complexidade. É o paradoxo do desenvolvimento que me interessa nesse contexto de pesquisa. É um estado de suspensão do mundo. Por Recife estar se transformando tão rápido, isso cria um cenário de perceber esse corpo suspenso, e esses personagens me interessam nesse contexto de suspensão.

marCelo Pedroso Eu não tenho muita coisa com a cidade, não.CinétiCa Câmara Escura tem algo disso…marCelo Câmara Escura nasceu de outras coisas. Ele acaba acon-

tecendo na cidade, mas nascia muito mais de uma coisa ligada à enunciação, à fabulação, à relação com o outro. Mas como ele tinha um gesto que implicava necessariamente um contato mais epidérmico com essa superfície urbana, resultou naquilo ali. Eu vivo numa cidade ríspida, árida, excludente, conservadora. Por mais encantos que ela tenha, por mais que se configure ali um espaço de reconhecimento afetivo interpessoal, a cidade, em si, é um espaço muito hostil, muito injusto e desagregador. A vida comum se dá em ambientes nos quais eu não sinto identificação. A vida comum em Recife acontece no shopping. Em Recife só, não, né? Nas grandes metrópoles. Mas lá tem alguma dimensão em que isso se acentua, em que o convívio público se esvazia, em que os espaços públicos são atravessados por um esvaziamento. Em Câmara Escura, na hora de escolher as casas onde a gente iria deixar o artefato da câmera, escolhemos casas mais fortalecidas, muro alto, cerca elétrica. Toda essa violência simbólica que está na cidade e que é reflexo de outras violências que se sedimentam ali historicamente, cuja fonte é meio imperceptível.

CinétiCa Um traço que me instiga nos filmes é uma vontade permanente de problematizar as relações sociais, associada a um desejo de desco-brir outras formas de fazer cinema. Queria saber como vocês enxergam isso, e que relações vocês encontram entre o cinema e a política.

marCelo Essa aproximação entre as instâncias estética e política é muito comum. E é muito fácil falar disso a partir do senso comum. Tudo é política, nada é política. Mas eu acho que essa coincidência acontece, sim. É uma busca de uma articulação entre essas duas dimensões que o filme pode conter. E ela acontece, pra mim, quando

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o filme é capaz de transfigurar uma percepção da realidade. Quando o filme consegue desarticular uma percepção e os sentidos em torno de determinadas formas de se olhar pro mundo, aí a gente chega no que seria, pra mim, uma forma política possível para os filmes. Isso é uma dimensão eminentemente estética.

gabriel Se você desloca o sensível da forma de olhar pro mundo, você configura nova política para o mundo. Com a forma de abordar esse mundo, a partir da estética.

marCelo Tem essa dimensão política que está nos filmes e tem a política dos filmes também. A forma de conceber o escoamento desses filmes, como eles vão ser devolvidos ao mundo. Eles partem do real, de uma visão subjetiva do real, e a forma como a gente vai rearticulá-los no mundo também corresponde a um desejo político, não sei se de transformação, mas em algum nível, de confusão. De tentar tensionar outras realidades, outras configurações possíveis do sensível, da organização da vida social. Quando a gente conse-gue fazer com que imagens articulem possibilidades de sentir, de experienciar o mundo para além daquilo que seria possível dizer, isso também nos convida a uma forma de trabalhar esses filmes no mundo real, no retorno.

CinétiCa E como vocês pensam a distribuição dos filmes?marCelo Há uma dificuldade de equacionar essa busca política na

forma do filme e a própria articulação de uma mensagem possível. Por que os filmes não conseguem tanto apelo de público? Por uma série de condições de mercado. Mas será que essa dimensão política que eles atingem é o bastante? É necessário que a gente tensione a linguagem, a estética, para um campo que não está dado, mas, às vezes, isso acaba se revertendo numa armadilha pra gente, na própria experiência de retorno que os filmes vão ter. Essa sensação de a gente estar ilhado, em uma bolha, de ter uma comunidade sensível que está compartilhando daquilo, mas que a gente, às vezes, fica preso ali. Não estou falando de mercado, de rentabilidade, nada disso, é outra dimensão. Eu parto do pressuposto de que para filmes que partem de financiamento público, esse aspecto da distribuição é vital. A gente não conseguiria, nunca, financiar os filmes que a gente faz via mercado. Porque o mercado nunca se interessaria em financiar essas doideiras. Então, se o financiamento é público, se a sociedade, através de ferramentas democráticas, acredita que esses filmes precisam existir, como é que a gente faz para que esses filmes existam para além da nossa comunidade que usufrui desses

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71gabriel masCaro e marCelo Pedroso

filmes, que se permite um olhar mais reflexivo sobre eles e se deixa atravessar por eles? Como é que a gente vai ampliar esse alcance de uma mensagem que não é verbal, cognoscível, centrada, mas que é uma mensagem sensível, estética, como a gente vai ampliar isso, fazer chegar em outros cantos? Essa talvez seja a maior inquietação política que os filmes enfrentam hoje.

CinétiCa Vocês percebem isso como um nó, um desafio, ou já pensaram formas para que essa bolha seja furada?

gabriel A gente tem pensado em várias estratégias. Cada projeto vem contaminado de uma vontade meio inusitada de sair dessa bolha. Eu acho que algumas são bem sucedidas, só que elas não são for-malizadas como válidas pelas instituições que avaliam e mensuram as distribuições de cinema. O Marcelo distribuiu Pacific por meio de uma cartilha com textos sobre o filme. No Um Lugar ao Sol, eu tive a experiência de fazer um guia didático para professores de ensino médio, que poderiam trabalhar o cinema documentário em sala de aula. Foi distribuído por uma rede que atinge dois mil professores. Rolou esse tipo de distribuição, mas isso a gente não consegue mensurar, isso não é válido pela agência que regula o cinema.

marCelo É um alcance de formiguinha, mas a gente tá fazendo. É muito louco, mas a gente é impelido a uma atuação que não consiste só em fazer os filmes. A gente não pode se furtar a essa experiência de pensar em como fazê-los reverberar socialmente e politicamente.

CinétiCa Continuando sobre essa relação entre cinema e política, que-ria saber se essa ideia de problematizar relações sociais e de poder era um projeto, desde o início, ou se foi aparecendo com os filmes.

gabriel A gente se conheceu na política.marCelo A gente se conheceu no da, na universidade. Ele era oposição

à minha chapa, mas aí ele me cooptou, eu entrei na chapa dele… É muito louco isso, porque esse engajamento político nos filmes alcança uma dimensão completamente diferente. Não são filmes panfletários, não são filmes engajados numa reprodução… A política é justamente, às vezes, a desconstrução dessas matrizes discursivas monolíticas que categorizam o que é o possível dentro de uma normatividade. Então, a política hoje é um pouco o reverso daquilo que a gente fazia na faculdade. Do da, de panfletar, de defender uma ideia. Às vezes, o que a gente está querendo fazer agora é desarticular, é virar pelo avesso as estruturas do poder, das relações sociais silenciadas. Qual é a ferramenta que a gente tem para uma tessitura às avessas? Para destecer o tecido?

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gabriel É como se a gente estivesse, hoje, reagindo ao nosso momento de formação. Indo contra alguns dogmas que a gente tenta, de alguma forma, desconstruir.

marCelo Ao mesmo tempo, tem uma busca de uma inadequação nesse momento histórico, do fim da política, do fim da ideologia, da pós-utopia. Porra, velho, pra mim tem uma vontade do caralho de dizer: meu irmão, que porra nenhuma, meu irmão! A gente tem que levantar bandeira, a hora é essa. Eu fico pensando em como a repressão, hoje, é uma instância autointrojetada. A repressão está na gente, mesmo. A gente está tão normatizado, tão absorvido, pelas novas configurações do capitalismo, que já traz na gente a própria dimensão de repressão que antes seria cabível ao Estado, à polícia. A gente já está desconstruindo o próprio gesto, não ousa, não tem coragem. Ao mesmo tempo em que os filmes não são pan-fletários, eles também buscam essa coisa: mas então o que é, hoje, que faz um filme ser político? Qual é o engajamento possível pra gente hoje? O que é que a gente vai falar, o que é que a gente vai defender? Que bandeiras levantar? Às vezes, a desconstrução é um bom mecanismo.

gabriel Ao mesmo tempo, dentro desse contexto, dessa ética do capital, também residem alguns problemas éticos que surgem na tessitura dos filmes. Várias das dilatações das fronteiras éticas que a gente trabalha processualmente nos filmes tentam criar os ruídos nessa ética dominante, totalizante, nessa ética que protege um estado de ser do mundo. Os filmes, de certa forma, se jogam nesse jogo perverso. Não são éticas pelas quais necessariamente eu vivo ou acredito. São éticas que estão além de mim, e das quais eu me aproprio para tensionar uma experiência que não é só minha. A ética do capitalismo é perversa. E, às vezes, ela é jogada dentro do próprio filme, como um turbilhão.

marCelo É um pouco do cinismo, né? De se apropriar das ferramentas do capital para também operar, articulando conceitos, jogando com isso. Com Câmara Escura, passei um ano com o filme engavetado sem conseguir olhar para o material bruto. Me culpando, me penalizando: que doideira é essa? Como é que pode um gesto tão violento, tão agressivo? Tive uma ressaca moral terrível de ter causado transtorno na vida das pessoas. E, no entanto, era necessário. Foi o filme que trouxe aquilo, não fui eu. Eu fiquei pensando: esse filme não era pra eu ter feito, porque talvez eu não tenha conseguido levar ao extremo o que seria o gesto para fazer esse filme. Ao mesmo tempo eu acho

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73gabriel masCaro e marCelo Pedroso

que foi justamente esse comedimento que conseguiu tornar o filme um lugar onde eu me reconheço, algo que eu possa defender. Mas esse processo realmente causou um deslocamento de como eu sou no meu dia a dia, de quem eu sou, de como eu lido com as pessoas, dos meus pudores, dos meus medos.

gabriel Quando você escreveu sobre Um Lugar ao Sol (nota do entre-vistador: Gabriel se refere a um texto que escrevi sobre Um Lugar ao Sol à época da exibição do filme na Mostra de Cinema de Tiradentes, em um blog já finado), você tensionava a dimensão ética da escritura. Qual é o limite, né? Você citou o Comolli: como filmar o inimigo? Mas qual ética você vai buscar para filmar o inimigo? É a ética do amigo? Que ética é essa? É uma coisa que eu não sei. Está além de mim, é uma ética que não tem limite. Na relação do jogo de poder, na relação do mercado de capital, há uma ética perversa; a própria perversidade é parte do jogo, é parte da minha pesquisa. Teu texto buscava uma equalização possível numa ética possível pra abordar isso. Para mim, não existe ética possível dentro do contexto do mercado, do capital, para justificar ou balizar o limite.

marCelo E a eleição do que é esse inimigo não é a pessoa, o persona-gem, de forma alguma…

gabriel O inimigo é você mesmo. O inimigo é você.marCelo É uma estrutura que está armada ali. É uma dimensão sis-

têmica. Não é fulano, beltrano. É a gente mesmo. Nós que fazemos parte disso e as pessoas fazem parte disso, à revelia de si mesmas.

CinétiCa Já que você falou de Um Lugar ao Sol, acho muito interes-sante essa pergunta: qual ética a gente vai buscar pra trabalhar num mundo em que a ética dominante é a do capital? Será que é a ética do amigo? Por outro lado, o que me incomoda em Um Lugar ao Sol é que o resultado estético da abordagem daqueles personagens talvez não problematize algo que a gente já sabe so-bre eles, e que resulta em certa planificação. Algo que eu vejo em Pacific e Doméstica – que é o gesto de tornar as coisas ainda mais complexas do que elas parecem à primeira vista – eu não percebo em Um Lugar ao Sol. O gesto terrorista me interessa muito, tanto em Câmara Escura quanto em Um Lugar ao Sol, mas nesse último eu acho que a montagem ou o próprio método só conseguiram confirmar uma expectativa que o espectador já tinha sobre aqueles personagens. Ou seja: como ir além do ridículo, como ir além do riso que, de certa maneira, faz parte do consenso? Como operar de uma forma realmente dissensual?

