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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAO E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ECONOMIA

MOEDA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA MARXISTA

Rebeca Regina Regatieri Orientadora: Profa. Dra. Leda Paulani

Cdigos Jel: B5, P0 e P1

SO PAULO NOVEMBRO DE 2010

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Prof. Dr. Grandino Rodas Reitor da Universidade de So Paulo Prof. Dr. Reinaldo Guerreiro Diretor da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade Prof. Dr. Denisard Cneio de Oliveira Alves Chefe do Departamento de Economia

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REBECA REGINA REGATIERI

MOEDA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA MARXISTA

Monografia apresentada ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da Universidade de So Paulo como requisito para a obteno do ttulo de Bacharel em Economia.

SO PAULO 2010

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AGRADECIMENTOSAgradeo aos meus pais, que sempre me incentivaram e me apoiaram muito, mesmo em meio a muitas dificuldades. E, que tanto amor e suporte me deram at hoje. Agradeo tambm a minha av e a toda a minha famlia. Agradeo ao amor, companheirismo e compreenso de Rodrigo, muito presente nos ltimos trs anos da minha vida. Agradeo aos professores da FEA-USP que contriburam sobremaneira com a minha formao enquanto sujeito histrico, em especial, Leda Paulani, Eleutrio Prado, Flvio Saes, Dante Aldrighi, Iram Rodrigues, Jorge Soromenho, Jos Eli da Veiga, Luciana Lopes, Marcos Eugnio e Ricardo Abramovay. Agradeo Leda Paulani pela dedicao com que leciona e orienta seus alunos, uma professora muito presente na vida acadmica. Agradeo tambm pela oportunidade de colocar uma cadeira para mim ao seu lado nos momentos de correo da monografia. Agradeo tambm ao Prof. Reinaldo Pacheco, coordenador da ITCP-USP, pelo nimo que nos contamina. Agradeo existncia do Conjunto Residencial da Universidade de So Paulo, s amizades construdas e aos momentos interdisciplinares vividos l. Agradeo ITCP-USP (Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da Universidade de So Paulo) pela possibilidade de vivenciar experincias concretas que se propunham fazer a conexo entre a academia e a realidade de periferias de So Paulo, colocando diversos conflitos entre o mundo das ideias e o mundo prtico, choques de realidade e contradies que nos despertam para a maturidade. Agradeo ao Banco Palmas e seus trabalhadores, em especial ao Joaquim, a Jaqueline, ao Isimrio, a Tnia, aos seus familiares que me deram estadia ao longo de um ms, tornando possvel o intercmbio que realizei l. Agradeo s comunidades dos bancos comunitrios de So Paulo, em especial, a comunidade do Jardim Maria Sampaio e aos trabalhadores do Banco Comunitrio Unio Sampaio. Agradeo aos meus amigos de classe, turma do noturno de 2005, que nos primeiros anos de graduao tanto me incentivaram a continuar o curso de Economia na FEA. Agradeo aos amigos que colaboraram com este trabalho, dando uma injeo de nimo na fase ps-ANPEC: Bruno, Thiago, Souza, Flavinha, Dora, Nico, entre outros. Ao Bruno agradeo tambm aos almoos e outros momentos em que travamos um batepapo sobre a teoria do dinheiro em Marx. Ao Thiago agradeo tambm as leituras e apontamentos feitos s redaes iniciais deste trabalho. Agradeo a todos que direta ou indiretamente contriburam com o presente trabalho.

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A realidade considerada parcialmente reflete em sua prpria unidade geral um pseudo mundo parte, objeto de pura contemplao. A especializao das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si prprio. O espetculo em geral, como inverso concreta da vida, o movimento autnomo do no-vivo. A sociedade do espetculo, Guy Debord.

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SUMRIOA moeda social uma moeda paralela moeda oficial; circula em comunidades perifricas, por meio de clubes de trocas ou de bancos comunitrios, sendo, em geral, lastreadas na moeda oficial. Tais moedas so difundidas pela economia solidria com uma proposta clara de radicalidade poltica que resulte na ruptura com as determinaes do dinheiro, forma de manifestao absoluta do valor, e como um instrumento de desenvolvimento local. A crtica feita pela economia solidria ao dinheiro insere-se, em linhas gerais, na crtica ao modo de produo capitalista. O objetivo do presente trabalho apresentar e analisar o uso das moedas sociais sob a tica da teoria do dinheiro em Marx (1996), com a distino entre moeda e dinheiro enfatizada por Paulani (1991). Trabalha-se com a seguinte questo: a moeda social pode ser considerada moeda ou dinheiro? Para tanto ser realizada uma reviso terica dos captulos 1 e 3 de O Capital e uma reviso crtica da literatura que aborda a temtica da moeda social e da concepo poltica que a enseja, sejam eles trabalhos acadmicos ou cartilhas e reportagens difundidas pela economia solidria. Como na perspectiva terica de Marx a ruptura com a forma dinheiro perpassa pela ruptura com a produo de mercadorias do modo de produo capitalista, que coloca a anttese entre valor de uso e valor, conclui-se que a moeda social pode ser considerada dinheiro, posto que ainda a manifestao da referida anttese e, ainda que sua finalidade seja a circulao de mercadorias, intensificando-a em regies perifricas, trata-se apenas de um momento necessrio do movimento de valorizao do valor. A lgica da moeda social est imbricada na lgica do dinheiro, at mesmo pela sua paridade com a moeda oficial.

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MOEDA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA MARXISTA

NDICE

INTRODUO .............................................................................................................. 10 CAPTULO 1 O CONCEITO DE MOEDA E DE DINHEIRO EM MARX ............. 17 1.1 A constituio do dinheiro .................................................................................... 18 1.2 A moeda e o dinheiro ............................................................................................ 21 1.3 A terceira determinao do dinheiro e o capital financeiro .................................. 27 CAPTULO 2 A MOEDA SOCIAL ........................................................................... 30 2.1 Definio: o que e como se usa .......................................................................... 30 2.2 Diferentes vises sobre moeda social ................................................................... 36 2.2.1 A moeda social no contexto da teoria monetria de Marx ............................. 36 2.2.2 Uma viso institucionalista ............................................................................ 38 2.2.3 Moeda social: uma alternativa excluso financeira ..................................... 47 CAPTULO 3 DAS ABORDAGENS DA MOEDA SOCIAL E DA ECONOMIA SOLIDRIA................................................................................................................... 52 3.1 A teoria de Singer da revoluo social da economia solidria ............................. 53 3.2 Euclides Mance e o revolucionamento do consumo solidrio .............................. 58 3.3 Marcos Arruda e a nfase na moeda social para humanizar a economia.............. 62 3.4 Coraggio e Gaiger - a contaminao das Economias do Capital e Pblica pela Economia do Trabalho ................................................................................................ 66 CAPTULO 4 EXPERINCIAS RECENTES COM MOEDA SOCIAL NO BRASIL: UM BREVE RELATO ................................................................................................... 70 4.1 O Clube de Trocas do Jardim ngela ................................................................... 70 4.2 O pioneirismo do Banco Palmas ........................................................................... 74 4.3 Os Bancos Comunitrios no municpio de So Paulo .......................................... 77 CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................... 81

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BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 83 LISTA DE TABELAS ................................................................................................... 88 ANEXOS ........................................................................................................................ 89

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LISTA DE TABELAS

Tabela I.........................................................................................................................88

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INTRODUOA presente monografia busca discutir terica e praticamente a assim chamada moeda social, discusso que no pode ser dissociada, de um lado, da discusso terica acerca do dinheiro propriamente dito e, de outro, daquilo que se conhece por economia solidria, cujas prticas a moeda social integra e sustenta. O ponto de partida terico aqui utilizado para analisar a moeda social a concepo de dinheiro na teoria de Marx. As razes para isso se encontram em trs fatores: i) na considerao de que o uso desta moeda implementado, regra geral, por aes associadas defesa e prtica da chamada economia solidria, cuja proposta central fazer uma crtica ao capitalismo; ii) no fato de alguns dos autores que fundamentam a economia solidria se valerem do arcabouo marxista para construir o seu modelo terico e projeto poltico; e iii) na defesa de que a teoria que consegue efetivamente delimitar o conceito de dinheiro a teoria marxista (Paulani, 1991), pois outras teorias, muitas vezes, tratam das funes do dinheiro sem defini-lo, pois fixam o dinheiro enquanto objeto de estudo sem definir o que ele efetivamente, ou quando o fazem, o fazem de forma contraditria. A Economia Solidria, movimento poltico que visa revolucionar a sociedade partindo dos princpios cooperativos e associativos, est estruturada em dois campos do conhecimento, o terico e o prtico, representados, respectivamente, por um conjunto de autores dos quais se destacam Paul Singer, Marcos Arruda, Euclides Mance, Luiz Incio Gaiger e Jos Luis Coraggio; e pelos diferentes segmentos de seu movimento social, como o Frum Brasileiro de Economia Solidria (FBES) e demais fruns estaduais, que se articulam com o Estado por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidria (SENAES), rgo do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE). A apresentao desse movimento poltico ser feita no segundo captulo, com o intuito de expor as relaes existentes entre Economia Solidria e moeda social, bem como os argumentos para o seu uso. A crtica ao capitalismo levantada pela Economia Solidria sustenta sua unidade com o marxismo, pois vale-se de conceitos/categorias marxistas em sua crtica sociedade capitalista e para a sua proposio de um outro modo de produo, uma outra sociedade. Isso refora a anlise da moeda social sob a tica da teoria marxista, uma vez que este o arcabouo terico que primeiro constri

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uma cincia negativa/crtica sobre o modo de produo capitalista, alm de ser, ainda hoje, a fonte conceitual para a elaborao de modelos alternativos ou, de superao do capitalismo. Cabe aqui elucidar um pouco essa referida unidade. A crtica ao capitalismo feita pelo Prof. Singer, um dos principais expoentes da Economia Solidria, bastante forte em seu livro Uma Utopia Militante: Repensando o Socialismo (Singer, 1998). O livro discorre sobre o surgimento do capitalismo, as lutas dos trabalhadores pela melhoria das condies de vida e as possibilidades aventadas para a ruptura deste modo de produo, baseando-se em uma viso materialista da histria (Vieira, 2005). A centralidade de sua crtica est na inequvoca excluso social promovida por tal sistema, em que crescentes nveis de desemprego junto com o processo de precarizao do trabalho corroboram com a estratificao social, inerente ao capitalismo. Houve uma tendncia de atenuar esta excluso com os "implantes socialistas", como a garantia de direitos sociais e a criao de unidades cooperativas. Em Introduo Economia Solidria, Singer apresenta a economia solidria em contraposio capitalista. Contra a empresa capitalista tem-se a solidria, e em oposio ao modo de produo capitalista tem-se o modo de produo solidrio, mas dentro de um projeto poltico de coexistncia entre o modo capitalista e o solidrio, para que, esta a expectativa, aps fortalecido, este possa superar aquele.

