monografia graduação
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O texto jornalístico e o papel dos operadores argumentativos na formação de leitores críticos: uma abordagem semântico-discursiva.Valéria Viana - Instituto de Letras - UFRGSTRANSCRIPT
Universidade Federal do Rio Grande do sul – UFRGSInstituto de Letras
Departamento de Letras Clássicas e VernáculasLET 01440 – Monografia
O texto jornalístico e o papel dos operadores argumentativos na formação de leitores críticos:
uma abordagem semântico-discursiva.
Valéria Viana
Orientadora: Profa. Dra. Freda Indursky
Porto Alegre, agosto de 2000.
Não é deslocando a direção do nosso olhar iludido que conseguimos torna-lo lúcido e calmo.
É criando em nós um novo modo de olhar e de sentir.
Fernando Pessoa
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Sumário
1.A influência dos meios de comunicação de massa na formação, controle e alienação
dos sujeitos sociais...........................................................................................................04
1.1.A construção do discurso jornalístico.......................................................................06
2. O que pretendemos fazer.............................................................................................09
3.Algumas breves considerações teóricas ......................................................................12
3.1.Enunciação e polifonia..............................................................................................13
3.2. Orientação argumentativa.........................................................................................16
3.3. Texto e discurso........................................................................................................17
3.4. Leitor........................................................................................................................20
3.5. Sujeito.......................................................................................................................21
4. Da análise....................................................................................................................25
4.1. Recortes enunciativos...............................................................................................25
4.2. A análise semântico-discursiva................................................................................25
4.3. Uma possível interpretação......................................................................................34
4.4. Mas e a escola, o que tem a ver com tudo isso?.......................................................41
5.Implicações pedagógicas: como fica o ensino de Língua Portuguesa e a prática de
leitura em sala de aula?....................................................................................................44
5.1. A Gramática e seus saberes......................................................................................44
5.2. Por que trabalhar o jornal em sala de aula? Algumas considerações.......................46
6. Bibliografia..................................................................................................................51
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A análise do discurso jornalístico é importante e necessária na medida em que ele, enquanto prática social, funciona em várias dimensões temporais simultaneamente: capta, transforma e divulga acontecimentos, opiniões e idéias da atualidade – ou seja, lê o presente – ao mesmo tempo que organiza um futuro – as possíveis conseqüências desses fatos no presente – e, assim, legitima, enquanto passado – memória – a leitura desses mesmos fatos do presente, no futuro.
Bethania Mariani
1.A influência dos meios de comunicação de massa na formação, controle e
alienação dos sujeitos sociais
Não temos a pretensão de, em poucas páginas, fazer uma análise mais profunda
sobre a influência dos meios de comunicação de massa1 na formação, controle e
alienação dos sujeitos sociais. Pensamos simplesmente em apontar, de forma geral,
algumas de suas produções e alguns de seus efeitos na sociedade atual.
Partimos do pressuposto que os meios de comunicação de massa, hoje, não são
meros instrumentos de informação de longo alcance, mas meios de exposição de
serviços e produtos que colaboram na produção de uma determinada forma de pensar,
perceber, sentir e agir no mundo, isto é, nos indicam como devemos nos relacionar,
como devemos ser e viver.
O crescimento e a expansão dos meios de comunicação significou sua
centralização e controle por poucos – tendência ocorrida mundialmente a partir da
segunda metade do século XX. No Brasil apenas 9 famílias detém mais de 90% dos
meios de comunicação. (cf. COIMBRA2, s/d: 7). Este monopólio tem sido preocupante,
pois não se trata apenas do controle das informações veiculadas na mídia, mas esses
1 São entendidos como meios de comunicação de massa aqueles que atingem grande parte da população
como, por exemplo, o rádio, o jornal e a televisão.2? Cecília Maria Bouças Coimbra é uma socióloga que estuda a influência dos meios de comunicação de massa nos indivíduos. Seu trabalho A mídia prduzindo subjetividade ainda não foi publicado, infelizmente. Trabalhamos com uma cópia que nos foi trazida por uma colega, Renata Lanfermann, que a trouxe de uma reunião promovida pela Secretaria de Educação.