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gabriel Eu procuro sempre imaginar Um Lugar ao Sol como um grupo de personagens em estado de exceção. Foram os últimos nove que aceitaram participar de um filme sobre morar em coberturas, dentro de um livro que mapeia pessoas que fazem parte de um guia de socialites. É um estado de exceção. Porque o inimigo de verdade não dá entrevista pra mim. Ele está cultivando nióbio em algum lugar… O inimigo de verdade tem outro rosto, está muito distante, não está no filme. Eu me interesso pelo filme a partir do momento em que você percebe um grupo de personagens em estado de exceção que tenta, a partir de um filme, instrumentalizar um jogo para falar algo, cultivar um certo mundo socialite num filme que, de alguma forma, desconstrói isso. Acho que eles acham que estão sendo terroristas comigo, e eu estou sendo com eles. É um jogo performático, eu estou performando, eles também estão.

marCelo Esses filmes estão sujeitos e expostos aos riscos e aos erros. E eu acho que Um Lugar ao Sol é um filme fundador de um tipo de olhar, de uma experiência. De um redirecionamento do olhar documental para outras possibilidades. Ao mesmo tempo é um filme com todos os problemas que ele traz. Porque são os problemas que ele traz que fizeram Pacific, que fizeram Doméstica. Então, a gente não deve se esquivar nem blindar o filme, de jeito nenhum.

gabriel Eu lembro que participei da oficina de formação do Doc tv, e foi meu primeiro contato com Jean-Claude Bernardet. Nessa oficina, ele nos desafiou, com muita força: “o documentário brasileiro vai mudar quando os diretores pararem de chamar os personagens para o palco no dia do lançamento”. Aquilo foi muito forte pra mim. Os filmes tinham uma condescendência, um pacto com a aprovação do personagem. No lançamento de Doméstica, no Rio, um personagem do filme disse pra mim: “Ó, você roubou esse filme de mim, viu? Eu quero autoria do filme. Fui em que filmei, é minha história”. Quando eu poderia imaginar que esse jogo perverso que instrumentalizou o olhar dos personagens e virou o jogo contra eles, ia fazer com que, no final, o cara pedisse a autoria do filme, dizendo que eu estou enrolando? Isso traz uma força do próprio descontrole que esse método coloca em jogo. No Pacific, alguém fez uma crítica ao filme no YouTube: “só tem gente bizarra nesse filme”. Aí um personagem respondeu: “Que bizarro o quê? Não sou bizarro não. Minha viagem foi massa, minha esposa curtiu, o cara pediu pra fazer um filme e é isso aí, minha vida é essa. Estou muito feliz”. Quando você pensa o jogo e abre mão desse pacto, o próprio jogo se reverte.

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75gabriel masCaro e marCelo Pedroso

Se há um ponto em comum entre esses filmes que a gente está citando, talvez seja a possibilidade de um risco da não aprovação pelo perso-nagem. É um jogo que se constitui como risco que leva em conta a câmera, o cinema, a arte como um tensionador de uma experiência de mundo.

marCelo Eu acho que a duração compartilhada, aquele instante em que documentarista e personagem dividem a cena, é capaz de implodir perspectivas de mundo que estão enraizadas nos dois. Se o filme não conseguir abrir essa dimensão que a gente consiga olhar, se identificar, se projetar, ver a nós mesmos ali dentro, a gente está fodido. Na primeira sessão do Pacific lá em Recife, no Janela, eu saí da sala. Porque as pessoas riram tanto durante o filme que eu fiquei numa crise. Fui pro debate mortificado. As pessoas diziam: “Quem era você? Você era um espectro ali?” No outro dia, eu reuni a equipe e disse: “Ó, esse filme não vai existir não. A gente vai sepultar hoje mesmo, acabou. Obrigado, foi massa o trabalho de vocês, mas esse filme saiu pela tangente. Como é que pode a gente fazer um filme em que se exercita um olhar e uma sensibilidade sobre o mundo, sobre as pessoas e a reação é escárnio, é riso descontrolado?”. Aí passei por um processo de conversa com a equipe e passei a entender o quanto esse riso de escárnio do público durante as sessões também denota a própria dificuldade do público de olhar para aquilo.

gabriel Acho também que tem um pacto que se estabelece entre mim, espectador, e aquele personagem que está sendo ridicularizado pelo grupo, que me faz negar que aquela experiência é válida. Por outro lado, pra mim, rir é muito mais complexo do que o ridículo. Eu me divirto muito com Pacific, mas na diversão existe a complexidade. No Doméstica tem várias cenas com riso, engraçadas. De repente, a mulher fala do filho morto: silêncio. Cena propositalmente montada pra ser uma virada narrativa clássica. Eu não tenho problema nenhum com o riso. O riso é parte desse jogo de risco: é uma experiência, em si, tensa. Acho que dentro do riso tem muita tensão, muita potência.

CinétiCa Falando agora dos filmes mais recentes: de onde vem esse interesse de olhar para as imagens dos outros?

marCelo Tinha uma coisa de começar a se debruçar sobre a coisa do espetáculo. Um primeiro movimento: por que a gente precisa filmar se está todo mundo filmando? Eu nem conhecia muito os filmes que se valiam desse procedimento. Fui conhecendo durante a montagem, Videogramas de uma Revolução (Videogramme einer Revolution, 1991/1992), de Harun Farocki e Andrei Ujica, umas coisas assim.

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Mas tinha esse desejo de apreender a imagem enquanto um dos elementos que constitui a vida coletiva. Isso olhando para si pró-prio, olhando para o apetite por imagens que existe no seio da minha própria família. Nessa época de Pacific, ainda não era nem Facebook, era Fotolog, mas eu já ficava completamente arrebatado por essa construção social que as pessoas faziam em torno de si mesmas. Tinha uma coisa muito clara pra mim: quem eu sou e quem eu quero ser. Quem eu sou é algo intangível, porque a gente está permanentemente construindo esses personagens, mas quem eu quero ser diz muito sobre quem eu sou; quem eu quero ser, às vezes, é a dimensão palpável de quem eu sou. Isso não é nada novo, é Jean Rouch, já estava lá. Jaguar (1957); Eu, um Negro (Moi, um Noir, 1958). O que Jean Rouch fez naquela época, hoje está sendo feito permanentemente em todos os lares que possuem um celular com câmera. Era partir desse pressuposto para entender as relações em um mundo que tem a imagem como centro de força.

gabriel No meu caso, eu assisti ao Sociedade do Espetáculo, do Guy Debord. Há um momento em que ele pontua: por que filmar, se o mundo está repleto de imagens? O que fazer com essas imagens? Então ele ressignifica as imagens de publicidade a partir das teses do livro dele. No Doméstica, eu tento fazer uma experiência próxima, mas que também se distancia: me apropriar um pouco do Reality tv, que negocia sua experiência do espetáculo, mas na forma midi-ática. Não mais a performance presa a um desejo, mas o jogo como processo da imagem. Doméstica, antes de tudo, é um filme sobre a negociação da imagem, onde eu articulo com um pesquisador local, que fala com um jovem, que fala com a empregada. Há uma rede de hierarquização na relação do fazer, estabelecida a partir do pacto que é fundada num jogo. É em cadeia. Eu nunca falei com a empregada, nunca falei com o jovem, nunca tive nenhum contato com ele. De que forma esse jogo pode tensionar algo para além dele? Para o jovem é um filme sobre a empregada; para mim, pode ser um filme sobre um jovem que está falando sobre a empregada. São vários eixos possíveis a partir do processo.

marCelo Eu estava ficando curioso com essa ausência da cena. Talvez seja uma das grandes tensões, reflexões do documentário a impossibi-lidade do real, o real reinventado pela presença da equipe e da câmera. Aí, eu ficava achando que esse gesto era uma articulação entre o cine-ma de interação – porque havia interação, não entre uma equipe e os personagens, mas entre o personagem e uma câmera – e um cinema

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77gabriel masCaro e marCelo Pedroso

de observação que consumava o ideal do cinema direto, da mosca na parede. Eu não estava no navio, era um olho realmente invisível que estava lá, ninguém sabia que aquilo ia virar filme, e eu ficava muito deslumbrado com esse esvaziamento.

CinétiCa Tanto em Pacific quanto em Doméstica, há um trabalho de dramaturgia muito forte. Como é que vocês pensam isso na monta-gem? Essa organização dramatúrgica de um projeto não dramatúrgico, no sentido tradicional?

marCelo Esses filmes dão margem a perceber o quanto a forma de filmar é roteirizada a partir de experiências de imagem que o personagem reproduz no ato de filmar. A imagem vem contaminada por outras imagens, ela reverbera um catatau de imagens que o personagem absorveu ao longo da vida e que estão ali, voltando à tona. E pelo fato de essas imagens já serem elaboradas a partir de uma certa matriz de mise en scène, a forma como as pessoas se organizam no espaço já encontra filiações que permitem que a gente estabeleça uma dramaturgia a partir de algo que já está presente ali. A apropriação que os personagens têm da linguagem cinematográfica, jornalística ou documental nos permite criar essas pontes. Não são imagens puras e brutas que correspondam a um estado virgem de um olhar, mas imagens que já vêm contaminadas por esses princípios.

gabriel Quando essas imagens chegam pra gente, a gente também não se imagina trabalhando com uma pureza, ou uma ingenuidade nesse processo de articulação. Eu gosto de imaginar e desconfiar dessas imagens. No Pacific, pode ser que tenham coisas que não foram filmadas por eles. Pode ser que tenha voz off que não seja real. No Doméstica, pode ser que eu tenha filmado também. Provocar esse desconforto eu acho que é bacana. Imaginar um corpo de filme que está num limiar de uma tensão de mundo que se dá a partir dessa reapropriação, ressignificação do olhar do outro, mas que também se dá a partir de uma montagem que flerta com uma experiência narrativa que organiza essas imagens.

marCelo Esse gesto acaba gerando uma escrita que não é sem autor, mas cuja noção de posse ou de autoria é truncada. Esses deslocamen-tos que se operam geram um tipo de coisa que nem te pertence, nem pertence a quem filmou. É um tecido polifônico, o que você quiser chamar, mas que é alheio. É como se fosse uma escrita estrangeira. Porque, por exemplo, no exercício mais convencional do documen-tário, a gente está aqui, eu estou filmando vocês, isso aconteceu, aí você fala uma coisa que eu achei massa, aí eu vou explorar mais isso.

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Esse controle se desagrega nesses filmes. Você não tem a possibi-lidade de “porra, queria tanto poder ver mais disso, queria tanto explorar esse garçom que apareceu nas entrelinhas”. Transformar essa impossibilidade em potência é que é a grande história.

gabriel As relações de poder ficam meio dissipadas, isso cria uma suspensão e um desconforto. “Como assim tu articulou plenamente? Como assim tu conseguiu fazer um filme como Pacific, na dimensão da articulação mesmo?”. Esse desconfiar abre para um descontrole, para um outro regime de negociação das imagens.

marCelo Para mim, o filme não tem que ser puro, ou puritano (o que seria pior ainda). Manter-se fiel a uma filiação estética, ou a um procedimento. O filme nasce de um gesto inicial e, até virar filme, passa por tanta coisa que se soma ali, que não importa. Não vou te achar mais honesto ou menos honesto. Para mim, é como o filme foi capaz de se apoderar do mundo, transformar aquilo em imagem e som. A própria reação de desconfiança revela a matriz ideológica de quem espera algo dado do mundo.

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baile PerFurmado Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997

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raP do Pequeno PrínCiPe Contra as almas sebosas Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000

amarelo manga Claudio Assis, 2002

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that’s a lero lero Lírio Ferreira, 1994

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eletrodoméstiCa Kleber Mendonça Filho, 2005

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Cinema, asPirinas e urubus Marcelo Gomes, 2005

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árido movie Lírio Ferreira, 2005

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baixio das bestas Claudio Assis, 2006

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muro Tião, 2008

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nº 27 Marcelo Lordello, 2008

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suPerbarroCo Renata Pinheiro, 2008

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viajo Porque PreCiso, volto Porque te amo Karim Ainouz e Marcelo Gomes, 2009

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PaCiFiC Marcelo Pedroso, 2011

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avenida brasília Formosa Gabriel Mascaro, 2010

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as aventuras de Paulo brusCky Gabriel Mascaro, 2010

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reCiFe Frio Kleber Mendonça Filho, 2009

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Praça Walt disney Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, 2011

Projeto torres gêmeas Direção coletiva, 2011

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a onda traz, o vento leva Gabriel Mascaro, 2012

doméstiCa Gabriel Mascaro, 2012

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Febre do rato Claudio Assis, 2011

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eles voltam Marcelo Lordello, 2012

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boa sorte, meu amor Daniel Aragão, 2012

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o som ao redor Kleber Mendonça Filho, 2012

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tatuagem Hilton Lacerda, 2013

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FilmograFia Comentada108

1997 35mm 93"

Baile perfumado

Amigo íntimo do Padre Cícero, o mascate libanês Benjamin Abrahão decide filmar Lampião e todo seu bando, pois acredita que este filme o deixará muito rico. Após alguns contatos iniciais ele conversa diretamente com o famoso cangaceiro e expõe sua idéia, mas os sonhos do mascate são prejudicados pela ditadura do Estado Novo.

Logo no começo de Baile Perfumado, há uma panorâmica sobre um rio. A com-binação da água com música incidental barulhenta dá o recado: este não é o ser-tão consagrado pela história do cinema brasileiro. Tudo em Baile Perfumado é hiperconsciente desta herança e da ideia de que suas imagens pretendem renová-las: das próprias imagens de Benjamin Abrahão que lhe servem de mote e o ciclo do Recife passando pelos primeiros filmes do Cinema Novo e o ciclo de filmes de cangaço. Glauber, Carlos Coimbra ou J Soares, pouco importa, tudo é absorvido pela câmera de Lírio Ferreira e Paulo Caldas da mesma forma e revisto sobre um olhar que se pretende arejado e afiliado à cena cultural de Pernambuco dos anos 90.