(...) O capitalismo um modo de produo cujos princpios so o direito de propriedade individual aplicado ao capital e o direito liberdade individual. (...) O resultado natural a competio e a desigualdade. A economia solidria outro modo de produo, cujos princpios bsicos so a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito liberdade individual (Singer, 2002, p.10).

Na passagem acima, tem-se uma ilustrao do conceito marxista de modo de produo, que um dos alicerces da teoria do Prof. Singer, o que ser aprofundado no captulo 2.1 No campo prtico, o movimento de Economia Solidria representado pelo FBES declara em sua carta de princpios2 que "A Economia Solidria ressurge hoje

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Para uma crtica utilizao destes conceitos por Singer, ver Germer, 2006.

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como resgate da luta histrica dos(as) trabalhadores(as), como defesa contra a explorao do trabalho humano e como alternativa ao modo capitalista de organizar as relaes sociais dos seres humanos entre si e destes com a natureza." Consta no mesmo documento os seguintes trechos:

A atual crise do trabalho assalariado, desnuda de vez a promessa do capitalismo de transformar a tudo e a todos/as em mercadorias a serem ofertadas e consumidas num mercado equalizado pela "competitividade". Milhes de trabalhadores/as so excludos dos seus empregos, amplia-se cada vez mais o trabalho precrio, sem garantias de direitos. Assim, as formas de trabalho chamadas de "atrasadas" que deveriam ser reduzidas, se ampliam ao absorver todo esse contingente de excludos. (...) A Economia Solidria busca a unidade entre produo e reproduo, evitando a contradio fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade, mas exclui crescentes setores de trabalhadores do acesso aos seus benefcios. (Carta de Princpio, III Plenria Nacional de Economia Solidria, 2003)

Assim, fica ntida a influncia de Marx sobre a Economia Solidria no que se refere explorao sofrida pelo trabalhador, colocando-o enquanto mercadoria a ser consumida para a extrao da mais-valia, e as conseqncias disto para a vida social. Nas palavras de Singer, a teorizao sobre a economia solidria apresenta uma clara inspirao marxista (Frana Filho, 2004, p.5). A partir dessa crtica que est no seio do movimento da economia solidria, tem sido proposto e experimentado o uso de uma outra moeda paralela ao dinheiro oficial, em espaos chamados de mercados solidrios, como os dos Clubes de Trocas e dos Bancos Comunitrios, em que os participantes desses clubes ou os moradores dos territrios dos Bancos Comunitrios usam essa moeda para adquirirem bens e servios produzidos ou consumidos localmente. Existem alguns argumentos para o uso dessa moeda alternativa, do ponto de vista da crtica ao capitalismo. Um desses argumentos que a moeda social supostamente retiraria o carter mercantil do dinheiro, incorporando apenas o papel de funcionar como meio de troca (Pteo, 2008, p. 78).

Documento tirado na III Plenria Nacional de Economia Solidria, realizada em junho de 2003 em Braslia.

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Pode-se ento afirmar, com base em Paulani (1991) que, independentemente de seus adeptos terem tido ou no clareza acerca de suas proposies, o objetivo da moeda social est claro em sua prpria denominao: para que possa ser considerada realmente alternativa, a moeda social deve ser de fato apenas moeda, isto , meio circulante, e no dinheiro, objeto que em corpo e alma contm as contradies inerentes ao modo de produo capitalista. Logo, torna-se possvel e necessrio realizar um dilogo entre as teorias da economia solidria com suas abordagens da moeda social e a teoria do dinheiro de Marx. A pergunta que d origem a esse trabalho : o que vem a ser a moeda social do ponto de vista terico e prtico? de fato apenas moeda, meio circulante? Consegue a economia solidria por meio dela romper com as contradies do capitalismo que esto vivas no dinheiro? A moeda social rompe efetivamente com o dinheiro? Ela consegue fechar-se na circulao simples de mercadorias, fazer com que a finalidade seja apenas o valor de uso, ser apenas mediadora da troca de produtos distintos do trabalho humano, sem recair na circulao de capital em que a finalidade o prprio movimento de circulao de mercadorias? Alm disso, como dito, parte-se da concepo de que a teoria monetria que efetivamente conceitua o dinheiro a teoria de Marx. As teorias clssicas e neoclssicas, de forma no proposital, negam pela lgica clssica a existncia do dinheiro, uma vez que dividem a esfera econmica em dois lados: o real e o monetrio. Nos moldes da lgica convencional tais teorias colocam o dinheiro num "mundo que no mundo", nas palavras de Paulani (1991, p. 68). No que tange teoria keynesiana, a crtica feita teoria quantitativa da moeda ortodoxa permitiu um grande avano na apreenso do dinheiro em sua funo reserva de valor, na terminologia de Keynes, por incluir a propenso a entesourar, ou melhor, o estado da preferncia pela liquidez, o qual deixa claro que as incertezas e o grau de desconfiana com relao ao futuro fazem com que os indivduos entesourem dinheiro, que s ser abdicado por um prmio, a taxa de juros. O avano se deve ao fato de Keynes demonstrar que a taxa de juros sofre alteraes conforme mudanas ocorridas na preferncia pela liquidez (a taxa de juros um prmio pelo no entesouramento e no um prmio pelo no consumo), sendo determinada, portanto, no lado monetrio da economia e no no lado real, como preconizado pela teoria convencional assentada na teoria quantitativa da moeda.

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(Keynes, 1984, p. 173-174). Contudo, essa teoria continua focada nas relaes estabelecidas entre o dinheiro e o que externo a ele. Falta-lhe definir o que o dinheiro enquanto tal, para alm das funes que ele exerce. Diante disso, o primeiro captulo se prope a fazer uma exposio da teoria do dinheiro de Marx. Na seo 1.1, o dinheiro apresentado como constitutivo da prpria ascenso e lgica do modo de produo capitalista, seguindo os caminhos mostrados por Marx que da forma simples de valor - em que o valor de uma mercadoria precisa do corpo de outra mercadoria para se expressar enquanto valor, deixando evidente que o contedo material troca de mercadoria por mercadoria (M-M), troca entre produtos distintos do trabalho humano - chega-se forma dinheiro, figura alienada de todas as outras mercadorias ou o produto da sua alienao geral (Marx, 1996, p. 233). Mostrarse- que, na viso de Marx, a constituio do dinheiro com todas as suas determinaes indiscernvel do processo de produo e reproduo da vida material e social no capitalismo e que, portanto, para romper com a forma dinheiro preciso romper com o contedo que est em seu bojo. Na seo 1.2, mostra-se que o dinheiro no apenas uma mquina de fazer trocas, caracterizao que cabe moeda, mas no ao dinheiro. Embora, a moeda j encarne a contradio constitutiva da mercadoria entre valor de uso e valor, para o movimento de valorizao do valor, para a circulao de capital, faz-se necessrio a posio da terceira determinao do dinheiro, sua posio enquanto meio de pagamento e tesouro. Por ltimo, na seo 1.3, mostra-se que dessa posio que surge o capital financeiro e todas as armadilhas que ele gera, com as inverses que o dinheiro assume, dando maiores margens para a idia de resgatar a moeda, como acontece com a proposta da moeda social. Feita a exposio terica que fundamenta a anlise do presente trabalho, partese no captulo 2 para a exposio do conceito de moeda social, bem como das prticas inseridas na economia solidria qual ela est vinculada. Para isso, a seo 2.1 apresenta uma demarcao conceitual de moeda social, apresentando seu uso em espaos diferentes como nos clubes de trocas e nos bancos comunitrios, estratgias de economia solidria em que a finalidade abrir espao para a comercializao e o consumo de moradores de regies pobres, por meio da construo de outros valores econmicos, sociais e culturais. Essa ideia tem muito a ver com a proposta de construo de um outro socialismo, um socialismo de mercado, segundo as palavras do

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Prof. Singer em vrias palestras e seminrios. Na seo 2.2, so apresentadas trs vises acerca da moeda social. A viso proposta aqui est melhor elucidada na seo 2.2.1, calcada na teoria monetria de Marx, em que moeda mero meio circulante, enquanto que dinheiro seria, nas palavras de Paulani (1991), o espelho necessrio para que a mercadoria se realize plenamente como mercadoria, realizar seu valor, para realizar seu valor de uso (op. cit, p. 137). Procura-se demonstrar, assim, que a moeda social no consegue, e no pode, pelas necessidades objetivas dos grupos que atuam no mundo da economia solidria e para repor as condies das suas estratgias, ser outra coisa que no dinheiro. A produo material da vida pela economia solidria ocupa um espao marginal no todo da reproduo de seus sujeitos, ou seja, movimento de circulao de mercadorias, reforado pela moeda social, precisa se submeter ao movimento de circulao de capital para dar continuidade ao processo de insero de comunidades que esto na periferia do sistema capitalista. Essa viso, de certa forma, um contraponto viso exposta por Soares (2006), que apresentamos na seo 2.2.2, em que ela v na moeda social o resgate do papel da moeda nas formaes socioeconmicas anteriores ao capitalismo3. Na seo 2.2.3 apresenta-se a viso de Menezes (2007), segundo a qual, a moeda social e a maior regionalizao da poltica monetria, pode ser um instrumento de incluso financeira e de desenvolvimento de economias perifricas. Argumenta-se a que, em consonncia com tal viso, os mritos das tentativas prticas de fazer funcionar a moeda social esto no campo das propostas de incluso financeira e de se buscar o desenvolvimento de uma melhor qualidade de vida para as populaes de bairros pobres.4. No captulo 3 busca-se apresentar e compreender as diferentes abordagens tericas da economia solidria e suas conexes com a moeda social, isto , o que se pretende entender qual o papel dado moeda no projeto poltico de construo de um modo de produo alternativo ao capitalismo. So a expostas as vises dos tericos3

Ora esse resgate est muito presente na ideia de socialismo de mercado que se insere nas propostas da economia solidria. Contudo, o desenvolvimento pleno dessa temtica demandaria outra monografia, escapando, por isso do escopo do presente trabalho. Vale pontuar de qualquer forma que isto no deixa de ser uma contradio em si, pois se busca incluir os excludos e fazer avanar um sistema que tem na excluso um dos elementos de sua reproduo social. Do ponto de vista poltico, a potencialidade no est na moeda social, mas no processo que os seus organizadores e participantes podem desenvolver de formao poltica e econmica de sujeitos mais crticos, trazendo tona os movimentos contraditrios que esto no mago de objetos como o dinheiro.