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meios se tornaram quase que um fórum de decisões políticas, pela influência que
exercem junto aos leitores, orientando desfechos que interessam ao poder dominante.
Chomsky (apud COIMBRA, s/d:7) argumenta:
...pode o Brasil ter eleições justas quando a mídia se encontra majoritariamente sob o controle da grande riqueza? Pode a democracia funcionar quando as decisões básicas estão nas mãos do poder privado e das instituições financeiras internacionais que não precisam responder a ninguém por suas atuações? Se quisermos entender os órgãos de imprensa devemos começar por perguntar o que são. São empresas enormes que integram conglomerados ainda maiores. São estreitamente integrados com o nexo estado-privado que domina a vida econômica e política.
Os meios de comunicação de massa, assim como outros aparelhos reprodutores3
sociais – família, escola...- são responsáveis pela produção de sujeitos, de saberes, de
verdades e, por conseqüência, da própria realidade. Uma coisa passa a existir para as
pessoas no momento em que é comunicada, é notícia. O que os meios de comunicação
de massa deixam de falar durante alguns dias é como se não existisse. Da mesma forma,
ao narrar repetidamente um acontecimento – mesmo que não tenha ocorrido4 – faz com
que passe a ter o peso de verdade.
Para Coimbra (s/d), os meios de comunicação não apenas produzem uma
determinada realidade, mas também nos indicam com que prioridade devemos
considerá-la, ou seja, quais os fatos da realidade são importantes, quais devemos
3 Expressão cunhada por Althusser (1983). 4 Umberto Eco (1993), a esse respeito, comenta que, quando escreveu a crônica “Quando entrei na
PP2”,alguns leitores, tendo lido o título às pressas, acreditaram que ele estivesse confessando seu passado demembro da P2 (loja maçônica, cuja lista de membros provocou um escândalo à época). Ele acrescenta
queum jornal de província em um artigo faz referência a este momento difícil de sua vida. Diz ele: mas não
serata apenas de má leitura do texto: é evidente que aqueles leitores entenderam o texto como se ospersonagens nele descritos fossem reais e possíveis. Não sei se por culpa dos leitores ou da vida que osacostumou a tudo. Uma última reflexão diz respeito à natureza veridicativa do mass media: qualquer
coisaque apareça em um jornal ou em outro meio de comunicação de massas é levado a sério, por mais que
sejaprecedida de indicações de sua ficcionalidade. Eu deveria ter aprendido isto com Orson Welles.
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ignorar, sobre o que é necessário termos opinião e discutir, enfim, quais são os assuntos
importantes para nossas vidas.
Quem detém os meios de comunicação de massa produz uma realidade de
acordo com seus interesses, fazendo valer seu ponto de vista, justamente para manter o
poder. E esse poder se manifesta de muitas maneiras. Por exemplo: os meios de
comunicação de massa nos fazem acreditar que apenas alguns especialistas têm
competência para falar sobre determinados assuntos, isto é, eles detêm o conhecimento
e os saberes. Para manter o poder, passam a idéia de que vale mais quem estuda,
havendo, então, um predomínio dos que falam, planejam, estudam, sobre os que fazem
ou trabalham. Essa tem sido uma poderosa arma de dominação e exclusão, pois são
conferidos prestígio, legitimação, credibilidade e poder aos que mais aparecem nos
meios de comunicação de massa.
Abreu (1996 apud COIMBRA, s/d:8) refere que, além das autoridades políticas,
econômicas, etc., os jornais só se abrem para instituições que representam as elites. Os
sindicatos de trabalhadores, por exemplo, só ganham espaço quando geram fatos
específicos – ex.: greves. E assim mesmo, as greves – quando são apresentadas – são
cobertas a partir do prejuízo que podem causar à população.
Para Guareschi (1999 apud COIMBRA, s/d:8), esses mecanismos são utilizados
para manter a população dominada, pois quando alguém está dominado na alma – na
forma de pensar, de perceber, de agir no mundo - não questiona a ordem social vigente.