Este desejo é o que torna Baile Perfu‑mado um dos filmes chave da chamada retomada (que vale lembrar, foi rica em filmes sobre o cangaço como o remake de O Cangaceiro e os filmes do Rosemberg Cariry). Nele, o subtexto frequente na produção do período, no qual a história do cinema brasileiro é um fardo a ser su-perado, é melhor resolvido, chegando-se à imagem de um cinema brasileiro pop, se não popular, sem com isso abrir mão de tudo que veio antes. As imagens de Benjamin Abrahão podem por fim ser retomadas no final do filme embaladas pelo mangue beat.

Pois o que Baile Perfumado deseja é justamente atualizar o mito do sertão

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109baile PerFumado

direção Lírio Ferreira e Paulo Caldasroteiro Hilton Lacerda, Lírio Ferreira e Paulo CaldasFotograFia Paulo Jacinto dos Reismontagem Vania DebsmúsiCa Chico Science, Lúcio Maia, Paulo Rafael e Sérgio Siba VelosoProdução Adão PinheiroComPanhia Produtora 99PelenCo Chico Diaz, Luiz Carlos VasconcelosClassiFiCação indiCativa 16 anos

para os anos FhC. Não por acidente, o filme é focado na figura do empreende-dor Benjamin Abrahão, o estrangeiro que adentrou o sertão para explorar comer-cialmente a fotografia e o cinema. Estamos no terreno do cinema como registro (as imagens de Abrahão interessam pela sua permanência, pelo fascínio que a figura de Lampião ainda desperta) e também do capital, sempre pronto para explorar as possibilidades das artes. Benjamin Abrahão é o protagonista, mas sua fun-ção é a de intermediário (uma posição dramática que é o que mais aproxima o filme do Cinema Novo), enquanto a figura de Lampião, sempre carregada de potên-cia política, é redimensionada aqui por uma lógica de exploração comercial. No período escuro do cinema brasileiro da década de 90, o cineasta é antes de tudo um empreendedor, e esta é a ideia que Baile Perfumado busca alegorizar.

— Filipe Furtado

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FilmograFia Comentada110

Dois personagens reais, Helinho e Garnizé, formam o eixo do documentério, Helinho, justiceiro, 21 anos, conhecido na comunidade como O Pequeno Príncipe, é acusado de matar 65 bandidos no município de Camaragibe (PE) e em bairros de subúrbio. Garnizé, músico, 26 anos, componente da banda de rap Faces do Subúrbio, militante político e líder comunitário em Camaragibe, usa a cultura para enfrentar a difícil sobrevivência na área. Dois jovens de uma mesma periferia, duas vidas cruzadas pelo mesmo tema: a violência urbana.

Paulo Caldas segue associado até hoje ao seu primeiro longa, Baile Perfumado, e, mais do que qualquer um dos seus filmes posteriores (ou dos de Lírio Ferreira), O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (codirigido por Marcelo Luna) se aproxima do seu longa de estreia. O movi-mento do filme de ir ao encontro dos seus dois personagens centrais, o justiceiro Helinho e o músico de hip hop Alexandre, tem muito em comum com o de Benjamin Abrahão indo filmar Lampião e o desejo um tanto mão pesada de apresentar tais personagens numa embalagem pop. O que O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas traz de novidade é ir de en-contro ao Recife contemporâneo (descrito

2000 35mm 75"

rap do peQueno príncipe contra as almas seBosas

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111raP do Pequeno PrínCiPe Contra as almas sebosas

a certa altura como quarta cidade mais violenta do mundo) e com isso um desejo de confrontar o mito com o presente de forma direta e não, alegórica.

O que O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas se propõe é um exercício de mitomania a partir de duas figuras que a câmera de Caldas e Luna registra com a mesma potência geralmente guardada para uma figura como a de Lampião. O filme é movido por esta crença de que para lidar com Recife por volta do ano 2000 é preciso lançar mão de tais mitos urbanos. Sua força é intimamente ligada a como consegue dar vazão a eles. Neste sentido, é essencial o uso do hip hop, gênero musical cujo princípio sempre foi marcado pela auto-ficção mitômana. O filme como um todo é um grande dueto de rap entre Helinho e Alexandre intermediado pela câmera e montagem de Caldas e Luna.

O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas faz uso indiscriminado de técnicas de ficção para fazer valer este seu exercício em mitologia urbana, o que lhe emprestava um grande frescor dentro do universo do documentário brasileiro da época. 15 anos depois, com a fronteira entre ficção e documentário cada vez mais tênue, o filme perde este aspecto de novidade, e a sofisticação do seu jogo de auto-ficção não tem a mesma força de alguns filmes posteriores (pensemos, por exemplo, em Pacific, de Marcelo Pedroso, para ficarmos em outro realizador do Re-cife), mas o filme permanece um pioneiro importante em experiências do tipo.

— Filipe Furtado

direção Paulo Caldas e Marcelo Lunaroteiro Fred Jordão, Marcelo Luna e Paulo CaldasFotograFia Andre Hortamontagem Nataraney NunesmúsiCa Dj Dolores e Garnizé Produção Martha Ferraris, Chico Accioly e Maria ComPanhia Produtora Raccord Produções elenCo Hélio José MunizClassiFiCação indiCativa +14 anos

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FilmograFia Comentada112

Lígia é uma mulher desencantada que trabalha num bar, no subúrbio de Recife e, quando o dia termina, só lhe resta voltar ao seu quarto, em um anexo do bar. Ao mesmo tempo, Kika, que é muito religiosa, está frequentando um culto enquanto seu marido, Wellington, que é um açougueiro, elogia as virtudes da sua mulher enquanto usa uma machadinha para fazer seu serviço. Apesar de elogiar a mulher, Wellington tem uma amante, que quer que ele tome uma decisão. No Hotel Texas, que também fica na periferia da cidade, trabalha Dunga, um gay que é apaixonado por Wellington. Um hóspede do Hotel Texas, Isaac, sente um grande prazer em atirar em cadáveres, que lhe são fornecidos por Rabecão, um funcionário do IML. Isaac conhece Lígia no bar e se interessa por ela.

“O ser humano é estômago e sexo”. Essa é uma das muitas frases de efeito ditas ao longo de Amarelo Manga que colocam em evidência as motivações essenciais das personagens. No filme, mais que uma dra-maturgia guiada pela vontade psicológica, há um contexto: uma cidade, repleta de seres humanos com determinados com-portamentos e vontades próprias. O filme, então, observa um dia qualquer no qual uma mulher toca seu bar, lotado dos mes-mos clientes de sempre; um homem faz seu trabalho num abatedouro de animais; outro ajuda nas tarefas do Texas Hotel e assim por diante.

2002 35mm 100" 2,35:1

amarelo manga

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113

direção Claudio Assisroteiro Hilton LacerdaFotograFia Walter Carvalhomontagem Paulo SacramentomúsiCa Jorge dü Peixe, Lúcio MaiaProdução Marcello Maia, Paulo SacramentoComPanhia Produtora Parabólica Brasil, Olhos de Cão elenCo Chico Diaz, Matheus Nachtergaele, Leona Cavalli, Jonas Bloch, Dira PaesClassiFiCação indiCativa 18 anos

amarelo manga

Mas o ser humano é estômago e sexo. Ou seja, pulsões, vontades, desejos. Dois impulsos, porém, aparecem constante-mente como motivos ao longo do filme: o sexo e a morte. São como o trabalho, a comida e a cerveja, parte do cotidiano. Mas em Amarelo Manga, ganham impor-tância central. É no sexo e na morte que as pessoas encontram sua liberdade, a

“maldição de ser livre” – outra das frases do filme – contra a qual as pessoas lutam.

A desmedida das personagens, das reações e do próprio filme parte desses dois impulsos, que organizam os encon-tros e os momentos dramáticos, espa-lhados por entre situações cotidianas, de diálogos corriqueiros em linguagem suburbana recifense – a verdadeira joia do filme no olhar de dez anos depois de seu lançamento.

Amarelo Manga requisita seu especta-dor. A construção que mais se repete é o olhar direto da personagem para a lente da câmera. A quebra da quarta parede ficcional causa um estranhamento, mas também é uma forma de chamar o espec-tador para a participação. Porém, essa participação é sempre instável, na medida em que o espectador é chamado para um baile que tentará expor suas fraquezas. É uma toada de participação-agressão que ora atrai, ora causa repulsa. Essa ambivalência é a essência do cinema de Cláudio Assis.

— Raul Arthuso

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FilmograFia Comentada114

Jonas é o repórter do tempo de uma grande rede de TV que mora em São Paulo, mas está rumo à sua cidade natal, localizada no interior do nordeste. O motivo é a morte de seu pai, com quem teve pouquíssimo contato e que foi assassinado inesperadamente. Jonas enfrenta problemas para chegar à cidade, até que recebe carona de Soledad, uma videomaker que está fazendo um documentário sobre a água no sertão. Ao chegar, ele encontra uma parte da família a qual não conhecia até então, que lhe cobra que se vingue da morte do pai.

Árido Movie é uma espécie de analogia cinematográfica ao mangue beat – o nome do filme presta uma homenagem ao cine-ma pernambucano pós-retomada. Com influências que vão da cultura popular à mtv, do cinema novo a Sérgio Leone, Árido Movie é “Bocas secas” – piadinha sem graça que um dos personagens faz com a obra-prima de Graciliano Ramos (e com o clássico de Nelson Pereira dos Santos por tabela) e que sintetiza essa pro-posta “revisionista” e sem preconceitos do filme. Uma meditação, digamos, pop sobre o sertão. Um sertão que não se vê

2005 35mm 115"

árido movie

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115árido movie

de primeira, que se perde por inúmeras possibilidades de significação. O nordestino expatriado Jonas é obrigado a voltar a Pernambuco para enterrar o pai, comprometendo-se inadvertidamente numa história de vingança bem típica do sertão, com direito a índios, maconheiros da classe média recifense, um documentá-rio sobre água, e um líder religioso. Árido Movie, contudo, não se desenvolve linear-mente, nem se mostra muito preocupado em concluir muitas das ideias e/ou histó-rias que levanta. Na verdade, a narrativa parece se autossabotar continuamente,

sempre recorrendo à montagem paralela. Lírio Ferreira constrói este seu segundo passo em longas tentando não repetir o primeiro (Baile Perfumado), mas evitando romper com ele. Quer dizer: permanece a mesma urgência, uma liberdade de movi-mento do ator, de composição e de história contagiantes. Árido Movie se faz em uma mise‑en‑scène em “pernambuquês” a ser-viço do momento, agora embalada por uma lógica cannabis sativa (“montagem maconhal”, sugeriu certa vez o cineasta).

— Julio Bezerra

direção Lírio Ferreiraroteiro Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sergio Oliveira e Eduardo NunesFotograFia Murillo Sallesmontagem Vânia DebsmúsiCa Otto, Ceppas, Berna, Kassin, PupiloProdução Murillo Salles e Lírio FerreiraCompanhia Produtora Cinema Brasil DigitalelenCo Guilherme Weber, Giulia Gam, Gustavo Falcão, Selton Mello, Mariana Lima, José Dumont, Suyane Moreira, Luiz Carlos Vasconcelos, Aramis Trindade, Matheus NachtergaeleClassiFiCação indiCativa 16 anos

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FilmograFia Comentada116

Em 1942, no meio do sertão nordestino, dois homens vindos de mundos diferentes se encontram. Um deles é Johann, alemão fugido da 2ª Guerra Mundial que dirige um caminhão e vende aspirinas pelo interior do país. O outro é Ranulpho, um homem simples que sempre viveu no sertão e que, após ganhar uma carona de Johann, passa a trabalhar para ele como ajudante. Viajando de povoado em povoado, a dupla exibe filmes promocionais sobre o remédio “milagroso” para pessoas que jamais tiveram a oportunidade de ir ao cinema. Aos poucos surge entre eles uma forte amizade.

De um lado, um alemão doce e simpático que foge da guerra. Do outro, o retirante nordestino, irônico e descrente. São duas almas em ruínas. Duas visões de mundo que se confrontam a todo o momento para que, no fim, a solidariedade preva-leça – embora a contínua sensação de que tudo poderia ter sido diferente, de que tudo poderia ter dado errado, nos acompanhe até os créditos. A narrativa, aparentemente simples, se faz na ambição de costurar três complexas dimensões de relações simultâneas, entre os dois personagens, entre eles e o sertão, e entre eles e a Segunda Guerra Mundial. Cinema, Aspirinas e Urubus assume e se resignifica a partir de suas próprias lacunas. Ranul-pho e Johann mantêm um mistério desde

2005 35mm 101" 1,85:1

cinema, aspirinas e uruBus

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117Cinema, asPirinas e urubus

sempre e o sertão não é visto como uma chave simbólica para um território de conflitos e injustiças.

Um filme feito de perto, interessado em desvendar o ser humano em seus am-bientes (físico/geográfico e sociocultural). Um filme sobre a verdade de dois homens e suas trajetórias. Marcelo Gomes, em sua estreia em longas, defende um cinema de personagem, de observação da realidade e exploração de linguagem, fundamentado, sobretudo, numa fé incorrigível no próprio poder fabulatório da sétima arte. Um filme que não só afirma suas próprias quali-dades – revelando ao mesmo tempo um diretor de enorme talento, um ótimo ator (João Miguel) e um fotógrafo luminoso (Mauro Pinheiro Jr.) –, mas o faz, sempre, a serviço de uma história, crendo abso-lutamente em tudo aquilo que nos narra.