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latino-americanos de maior alcance no movimento da economia solidria, j mencionados anteriormente. No captulo 4 so apresentadas algumas experincias com a moeda social j ocorridas em nosso pas. O recorte utilizado so as experincias com as quais tive contato por meio da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da Universidade de So Paulo (ITCP-USP). *** Por ltimo, vale a pena dizer que as questes que levaram ao desenvolvimento deste trabalho, nessa temtica e sob essa tica, so frutos do interesse e da reflexo pessoal de algum que se engajou politicamente e trabalhou de 2007 a 2009 na implantao de bancos comunitrios, defendendo o uso das moedas sociais como instrumento de desenvolvimento local e de transformao social, por intermdio da ITCP-USP. Algum que ainda hoje apia, de modo mais pontual e limitado, mas no menos intensamente, experincias como o Banco Palmas (Conjunto Palmeiras, Fortaleza - CE) e o Banco Comunitrio Unio Sampaio (Jardim Maria Sampaio, So Paulo- SP), sendo que com esse ltimo banco comunitrio estive envolvida nos dois ltimos anos, desde a sua elaborao at a busca pela sua consolidao. Com isso, alguns dos argumentos que fundamentam as prticas da moeda social, como os que sero apresentados no captulo 2, do ponto de vista de sua radicalidade em comparao ao dinheiro, foram por mim utilizados, que o de ver na moeda social apenas a moeda e no o dinheiro, ou seja, supor que a moeda social possa promover apenas a circulao de mercadorias, em que a finalidade sai da circulao para atender necessidades humanas, e no para alimentar a circulao do capital. Se esse trabalho chega concluso diversa, que a moeda social no deixa de ser dinheiro, no conseguindo funcionar apenas como moeda, o papel da reflexo e das crticas aqui apontadas no o de recriminar ou minar o debate sobre a importncia das moedas sociais, mas, ao contrrio, contribuir com ele, ainda que, tais concluses, como aconteceu comigo, retirem, por alguns instantes, o cho sobre qual repousa os ps da militncia.

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CAPTULO 1 O CONCEITO DE MOEDA E DE DINHEIRO EM MARXO enigma do fetiche do dinheiro , portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria, tornado visvel e ofuscante (Marx, 1996, p. 217).

Este captulo apresenta uma resenha sobre a teoria do dinheiro em Marx, baseada fundamentalmente nos captulos I e III de O Capital, Livro I, e em Paulani (1991), com o intuito de dar fundamentao anlise da moeda social na perspectiva da teoria monetria de Marx. Na primeira seo tem-se a discusso da formao lgica do dinheiro a partir da mercadoria, enquanto resultado lgico necessrio da circulao simples de mercadorias e da necessidade de materializar o valor da mercadoria para que os seus valores de uso sejam consumidos (anttese entre valor de uso e valor das mercadorias), indo da forma I, forma simples de valor, forma IV, o dinheiro, alm de refletir sobre a questo do fetiche da mercadoria e do dinheiro tal como indicado na epgrafe do presente captulo. Na segunda, mostra-se como, a partir da moeda, unidade de medida do valor e meio circulante - primeira e segunda determinaes do dinheiro, chega-se ao dinheiro plenamente desenvolvido, com sua determinao de ser meio de pagamento, tesouro e dinheiro mundial. Mostra-se a que possvel traar o seguinte paralelo: a moeda, assim como o conceito de valor de uso, enquanto determinao abstrata, podem ser elementos de qualquer formao social, enquanto que o dinheiro na medida em que se constitui como determinao do modo de produo capitalista a matria de uma forma (Paulani, 1991, p. 137), qual seja da forma social capitalismo. Ver-se- que a moeda est dentro do dinheiro, mas que o dinheiro vai (muito) alm da moeda. Por fim, na seo 1.3 mostra-se que a posio da terceira determinao do dinheiro que d origem ao capital financeiro e etapa financeirizada do capitalismo moderno, em que no nvel fenomnico v-se a suposta desvinculao do dinheiro com o mundo da produo, por meio do comrcio da mercadoria-dinheiro e da especulao que transitoriamente est desvinculada do mundo produtivo, da esfera da criao de valor. Isso promove a mutao da anttese entre valor de uso e valor da mercadoria para a anttese entre mediar ou ser a coisa mediada, de o dinheiro ser representante do valor

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ou ser o valor por excelncia. O porqu dessa seo reside no fato de com o dinheiro e sua terceira determinao a percepo de que ele deixou de mediar est posta e revela-se em sua contradio, principalmente nos momentos de crises, dando margem adicional para as tentativas de se recolocar o dinheiro como mediador, ou seja, para a ideia de resgatar no dinheiro a sua funo de mediar, como prope a economia solidria com a moeda social (vide seo 3.3).

1.1 A constituio do dinheiroConforme Marx (1996), o dinheiro - algo construdo historicamente - a forma que condensa as contradies caractersticas do modo de produo capitalista, cujo alicerce se assenta na produo de mercadorias por produtores privados, os quais esto inseridos em um emaranhado de relaes sociais veladas pela aparncia fenomnica das coisas. O dinheiro a "forma acabada do mundo das mercadorias", pois da forma simples de valor chega-se forma geral de valor que, quando aceito socialmente como equivalente geral, torna-se dinheiro, a encarnao absoluta do valor das mercadorias, isto , do tempo de trabalho socialmente necessrio para sua produo. No captulo I de O Capital, que trata da mercadoria - forma hegemnica assumida pelo produto do trabalho numa sociedade fundada na diviso social do trabalho que institui a realizao autnoma e independente dos trabalhos privados, sendo a mercadoria marcada pela anttese entre valor de uso e valor, anttese que se efetiva na troca fica demonstrada a passagem da forma simples de valor ao dinheiro. Passagem essa que vai ocultando o que est por trs da relao entre os produtos do trabalho humano. Aos homens parece que h uma relao entre coisas, entre mercadoria e dinheiro, e no uma relao social extremamente desenvolvida pelo grau de diviso social do trabalho a qual chegamos na sociedade capitalista. Vejamos abaixo como isso acontece. Ao se equiparar tanto de uma determinada mercadoria com tanto de outra mercadoria, uma mercadoria toma a forma de equivalente, isto , deixa de se apresentar como valor de uso para tornar-se o corpo em que se manifesta o valor da outra mercadoria. No exemplo dado por Marx, 20 varas de linho = 1 casaco, o valor das varas

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de linho precisa do casaco para se apresentar enquanto valor, ou seja, mostrar que o trabalho especfico que o gerou, um trabalho concreto, constitudo por uma substncia comum a todas as mercadorias, o trabalho humano abstrato. Nesse exemplo, o casaco assume o papel de equivalente, a forma I em que se expressa o valor de uma mercadoria. Se uma dada mercadoria pode se confrontar com outra, cujo corpo aparece como modo de expresso do valor dessa dada mercadoria, ento, essa mercadoria pode se confrontar com todas as demais mercadorias. Desse modo, tem-se a forma relativa de valor desdobrada, na qual as mercadorias que exprimem o valor de uma mercadoria x, aparecendo como seu valor de troca, so equivalentes particulares do valor. Ao se inverter essa situao, fazendo com que todas as mercadorias possam ter seus valores definidos por uma nica mercadoria que assume, agora, a posio de equivalente geral, chega-se forma geral do valor, tambm denominada por Marx de forma III do valor que, quer por fora do hbito e da convenincia ou por consentimento da sociedade, transforma-se em dinheiro, a forma IV do valor. " exatamente essa forma acabada - a forma dinheiro - do mundo das mercadorias que objetivamente vela, em vez de revelar o carter social dos trabalhos privados e, portanto, as relaes sociais entre os produtores privados" (Marx, 1996, p.201). A importncia da demonstrao das categorias da forma-valor, desenvolvidas por Marx, est em destacar que da passagem da forma simples forma dinheiro deixa de ser visvel o que est evidente na primeira forma: a equivalncia entre mercadorias com valores de uso diferentes possvel simplesmente porque os trabalhos humanos concretos -dispndio de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim que as produzem possuem uma substncia comum, trabalho humano abstrato, expresso do oposto do trabalho concreto (ibidem, p. 174-175). Por ser o dinheiro uma construo histrica especfica da sociedade capitalista, como dito no incio da presente seo, cabe aqui salientar que o esforo em mostrar a passagem necessria da troca simples de mercadorias troca com o dinheiro deve-se ao fato de que para futuramente captarmos a moeda social na perspectiva marxista preciso ter claro que a constituio do dinheiro enquanto tal tem uma relao ntima com a produo de mercadorias, que ele estabelece uma relao de mediao entre

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mercadorias na circulao simples de mercadoria, M-D-M, ao mesmo tempo que, quando desenvolvido, deixa de apenas mediar a circulao de mercadorias para ser a coisa mediada na circulao de capital, D-M-D (tal relao ser desenvolvida na prxima seo). Segundo o prprio Marx, a principal dificuldade na anlise do dinheiro superada logo que se compreende que sua origem a prpria mercadoria (Marx apud Rosdolsky, 2001, p. 124). Quando se diz que o dinheiro relaciona-se diretamente produo de mercadorias o que se quer dizer que o dinheiro est envolto em sua constituio pelo conflito entre o privado e o social na sociedade capitalista, pela forma como as relaes de produo e de distribuio permitem a reproduo da vida material. Um exemplo bastante interessante disso, e que nos interessa diretamente no presente trabalho, o debate que Marx estabeleceu com os prodhonianos sobre o significado e a validade da teoria do dinheiro-trabalho, que propunha a criao de uma moeda que explicitasse horas de trabalho no intercmbio de produtos do trabalho humano. Vejamos a reposta dada por Marx aos proudhonianos, de acordo com Roldolsky:

A degradao do dinheiro e a apoteose da mercadoria, defendidas por Proudhon e outros, se baseia em um mal-entendido elementar sobre a conexo necessria entre mercadoria e dinheiro. No compreendem que toda circulao de mercadorias deve levar formao de dinheiro, e que por isso, enquanto o valor de troca for a forma social dos produtos, impossvel eliminar o dinheiro (Roldolsky, 2001, p. 101).

A resposta dada clara: se o que se pretende resgatar a circulao (simples) de mercadorias pautada na sua finalidade social de produzir valores de uso, no preciso satanizar o dinheiro e querer substitu-lo por qualquer outra coisa que no tenha o nome de dinheiro, pois o momento de mediao na troca de mercadorias, que a faz circular do seu produtor para o consumidor, apenas um momento da produo capitalista dentro do processo de valorizao do valor, caracterstico dessa sociedade

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produtora de mercadorias. Para que essa outra coisa no seja dinheiro, outra forma de produo de bens que satisfaam necessidades humanas por meio do trabalho humano diretamente social ter que ser implantada, uma forma que, assim como o capital, reponha as condies de sua prpria existncia.