1.1.A construção do discurso jornalístico
O discurso jornalístico toma parte no processo histórico de seleção dos
acontecimentos que serão recordados no futuro. E mais ainda: uma vez que, ao
selecionar, engendrando e fixando sentido para estes acontecimentos, a imprensa acaba
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por constituir no discurso um modo (possível) de recordação do passado (MARIANI,
1993: 33). Em outras palavras, a imprensa fixa para o futuro a leitura possível de um
acontecimento a partir de seu ponto de vista.
Nesse sentido, um acontecimento pode ser importante para alguns segmentos
sociais, entretanto, se não for veiculado no jornal de forma a atrair a atenção, ele não
será notícia.
Analisar o discurso jornalístico é considerá-lo do ponto de vista do funcionamento imaginário de uma época: o discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social produtora de sentidos como também, direta ou indiretamente, veicula as várias vozes constitutivas daquele imaginário. Em suma, o discurso jornalístico – assim como qualquer outra prática discursiva – integra uma sociedade, sua história. Mas ele também é história, ou melhor, ele está entranhado de historicidade. (op. cit.:33)
Ao longo de sua construção, o discurso jornalístico cultivou a imagem de um
discurso que se supõe isento de pré-julgamento, um discurso neutro, suporte para fatos
que falam por si, não sendo necessário opinar ou interpretar. A informação, controlada
pelo jornal, produz um efeito de transparência e isenção – a tão aclamada verdade dos
fatos. Ora, isto é questionável: a idéia do jornal limitar-se à exposição de fatos e idéias
alheias, sem nenhum posicionamento pessoal, não existe; a simples seleção dos
acontecimentos a serem reproduzidos já implica por si mesmo uma opção.
Na verdade, o jornal emite opinião quando interpreta a notícia a partir de seu
lugar social, orientando a leitura no sentido de não prejudicar aos grupos com os quais
se identifica. Tende, como iremos demonstrar em nossa análise, a mascarar, omitir ou
atenuar fatos que poderiam comprometer estes grupos. Os grupos que se opõem,
ideológica ou politicamente, têm seus feitos, quando bons, minimizados, quando
equivocados, super expostos. A imprensa, de modo geral, é um aparelho ideológico do
estado que, embora não pertença ao estado, se perfila ao lado dele, reproduzindo o
discurso oficial.
Assim, nem todo o acontecimento é notícia e nem sempre toda a notícia advém
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de um acontecimento. Então, como são definidos e selecionados os assuntos que devem
se transformar em notícia? Para atrair a atenção do público são utilizados fortes apelos
emocionais: seleciona-se, então, aquele acontecimento que fugiria à rotina. Como se
fosse um desvio, uma anormalidade, extraordinário e incomum na seqüência natural da
vida, o que o caracterizaria como mercadoria. Esse produto vendável, que é a notícia, é
alimentado pelos interesses econômicos dos grandes conglomerados, empresas que
monopolizam os meios de comunicação de massa e que orientam, direcionam e
selecionam os fatos que serão noticiados, os eventos que serão cobertos e os que não
serão divulgados. As agências internacionais de notícia procuram vender e apresentar no
mercado os pontos de vista que interessam a certos grupos que operam no mercado
internacional. São empresas privadas que selecionam, filtram e orientam as informações
segundo os interesses dominantes.
Portanto, além de produzir uma visão de mundo, dizendo o que devemos pensar
e sentir, como agir e viver, o jornal – e os meios de comunicação de massa em geral –
funciona, organizando os diversos e diferentes acontecimentos. E, na medida em que
organiza esses acontecimentos, hierarquiza os temas, selecionando os que devem e os
que não devem ser de conhecimento do público, isto é, manipula a informação5.
5 Apesar disto, em pesquisa realizada em abril de 1996, pela Datafolha, a imprensa foi a instituição com
mais prestígio, segundo a avaliação de 629 paulistanos. Na opinião de 68% dos entrevistados, a imprensa
tem muito prestígio. Quanto ao meio de comunicação mais confiável, informativo e independente, estamesma pesquisa encontrou em primeiro lugar a TV e o jornal em segundo. Ou seja, grande parte dapopulação confia cegamente nos meios de comunicação de massa pelo que eles próprios denominam deobjetividade, imparcialidade e neutralidade.