— Julio Bezerra

direção Marcelo Gomesroteiro Karim Ainouz, Marcelo Gomes, Paulo CaldasFotograFia Mauro Pinheiro Jr.montagem Karen HarleymúsiCa Tomaz Alves SouzaProdução João Vieira Jr, Maria Ionescu, Sara SilveiraComPanhia Produtora Rec Produtores Associados, Dezenove Som e ImagenselenCo João Miguel e Peter KetnathClassiFiCação indiCativa 14 anos

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FilmograFia Comentada118

Auxiliadora é uma jovem de 16 anos explorada por seu avô, Heitor. Ele vê falta de autoridade em tudo à sua volta, mas não pensa duas vezes antes de explorar a neta. Cícero pertence a uma conhecida família local e está apaixonado por Auxiliadora. Mas para tê‑la ele precisará enfrentar o avô dela.

Se algumas atitudes em Amarelo Manga poderiam soar patológicas, resultando em um desvio coletivo de psiques, em Baixio das Bestas, a relação homem/ambiente é mais direta. Se no primeiro filme não há as razões, mas apenas os efeitos de um contexto visualizado na aparência dos espaços e na atitude dos personagens, Baixio das Bestas segue, parcialmente, um outro caminho. Em seu prólogo em preto e branco, com imagens de torres de usinas desativadas e uma narração sobre o fim de um ciclo histórico, há a disposição de partir da causa. Feita essa associação, o filme se lança a um diag-nóstico de sintomas. Cada personagem ali expressa em alguma medida aquele ambiente. Juntos, eles compõem um pai-nel local, caracterizado pelo uso da força e do poder contra o corpo, como faziam os coronéis, latifundiários e senhores de engenho com seus escravos.

Há mais ambuiguidades e paradoxos em Baixio das Bestas que suas imagens aparentemente pensadas para chocar e testar limites podem nos evidenciar. Em uma das primeiras sequências, essa am-biguidade dá as cartas: o plano começa com a câmera no corpo da adolescente seminua, com uma luz “artística” a ilu-miná-la na penumbra. Vemos um recuo da lente até enquadrar Cícero, com uma expressão de repúdio em relação à atitude

Baixio das Bestas2006 35mm 80" 2,35:1

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119baixio das bestas

do velho, mas de desejo pela menina. O plano termina, sem corte desde o início, em uma cruz. Não seriam essas estetiza-ções, sem caráter pejorativo no uso do termo, atenuadoras da degradação? Não estariam procurando beleza onde querem expor a sujeira e a feiura? Por que dessa opção? O que interessa, afinal, em Baixio das Bestas, são as experiências? Ou a maneira de olhar para elas?

Dependendo de quem estiver a res-ponder essas questões, teremos diferentes respostas e argumentos, assim como a revelação de diferentes visões de cine-ma, diferentes critérios de se valorizar ou reprovar procedimentos. Ao assumir o formalismo da imagem e da mise‑en‑

‑scène, Cláudio Assis produz, sim, um distanciamento em relação ao material e, também, um rompimento com os códigos da representação justa da realidade. Sua justa representação daquele universo é a justa representação de Cláudio Assis. Um mundo de Cláudio Assis. Ele é tanto mais autêntico como “olhar” quanto mais for de Cláudio Assis, com toda sua tendên-cia para aliar repugnância a beleza, para extrair sua noção do artístico no pior de um ser humano em determinado espaço.

— Cléber EduardoTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/baixiocleber.htm

direção Claudio Assisroteiro Hilton LacerdaFotograFia Walter Carvalhomontagem Karen HarleymúsiCa PupilloProdução João Vieira Júnior, Julia Morais, Claudio Assis ComPanhia Produtora Parabólica Brasil elenCo Mariah Teixeira, Fernando Teixeira, Matheus Nachtergaele, Caio Blat, Marcélia Cartaxo, Hermila Guedes, Dira PaesClassiFiCação indiCativa 18 anos

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FilmograFia Comentada120

Críticos, diretores e atores de cinema discutem o conflito entre artistas, observadores, criadores e críticos. De 1998 a 2007, Kleber Mendonça Filho coletou depoimentos no Brasil, Estados Unidos e Europa utilizando sua experiência pessoal como diretor e crítico. O filme abre espaço para uma arte que é cada vez mais julgada pela indústria.

Um insight de Michel Ciment me desper-ta a atenção: “O texto crítico de cinema demanda o esforço de transpor uma lin-guagem visual para a escrita, de efetivar uma transformação”. Tradução: o crítico é aquele que se encarrega de mediar (me-ditar, lapidar) a passagem de um mundo para outro: um Logos, uma percepção dis-tintos. Ele é o impossível ponto de contato (de oclusão?), o intercessor diplomático e o bobo da corte desta Babel que é o cinema – ao menos, em sua dimensão mundana, “festivalesca”. Crítico obedece, neste sentido, a um propósito mimético; trata-se de emular esta vertiginosa ronda (de egos, de discursos), estes tumultuo-sos embates de que o crítico tenta ser o árbitro: imagens de arquivos e de filmes, irreconciliáveis “raccords espirituais” entre cineastas ressentidos e críticos im-passíveis (Daniel Filho, Ciment, Saada), alinhados lado a lado; cisão, deslocação.

2008 35mm 80"

crítico

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direção Kleber Mendonça Filhoroteiro Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça FilhoFotograFia Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filhomontagem Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça FilhomúsiCa Dj DoloresProdução Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça FilhoComPanhia Produtora Cinemascópio Produções elenCo Tom Tykwer, Eduardo Coutinho, Curtis Hanson, Carlos Reichenbach, Walter Salles, Carlos Saura, Gus Van Sant, Sergio Bianchi ClassiFiCação indiCativa 12 anos

O filme problematiza, através desta con-frontação metódica e arrítmica de repre-sentações, o juízo tácito (característico da logofilia ocidental) de que o intelectual seria uma espécie de sucedâneo de Deus sobre a Terra: por dominar a linguagem, ao mesmo caberia a tarefa de sintetizar e dispor a caótica des(ordem) da expe-riência; torná-la significativa: Fiat Lux! Aqui, todas as “criaturas” tem direito à luz, mesmo que em graus e intensidades dis-tintas: os artistas compensam a inanidade do discurso teórico com uma vitalidade exuberante, quase simiesca: Daniel Filho, Cláudio Assis à vontade como sempre, no banheiro como em Cannes; os críticos, por sua vez, compõem uma máscara fleumá-tica cujo fito é desviar nossa atenção da castração de que são vítimas (e o filme não se furta aos velhos truísmos: crítico é cineasta frustrado etc). O panorama é vasto e atordoante. Mas talvez seja este

precisamente o problema de Crítico: o filme tenta apreender o espectro diferen-cial de um mundo (um mundinho, por mais largas que sejam suas fronteiras), repercutir o magma, ilustrar o melting pot. Mas para que a diferença se faça perceber com força, é preciso o basso contínuo de uma unidade sub-reptícia, de uma estru-tura: a Ideia (Rosebud). Crítico é amorfo: a impressão que temos é de que não houve uma pré-seleção do material, tirando o recorte narrativo em blocos “ilustrativos”. Ao querer capturar (raptar?) e refletir as ramificações do Real (as suas interpre-tações), Kléber criador acabou por virar refém de sua “criatura”: por plasmar na carne de seu filme as hesitações e sobres-saltos de seus entrevistados.

— Luiz Soares Júnior

CrítiCo

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FilmograFia Comentada122

José Renato, 35 anos, geólogo, foi enviado para realizar uma pesquisa e terá que atravessar todo o sertão nordestino. Sua missão é avaliar o possível percurso de um canal que será feito para desviar as águas do único rio caudaloso da região. À medida que a viagem ocorre, ele percebe que possui muitas coisas em comum com os lugares por onde passa. Desde o vazio à sensação de abandono, até o isolamento, o que torna a viagem cada vez mais difícil.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é um filme feito a partir de imagens de Super 8, 16mm e digitais captadas pelos diretores Karim Ainouz e Marcelo Gomes, durante uma viagem ao sertão nordestino, para a produção de um documentário. Aqui, as imagens documentais registradas pelos dois diretores  são ficcionalizadas pela voz onipresente de José Renato, num ver-dadeiro road movie de retalhos de arquivo.

 José Renato é um geólogo enviado para realizar uma pesquisa. Ao mesmo tempo, ele tenta esquecer sua amada Jo-ana, de quem acaba de se separar. Nunca o vemos, só ouvimos sua voz e vemos imagens que simbolizam seu olhar.

2009 h264 75"

viajo porQue preciso, volto porQue te amo

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123viajo Porque PreCiso, volto Porque te amo

No início do filme, a narração de José Renato é técnica, controlada, seca. Seca como o sertão que vemos. Aos poucos, o personagem vai se abrindo, falando de sua vida, de seus problemas, de sua solidão. O filme deixa, portanto, de ser um diário de bordo e o personagem começa a estabelecer uma relação com os luga-res que visita, com as pessoas que vê. A  viagem e o filme pouco a pouco têm seu destino modificado. Roteirizado pelos próprios Ainouz e Gomes, e editado por Karen Harley, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é um verdadeiro exercício de montagem e roteiro, um filme essencial dentro da cinematografia pernambucana.

— Marina Pessanha

direção Karim Ainouz e Marcelo Gomesroteiro Karim Ainouz, Marcelo Gomes, Eduardo Bernardes (colaboração)FotograFia Heloísa Passosmontagem Karen HarleymúsiCa ChambarilProdução João Vieira Jr, Daniela CapelatoComPanhia Produtora Rec Produtores AssociadoselenCo Irandhir SantosClassiFiCação indiCativa 14 anos

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FilmograFia Comentada124

Fábio é garçom e cinegrafista. Registra importantes eventos no bairro de Brasília Teimosa (Recife). No seu acervo, raras imagens da visita do presidente Lula às palafitas. Fábio é contratado pela manicure Débora para fazer um videobook e tentar uma vaga no Big Brother. O filme constrói um rico painel sensorial sobre a arquitetura e faz da Avenida uma via de encontros e desejos.

Avenida Brasília Formosa talvez só possa ser pensado como um documentário por estar lá a logomarca do projeto do doCtv nas cartelas de abertura. Gabriel Mascaro usa uma estrutura em tableaux – normal-mente frontais, sempre muito bem com-postos e expressivamente fotografados

– que permite incorporar o não repetível do momento documental a uma estrutura narrativa que poderia, tranquilamente, ter sido toda roteirizada de antemão. É como se o “fato” documental (induzido ou não pelo diretor) servisse como matéria-pri-ma para uma montagem narrativa que organiza o material como um multiplot de dramaturgia bastante clara.

É difícil determinar sobre o que de fato trata Avenida Brasília Formosa. Um dos protagonistas é um documentarista local que conecta outras duas personagens do filme e cria uma falsa sensação de espelhamento entre a câmera que filma e a câmera filmada. Há uma relação clara com imagens – seja pela câmera do “fil-mador” profissional, pelo videocassete, pelo videogame, pelo Big Brother, ou pela janela de onde um casal assiste à vida da rua –, mas ela não parece suficientemente trabalhada para se transformar em um núcleo autônomo. E há, por fim, esse es-paço-título e tudo que ele implica.

Avenida Brasília Formosa é um filme de acompanhamento de um grupo de per-sonagens (quatro protagonistas) em um mesmo espaço (o bairro Brasília Teimosa) durante um determinado (mesmo que não

2010 85"

avenida Brasília formosa

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125avenida brasília Formosa

direção Gabriel Mascaroroteiro Gabriel MascaroFotograFia Ivo Lopes Araújomontagem Tatiana AlmeidaProdução Gabriel Mascaro, Mannuela CostaComPanhia Produtora Plano 9 Produções AudiovisuaiselenCo Débora, Cauan, Fabio, PirambuClassiFiCação indiCativa 16 anos

explicitamente) período de tempo. Nesse sentido, chegamos em terreno próximo ao de um certo cinema de fluxo, de matriz principalmente asiática, que privilegia uma dramaturgia de acúmulo de momen-tos a uma construção de trajetória mais clara. Mais do que um arco dramático, temos de fato uma sucessão de tempos fracos e fortes, nos quais somos dados a ver o universo daquelas quatro pessoas e a maneira como elas respondem a ele.

— Fábio AndradeTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/brasiliaformosa.htm

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FilmograFia Comentada126

Uma viagem de sonho em um cruzeiro rumo a Fernando de Noronha. As lentes dos passageiros captam tudo a todo instante. E eles se divertem, brincam, vão a noitadas. Desfrutam de seu ideal de conforto e bem‑estar. E, a cada dia, aproximam‑se mais do tão sonhado paraíso tropical.