1.2 A moeda e o dinheiroUma vez derivado o dinheiro da prpria circulao simples de mercadorias necessrio fazer uma distino conceitual entre moeda, ou meio circulante, e dinheiro. Essa distino, de extrema importncia para ns, ser feita tomando por base Paulani (1991). A contraposio entre esses dois conceitos entra no cerne da questo levantada pelo presente trabalho, qual seja, se a moeda social deve ser considerada moeda ou dinheiro.5 As determinaes mais elementares do dinheiro esto presentes na moeda, que a saber so: ser medida de valor e meio circulante entre diferentes produtos do trabalho humano. Permitir que produtos de qualidades distintas possam ser comparveis quantitativamente e permutveis no so caractersticas especficas do dinheiro, e sim da constituio da moeda. Desde h muito tempo a moeda usada como unidade de conta e meio de circulao; afinal, segundo a Bblia, Judas entregou Jesus por 30 moedas de pratas, como lembra Galbraith (1983) ao falar da histria da moeda. De maneira geral, o fato de a moeda ser medida do valor significa que ela permite que produtos de naturezas extremamente distintas, como feijo e ferro, por exemplo, transforme-se em algo de mesma substncia, em unidades monetrias, isto , ela faz com que coisas que, a princpio, no poderiam ser quantitativamente comparadas, passem a s-lo. Evidentemente isto algo pr-histrico, que sempre existiu quando trocas ocorreram em formaes socioeconmicas anteriores. A moeda, quando desempenha o papel de meio de troca, facilita a circulao de produtos por tornar desnecessria a dupla coincidncia requerida pelo escambo, onde um tem que querer o que o outro quer e o outro tem que querer o que o um tem.Paulani (1991) mostra que Marx, principalmente no captulo 3 do livro I de O Capital, utiliza dois termos distintos para se referir a esse objeto: Mnze quando se refere a moeda e Geld quando se refere a dinheiro.5

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Novamente, no h nada de surpreendente e isto tambm anterior produo de mercadorias.

O dinheiro, em seu comeo, ainda no ; vale dizer, quando posto como moeda, no ele ainda dinheiro; de outro lado, contudo, na impossibilidade de sua colocao como moeda, no pode ele vir a ser dinheiro. A pressuposio existe aqui no sentido de que o dinheiro ainda no est posto, existem algumas de suas determinaes (medida de valor, padro dos preos, meio de troca), mas faltam-lhe, ainda, algumas e, mais importante no existe sua posio; ele est ainda em sua pr-histria (...), forma da mercadoria, e forma que se esvai, para que a mercadoria se ponha, para que tenha ela realidade efetiva. (Paulani, 1991, p. 159)

Todavia, este papel da moeda que permite que se produzam mercadorias para venda, objetivando a posterior compra de outra mercadoria (ou a produo de mais mercadoria), o que se manifesta e se reproduz numa sequncia contnua do movimento M-D-M. O produtor privado, inicialmente, vende com a finalidade de comprar. Desse modo, o produtor nega o valor de uso do produto do seu trabalho. Se M-D-M significa a alienao do valor de uso de uma mercadoria em prol de seu valor, para a posterior aquisio de um valor de uso desejado, "todo o processo somente media a troca de seu produto de trabalho por produto do trabalho alheio, o intercmbio de produtos" (Marx, 1996, p.229). Assim, comea o dinheiro, ainda que na figura da moeda pela circulao de mercadorias, a encarnar as contradies da mercadoria, e, as suas prprias contradies de mercadoria-dinheiro. A contradio da mercadoria se pe na circulao simples de mercadorias: a venda motivada pelo valor da mercadoria, rejeitando seu valor de uso; e a compra segue o caminho inverso. Mostra-se ao vendedor como a forma de negar o valor de uso de seu prprio trabalho, trocando-o pelo valor de um signo que lhe confere a portabilidade do valor do trabalho humano indistinto, no sendo isto consciente para o referido sujeito. Em Marx, tem-se:

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Em sua figura de valor, a mercadoria desfaz-se de qualquer vestgio de seu valor de uso natural e do trabalho til particular ao qual deve sua origem, para se metamorfosear na materializao social uniforme de trabalho humano indistinto. No se reconhece, portanto, no dinheiro, a espcie da mercadoria nele transformada (ibidem, p.232).

Continua Paulani:

O dinheiro assim, primeiramente, a soluo da contradio entre valor de uso e valor imanente mercadoria. A mercadoria s consegue realizar cada um de seus dois plos por intermdio de outra mercadoria, mediada, pois, por outra. Toda mercadoria precisa, portanto, de um espelho para se realizar plenamente como mercadoria (realizar seu valor, para poder realizar seu valor de uso) (Paulani, 1991, p.137).

Da oposio acima deriva a relao dialtica entre mercadoria e dinheiro, sendo que "a mercadoria s mercadoria porque no dinheiro" e o dinheiro mercadoria, inclusive " o gnero das mercadorias". Uma relao simultaneamente de identidade e de oposio entre dinheiro e mercadoria, que faz do dinheiro "um objeto contraditrio" (ibidem, p. 138). O dinheiro no uma mercadoria, posto que na circulao ele congrega todas as mercadorias como equivalente geral, por no emanar valor de uso e sim valor aos sujeitos da troca. Mas, ele tambm uma mercadoria, portanto, com valor de uso e valor. Percebe-se que no foi preciso entrar na determinao do dinheiro como meio de pagamento e tesouro para j se manifestar a gnese do dinheiro - e com isto, suas primeiras contradies - por meio da funo meio de troca da moeda. Assim, ", contudo, a partir de sua posio [do dinheiro] como meio de troca que se pem as condies de sua existncia efetiva como dinheiro." (ibidem,p. 138)

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Vale dizer que isto pde ser captado por Marx com a fundamental contribuio da dialtica, permitindo a observao de que o germe da exploso das contradies do sistema, j se encontrava em sua gnese.6 Nesse caso, a funo meio de troca, dita anteriormente como singela na moeda, esteve subjugada a se configurar em algo no to simples, cedendo sua natureza ao surgimento de uma relao que a corrompe, que a nega. Para a existncia do dinheiro as funes da moeda precisam ser postas, e mais do que isto, precisam negar a si mesmas. As suas funes esto postas quando ocorre o desenvolvimento pleno da circulao simples de mercadorias. Mas quando isso acontece, deixa de ser o dinheiro meio de obteno do produto do trabalho alheio, ou compra de mercadoria, para ter vida autnoma e independente, encarnando assim a prpria negao da circulao de mercadorias. A autonomia do dinheiro deve-se apresentao da circulao no por meio do circuito M-D-M, mas por meio do circuito D-M-D. Da mediao de equivalentes, em que com dinheiro obtm-se mercadoria e desta, tem-se novamente dinheiro, ocorre uma interverso. No s o dinheiro necessrio para obter mercadoria resgatado, como mais dinheiro obtido, ou seja, D-M-D de fato D-M-D, onde D = D + D. A capacidade de que com o dinheiro colocado no processo produtivo mais dinheiro seja gerado, faz com que de mediador ele passe a ser a coisa mediada. Ao invs das subsequentes transaes de vender para comprar outros valores de uso, tm-se a transao de comprar mercadorias para vend-las, reconfigurando MD-M para D-M-D, aonde D maior que D. A busca por dinheiro j afigura-se um fim em si mesmo. Porm, o dinheiro imanente ao capital. O movimento do dinheiro no um movimento do dinheiro, o movimento de valorizao do valor, ou seja, o capital, haja visto que a nica esfera que cria valor a produtiva, pelo consumo da mercadoria fora de trabalho que tem o valor de uso de produzir valor, e dessa forma, valor excedente.6

(...) A lgica dialtica s captada se superarmos a aparncia do texto, se nos remetermos ao movimento que busca ser descrito. No se trata de definir como funciona uma sociedade dada, mas fundamentalmente como ela se transforma em seu contrrio. No se trata de definir campos estanques e diferenciados (...) mas de buscar as determinaes e relaes complexas que se estabelecem entre essas esferas, nas quais o que condicionado pode agir de forma determinante sem que deixe, por isso, de ser determinado (Iasi, 2007, p.91).

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D-M-D a manifestao de D - (MP + FT)...P...M- D7, isto , trata-se da circulao de capital, em que a mercadoria produzida pela compra das mercadorias meios de produo e fora de trabalho, e s ser realizada no momento da circulao de mercadorias, com a sua venda. Logo, a simples circulao de mercadorias, M-D-M, em que a finalidade satisfazer as necessidades humanas, consumir o valor de uso existente na mercadoria, transformada em momento necessrio da circulao do capital, cuja finalidade a reproduo de suas condies de subsistncia. Em outras palavras, o movimento da produo pela produo que sustenta o movimento de valorizao do valor. Do movimento descrito consolida-se o dinheiro como tesouro. Se o dinheiro um smbolo de poder - poder de gerar mercadoria e mais dinheiro - por que no desejlo infinitamente e no guard-lo como um tesouro, haja visto que ele transluz riqueza? A partir da circulao de mercadorias e da circulao de capital nasce o entesouramento. da possibilidade imanente do dinheiro se transformar em capital e da anarquia do mercado com suas constantes incertezas, que ele deixa de ser mera mercadoria para ser a mercadoria geral (ibidem, p. 138). Este um salto fundamental para se entender o surgimento histrico do dinheiro enquanto tesouro.8 Por ora, este ato nega ao dinheiro a funo de meio de troca, pois ao invs de mediar a circulao de mercadorias, ele interrompe-a, apresentando-se ao vendedor como a melhor mercadoria do mundo das mercadorias. Resolve o dinheiro a pergunta ontolgica de "ser ou no ser" mercadoria, com a resposta de que pra alm de mercadoria ele a mercadoria plenamente confivel. Nosso vendedor enxerga no dinheiro o valor de uso de ter valor, perdendo, com isto, o valor de uso de ser valor de troca na mediao da troca de mercadorias. Tambm surge o dinheiro enquanto meio de pagamento, que promove a aquisio da mercadoria independentemente da sua presena fsica para tal acontecimento. A mercadoria muda de mos simplesmente porque h uma promessa deD- (MP + FT) .... P.... M - D expressa o movimento de compra das mercadorias meios de produo (MP) e fora de trabalho (FT) para na esfera da produo produzir nova mercadoria (M), que dar ao capitalista mais valor (D), pois ele pde comprar no mercado uma mercadoria, a fora de trabalho, que tem a capacidade de gerar mais valor alm do valor pago por ela. 8 "O dinheiro, sendo uma pura forma de valor, no necessita ter valor prprio; o dinheiro-mercadoria possua valor intrnseco, porque era tambm uma mercadoria, mas o dinheiro-mercadoria no o dinheiro enquanto tal, mas apenas uma espcie particular e histrica assumida pela forma dinheiro."(Corazza, ano, p.556)7