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2. O que pretendemos fazer
Este trabalho se propõe, sob a perspectiva da Semântica Argumentativa e da
Análise do Discurso, estudar a orientação da argumentação no discurso para
determinadas conclusões, ou seja, pretende trabalhar com a questão do ato de
argumentar em um texto jornalístico. Para tanto, observaremos, na perspectiva
semântica, como o locutor constrói seu ponto de vista e orienta as conclusões de sua
argumentação a partir do uso dos operadores argumentativos6 . E, ainda, na perspectiva
discursiva, como os sentidos são construídos a partir das condições de produção de um
enunciado. Isto é, pode-se perceber que os sentidos variam à medida que as formações
ideológicas são diferentes umas das outras, seja para quem os (re)produza, seja para
quem os interprete.
Examinaremos, no primeiro momento de nosso estudo, ainda que de forma
sintética, o aparato teórico7 adotado. As referências serão, principalmente, os estudos de
Ducrot (1987) e Guimarães (1981, 1987, 1989, 1995), na perspectiva da Semântica
Argumentativa e, em Análise do Discurso (escola francesa), os textos de Orlandi (1995,
1996, 1999) e Indursky (1989, 1995, 1997, 1998, 1999, 2000).
No segundo momento do trabalho, analisaremos os recortes selecionados. Estes
recortes foram retirados de matérias veiculadas no jornal Zero Hora no final do
primeiro ano do mandato do governador Olívio Dutra, em 1999, num caderno especial
publicado na última edição do ano, denominado Retrospectiva. Neste caderno consta
um resumo do que, no entender do jornal, sejam as principais decisões, feitos e
6 O conceito de operadores argumentativos será definido mais adiante, no corpo do trabalho.7? Entendemos que, para os objetivos deste trabalho, não será necessário apresentar todo o corpo teórico da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso. Selecionamos, pois, os conceitos que serão necessários mobilizar neste estudo.
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realizações do governo durante o ano em questão.
Para a tarefa que nos propomos, vamos associar as duas teorias, a saber,
Semântica Argumentativa e Análise do Discurso, por entendermos que, juntas, elas
poderão responder às questões apresentadas de maneira mais satisfatória. Justificamos o
uso conjunto das duas teorias em nossas análises por entendermos que, na análise dos
operadores argumentativos, é possível ver seu funcionamento semântico e discursivo,
ou seja, olhar como os operadores argumentativos funcionam dentro de um texto para
produzir sentidos. Orlandi, sobre este duplo aspecto, comenta que um operador pode ser
operador de frase (lingüístico, portanto) ou de discurso, dependendo da maneira como
seu funcionamento é analisado (apud INDURSKY, 1997: 22). Em nossa perspectiva,
entendemos que um operador argumentativo pode ser semântico – examinando a
direção dos argumentos no enunciado – e discursivo – mostrando a inscrição ideológica
no discurso.
Este trabalho se propõe, por fim, numa última seção denominada implicações
pedagógicas, observar a) o tratamento dado pela Gramática, em nível morfológico e
sintático, às conjunções e conectivos, respectivamente; b) a transição necessária do
nível morfológico-sintático para o semântico-discursivo, observando no que o estudo
dos operadores argumentativos pode contribuir para a formação de leitores críticos. Ou
seja, acreditamos que introduzir em sala de aula a discussão sobre os prováveis efeitos
de sentido que o uso – ou a ausência – de determinadas palavras, a saber, mas, embora,
por exemplo, provocam, irá contribuir para que o aluno, ao se debruçar sobre um texto
jornalístico – ou qualquer texto, pois não é somente em textos jornalísticos que se
produzem sentidos -, possa estabelecer relações e atribuir sentidos à sua leitura; e c)
estabelecer que a leitura como prática social e, por isso, prática política, deve ser
pensada no sentido de contribuir na formação e qualificação de cidadãos que pensem
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criticamente a realidade brasileira, conscientizando-se das desigualdades e contradições
que caracterizam nossa sociedade. A conscientização, como se sabe, possibilita ao
sujeito buscar, pela ação concreta, transformar esta realidade, tentando diminuir as
condições que promovem a desigualdade e a exclusão da grande maioria dos brasileiros
das discussões que determinam o rumo de todos.