Pacific é um filme realizado completa-mente a partir de material externo, sem um plano sequer produzido para o longa. Um filme questionador já nessa primeira instância, pois seu dispositivo é forte o suficiente para se tornar uma distração. É possível adorá-lo como síntese ou rejeitá-

-lo como sintoma antes mesmo de o filme começar, mas ambas as leituras (com to-das as implicações de “estética”, “autoria”,

“dispositivo”, “documento”, “camadas” etc., que elas naturalmente geram – umas mais pertinentes que outras) parecem insuficientes. Pois o que mais impressiona no filme de Marcelo Pedroso é justamente uma relação com as imagens que só pode ser bruta, de onde só é possível extrair um sentido se ele for material. Importa menos, portanto, tudo que existe a partir do filme e mais o que existe dentro dele. Pacific tem seu fluxo determinado por esse relevo interno das imagens, onde persiste o talento de Pedroso em perceber os cami-nhos, as rimas, os ritmos que engendram

2011 digital 71"

pacific

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127PaCiFiC

os planos, e que possibilitam uma relação de imersão no universo (físico e afetivo) que eles constroem.

É notável, portanto, que o filme tran-site em um caminho estreitíssimo onde o feelgood nunca se torna celebração, o confinamento não é filmado como prisão (pois é voluntário), e o retrato da alegria dos passageiros como obrigação social vem sem qualquer ironia. Se há um hu-mor latente em Pacific, ele vem de uma autoparódia que é incorporada pelas próprias personagens. O que persiste é um processo constante de autofabula-ção das personagens para suas próprias câmeras e uma aderência irrestrita do filme a essas personagens, seus universos, seus sentimentos, seus desejos. Em toda sua contemporaneidade, Pacific retoma uma das qualidades essenciais e mais clássicas do cinema: criar um universo crível e transitável, e nos dar a chance de realmente nos instalarmos nele por um determinado período de tempo.

— Fábio AndradeTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/pacific.htm

direção Marcelo Pedrosoroteiro Marcelo Pedrosomontagem Marcelo PedrosoProdução Milena Times, Pérola BrazComPanhia Produtora Símio FilmesClassiFiCação indiCativa 14 anos

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FilmograFia Comentada128

Zizo é um poeta inconformado e anarquista que banca a publicação de seu tabloide. Em seu mundo próprio, onde o sexo é algo tão corriqueiro quanto fumar maconha, ele conhece Eneida. Zizo logo sente um forte desejo por Eneida, mas, apesar de seus constantes pedidos, ela se recusa a ter relações sexuais com ele. Isto transtorna a vida do poeta, que passa a sentir falta de algo que jamais teve.

Nos dois primeiros longas de Cláudio Assis, era notável um conflito de dois grandes “programas”: mostrar o lado escroto do mundo e, por outro lado, mos-trá-lo com beleza. Febre do Rato, por sua vez, traz novos elementos para a obra de Assis.

Dois deles se destacam: o primeiro é o diálogo com a história do cinema brasi-leiro. Belair, Cinema Novo, o Cinema Per-nambucano dos anos 90 impregnados no filme como valores de atitude. O segundo é a orbitação do filme em torno de uma personagem sólida como nunca antes em seu cinema: Zizo, o protagonista. Ele vive a poesia, a performance, a agitação, a pulsão sexual, a melancolia do desa-juste e o amor, movido tanto pelo mais

2012 35mm 90" 1,78:1

feBre do rato

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129

romântico dos desejos – fundir-se com a mulher amada – quanto pelo mais carnal

– no primeiro encontro dos dois, ele já pergunta direto se Eneida quer transar com ele. Sua complexidade o torna um personagem intensamente expressivo, materializado na força da performance de Irandhir Santos, que compõe em Zizo uma síntese do artista-líder-mártir tão recorrente na cultura brasileira: Gregório de Matos, Glauber Rocha, Chico Science. Tudo orbita ao redor de Zizo: a câmera, as sensações, as revoltas, o microcos-mos construído com amigos e agregados. Sua intensidade faz de Febre do Rato o mais interessante filme de Cláudio Assis, onde seu “programa” encontra solidez na construção estética. A verborragia e

o confronto casam perfeitamente com a poetização e performance de Zizo.

Logo no início do filme, a câmera percorre a cidade do Recife pelo leito do rio, mostrando o centro da cidade, os prédios novos de luxo que começam a reconfigurar o espaço urbano, a favela, e finalmente chega no mangue, “a toca” que Zizo habita. É o leito do rio, o fluxo, o fluido, a “terceira margem” que Zizo, com sua comunidade, procura habitar. Uma margem de desejos, sensações e revolta calcados na visão poética do mundo.

— Raul ArthusoO autor já havia escrito sobre o filme em crítica publicada na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/febredoratoraul.htm

direção Claudio Assisroteiro Hilton LacerdaFotograFia Walter Carvalhomontagem Karen HarleymúsiCa Jorge dü PeixeProdução Julia Moraes, Claudio Assis ComPanhia Produtora Parabólica Brasil elenCo Nanda Costa, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Maria GladysClassiFiCação indiCativa 18 anos

Febre do rato

Page 132: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada130

Cris e Peu, seu irmão mais velho, são deixados na beira de uma estrada pelos próprios pais. Os irmãos foram castigados por brigar constantemente durante uma viagem à praia. Após algumas horas, percebendo que os pais não retornaram, Peu parte em busca de um posto de gasolina. Cris permanece no local por um dia inteiro e, sem notícias dos pais ou do irmão, decide percorrer ela mesma o caminho de volta para casa.

Algo como um drama de formação sobre uma menina e sua gradativa consciên-cia de si mesma, de sua autonomia, de seu mundo e dos espaços ao redor dele. Drama, aliás, é uma palavra empregada sem nenhuma inocência. Marcelo Lor-dello é de uma rara precisão dramática: personagens, câmera, texto, sentidos e significados. Uma espécie de prólogo nos introduz de maneira brusca (sentimo-nos jogados ali), porém marcada por sutilezas (como se aquele mundo se constituísse

2012 35mm 100"

eles voltam

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131eles voltam

gradativamente por meio de algumas in-formações e muitos detalhes). Eles Voltam chega por inteiro, mas de sapatinho.

O prólogo, suas durações alongadas, seu tom entre o abandono, o medo e a necessidade de movimento, seu convite à potência do mundo, a liberdade que essa chamada abre… tudo isso reverbera por Eles Voltam. O filme não apela melodra-maticamente para a situação de abandono de sua personagem, tampouco explora abusivamente uma identificação entre ela e os espectadores. O que se busca é muito mais um vínculo marcado por esse desafio arriscado que o mundo nos oferece. Cris nos atrai e nos repele, sem

nenhum controle sobre seu destino, sem-pre ao sabor do filme.

Eles Voltam desfila passagens memo-ráveis: o assentamento, a casa da domés-tica e suas filhas, as conversas entre as meninas, a viagem ao centro. Algo nestes momentos escapa ao drama do filme, não parece estar prescrito pelo roteiro ou di-retamente ligado à evolução da narrativa. Este algo que escapa tem efeitos não so-mente realistas ou de verossimilhança, mas também afetivos. O que escapa é algo que surpreende, que nos chama atenção para o tamanho do mundo.

— Julio Bezerra

direção Marcelo Lordelloroteiro Marcelo LordelloFotograFia Ivo Lopes Araújomontagem Eduardo SerranomúsiCa CaçapaProdução Mannuela Costa ComPanhia Produtora Trincheira Filmes elenCo Clara Oliveira, Elayne de Moura, Georgio Kokkosi, Germano Haiut, Teresa Costa Rêgo, Irma Brown, Jéssica Silva, Maria Luiza Tavares, Mauricéia ConceiçãoClassiFiCação indiCativa 14 anos

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FilmograFia Comentada132

Sete adolescentes assumem a missão de registrar por uma semana suas empregadas domésticas e entregar o material bruto para o diretor realizar um filme com essas imagens. Entre o choque da intimidade, as relações de poder e a performance do cotidiano, o filme lança um olhar contemporâneo sobre o trabalho doméstico no ambiente familiar e se transforma num potente ensaio sobre afeto e trabalho.

Doméstica é, na verdade, um filme de personagens. Partindo de uma primeira personagem bastante tipificada do mundo das empregadas domésticas – Vanusa, mulher marcada pela dor de amor, que encontra certo conforto no universo radio-fônico popular –, aos poucos, personagem a personagem, o filme desdobra seu título de maneira sempre improvável, dando-lhe novos rostos, cenários e ações, cada vez mais distante do registro estereotípico des-te primeiro encontro. A partir do recorte de classe, Gabriel Mascaro cria mais do que um panorama de tipos, mas uma coleção de pequenos retratos que não se anulam ou se complementam, apenas existem em tela, construídos da maneira mais inteira que se pode imaginar. Gracinha, Flávia,

2012 dCP ou dvd 85"

domÉstica

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Vanusa, Lena… todas as personagens de Doméstica são cuidadosamente desenha-das para existirem em lugares e relações muito específicos, justamente para que possam se afirmar únicas.A partir dessa unicidade, cada persona-gem rebate na estrutura que a determina, provocando alterações no próprio corpo e abalando levemente a estrutura com o choque. Para isso, é crucial que Mascaro não se deixe fascinar com a mais-valia antropológica que o material inevitavel-mente carrega, e encare o delicado desafio de criar dramaturgia a partir dele. Isso se dá tanto nos blocos individuais quanto na ordenação e conexão entre os blocos. Doméstica tem uma voz única que se re-configura com o avanço no tempo. A orga-nização feita pelo diretor (e seu montador) é norteada pelo desejo de que esse espaço geral – esse título tão sintético e singular, que fala não só de uma atividade, mas também de um espaço, de uma relação e de tantas outras coisas – também se reorganize internamente. A cada nova personagem, as chaves dão mais uma volta, mais uma volta, mais uma volta, como se o ímpeto de definição tentasse trancar uma porta que não se permite fechar. É justamente aí que Doméstica se torna um filme político.

— Fábio AndradeTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/domestica.htm

doméstiCa

direção Gabriel Mascaroroteiro Gabriel MascaroFotograFia Alana Santos Fahel, Ana Beatriz Oliveira, Jenifer Rodrigues, Juana Souza de Castro, Luiz Felipe Godinho, Perla Sachs, Claudomiro Netomontagem Eduardo SerranoProdução Rachel EllisComPanhia Produtora Desvia Produções Artísticas e AudiovisuaiselenCo Dilma dos Santos, Flávia Santos Silva, Helena Araújo, Lucimar Roza, Maria das Graças Almeida, Sérgio de Jesus, Vanuza de OliveiraClassiFiCação indiCativa 16 anos

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FilmograFia Comentada134

A vida numa rua de classe média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença desses homens traz tranquilidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira, uma reflexão sobre história, violência e barulho.

Os primeiros planos de Som ao Redor ins-tituem uma experiência de Memorabilia: uma série de fotografias maceradas pelo tempo nos informa de forma contundente que aquela história urbana e moderna é assombrada por uma Origem muito antiga, um Brasil profundo, que ao fi-nal o filme vai se encarregar de trazer à tona… Mas esta origem secreta parece ansiosa por emergir, e se materializa em planos e trajetórias “de detalhe” que nos advertem que a transparência clássica só pode voltar assombrada, Outra.. O filme é construído com todos aqueles desvãos e senões que “não deveríamos ver” na vida real, que não fomos feitos para ver; mas uma câmera sim… Há um canive-te casual que arranha o carro, há uma mulher que masturba uma máquina de lavar e centrifuga a maconha pelo cano do aspirador de pó; há um vulto que, num contracampo fantasmagórico, tinge uma

2012 35mm 124" 2,35:1

o som ao redor

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foda com a iminência do sangue porvir; há um homem que reencontra no cinema presente e fantasma o eco de um público desaparecido… Mas de onde vem estas pequenas fantasmagorias que se infiltram num dia claro e barulhento de sol – estes rastros e rasantes “quase nada”, que num crescendo deságuam no sonho da criança assombrada? Vem-me à cabeça a noção de unheimilich freudiano, que Bonizer identificou como fundamental ao cinema de Hitchcock: a aliança entre o anódino e o extraordinário… esta violência secreta que nos assalta aqui e ali é o signo de um passado recalcado, que insiste em ser pre‑sente. É na infância que este Segredo se oculta e se furta: a infância vilipendiada que exige Reparação (os dois vigilantes), a infância expropriada que se entrega à contemplação (a melancólica namorada de João, cuja casa será demolida para dar lugar a um prédio). É preciso seguir

o seu rastro, perseguir estas pistas: os travellings dianteiros em busca das crian-ças, o Scope agarofóbico, a inspeção geo-lógica de um trajeto de Memória (o casal de namorados, na fazenda e na antiga casa da moça). É preciso reconstituir pé ante pé um caminho que se extraviou, um espaço que foi desapropriado, uma expe-riência que se esqueceu… à la rercherche du temps exclu.

Ao final, a volta para casa: as duas pontas da vida e da morte, do Fim e da Origem voltam a se abrigar sob a infância; o feérico faz as pazes com o monstruoso, o Fatum com a Epifania, o fora de campo (Memória, Imaginário) enfim viola o cam-po e nele se instala, senhorial; e seguem… Mas até quando? E para onde?