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dinheiro futuro. Troca-se o presente pelo futuro, a mercadoria de hoje com o dinheiro de amanh. Assim, com o desenvolvimento da circulao de mercadorias, porm, desenvolvem-se condies em que a alienao da mercadoria separa-se temporalmente da realizao de seu preo. (ibidem, p. 245). Desse modo, passa a ocorrer uma separao temporal entre os dois lados da expresso M-D-M, a compra (D-M) no precisa mais ser antecedida pela venda (M-D). Inclusive, muitas vezes acontecer o contrrio, a venda s ser materializada pela obteno de mercadorias que geram outras mercadorias, como matria-prima, por meio do crdito. Da funo do dinheiro como meio de pagamento origina-se o crdito. "O meio de pagamento entra na circulao, porm, depois que a mercadoria j se retirou dela. O dinheiro j no media o processo. Ele o fecha de modo autnomo, como existncia absoluta do valor de troca ou mercadoria geral." (ibidem, p. 256) da entrada em cena do entesouramento e da sua atuao como meio de pagamento, junto com o papel de dinheiro mundial materializao social absoluta da riqueza, onde no se trata nem de compras nem de pagamentos, mas sim de transferncias de riqueza de um pas a outro - que o dinheiro supera a forma moeda. (idem, 1996, p. 262-263) O seu papel de mediao na esfera da circulao explode no seu contrrio, de forma "evanescente da mercadoria" trabalhada na prxima seo. A fim de ter garantias de que o conceito marxista de dinheiro foi apreendido e para no incorrer no risco de ser assemelhada teoria neoclssica, que responde sobre o que o dinheiro dando as suas funes, segue a sntese sobre o que o dinheiro: a exploso da contradio inerente mercadoria entre valor de uso e valor, assumindo a contradio interna entre ser e no ser mercadoria, que ora se afirma e ora se nega como meio circulante. Alm de ser a figura que vela a relao social estabelecida entre os indivduos por meio de seus trabalhos privados regida pela diviso social do trabalho, que deixa as mltiplas necessidades dos indivduos dependentes desta relao dissimulada e ditada pela valorizao do capital, na busca incessante por D'.Paulani expe que no momento em que o dinheiro abdica de seu valor de uso de ser valor de troca, com a incorporao do crdito e do meio de pagamento, deixa ele de ser uma mercadoria transitria, uma mercadoria que espelha as demais mercadorias. "Mas isso s acontece, como j se pode adiantar quando o dinheiro deixa de ser mera forma evanescente das mercadorias em seu movimento de circulao, para se fixar, como diz Marx, enquanto nica existncia adequada ao valor de troca." (Paulani, 1991, p. 144)9

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torna-se a forma absoluta do

valor. Est representada aqui a funo do dinheiro de reserva de valor, a ser melhor

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Falou-se at aqui acerca das determinaes do dinheiro e que as contradies que elas internalizam com o objetivo de evidenciar que o dinheiro no seno a negao de sua existncia enquanto mercadoria e a afirmao da imaterialidade da sua forma, a tal ponto de se substanciar na "mercadoria por excelncia" (Paulani, 1991, p. 144). Sua forma se dissocia completamente de seu contedo, no precisa o dinheiro ter a forma de mercadoria - como acontecia quando o ouro era dinheiro - para ter o seu contedo, isto , o dinheiro em sua forma avanada no tem nem valor de uso nem valor prprio, mas ele uma forma independente do valor. Diante disto, Paulani (2009) categoriza o dinheiro como forma verdadeiramente social por expressar ele a natureza prpria do modo de produo capitalista, ou seja, uma mercadoria que pde se estabelecer como valor, ou melhor, como o valor por excelncia. Nas demais formas, como o valor de uso, por exemplo, seriam a priori sociais, pois, para Marx, o homem um animal social, mas no seriam verdadeiramente sociais, posto que no seriam especficas de uma determinada formao. em razo disto que se chegou modernidade com uma moeda internacional fiduciria, como o dlar, vigente como puro signo do valor no ps-Bretton Woods.10

1.3 A terceira determinao do dinheiro e o capital financeiroO dinheiro ontologicamente mediao, at mesmo em sua terceira determinao. Consegue com o crdito entrelaar o feito e o no-feito, a produo futura, realizando a equivalncia entre o dinheiro de hoje e o vir-a-ser com o valor de troca da taxa de juros do dinheiro, que nada mais que uma repartio pela explorao da mais-valia, permitida pelo adiantamento do crdito. Negocia-se a explorao da mais-valia futura com o preo do dinheiro. Todavia, ao passo em que une o presente ao futuro, o dinheiro promove o descolamento entre a compra e a venda. Ele media para, dialeticamente, polarizar os dois lados da equivalncia. Como mostra Marx, o crdito tem um duplo carter, se por um lado dinamiza o ritmo produtivo, por outro, acirra as suas contradies com base na especulao e na superproduo, ensejada pelo descasamento entre compra e venda. Alm disso, o crdito torna o dinheiro potencialmente um dinheiro-fictcio, uma vez que se baseia10

Sobre a anlise da teoria monetria de Marx na conjuntura ps-Bretton Woods ver Rotta & Paulani, 2009.

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em uma expectativa de dinheiro que poder ou no ser concretizada, dependendo da realizao das vendas na circulao de mercadorias (Rotta, 2008, 129-130). Como visto, a partir da qualidade do dinheiro- fictcio, derivada de suas funes de meio de pagamento e crdito, que pde o movimento do dinheiro se configurar no intercmbio da mercadoria-dinheiro, dada pela taxa de juros. E, o desenvolvimento contnuo e avanado deste movimento caracteriza a chamada nova etapa do capitalismo moderno e seu regime de acumulao com predominncia da valorizao financeira (Chesnais, 1996). Mas no h novidade nesta etapa, fora a predominncia do setor financeiro sobre a esfera produtiva. Acontece a intensificao de algo que j existia e que era passvel de acontecer. O princpio desta etapa, em que de mediador o dinheiro passa a ser simultaneamente o mediador e a coisa mediada, estava contido no dinheiro, em sua atuao como capital portador de juros11(Paulani, 1991, p. 154). A anttese entre o dinheiro e a mercadoria resolvida com a emergncia da mercadoria-dinheiro, que coloca a contradio em outro patamar. Agora tem que ser resolvida a anttese entre capital produtivo e capital fictcio, na qual ainda se mantm as bases da contradio entre mercadoria e dinheiro, entre a valorizao do valor pela produo de valores de uso e a tentativa de valorizao do valor pelo prprio valor de uso do dinheiro de ter valor. Trazendo novamente tona a expresso D-M-D, apresentada na seo anterior, encontra-se a a razo para a transformao do dinheiro em mercadoria, e enquanto tal para sua posio como mercadoria capital. Por meio da reduo da expresso acima a D-D, compra-se dinheiro para se devolver dinheiro engordado. Como dinheiro investido na produo de mercadorias e a realizao da mercadoria no mercado geram mais dinheiro, o portador de dinheiro, v no dinheiro a possibilidade de obter mais dinheiro, sem ter de passar pelo processo produtivo, pois um terceiro pode fazer isso por ele. Quando se reduz D-M-D para D-D, da suposta mera troca de equivalentes tem-se revelada a existncia de uma troca entre no equivalentes, tem-se uma relao quantitativa e no qualitativa, como parecia. Assim, a relao do dinheiro com ele mesmo, como coisa mediada por ela mesma, revelou a busca existente por

As diferentes operaes de cuja autonomizao em atividades especficas se origina o comrcio de dinheiro, resultam das diferentes determinaes do prprio dinheiro. ( O Capital, Livro III, cap. XIX).

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mais valor, mais dinheiro. Todavia, se ele revela algo, concomitantemente, tambm vela algo. O capital foi apagado do processo de valorizao de valor (Paulani, 1991, p. 155). O dinheiro transformou-se em mercadoria. Rotta (2008) apresenta esta transformao do dinheiro em mercadoria como a constituio do capital financeiro, ou capital portador de juros, que, por sua vez, promove a passagem dessa mercadoria para a mercadoria-capital, pois o dinheiro objetiva, no movimento de valorizao de si mesmo, se colocar na forma capital, mesmo que isto no seja consumado. O fato que, aqui, o dinheiro adquire o carter de capital possvel, sem seu necessrio ingresso na valorizao produtiva (Rotta, 2008, p. 154). O dinheiro tenta encarnar em si a funo do capital. Nas palavras de Paulani (1991), o sujeito do movimento de valorizao do capital, vira predicado e um dos predicados do capital, o dinheiro, torna-se sujeito. O dinheiro a figura que assume para si o papel de sujeito agindo como se sujeito de fato fosse (1991, p. 157). Como dito na seo anterior, da mutao da moeda em dinheiro, pela terceira determinao, o dinheiro se autonomiza, a ponto de superar a forma mercadoria transitria que tinha o dinheiro no capital mercantil e, assim, de moeda que media, chega o dinheiro ao capital financeiro como forma que media a si prprio como mediado. No precisa mais o dinheiro ser mercadoria com seu valor de uso natural que sustente um determinado valor para dar substrato materialidade do valor de outras mercadorias, lgica que reside nas funes da moeda. Ele se mostra como coisa de valor meramente, por representar a possibilidade de se metamorfosear em capital, em valorizao de valor. Vale ratificar que o segredo da autonomizao do capital financeiro parece ter sua origem na passagem lgica da forma moeda forma dinheiro, na sua passagem de intermedirio a fim em si mesmo. (Rotta, 2008, p. 153). A moeda se rompe no dinheiro. Repetindo, ela cede seu ser para o dinheiro, mas sua essncia e suas contradies ainda permanecem no dinheiro, pois as coisas finitas na sua variedade indiferente tm em consequncia, em geral, como caractersticas, serem contraditrias em si mesmas, serem quebradas em si e voltarem ao seu fundamento. (Hegel apud Fausto, 1993).

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CAPTULO 2 A MOEDA SOCIALO presente captulo se divide em duas grandes sees para tratar da moeda social. Na primeira parte, utilizamos como referncia os materiais produzidos pelo movimento de economia solidria, como cartilhas, panfletos e reportagens. No interior do sintagma, incluo: a experincia obtida por intermdio da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da Universidade de So Paulo (ITCP-USP); o intercmbio realizado entre janeiro e fevereiro de 2007 no Banco Palmas (Fortaleza CE), idealizador da tecnologia social dos bancos comunitrios com moeda social; e na atuao junto ao projeto Economia Solidria e Movimento de Moradia: Desenvolvimento Local Solidrio para as Regies Perifricas de So Paulo, que implantou cinco bancos comunitrios no municpio de So Paulo inaugurados em 2009. So utilizados tambm os materiais produzidos pelos tericos da economia solidria. A segunda seo se divide em dois momentos: o primeiro apresenta uma perspectiva da moeda social derivada da teoria monetria de Marx, elucidada anteriormente no captulo 1; o segundo momento traa uma reviso crtica de literatura com dois importantes trabalhos acadmicos realizados acerca da moeda social, uma tese de doutoramento apresentada em 2006 ao Programa Interdisciplinar em Cincias Humanas do Centro de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, e uma dissertao apresentada em 2007 ao CEDEPLAR (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais). Esta parte de uma viso ps-keynesiana para analisar a moeda social e sua relao com o desenvolvimento de economias perifricas, e aquela, fundamenta-se em uma viso institucionalista, que v na implantao de moedas sociais um regaste da funo da moeda nas sociedades antigas.