— Luiz Soares JúniorTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/osomaoredor.htm

o som ao redor

direção Kleber Mendonça Filhoroteiro Kleber Mendonça FilhoFotograFia Pedro Sotero, Fabrício Tadeumontagem Kleber Mendonça Filho, João MariamúsiCa Dj DoloresProdução Emilie LesclauxComPanhia Produtora Cinemascópio elenCo Irandhir Santos, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Waldemar José SolhaClassiFiCação indiCativa 16 anos

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FilmograFia Comentada136

Recife, Pernambuco. Dirceu tem 30 anos e vem de uma família aristocrata do sertão nordestino. Ele trabalha em uma empresa de demolição ajudando nas diversas transformações que a cidade tem passado nos últimos anos. Ao encontrar Maria, uma estudante de música com alma de artista, ele passa a sentir a urgência por mudanças em sua própria vida.

Boa Sorte, Meu Amor é um filme que, à imagem e semelhança da trajetória de seus dois personagens, se “põe em mar-cha” e se “destina a”. Filme trôpego e disperso, gregário e contemplativo, road movie e home bitter home. Dirceu, um abastado bon vivant cujas origens remon-tam à aristocracia canavieira da Zona da Mata pernambucana, vive em Recife, uma cidade cuja paisagem vem sofrendo um considerável processo de transformação, em parte graças ao trabalho de sua família, proprietária de uma empresa de demoli-ção. À amnésia subjetiva – existencial e geográfica – do passado de sua família, Diego imprime um status concreto: ele está a serviço de uma máquina que vive do apagamento de rastros, da liquidação do passado. É aqui que o filme começa, deste lado do espelho; é aqui que Die-go “começa”, do fundo deste espelho de anomia e déficit existencial. Até conhe-cer Maria, que obriga o rapaz a revisitar (voltar?) o convexo de toda experiência côncava. Maria tem dez anos a menos que Dirceu, e o seu credo existencial parece se contrapor frontalmente ao dele – ao que faz, ao que nega: se Dirceu aspira a um mundo estável e presente, o mundo dos “filhinhos de papai e de vovô” reci-fenses, o mundo dos empreendedores e dos credores, Maria vive em litígio com o presente. Para ela, nada é como deveria ser. Em Maria, Dirceu parece entrever um pouco daquela infância sertaneja – livre, selvagem, outra – que ele, como homem

2012 35mm 95"

Boa sorte, meu amor

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de negócios e de decisões, precisou en-terrar. Neste espaço urbano violentado pelo way of life de uma classe cujo ideal do ego é uma crônica e niilista abjuração do Outro, configuram-se os sintomas de uma doença, e em Maria se vislumbra, senão a cura, a conjuração.

No filme, “está tudo ali”: a alienação, a apatia, a entropia existencial, a impossi-bilidade de ser-com; porém, não se ajusta ou coordena com a justa medida de um bloco unitário, de uma “perspectiva de”. Boa Sorte constitui uma colcha de retalhos ou de impressões que nunca chegam a erigir um “panorama” ou deflagrar uma síntese experiencial. Esta síntese nós só vamos encontrar perto do final, na jorna-da epifânica pelo sertão, que arremata a história. Na caminhada taumatúrgica com que se encerra, encontramos uma tensão e uma amplidão – de ritmo, de foco – onde

enfim se reconciliam todos os esparsos, fragmentários, precipitados momentos de que o filme, ao longo de sua trajetória, não conseguira achar o núcleo de contato ou o ponto de intersecção.

— Luiz Soares JúniorTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/boasortejunior.htm

boa sorte, meu amor

direção Daniel Aragãoroteiro Daniel Aragão, Gregorio Graziosi, Luiz Otavio PereiraFotograFia Pedro Soteromontagem Gregorio GraziosimúsiCa Jimi TenorProdução Pedro SeverienComPanhia Produtora Orquestra Cinema EstúdioselenCo Vinicius Zinn, Christiana Ubach, Maeve JinkingsClassiFiCação indiCativa 14 anos

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FilmograFia Comentada138

Recife, 1978. Clécio Wanderley é o líder da trupe teatral Chão de Estrelas, que realiza shows repletos de deboche e com cenas de nudez. A principal estrela da equipe é Paulete, com quem Clécio mantém um relacionamento. Um dia, Paulete recebe a visita de seu cunhado, o jovem Fininha, que é militar. Encantado com o universo criado pelo Chão de Estrelas, ele logo é seduzido por Clécio. Não demora muito para que eles engatem um tórrido relacionamento, que o coloca em uma situação dúbia: ao mesmo tempo em que convive cada vez mais com os integrantes da trupe, ele precisa lidar com a repressão existente no meio militar em plena ditadura.

Tatuagem é um filme que se desdobra sobre um universo visivelmente caro ao seu diretor. Hilton Lacerda não perde um plano como oportunidade de declarar seu afeto por tudo que transpõe para a tela. Esse desejo traz consigo um elemento acolhedor que explica muito do sucesso do filme nos seus primeiros contatos com o público, mas que, diante da experiência do filme, torna inevitável a dúvida de se há um limite para o afeto e se, em deter-minado momento, ele não gera somente um torpor sufocante. Tatuagem delineia um momento específico com cuidado, fala de criação, desejo e identidade, mas cabe pensar exatamente como o filme repre-senta todos eles.

Se Tatuagem é um filme efetivo no seu registro, isto se deve essencialmente à parceria do diretor com dois de seus

2013 35mm 110" 1,78:1

tatuagem

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principais colaboradores: o ator Irandhir Santos e o fotógrafo Ivo Lopes Araújo, ambos figuras emblemáticas do atual momento do cinema brasileiro. Neste tripé entre fotógrafo, ator central e um carinho genuíno pelo seu universo é que a representação do mesmo, em Ta‑tuagem, se instala. É um filme sobre a criação marginal tanto como modo de vida como de arte, que não esconde sua defesa apaixonada, mas que, no processo, a limpa de muito do que a torna especial. No filme, o desviante vai aos poucos se normatizando, beneficiado pela moldura histórica e a benevolência de olhar. Tudo que pode complicar esta imagem é cuida-dosamente movido para o fora de campo. Os personagens têm toda razão quando reclamam ao censor sobre seu espetáculo recém-censurado – não há, afinal, perigo real ali; o desbunde se revela um núme-ro de cabaré muito bem encenado, mas só ofensivo às senhoras mais carolas. O elogio do marginal passa por limpá-lo.

Cabe a Tatuagem funcionar como ver-são mais polida de certo jogo de auto-elo-gio da figura do artista e de uma suposta liberdade de linguagem que se tornou praxe em partes do cinema brasileiro. Não é como se o mundo de Tatuagem não abris-se espaço a seus personagens para o erro e a mesquinharia, mas simplesmente que a imagem do filme segue tão afirmativa que a representação desses mesmos elementos é sempre imprecisa e esvaziada.

— Filipe FurtadoTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/home/tatuagem-de-hilton-lacerda-brasil-2013/

tatuagem

direção Hilton Lacerdaroteiro Hilton LacerdaFotograFia Ivo Lopes Araújomontagem Mair TavaresmúsiCa Dj DoloresProdução João Vieira Jr., Nara AragãoComPanhia Produtora reC Produtores AssociadoselenCo Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo García, Silvio Restiffe, Sylvia PradoClassiFiCação indiCativa 16 anos

Page 142: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada140

Na parede de um bar, é possível ler a ins-crição “Entrar no acaso e amar o transi-tório”. Essa pequena expressão revela o tom do filme. Ou melhor, seu desejo: mais que a narração de situações – “fragmen-tos”, como afirma a cartela inicial – ele é feito de passagens instáveis entre o calor erótico do frevo e a frieza da escrita soli-tária, o rigor impresso no preto e branco fotográfico e a ligeireza da montagem, o improviso pueril do repente e a eternidade talhada em pedra da alta poesia.

Duas cenas em bares sintetizam esse jogo de valores que transitam. Na primeira,

domina a leveza e o improviso do repente, a chacota e interação coletiva em torno da alegria. Na segunda, por sua vez, a morte irrompe a cena, as pessoas se juntam na curiosidade pelo desastre, a tônica é a solidão do protagonista que não compar-tilha isso. Esse contraste já está no título: a rigidez altiva do soneto associa-se à desmesura melancólica do blues. Esse cosmo instável, desencontrado e poético é um ideal estético perseguido por Assis em sua obra posterior.

— Raul Arthuso

Filme sobre a vida e a obra do poeta pernambucano Carlos Pena Filho.

direção Claudio Assisroteiro Adelina Pontual, Carlos Pena Filho, Vital SantosFotograFia Marcelo Durstmontagem Vânia DebsmúsiCa Victor LazzariniProdução Claudio AssisComPanhia Produtora Parabólica Brasil elenCo Henrique Amaral, Virginia Cavendish, Maria VasconcelosClassiFiCação indiCativa 18 anos

1993 35mm 9"

soneto do desmantelo Blue

Page 143: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada 141

1994 35mm 16"

Orson Welles esteve entre nós. O rádio contextualiza (enquanto a câmera passeia por um hotel): anos 40, segunda guerra mundial, política da boa vizinhança, o interesse do cineasta americano pelas jangadas. Welles recebe Antônio Ban-deira, Benício Dias e Caio Souza Leão. Eles visitam cabarés e “jogam conversa fora” sobre cinema, mulheres etc. Welles é uma coleção ambulante de citações fa-mosas. Ele, contudo, fala em português

– o próprio cineasta faz graça desta “li-cença artística”. Lírio Ferreira, em seu primeiro curta, em uma codireção com Amin Stepple, revela aquela tendência saudável pelo descompromisso, por uma certa anarquização ou instabilidade, além da queda pela situação dramática de um sujeito estranho a um determinado lugar e do apreço pela câmera mais solta, que gira e faz curvas. Marcas dos filmes que viriam anos depois. Em certos momentos, uma melancolia vem à superfície (e se a visita de Orson Welles tivesse deixado frutos?). Ela, contudo, submerge num piscar de olhos.

— Julio Bezerra

Julho de 1942. Desembarca no Recife o cineasta Orson Welles, que filma a cidade e faz uma grande farra com os intelectuais provincianos. Assunto: “cinema”.

direção Lírio Ferreira, Amin Steppleroteiro Lírio Ferreira, Amin SteppleFotograFia Katia Coelhomontagem Vânia DebsProdução Lírio Ferreira, Aramis Trindade, Marcelo PinheiroComPanhia Produtora Trama ProduçõeselenCo Chico Accioly, Jones Melo, Aramis Trindade, Paulo Falcão, Daniela Mastroianni, Rutílio OliveiraClassiFiCação indiCativa 16 anos

that’s a lero lero

Page 144: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada142

1999 35mm 14" 2,35:1

É inegável que Texas Hotel guarda seme-lhanças com Amarelo Manga, o primeiro longa de Claudio Assis. Temos o mesmo lugar, os mesmos movimentos de câmera zenitais que revelam a realidade entre paredes e alguns dos mesmos persona-gens (ainda que ligeiramente distintos ou apenas rascunhos do que veríamos mais tarde). Mesmo assim, é preciso admitir que se trata de uma obra distinta. Nela, o personagem principal é o Hotel e seu espaço de realidades claustrofóbicas. Di-ferentemente do longa, Texas Hotel é um exercício de estilo mais puro, nos seus mo-vimentos de câmera coreografados, com a luz no limite da subexposição, na apa-rente ausência de história e no final seco. O filme foi a primeira parceria de Claudio Assis com o fotógrafo Walter Carvalho e inaugura uma postura estética que iria construir os fundamentos da obra futura do cineasta. O curta metragem Texas Hotel é sem dúvida um filme seminal.

— José de Aguiar

direção Claudio Assisroteiro Hilton Lacerda e Claudio AssisFotograFia Walter Carvalhomontagem Paulo SacramentomúsiCa Jorge dü Peixe, Lúcio MaiaProdução Claudio Assis, Cecília Araújo ComPanhia Produtora Parabólica Brasil elenCo Jonas Bloch, Jones Melo, Otto, Jeison Wallace, Conceição Camaroti, Aramis TrindadeClassiFiCação indiCativa 18 anos

O que acontece enquanto a vaca vai e vem.

texas hotel

Page 145: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada 143

Uma menina. Ela é Clarice, Clarice Lispec-tor. Ela nos chega como que por aforismos: a ânsia de esperar por um livro, a primeira fantasia de carnaval, a visita ao laborató-rio da escola, a morte da amiga galinha, o passeio em família pela praia, a bala que não acaba, o sonho de escrever um livro sem fim, a mudança para o Rio de Janeiro. E o filme jamais se coloca acima daquilo que nos mostra. Ainda que um tanto irregular, Clandestina Felicidade se mantém olho no olho, irmanado à sua personagem. Clarice olha de frente para

a câmera. Talvez esteja nos chamando mais para perto. Talvez seu olhar seja mais um atestado de afinidade para com a instância narrativa, fabulatória. O cinema não é muito mais do que uma maneira de olhar para o mundo. Marcelo Gomes e Beto Normal fazem valer um olhar gene-roso, centrado na noção de personagem, na maneira como ele se relaciona com o que o rodeia, e, sobretudo, na crença da veracidade de tudo aquilo que narram.

— Julio Bezerra

Fragmentos de uma infância, de uma descoberta do mundo, pelo olhar curioso, perplexo e profundo da criança‑escritora Clarice Lispector em 1929.

direção Marcelo Gomes, Beto Normalroteiro Marcelo Gomes, Beto NormalFotograFia Jane Malaquiasmontagem Vânia DebsmúsiCa Fred 04 e Dj DoloresProdução Alcir LacerdaComPanhia Produtora Parabólica BrasilelenCo Luisa Phebo, Nathalia Corinthia, Luci AlcântaraClassiFiCação indiCativa Livre

1998 35mm 15"

clandestina felicidade

Page 146: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada144

2005 35mm 22" 1,66:1

O espaço em cinema obedece a um prin-cípio expressionista: ele é usado para exteriorizar um fantasma, atualizar uma situação latente, tornar claro e evidente um malaise… é o caso aqui. A ideia matriz por trás deste espaço excessivamente re-cortado por fronteiras (grades, o ponto de vista interno do micro-ondas), demarcado e vigiado é de que a pequeno-burguesia recifense habita um universo concentra-cionista – o “lar” é uma prisão consentida, e coabitar um mesmo espaço implica a mobilização de um estudado empenho di-plomático, com direito a Alfândega e tudo (o rapaz que pede água, do outro lado do front de batalha). Afinal, é a Guerra que se trata de evitar… Ao inventário minucioso deste espaço estratégico, corresponde

uma dupla tática de apreensão temporal: no início do filme, em planos longos e laboriosos – tumefactos de sol e de horror vacui –, a crônica de uma evacuação: este mundo consiste em um catálogo estrito de funções; a figura humana é aquele ponto achatado que a câmera entrincheira na verticalidade do quadro. Mas um gradual crescendo vai se impondo ao ritmo; os planos lentos se estilhaçam, percutidos agora por uma montagem arfante: um clímax se anuncia, uma percepção Outra…Vã ilusão: o orgasmo acaba por aprisionar novamente a personagem, agora sob o uterino Paraíso da máquina de lavar.

— Luiz Soares Júnior

Classe média, anos 90, 220 Volts.

direção Kleber Mendonça Filhoroteiro Kleber Mendonça FilhoFotograFia Roberto Santos Filhomontagem Kleber Mendonça Filho, João MariaProdução Emilie Lesclaux, Carol Ferreira, Leo Falcão, Lua Silveira, Roberto Santos FilhoComPanhia Produtora Cinemascópio Produções, Ruptura Cinematográfica elenCo Gabriela Souza, Magdales Alves, Pedro BandeiraClassiFiCação indiCativa 16 anos

eletrodomÉstica

Page 147: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada 145

2008 35mm 18"

Alma no vazio, deserto em expansão.

direção Tiãoroteiro TiãoFotograFia Pedro Uranomontagem João MariaProdução Stella ZimmermanComPanhia Produtora Trincheira FilmeselenCo Renata Lima, Antônio Edson, Inaê Veríssimo, José HumbertoClassiFiCação indiCativa 16 anos

Muro é um planeta à parte. Estamos na lua sem capacete, sem macacão, sem foguete de ida ou volta, sem gravidade. Inven-ção de um mundo, de um esquema sem esquematismo, de experimentação sem vanguardismo, de formas em mutação sem formalismo. Esqueça a tradicional relação de encadeamento entre os pla-nos. Esqueça a tão estudada dinâmica do choque de Eisenstein. Efeito cinético. Formas em mobilidade, em mobilização, em desmobilização de códigos. A tela está toda ocupada pelas imagens, pelo som, pelo silêncio, pela expansão da visuali-dade. Cabeça na areia, vestido de noiva, brincadeira de crianças, um aparente ritual, adulto e infantil, em dois tempos ou em um só tempo, que, como convém

lembrar, não é duração em continuidade e sim acúmulos paralelos, com passado e presente conectados. Uma imagem não chama a outra, mas uma imagem se relaciona com a outra. Imagens de as-tronauta e uma retomada aos evangelhos (primeira pedra) – o tal futuro e presente da humanidade – em conexão com futuro e presente daqueles corpos expandidos por todos os fluxos, organizado em blocos que, se não somam A com B, também não implodem a noção de “circuito visual”. Abra os olhos, abra a mente, abra a per-cepção. Ou saia.

— Cléber EduardoTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/cinepe09dia2muro.htm

muro

Page 148: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada146

2008 35mm 19"

Um universo: uma sala de aula repleta de adolescentes em prova. Dele, irrompe uma situação inesperada: uma diarreia. Uma tensão violenta se apodera então das relações entre os personagens, entre eles e os espaços, e contamina o filme. N° 27 é um filme sobre violências e crueldades cotidianas. Esta violência e crueldade, contudo, não é do filme, mas no filme. Afinal, Marcelo Lordello nos prende no banheiro junto com o seu protago-nista. Nós nos sujamos com o persona-gem. O fora de quadro é uma questão

de moral, digamos. É ainda preciso dizer que N° 27 é de uma precisão dramática impressionante, seja no que diz respeito à decupagem, aos movimentos de câmera, ao fora de quadro, ao ritmo e duração dos planos, seja no que concerne à curiosa inexpressividade de seu protagonista ou a relação entre atores e espaços. Lordello faz de uma situação banal de vulnerabi-lidade um exercício de linguagem. Um exercício rigoroso, mas jamais asfixiante.

— Julio Bezerra

– O banheiro tá na limpeza. Luiz responde, segurando a maçaneta com toda força. – Limpeza? Deixa de conversa porra, abre a porta! – O banheiro tá na limpeza, procura outro, por favor. – Que limpeza... abre logo a porta, eu quero mijar, velho! – Meu irmão, você pode chamar o coordenador, por favor...

direção Marcelo Lordelloroteiro Marcelo LordelloFotograFia Roberto Iurimontagem Marcelo LordellomúsiCa Lucas AlencarProdução Lívia MeloComPanhia Produtora Trincheira FilmeselenCo Alexandre Sampaio, Ana Claúdia, Caio Almeida, Jorge Queiroz, Lucas Glasner, Marília Mendes, Renata Roberta ClassiFiCação indiCativa 14 anos

nº 27

Page 149: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada 147

2008 35mm 17"

A ornamentação na ruína; o escuro no claro; o silêncio na voz; o imóvel na ação.

direção Renata Pinheiroroteiro Renata Pinheiro e Sergio OliveiraFotograFia Pedro Uranomontagem João Maria AraújoProdução Sergio OliveiraComPanhia Produtora Aroma FilmeselenCo Everaldo PontesClassiFiCação indiCativa 14 anos

Superbarroco é o filme de estreia de Re-nata Pinheiro na direção. Pinheiro vem de uma carreira sólida como diretora de arte (Amarelo Manga, Baixio das Bestas, A Festa da Menina Morta) e é também artista plástica. O que talvez explique a grande criatividade e liberdade com que o belo visual do filme foi imagina-do. O filme começa nos apresentando um homem (vivido pelo brilhante ator Everaldo Pontes) catando objetos pela rua sozinho. Ele segue sua caminhada até

a praia quando imagens são projetadas sobre a areia por onde pisa. A partir daí, o filme é invadido por efeitos ilusionistas e sonoros que parecem nos remeter à me-mória, aos desejos e aos sentimentos deste homem. Nada do que vemos e sentimos é muito certo, o filme deixa espaços em branco, lacunas, ficando a cargo de cada um refletir e compreender sua experiência a partir de suas próprias sensações.

— Marina Pessanha

superBarroco

Page 150: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada148

2005 35mm 22" 1,66:1

O cinema é uma arte condenada, por sua essência fotográfica, ao realismo. Fabular e simbolizar são operações pe-rigosas, dessacralizantes: a “pegada de realidade” que André Bazin identificava no plano resiste bravamente a qualquer torção metafórica; as derivas do imagi-nário, o rincão do Desejo precisam sofrer a delituosa intempérie da encarnação: manifestar o espectro no hic et nunc do plano, materializar o onírico no espa-ço-tempo “à mão”, infligir à aura e ao delírio um status de “objeto”. Recife Frio corre os riscos da fabulação, da fantasia rapsódica, da féerie. Mas através de uma operação paradoxal, que consiste em um

acréscimo de realismo: os recortes, esti-lhaços de imagens quaisquer (tiradas do youtube, tv) comparecem aqui com o fito de encarecer a tese inverossímil (o Recife frio), de dar peso e transparência à fábula. Uma série de fragmentos, expropriados à realidade imagética de nosso tempo, aca-ba por inserir a hipótese absurda no circui-to mimético do realismo: tudo parece real porque, afinal, foi tirado do Real. Porque

“deu no youtube”… Como a foto-montagem em Chris Marker, a associação de “detri-tos” permanece um método sólido para a especulação e o devaneio.

— Luiz Soares Júnior

A cidade brasileira do Recife, que já foi tropical, agora é fria, chuvosa e triste, depois de passar por uma desconhecida mudança climática.

direção Kleber Mendonça Filhoroteiro Kleber Mendonça FilhoFotograFia Kleber Mendonça Filhomontagem Kleber Mendonça Filho, Emilie LesclauxProdução Emilie LesclauxComPanhia Produtora Cinemascópio Produções elenCo Andrés Schaffer, Antonio Paulo, Cristiane Santos, Djanira Pessoa Correia, Enio, Gilvan Soares, Gleice Bernardo de França, Graça Araújo, Jr. Black, Julio Rocha, Patativa, Pedro Bandeira, Pinto, Rodrigo Riszla, Yannick Ollivier ClassiFiCação indiCativa 10 anos

recife frio

Page 151: Mostra Cinema Pernambucano

FilmograFia Comentada 149

direção Gabriel Mascaroroteiro Gabriel MascaroFotograFia Gabriel Mascaromontagem Tatiana AlmeidaProdução Gabriel MascaroComPanhia Produtora Plano 9 ProduçõeselenCo Gabriel Mascaro, Paulo BrusckyClassiFiCação indiCativa 16 anos

As Aventuras de Paulo Bruscky é um filme sobre a (história da) realização cinemato-gráfica. Um filme sobre se fazer um filme. Talvez seja o único filme de making of realmente possível – pelo simples moti-vo de que nem o filme nem o making of, de fato, existem. Eles se igualam em sua inexistência. O filme nasce do pré-mundo, da criação de uma personagem, e vai até o pós-mundo, soltando a personagem na estratosfera. Em dado momento, Paulo Bruscky fala de um projeto pré-lumièriano de fazer um filme sem câmera, sem filme, com imagens presas aos batentes do tri-lho do trem, vistas em movimento pela velocidade do próprio trem. O curta é a

realização metafórica e deformada deste filme. Gabriel Mascaro precisa “inventar” um novo meio para registrar uma nova experiência de mundo, e seu filme sobre-vive no mesmo limite entre o registro – do mundo diegético e do não-diegético hoje – e a invenção. Realizar um filme em Second Life é aproveitar a ampla possibilidade de se moldar um mundo e documentá-lo em sua inteireza. É talvez o mais próximo que se possa chegar de um documentário feito aos moldes do cinema de estúdio.

— Fábio AndradeTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/paulobruscky.htm

O artista Paulo Bruscky entra na plataforma de relacionamento virtual Second Life e conhece um ex‑diretor de cinema, Gabriel Mascaro. Paulo encomenda a Gabriel um registro machinima em formato de documentário de suas aventuras no Second Life.

2008 35mm 17"

as aventuras de paulo Bruscky

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FilmograFia Comentada150

Praça Walt Disney propõe um retrato de um dia em Boa Viagem, no Recife, em especial nos arredores da praça-título. É mais um dos vários filmes pernambuca-nos recentes marcados pela reurbanização da orla, no caso, através de uma comédia de observação, com ritmo à Jacques Tati. Há uma gag recorrente no filme, em que lugares específicos são sobrepostos a fotos antigas deles mesmos, e o filme todo fun-ciona nesta chave: a câmera de Pinheiro e Oliveira localiza algo novo em cada

um destes lugares, encontra um ponto de fuga para eles. O filme se reitera um pouco demais ao longo da duração expli-citando suas operações em excesso, mas nunca perde este frescor de olhar. Renata Pinheiro e Sergio Oliveira nos lembram que existe algo eminentemente político no simples ato de ver.