2.1 Definio: o que e como se usaMoeda social uma moeda paralela moeda oficial, criada por grupos ou comunidades de regies perifricas, por meio de Clubes de Trocas ou de Bancos Comunitrios, com o objetivo claro de intensificar o circuito de trocas locais que se encontra enfraquecido pela escassez de dinheiro nessas regies, pela falta de liquidez. Ela vista como complementar moeda oficial, e no como concorrente, pois ela est

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circunscrita ao territrio dessas comunidades e lastreada na moeda oficial do pas, no caso brasileiro, em Reais. H um acordo implcito, portanto, sem nenhuma formalizao, entre a Rede Brasileira de Bancos Comunitrios e o poder pblico de que cada unidade monetria de moeda social impressa deva ter o lastro equivalente em Reais. De forma similar, por exemplo, aos tickets alimentao - moeda paralela que delimita o escopo do consumo de seus usurios - a moeda social tem como propsito estabelecer que seus usurios consumam apenas dos produtores e comerciantes de uma determinada comunidade, na tentativa de ampliar o efeito multiplicador da economia. Ao forar o aumento da demanda por bens locais, provoca uma expanso na renda dos moradores de um bairro, por exemplo, que, fomentando um ciclo virtuoso, que recairia novamente sobre as vendas e a produo locais pelo aumento da renda em moeda social. Conforme consta na cartilha Banco Comunitrio: Servios Financeiros solidrios em Rede, publicada pelo Banco Palmas, so as moedas sociais que asseguram o desenvolvimento ao favorecer que essa riqueza gerada [atravs da poltica de crdito e de fomento gerao de trabalho e renda] circule na prpria comunidade (Rede de Bancos Comunitrios, 2006, p. 5). Na tentativa de reforar a proposta poltica de desenvolvimento local que est por trs da moeda social, os comerciantes locais, em geral, concedem descontos para as compras que so efetuadas nessas moedas. Assim, a moeda social vista como um instrumento monetrio de desenvolvimento local, que, em geral, est acoplado a uma poltica de gerao de trabalho e renda por meio de capacitaes de trabalhadores subempregados ou desempregados, polticas de concesso de crdito e assistncia tcnica.12 Tal poltica formulada e gerenciada por associaes de bairros que recebem, na maior parte das vezes, apoio do poder pblico e/ou de ONGs (Organizaes no governamentais) para implementarem clubes de trocas ou bancos comunitrios. Essas moedas sociais so criadas e administradas pelas suas prprias comunidades, aumentando assim a incluso social e o seu poder poltico (Primavera, 1998), por meio das associaes de bairros. Esse fato acaba por sedimentar a relao de confiana nessas entidades locais, uma vez que a aceitao dessas moedas sociais pressupe uma crena na palavra e no poder das mesmas (Soares, 2006).12

Tudo isso ser melhor exemplificado no captulo 4.

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Tratar-se-ia de um instrumento que - em detrimento da viso macroeconmica da poltica monetria definida pelos Bancos Centrais, os quais ponderam a poltica monetria pela necessidade mdia de dar liquidez s transaes do territrio nacional teria a capacidade de levar em considerao as especificidades de territrios pobres13. Com a circulao de moedas locais algumas das funes dos bancos centrais estariam descentralizadas, pois o grupo [que administra as moedas sociais] que decide quanto de moeda deve estar em circulao, fazendo poltica monetria expansionista ou contracionista, mediante a quantidade e velocidade de trocas (PACS, 2005, p. 17). Cabe frisar que h a ideia de rebeldia com a moeda social no sentido de que ela segue a direo contrria da tendncia hegemnica, que a de expandir o territrio de circulao das moedas, desnacionalizando-as, como acontece com as moedas dos mercados comuns a exemplo da Unio Europia. A moeda social tem em si a proposta de valorizao local, com a ideia de um consumo crtico que d preferncia ao que produzido ali na regio dessas moedas, reforando, assim, os laos comunitrios. Conforme consta na cartilha do PACS (2005), muito importante entender as vantagens de ter relao de trocas com o vizinho ao invs de comprar de uma grande empresa capitalista. Viver com a produo do vizinho permite sustentar a comunidade e criar laos de proximidade e de cuidados (op. cit, p. 8). Alm disso, h tambm a ideia, muito presente no movimento de economia solidria, de que a moeda social encarna a crtica essncia do dinheiro na sociedade capitalista com sua terceira determinao; mas isso ser melhor apresentado na prxima seo. Adota-se a definio de que os clubes de troca so espaos em que as pessoas se associam para trocar entre si produtos ou servios produzidos por elas, ou objetos usados que esto em bom estado, com o uso de um meio de troca criado e gerido pelos associados do clube. Segundo Soares (2006), os clubes de trocas possuem, muitas vezes, a pretenso de constituir um sistema local de produo, crdito e comercializao e o que os diferencia de uma feira tradicional o nvel de participao dos associados em sua gesto monetria. Segundo Mance (2002), os clubes de trocas, ou os Sistemas Locais de Emprego e Comrcio (traduo dada pelo autor para Local Exchange and Trading Systems,Essa ideia ser mais bem abordada na seo 2.2.3, com a resenha crtica do trabalho de Menezes (2007).13

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abreviado por LETS), surgiram na dcada de 80 no Canad; se difundiram rapidamente pelo mundo como um meio de criar condies favorveis ao intercmbio de bens e servios em uma determinada comunidade sem o uso de moedas oficiais, aquecendo a produo e o consumo locais. Atualmente existem experincias de clubes de trocas na Alemanha, chamados de Tauschring, na Itlia, as redes de economia local (REL), na Frana, os Systmes dechanges locaux, sendo tais experincias reflexo do contexto de crise econmica aguda e do emprego desde a dcada de 80 (Frana Filho, 2004, p. 125). O pioneirismo canadense ocorreu em 1983 em uma vila prxima a Vancouver, onde ocorreu uma crise econmica decorrente da transferncia de uma empresa area, com destacado papel em sua economia (Brigo, 2001). Estimativas levantadas por Lieater (apud Menezes, 2007) apontaram que no incio deste sculo existiam em torno de 2.500 LETS no mundo, inclusive em diversos pases desenvolvidos como a Inglaterra, o Japo, Alemanha, entre outros. Cabe ressaltar que nesta estimativa h distino entre os LETS e os clubes de trocas, sendo que estes, diferentemente daqueles, possuem tempo pr-determinado para que as trocas aconteam. Alguns clubes substituem as moedas alternativas por um mecanismo de compensao de dbitos e crditos. Outros utilizam este mecanismo mesmo com o uso da moeda, por intermdio de Bancos de Trocas Solidrias, que atuam liberando crdito nestas moedas, intervindo nestes mercados protegidos e contabilizando estes dbitos e crditos. Menezes (2007) aponta que a divulgao dos balanos de crdito e dbito contribui com a construo da confiana entre os participantes dos LETS e tambm evita a presena dos caronas, ou free-riders, indivduos que estariam interessados apenas em consumir bens e servios sem ofertar nada em troca. Alm disto, costuma-se estipular um valor limite para os dbitos dos participantes. Apesar disto, os dbitos no so percebidos negativamente nestes espaos, ao contrrio eles fomentam a continuidade do circuito de trocas, j que efetivam a demanda por bens e servios (Menezes, 2007). Cinco vantagens so apresentas por Mance para os LETS, a saber: i) flexibilidade para as finanas locais, dada a possibilidade de auto-emprego; ii) estreitamento dos laos comunitrios; iii) estmulo aos negcios locais; iv) favorecimento s organizaes sem fins lucrativos; e v) baixo consumo de energiatransporte. feita uma crtica aplicao de juros nesses espaos, pois, para o autor,

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receber juros apropriar-se de um valor produzido pelo trabalho alheio. (apud Viera, 2005, p.137). Para Frana Filho & Laville (2004), os clubes de trocas alimentam a proliferao de um circuito de trocas no monetrias cujo fundamento uma lgica de ddiva, ou seja, o objetivo das trocas , para alm da satisfao utilitria dos bens ou servios, fortalecer ou criar vnculos sociais entre as pessoas envolvidas (Frana Filho & Laville, 2004, p. 151). Ele se baseia nos conceitos de Polanyi (1980) que discorre sobre quatro tipos de economias, a economia de mercador, da ddiva ou reciprocidade, domstica e a da redistribuio, figurando a economia da ddiva como uma troca fundada na doao interpessoal ou coletiva e na reciprocidade entre indivduos, sendo isso um importante comportamento social. Dentro disso, as pessoas buscam nesses espaos no apenas satisfazerem suas necessidades materiais, como tambm uma outra troca no mercantil. A Argentina apresenta uma experincia emblemtica com os clubes de trocas alicerados em moedas sociais, sendo que em 2000 cerca de 300 mil pessoas acessavam 600 clubes de trocas em todas as provncias do pas (Mance, 2002). Dada essa magnitude atingida pelos clubes de trocas, em dezembro desse mesmo ano, eles foram declarados de interesse nacional (PACS, 2005). Outra estatstica mencionada por Soares: at maio de 2002 cerca de dois milhes e meio de pessoas utilizaram na Argentina moedas sociais (Hintze apud Soares, 2006, p. 10).14 A segunda estratgia que fomenta a moeda social a experincia dos bancos comunitrios. Trata-se de empreendimentos implementados em regies perifricas, com alto grau de excluso, que atuam no campo das microfinanas15 na proposta de fomentar e organizar a economia local por meio da articulao entre crdito, produo,

Cabe lembrar que essa enorme difuso dos clubes de troca na Argentina ocorreu justamente no perodo de agravamento dos problemas monetrios daquele pas, que redundaram na grande crise de dezembro de 2001. A absoluta escassez de meio circulante com as consequncias deletrias que provocava principalmente nas provncias mais pobres do pas foi naturalmente fazendo dos clubes de troca e na moeda social uma alternativa de sobrevivncia material. 15 Abramovay (2004) expe que em contraposio ao duplo equvoco de que os pobres no tm vida financeira e a elevao de sua renda passa pela oferta de crdito produtivo para melhorar suas atividades (p. 31) que est contido nas polticas de microcrdito, as microfinanas apontam para a demanda existente nas classes populares por um conjunto de servios financeiros, como crdito de consumo, microseguros, poupana, entre outros. Ribeiro & Carvalho (2006) tambm analisam a passagem do microcrdito s microfinanas como forma de combater a pobreza.

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comercializao, consumo e capacitao. Uma caracterstica central destes bancos o fato de suas aes estarem circunscritas a um territrio com traos e identidade comuns, dando origem adjetivao de comunitrio que recebem. Estes bancos atuam com linhas de crdito produtivo e de consumo, sendo esta liberada necessariamente em moeda social - ou circulante local, como tambm chamada - sem taxas de juros e aquela em moeda oficial (Real - R$) com baixas taxas de juros, conforme cartilha da Rede de Bancos Comunitrios (2006). Tambm utilizam no crdito produtivo o sistema de juros evolutivos, em que quanto maior o valor do emprstimo concedido maior a taxa de juros e vice-versa, objetivando seguir uma lgica oposta do mercado financeiro formal, no qual quem tem mais colaterais, e que, portanto, tem melhores condies de pagamento, paga uma taxa de juros menor do que aquele que toma emprestado um montante baixo, sinalizao de que pobre. Os juros evolutivos tm como princpio uma ideia de distribuio de renda dentro da prpria comunidade: quem utiliza valores menores de crdito paga uma taxa de juros menor pelo servio. Os bancos comunitrios estabelecem parceria com os comrcios locais para que estes aceitem a moeda social e para que, alm disto, forneam descontos nas compras pagas com a mesma. Os comrcios locais assim o fazem porque recebem a garantia de que podero trocar tais moedas por moeda oficial, em geral, na taxa de cmbio de um por um, permitida pelo lastreamento da moeda social em Reais. Alm do mais, eles vem nisto a vantagem de aumentarem seu poder de comercializao, ganhando em escala na comunidade. Os bancos comunitrios tambm desenvolvem estratgias de comercializao dos produtos locais por meio de campanhas de incentivo ao consumo desses produtos, feiras peridicas e de lojas instaladas junto aos bancos. Segundo a cartilha aludida acima, o uso da moeda social faz com que a riqueza gerada pelo crescimento econmico a partir do crdito produtivo junto com outras aes de gerao de trabalho e renda circule na comunidade, desenvolvendo-a, ou seja, que ela promotora do desenvolvimento endgeno. Com relao regulamentao dessas moedas sociais, principalmente no que se refere sua implantao junto aos bancos comunitrios, ainda no h um documento que formalize essa relao, fato que torna conflituoso o movimento dos ltimos dois anos de difuso dos bancos comunitrios (em que surgiram mais de trinta novos bancos

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comunitrios) como parte de uma poltica pblica promovida pela SENAES/MTE (Secretaria Nacional de Economia Solidria do Ministrio do Trabalho e Emprego) e por alguns governos estaduais e municipais, sobretudo, do Nordeste. Contudo, entre os dias 16 a 18 de novembro de 2009, no Frum sobre Incluso Financeira realizado em Salvador-BA, o Banco Central firmou um acordo com a SENAES/MTE para criar um marco regulatrio, normatizar e acompanhar os bancos comunitrios e as suas moedas sociais16.

2.2 Diferentes vises sobre moeda social 2.2.1 A moeda social no contexto da teoria monetria de MarxComo visto no captulo 1, a passagem da forma I forma IV, ou seja, da forma simples de valor forma dinheiro, vela o carter social dos trabalhos privados e as relaes sociais que esto determinadas pela intensa diviso social do trabalho produtora de mercadorias. Embora o movimento do dinheiro seja, portanto, apenas a expresso da circulao de mercadorias, a circulao de mercadorias aparece, ao contrrio, apenas como resultado do movimento do dinheiro (Marx, 1996, p. 238). No se pode dizer que isso no ocorra com a moeda social: ela ainda media o produto do trabalho privado, seja do trabalho emancipado, como se prope nas teorias da economia solidria por meio do trabalho cooperativo, seja do trabalho assalariado. A moeda social no impede que o carter social dos trabalhos privados seja velado e que o conflito entre o privado e o social esteja posto. A necessidade social de reproduo da vida material ainda satisfeita pela autonomizao privada, que j se manifesta na moeda. A anttese constitutiva da mrcadoria entre valor de uso e valor permanece, portanto, na moeda social, e ela, assim como o dinheiro, um objeto contraditrio, pois a contradio entre mercadoria e dinheiro est colocada como soluo da contradio entre valor de uso e valor. H um notrio esforo de politizao em alguns espaos dos bancos comunitrios e dos clubes de trocas em torno da questo do que o dinheiro. Esses espaos so revelados pelas perguntas sobre o sistema financeiro vigente, a globalizao financeira, o desemprego estrutural, a falta de oportunidade para os excludos e historicamente16

Informaes retiradas do site do Frum Brasileiro de Economia Solidria.

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marginalizados etc (PACS, 2005, p. 18). Mas esse carter poltico est nas aes dos sujeitos envolvidos com a moeda social, e no na moeda social propriamente dita.17 Assim como o dinheiro parece ganhar vida no mercado, esconde algo que o mais importante: ele no deixa ver que o trabalho que gera a riqueza (ibidem, p. 9), conforme crtica colocada em cartilha da economia solidria. Mas, a moeda social continua a esconder isso. O que pode mudar a situao, no a moeda social enquanto tal, mas a formao poltica de seus organizadores junto aos seus usurios. Falou-se na seo 1.1 da relao ntima entre a formao do dinheiro e a produo de mercadorias, da relao que ele estabelece como mediador na circulao simples de mercadorias e coisa mediada na circulao de capital. Ora a moeda social, embora muitas vezes no faa de fato a circulao de capital nas comunidades aonde circula, faz, ao lado do dinheiro oficial, a mediao entre mercadorias, acelerando, quando implementada com xito, essa circulao ao permitir a complementao da renda de pessoas pobres. Mas isso ocorre em razo muito mais da precariedade s quais essas comunidades esto submetidas do que de qualquer outra coisa, e no porque a moeda social seja portadora de uma outra lgica necessariamente distinta da lgica do dinheiro. A lgica do dinheiro inerente lgica da moeda social. O sujeito que habita e trabalha no territrio de um banco comunitrio, pequeno comerciante, por exemplo, faz o clculo se fica com moeda social ou se vai at o banco comunitrio fazer o cmbio entre moeda social e Real, dependendo das necessidades do seu empreendimento e do mercado. Se precisa acessar a circulao de capital opta facilmente por trocar suas moedas sociais por Reais, como era de se esperar. Tal tipo de conduta resultado de necessidades postas socialmente que no desaparecem por encanto nos territrios onde circula a moeda social. Retomando a discusso terica feita anteriormente, o que queremos dizer que todas as determinaes do dinheiro esto contidas na moeda social e no apenas a primeira e a segunda determinaes, como seria de se supor se a moeda social funcionasse de fato segundo uma outra lgica. A vinculao da moeda social ao dinheiro oficial a porta de entrada para que a terceira determinao a contamine.

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Muitas vezes, a defesa da moeda social acaba, contraditoriamente, sendo vtima do fetiche, pois atribui ao objeto moeda social virtudes que decorrem da inveno e da ao humanas.

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A economia solidria, como ser visto no captulo 3 com a apresentao de diferentes abordagens tericas, se prope a ser um outro modo de produo de valores de uso. Segundo algumas correntes como a de Singer (2002), isso torna-se possvel por meio do trabalho coletivo e pela repartio justa e igualitria do resultado do produto do trabalho humano, com a formao de cooperativas, rompendo-se, assim, a produo de mais valia. Todavia, a circulao de mercadorias proposta pela moeda social na economia solidria no repe as condies materiais de sua reproduo. Ao final, se o circuito econmico foi dinamizado, os pequenos produtores e comerciantes tero que ingressar no circuito do capital. Assim, se verdade que

(...) a imposio de juros no meio circulante [no dinheiro] uma posio eminentemente poltica do capitalismo vigente. No contexto das trocas [solidrias, realizadas com a moeda social], ela descartada. Isto , nas trocas de nada adianta acumular moeda; a sua funo enquanto reserva de valor de certo modo descartado (PACS, 2005, p. 20).

Isso no resolve todos os problemas, nem evita que a circulao de mercadorias qual a moeda social deveria se restringir, se transforme em circulao de capital. Como visto no captulo 1, com a moeda e com a circulao simples de mercadorias (M-D-M) est posta a condio para o surgimento da terceira determinao do dinheiro com seu elemento de ser tesouro, ser reserva de valor. a troca, com a moeda, que d ao dinheiro a possibilidade de ser a mercadoria por excelncia. com a atuao da moeda, meio circulante, que o sujeito v no dinheiro a riqueza enquanto tal, a riqueza abstrata, a possibilidade de a qualquer instante tornar-se mercadoria, surgindo da a tentao de acumul-lo como tesouro. Em outras palavras, no preciso, como equivocadamente se imagina nos crculos em que se discute a forma de funcionara da moeda social, que os sujeitos da economia solidria coloquem a moeda social embaixo do colcho para que a moeda social assuma a terceira determinao do dinheiro.

2.2.2 Uma viso institucionalistaEsta subseo tem por objetivo apresentar e analisar um dos raros trabalhos acadmicos que se inclinam a estudar a temtica da chamada moeda social, qual seja, o

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de Soares (2006). Ateno especial ser dada s partes do trabalho que se referem, primeiramente, teoria da moeda ou do dinheiro, fundada em uma perspectiva institucionalista, com crtica s teorias do valor; em seguida, delimitao conceitual da moeda social propriamente dita. Junto com a elucidao da teoria monetria sero colocados contra-argumentos crtica feita pela autora do trabalho teoria do valor trabalho marxista. Um elemento central no trabalho de Soares (2006) a no neutralidade da moeda. A autora se vale de uma reviso bibliogrfica que contrape de um lado Carl Menger e Frederich Hayek, e de outro G. Knapp e J. Keynes, passando pelos regulacionistas Aglietta e Orlan, at chegar reflexo de George Simmel sobre a essncia e o significado do dinheiro. Os dois primeiros consideram a moeda como neutra, criada espontaneamente pelo mercado, pela evoluo das trocas primitivas. Para Menger, o dinheiro surge do preo dos bens mais preferidos e aceitos pela comunidade, transformados nos bens mais lquidos do mercado, logo, nos bens que vo intermediar as necessidades dos indivduos. Como consequncia disso e do desenvolvimento do comrcio, o dinheiro se institui como medida dos preos e medida de valor, respectivamente, intermedirio das trocas e equivalente universal. Isto est estruturado em sua "Teoria da Liquidez das Mercadorias". Nessa teoria, o Estado germina como um resultado natural da mercadoria escolhida para ser o dinheiro, e no o reverso, pois era necessria uma instituio forte e com maior capacidade para cunhar e controlar os metais escolhidos para serem dinheiro.

(...) O dinheiro no uma inveno estatal nem produto de um ato legislador. (...) O fato de umas determinadas mercadorias alcanarem a categoria de dinheiro surge espontaneamente das relaes econmicas existentes, sem que sejam precisas medidas estatais. (Menger, 2002 apud Soares, 2006, p. 54)

Deste arcabouo terico, Menger conclui que a neutralidade da moeda na esfera produtiva imprescindvel. Da juno da teoria de Menger com a teoria de Hayek destaca-se o acrscimo colocado pelo segundo de que a determinao surgida espontaneamente superior quela concebida deliberadamente.