— Filipe FurtadoTrecho de texto original publicado na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/tiradentes11dia6.htm

Boa Viagem, Recife, Pernambuco, 51111‑260, Brasil.

direção Renata Pinheiro e Sergio Oliveiraroteiro Renata Pinheiro e Sergio OliveiraFotograFia Pedro Uranomontagem Michael WahrmannProdução Sergio OliveiramúsiCa João do Cello, Bernardo Vieira, Paul Dukas e Dj RochaComPanhia Produtora Aroma FilmeselenCo Junio BarretoClassiFiCação indiCativa 10 anos

2011 35mm 21"

praça Walt disney

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FilmograFia Comentada 151

direção Coletivao Projeto Contou Com PartiCiPação de Allan Christian, Ana Lira, André Antônio, André George Medeiros, Auxiliadora Martins, Caio Zatti, Camilo Soares, Chico Lacerda, Chico Mulatinho, Cristina Gouvêa, Diana Gebrim, Eduarda Ribeiro, Eli Maria, Felipe Araújo, Felipe Peres Calheiros, Fernando Chiapetta, Geraldo Filho, Grilo, Guga S. Rocha, Guma Farias, Iomana Rocha, Isabela Stampanoni, João Maria, João Vigo, Jonathas de Andrade, Larissa Brainer, Leo Falcão, Leo Leite, Leonardo Lacca, Lúcia Veras, Luciana Rabelo, Luís Fernando Moura, Luís Henrique Leal, Luiz Joaquim, Marcele Lima, Marcelo Lordello, Marcelo Pedroso, Mariana Porto, Matheus Veras Batista, Mayra Meira, Michelle Rodrigues, Milene Migliano, Nara Normande, Nara Oliveira, Nicolau Domingues, Paulo Sado, Pedro Ernesto Barreira, Priscilla Andrade, Profiterolis, Rafael Cabral, Rafael Travassos, Rodrigo Almeida, Tamires Cruz, Tião, Tomaz Alves Souza, Ubirajara Machado e Wilson FreireClassiFiCação indiCativa 18 anos

O Projeto Torres Gêmeas é uma obra coletiva, fruto da participação direta ou indireta de cerca de 50 pessoas – além de quase dois anos de muitas discussões. Um filme sobre Recife. Sobre uma Recife cada vez mais privatizada, verticalizada, motorizada, dividida, despersonalizada, sem calçadas – cujo maior símbolo talvez seja o empreendimento imobiliário que dá nome ao curta, construído na zona portuária. Um filme sobre as relações de poder que fizeram desta cidade uma sucessão de absurdos naturalizados. O ci-nema apresenta suas armas: a montagem

paralela, a ironia, a voz off, o depoimento, o contraplano etc. Não se trata somente de uma crítica ácida, embora este seja um filme sem mais ou menos ou contempo-rizações, feito, claramente, por quem se sente diariamente estuprado pelo modo totalitário de conceber a cidade que vem moldando não somente Recife, como todas as nossas capitais. É também uma provocação e uma convocação ao diálogo. Afinal de contas, de quem é essa cidade? Este é um filme sobre o futuro de Recife.

— Julio Bezerra

Numa cidade invadida por tubarões, a elite tenta chegar ao nível mais alto do mar, já antevendo uma iminente catástrofe. O Projeto Torres Gêmeas é fruto de várias discussões que vêm sendo realizadas sistematicamente desde 2009. Ele nasce da vontade de algumas pessoas ligadas ao meio audiovisual pernambucano de falar do Recife e de suas relações de poder a partir do projeto urbano que vem sendo desenvolvido na cidade.

2011 digital 20"

projeto torres gêmeas

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FilmograFia Comentada152

Rodrigo é surdo e trabalha numa equipadora instalando som em carros. O filme é uma jornada sensorial sobre um cotidiano marcado por ruídos, vibrações, incomunicabilidade, ambiguidade e dúvidas.

direção Gabriel Mascaroroteiro Gabriel MascaroFotograFia Gabriel Mascaromontagem Eduardo SerranoProdução Gabriel MascaroComPanhia Produtora Artaids (Espanha), Desvia (Brasil)elenCo Márcio Campelo Santana ClassiFiCação indiCativa 16 anos

Caso já se saiba de antemão que o prota-gonista de A Onda Traz, O Vento Leva é surdo, mudo e portador de hiv, pode-se imaginar um filme de certo peso trágico, melancolia e comiseração pela situação. A singularidade do filme reside em fugir disso: há um misto de fascínio pelo lado extraordinário da personagem e surpresa com a leveza, puerilidade e malandragem com a qual ele leva a vida. Isso se estabe-lece numa justeza do olhar do realizador para seu objeto – termo impreciso se pensarmos o quanto o personagem-ator é tão agente e a câmera tão passiva e ob-servadora. Essa distância marcada entre

o personagem que age e a câmera que ob-serva materializa um verdadeiro gesto de alteridade: o filme pertence inteiramente a seu protagonista; por parte do realizador há uma entrega total ao ritmo, aos gestos, ao entorno de seu protagonista. O filme de Gabriel Mascaro é uma reconstituição do sentimento de lidar com algo que escapa aos olhos.

— Raul ArthusoO autor já havia escrito sobre o filme em crítica publicada na revista Cinética www.revistacinetica.com.br/vitoria20124.htm

2012 hd dlsr 28"

a onda traz, o vento leva

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154 sobre os autores

Cléber eduardo É crítico, diretor e curador. Mestre em Cinema pela eCa/usP, é professor de Teoria do Audiovisual no Centro Universitário Senac e curador da Mostra de Cinema de Tiradentes. Dirigiu os curtas Almas passantes – um percurso com João do Rio e Charles Baudelaire (2009) e Rosa e Benjamin (2011).

Fábio andradeEditor da Revista Cinética. É formado em jornalismo e cinema pela PuC-Rio e tem extensão em roteiro cinematográfico pela School of Visual Arts de Nova York. É crítico de cinema, roteirista, montador e mantém o projeto musical Driving Music (www.driving-music.net/home). Escreveu para publicações como a Filme Cultura e para livros e catálogos de mostras e festivais no Brasil e exterior. No cinema, tem trabalhos com os diretores Paula Gaitán, Eryk Rocha, Geraldo Sarno e Bruno Safadi.

FiliPe FurtadoEditor da Revista Cinética e ex-editor da revista Paisà. Escreveu para publicações como Contracampo, Cine Imperfeito, Teorema, Rouge, The Film Journal e La Furia Umana. Mantém o blog Anotações de um Cinéfilo (www.anotacoescinefilo.com).

ináCio araújoCrítico de cinema do jornal Folha de São Paulo. É autor de dois livros sobre a sétima arte: Hitchcock, o Mestre do Medo (Brasiliense, 1982) e Cinema, o Mundo em Movimento (Scipione, 1995). Escritor, é autor dos romances Casa de Meninas (Marco Zero, 1987) e Uma Chance na Vida (Scipione, 1992). Entre os anos 1970 e 1980, foi montador, ro-teirista e assistente de direção e montagem em diversas produções. Escreveu, montou e dirigiu “Aula de Sanfona”, episódio do filme As Safadas (1982).

josé de aguiarÉ produtor e diretor de filmes e programas de tv. Assinou a direção de arte dos curtas premiados Satori Uso (2007), Booker Pittman (2008),

soBre os autores

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155sobre os autores

Haruo Ohara (2010) e Menino Peixe (2012). É colaborador na revista Taturana e atuou como produtor e coordenador gráfico das retrospectivas de Abel Ferrara, Samuel Fuller e Oscar Micheaux no CCbb. Dirigiu e produziu a série Esquinas (Canal Brasil).

josé geraldo CoutoJosé Geraldo Couto é jornalista, crítico de cinema e tradutor. Trabalhou por mais de vinte anos na Folha de São Paulo e por três na revista Set. Publicou, entre outros, os livros André Breton (Brasiliense, 1984), Brasil: Anos 60 (Ática, 1990) e Futebol Brasileiro Hoje (Publifolha, 2009). Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital e mantém a coluna No Cinema no blog do Instituto Moreira Salles.

juliano gomes Crítico e professor. Formou-se Dr. em comunicação pela uFF com uma tese sobre o corpo no cinema contemporâneo. Assinou a curadoria das retrospectivas de Abel Ferrara e Samuel Fuller no CCbb e mantém o blog Kinos (www.cinekinos.blogspot.com). Dirigiu e produziu a série Esquinas (Canal Brasil).

julio bezerraRedator da Revista Cinética. É formado em jornalismo, publicidade e cinema pela PuC-Rio. Professor, faz doutorado na eCo-uFrj. É diretor e roteirista do curta … (2007). Escreveu para publicações como a Filme Cultura e para livros e catálogos de mostras e festivais pelo Brasil – além de ter participado de comitês de seleção de festivais como Curta Cine-ma e Mostra do Filme Livre. Faz a concepção audiovisual de diversos espetáculos de teatro e dança desde 2010.

leonardo setteDirigiu os curtas Ocidente (2008), Confessionário (2009) e Porcos Rai‑vosos (codiretor, 2012), selecionado para a Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes. Em 2011 codirigiu e montou o longa-metragem As Hiper Mulheres, exibido nos festivais de Gramado (Kikito especial do júri e melhor montagem) e Roterdã, entre outros.

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156 sobre os autores

luCiana Corrêa de araújoPesquisadora e professora do Departamento de Artes e Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, da Universidade Federal de São Carlos. No pós-doutorado (Unicamp), pesquisou as atividades cinematográficas em Pernambuco nos anos 1920. Publicou, entre outros trabalhos, os livros Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos (Alameda, 2014) e A crônica de cinema no Recife dos anos 50 (FundarPe, 1997).

luiz soares júniorCrítico de cinema e tradutor. É redator da Revista Cinética, do site À pala de Walsh, e mantém o blog Dicionários de Cinema (www.dicionariosde-cinema.blogspot.com.br) de traduções de crítica de cinema francesa. É mestre em filosofia da arte pela uFPe com dissertação sobre Heidegger e fenomenologia.

marina PessanhaÉ formada em jornalismo pela PuC- Rio, com mestrado em cinedocumen-tário pela Universidade Autônoma de Barcelona. É diretora e roteirista de documentários e programas de tv, e assinou a curadoria e produção de diversas retrospectivas de cinema no CCbb e Caixa Cultural. Dirigiu e produziu a série Esquinas (Canal Brasil).

raul arthusoMestrando em Meios e Processos Audiovisuais na eCa-usP, é crítico da Revista Cinética. Colaborou também com as revistas Teorema, Taturana e o blog da Cosac Naify. Dirigiu os curtas-metragens Mamilos (2009), O Pai Daquele Menino (2011) e Master Blaster – uma Aventura de Hans Lucas na Nebulosa 2907N (2013).

viCtor guimarãesGraduado e mestre em Comunicação Social pela uFmg. Crítico da Revista Cinética, professor do Centro Universitário una e integrante do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência (uFmg). Foi coordenador do Júri Jovem da Mostra de Cinema de Tiradentes (2012 e 2013), integrante das comissões de seleção do forumdoc.bh (2012 e 2013) e do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2013) e curador da mostra Políticas do Cinema Moderno, do Cineclube Comum (2013). Escreveu para publicações como Doc Online (Portugal), Lumière (Espanha), Imagofagía (Argentina) e La Furia Umana (Itália) e para livros e catálogos de festivais.

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crÉditos finais

PatroCínioBanco do Brasil

realizaçãoCentro Cultural Banco do Brasil

ProduçãoFirula Filmes

CuradoriaMarina Pessanha

Coordenação de ProduçãoJosé de AguiarJulio Bezerra

Produção exeCutivaJosé de AguiarJulio Bezerra

assistente de Produção exeCutivaRafael Bezerra

Produção de CóPiasJosé de AguiarJulio BezerraMarina Pessanha

Produção loCalDaniela Marinho – dFRafaella Rezende – dFRenata da Costa – sP

identidade visualGuilherme GeraisMarcus BellaverPablo Blanco

vinheta Jaiê Saavedra

transPorte naCional TPK Transportes

assessoria de imPrensaRenato Acha / Acha Brasília – dFF&M Procultura – sP

Catálogo

idealização e organizaçãoJulio BezerraMarina Pessanha

Produção gráFiCaJosé de AguiarMarina Pessanha

Projeto gráFiCoGuilherme GeraisMarcus BellaverPablo Blanco

revisão Ana MoraesManuela Medeiros

Créditos Finais

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159Créditos Finais

agradeCimentosAna Beatriz Vasconcelos Angela Lima Cláudio AssisCharles PessanhaChico ScienceDani ValentimDora AmorimDiego Oliveira de AssisEduardo ReginatoElias OliveiraElina Fonte PessanhaFábio SavinoGeraldo PinhoGustavo CosanHernani HeffnerInácio AraújoJaiê SaavedraJair Silva Jr.José Geraldo CoutoLírio FerreiraMurilo SallesNatalia Engler PrudencioPaula AlfaiaPaulo CaldasRenata PinheiroThiago StivalettiValéria Luna

As imagens publicadas neste catálogo têm como detentoras as seguintes produtoras/distribuidoras: Aroma Filmes, Cinema Brasil Digital, Cinemascópio Produções, Desvia, Imovision, Orquestra Cinema Estúdios, Paulo Caldas, Parabólica Brasil, Plano 9 Produções, Raccord Produções, Rec Produtores Associados, Trama Produções, Trincheira Filmes, Vitrine Filmes. A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços, porventura houver omissões à listagem anterior. Comprometemo-nos a reparar tais incidentes em caso de novas edições.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CiP)

a282n

Aguiar, José de.

O novo cinema pernambucano / José de Aguiar, Julio Bezerra e Marina Pessanha. Rio de Janeiro: Conde de Irajá Prod., 2014. 160 p. : il. ; 24 cm.

isbn 978-85-68159-00-2

1. Brasil - Cinema. 2. Pernambuco - Cinema. I. Bezerra, Julio. II. Pessanha, Marina. III. Título.

Cdd 791.43098134

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Este livro foi impresso em junho de 2014 na gráfica Midiograf.

O papel empregado no miolo é o Pólen bold 90g/m2.

As fontes utilizadas são das famílias Amplitude e Meta Serif Pro.

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