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Em crtica a estes dois argumentos, Soares (2006) utiliza a "Teoria Estatal do Dinheiro" de Knapp, segundo a qual quando o Estado decide o que receber em seus guichs nos pagamentos de tributos (que no precisa ser uma moeda de curso forado, por ele emitida) ou a taxa de converso entre diferentes meios de pagamento, ele est criando dinheiro de forma no espontnea. Alm disso, h uma inteno, e, portanto, deliberada, quando o Estado decide o que que compe e o que que no compe o sistema monetrio. O critrio para a definio do dinheiro so as escolhas feitas pelo Estado e no o curso forado do dinheiro que o mesmo Estado lhe confere. Um exemplo, tratado pelo autor, de dinheiro que no criado pelo Estado, mas que aceito por ele, so as notas bancrias. Quando o Estado, alm de aceitar as notas bancrias em seus guichs, exige que elas sejam conversveis em moeda oficial, o Estado determina a hierarquia existente entre essas moedas. Na mesma linha do exposto acima, continua Soares, J. Keynes e Randall Wray, enfatizam o fato, exposto anteriormente por Marx, de que a moeda apenas representante do valor, porm no tem valor em si. Para Keynes, a moeda enquanto medida de valor, no possui nenhum valor intimamente ligado a ela: "moeda a medida de valor, mas consider-la como tendo valor em si uma relquia da viso de que o valor da moeda regulado pela substncia de que feita, e como confundir um bilhete de teatro com a performance" (Keynes apud Soares, 2006, p. 68). Soares credita a essa teoria da liquidez da moeda, que exprime o papel da moeda de ser reserva de valor e equivalente geral, compreenso de que a moeda no neutra, no s em funo da atuao do Estado como criador da moeda, mas porque ela dita o comportamento da demanda e da produo e, por conseguinte o do processo de valorizao do capital. a partir disto que a autora visualiza a subdiviso da economia em "real" e "monetria", sendo a primeira determinada apenas pela funo da moeda de meio de troca, que por no interferir na produo poderia ser percebida como neutra. Assim, no caso da conomia real, a moeda no se mostra como uma alternativa produo, enquanto que, no caso da economia monetria, dominada pela funo reserva de valor e equivalente geral, a moeda intervm na produo pelo fato de se mostrar ao seu detentor como uma forma de manter a riqueza com menores incertezas se comparada produo, haja visto os riscos existentes nesta esfera em funo dos desgastes e da

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mudana tecnolgica, entre outros. Aqui a moeda no neutra, ela influi na escolha dos agentes e no nvel da produo. Baseando-se nos regulacionistas Aglietta & Orlan (1990), a autora declara que a moeda no dever ser vista unicamente sob o ponto de vista econmico, ela o extrapola por ser uma 'instituio social', vinculada confiana que a sociedade deposita nela e no que a mantm, o Estado. Antes de tudo a moeda uma "relao instituinte da coeso social" em uma sociedade estruturada hierarquicamente (Soares, 2006, p. 78). Em sua defesa da no-neutralidade da moeda, Soares logo no incio de sua tese pontua uma crtica ao "'dogma cientfico, partilhado, segundo ela, por liberais e marxistas da neutralidade da moeda(ibidem, p. 11). De acordo com sua viso, as teorias econmicas tm se esquivado da anlise dos fenmenos monetrios, substituindo-os pela Teoria do Valor, onde as trocas so realizadas com base no valor intrnseco dos bens, determinado ora pela escassez do referido bem, ora pela quantidade de trabalho nele incorporado, de acordo com a teoria de referncia seja neoclssica ou marxista. Continua ela:

Os economistas clssicos e outros posteriores, ao basear toda a construo da teoria econmica na teoria do valor, pretendiam retirar a moeda do mundo da troca e juntamente com ela todos os compromissos sociais que ela envolve, todas as ambigidades e arbitrariedades, toda a luta de poder e f; esse conjunto de fatores to pouco dado construo de verdades cientficas, e to difcil de se encaixar nos modelos tericos. (Soares: 2006, p. 11)

Ela retoma a crtica s teorias do valor - "seja l qual for a especificao que se faa sobre a 'natureza' do valor" (ibidem, p. 76), dizendo que tais teorias determinam a troca fora do contexto social, que se preocupam em afirmar que h uma comensurabilidade ente as diferentes mercadorias dada pelo valor que possuem a priori e que, assim sendo, "as trocas se daro entre equivalentes e o dinheiro perde qualquer funo de no representar essa correspondncia previamente estabelecida a ele (dinheiro). S lhe cabe facilitar as transaes que j foram decididas em termos de valor" (Soares, 2006, p. 76). A julgar pelo que expusemos no captulo 1, nenhuma dessas afirmaes podem ser aplicadas teoria de Marx.

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Cabe aqui uma crtica crtica de Soares pelo fato de ela atribuir teoria do valor trabalho uma incompreenso quanto aos fenmenos monetrios, suprimindo o papel da moeda nas trocas, bem como as contradies da moeda, ou melhor, do dinheiro. Em primeiro lugar, por apreender o papel central que o desenvolvimento da moeda nas trocas - isto , o dinheiro, forma desenvolvida da moeda - tem na sociedade capitalista que Marx se prope a ir alm da esfera fenomnica da moeda e do dinheiro. por meio de sua teoria do valor trabalho que Marx considera que as trocas, movidas pela lei da equivalncia, se intervertem em no equivalncia, bem como aponta as contradies que atingem elevado grau no capitalismo, e a luta de classes representada em luta de poder. Entre tais contradies, pode-se fazer meno ao papel social que exerce o dinheiro em sua constituio como moeda, qual seja a de ter valor de uso de ser medida de valor e meio de troca entre os diferentes trabalhos humanos que compem a produo social, ao mesmo tempo em que, pela autonomizao desse mesmo trabalho, o dinheiro instrumento que realiza necessidades privadas, veladas pela diviso do trabalho. Assim, a teoria marxiana no coloca o dinheiro como neutro, ao contrrio, revela que ele que encarna a contradio da mercadoria e seu fetiche, ocultando as relaes estabelecidas entre os sujeitos das trocas. Logo se v que apesar de Soares direcionar a sua crtica reiteradas vezes teoria do valor de Marx, no separando o joio do trigo, ela pouco compreende sobre essa teoria, reduzindo-a referncia ao valor da mercadoria dada pela quantidade de trabalho abstrato incorporado na mesma. Em nenhum momento ela menciona a teoria do dinheiro, chave para a apreenso da totalidade da teoria do valor de Marx, que mostra que, por traz da aparente troca de equivalentes, ocorre uma interverso, uma troca de no equivalentes. Usando as palavras de Paulani (1994) em crtica a uma viso em alguns pontos anloga de Soares presente na leitura feita por Brunhoff (1978) e Mollo (1991) de O Capital:

(...) se entendermos dessa forma a questo [lei do valor entendida como o fundamento da sociedade capitalista] , perdemos aquilo que, para Marx, era fundamental: que a sociedade capitalista, apesar de aparecer como uma sociedade em que mercadorias so trocadas pelo seu valor, apesar de aparecer, pois, como uma sociedade na qual a lei mxima a da troca de equivalentes, tem como seu fundamento a troca de no-equivalentes, j que

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existe nessa sociedade uma mercadoria especial a fora de trabalho cujo valor de uso o de produzir valor (Paulani, 1994, p. 72).

O trabalhador realiza o intercmbio entre o seu trabalho e o capital, vendendo na esfera da circulao sua mercadoria fora de trabalho, recebendo em troca dinheiro que lhe permite sanar suas necessidades. Isto est apresentado no captulo 1 de O Capital, e est expresso na primeira metamorfose, M-D.. Mas, para o capitalista este intercmbio expressa a segunda metamorfose, D-M, que se transformar em D-M-D em que dinheiro vira mercadoria, que se transforma em mais dinheiro. Segundo Rosdolsky (2001) "s se pode falar de um intercmbio aparente (ou mesmo de um 'nointercmbio'), pois atravs dele o capitalista 'deve receber mais valor do que aquele que entregou'". (op. cit., p.173) Por que o dinheiro esconde esta relao de no equivalentes existente no intercmbio?

Assim como em qualquer intercmbio de mercadorias, o intercmbio que envolve fora de trabalho e capital tambm intermediado pelo dinheiro. "Quando o trabalhador recebe em forma de dinheiro, ou seja, de riqueza universal, est imerso -pelo menos aparentemente - na troca capitalista de equivalentes, como ocorre com qualquer outro participante do intercmbio." O trabalhador se defronta com o capitalista "em uma relao econmica diferente, exterior do intercmbio [...]. Esta aparncia existe como iluso por parte do trabalhador, compartilhada em certa medida pela outra parte, e isso tambm modifica essencialmente essa relao, quando comparada que se estabelece em outros modos de produo social. (Rosdolsky, 2001, p. 175)

Soares prossegue:

Ainda de acordo com os autores [ela refere-se a Orlan e Aglietta RRR], seguindo a linha da economia poltica, se perceberia a coeso como fruto da complementaridade que une todos os participantes da troca, e tal complementaridade s seria possvel porque existe uma homogeneidade "natural" entre os bens e servios trocados. Tanto faz se essa "substncia" particular que permite a homogeneidade "trabalho abstrato" ou "utilidade". Graas a esse expediente a sociedade mercantil pode ser descrita como uma estrutura horizontal, sem hierarquia, onde a

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teoria do valor determina os movimentos das trocas. Para eles, ambas as abordagens caem em hipteses de racionalidade nica, capazes de homogeneizar os sujeitos, e acabam por propiciar uma leitura actica do dinheiro, em que a funo monetria no capaz de instituir mais nada ( apenas reflexa), sendo a teoria da moeda subordinada teoria do valor. (Soares, 2006, p. 77)

As afirmaes de Aglietta nas quais se sustenta Soares no podem ser atribudas teoria do valor trabalho de Marx. Atrs da igualdade formal do mundo das mercadorias h uma desigualdade quando o trabalhador coloca sua fora de trabalho venda como mercadoria, por ser ele "livre no duplo sentido de que ele dispe, como pessoa livre, de sua fora de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, no tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessrias realizao de sua fora de trabalho."( Marx, 1996, p. 287). A venda de suafora de trabalho a soluo historicamente determinada para esse personagem, depois de

ter sido expropriado de seus meios de subsistncia e de produo. E essa condio qual se encontra submetido o trabalhador, que define o surgimento do capital, colocando o possuidor dos meios de produo de frente com o trabalhador livre, destitudo dos meios de subsistncia. No h nenhuma homogeneidade nisto, nenhuma estrutura horizontal, h uma constante luta de classes, que se manifesta na alterao de preos relativa disputa por aumento salarial e por aumento dos lucros, j que o aumento salarial contrai o lucro, e vice-versa. Os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores esto em constante choque. E, esta sociedade em confronto s consegue se reproduzir por meio da hierarquia rigidamente estabelecida. Concordamos com Soares (2006), em suas consideraes a respeito da teoria neoclssica a qual transforma a compreenso da moeda e do dinheiro em uma relao puramente quantitativo-causal, sem responder pergunta sobre o que o dinheiro (e quando o faz, foge da mesma, dando como resposta as funes do dinh