Pensar a leitura nessa perspectiva, é pensar também na importância e relevância
da discussão de textos que permitam refletir a realidade em sala de aula para a
qualificação do cidadão. Por isto, a escolha de textos jornalísticos para este trabalho.
Não se pode mais pensar uma prática pedagógica a partir da exclusão de textos que
reproduzam os acontecimentos cotidianos. Por essa razão, jornais, revistas, editoriais,
panfletos, outdoors, manifestações populares de conscientização como, por exemplo, o
hip hop, devem ser discutidos em sala de aula, sendo usados como objeto de estudo,
discussão e reflexão transformadora e, porque não dizer, libertadora.
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3.Algumas breves considerações teóricas
Nossa reflexão, neste primeiro momento do trabalho, se fará em torno do estudo
de enunciados articulados pelos operadores argumentativos mas, embora, observando,
na perspectiva da Semântica Argumentativa, que o uso dos operadores argumentativos
aponta para um lugar que determina o futuro do texto, orientando, a partir desta marca
lingüística, a conclusão de sua argumentação na construção de seu ponto de vista. Além
disso, os operadores argumentativos indicam diferentes vozes – polifonia - no mesmo
enunciado, sendo possível identificar com qual dos diferentes pontos de vista o locutor
se identifica.
Utilizando a Análise do Discurso, podemos olhar para o texto de uma outra
perspectiva, ampliando as possibilidades de interpretação para o leitor, ao considerar o
lugar social onde o sujeito que ocupa a posição-autor se inscreve a partir de sua filiação
à determinada Formação Discursiva8 e que determina um possível efeito de sentido9,
concebido como possibilidade da existência de diferentes sentidos possíveis que possam
ser assumidos por um mesmo enunciado sempre que este estiver em funcionamento. E
mais, trabalharemos com os processos de produção de sentido, considerando suas
determinações histórico-sociais-ideológicas. Tais determinações fazem parte da
8 Formação Discursiva remete para um domínio de saber no interior do qual organizam-se diferentes enunciados discursivos que veiculam o que pode ser dito no interior do referido domínio em função de sua relação com a Formação Ideológica (INDURSKY: 1997:30-31). Ou seja, são as formações discursivas que, em uma formação ideológica específica e levando em conta uma relação de classes, determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada (BRANDÃO, 1996:38).9? Por efeito de sentido entende-se que o sentido sempre pode ser outro, dependendo do lugar social em que os interlocutores se inscrevem.) Não há garantias de que um discurso produza o sentido que o sujeito-autor planejou. Na hora da leitura, o sujeito-leitor pode interpretar de outra maneira, de acordo com o seu lugar social e sua inscrição em determinada formação discursiva (INDURSKY,1998: 12). A prática discursiva da leitura, como se verá discutido no corpo do trabalho, é lacunar. Ou seja, o autor e o leitor podem estar inscritos em FDs antagônicas, ou mesmo, pertencendo a uma mesma FD, ocuparem posições-sujeito que se opõem e aí não há como controlar a produção de sentidos. Para Orlandi, não há um centro, que é literal, e suas margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição. Todos os sentidos são possíveis e, em certas condições de produção, há a dominância de um deles. O que existe, então, é um sentido dominante que se institucionaliza como produto da história: o literal (ORLANDI, 1996:158). Geralmente, o que ocorre é que um sentido se institucionaliza, adquirindo prestígio como o sentido possível, sendo os outros considerados como decorrentes desse sentido “primeiro”. Na verdade, os sentidos possíveis se processam pelo viés da interlocução.
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exterioridade lingüística, atravessando o discurso, sendo dele constitutivas. Língua e
história são, portanto, importantes para a constituição do sentido.
3.1.Enunciação e polifonia
Trabalharemos com a formulação de Ducrot (1987:168) que define a enunciação
como o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado10. A realização
de um enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dada existência a alguma
coisa que não existia antes de se falar e que não existirá mais depois . O enunciado para
este autor é um segmento de discurso. Ele tem, pois, como o discurso, um lugar e uma
data, um produtor e um ou vários ouvintes. É um fenômeno empírico, observável e não
se repete (DUCROT, 1989:13).
O conceito de polifonia aparece, inicialmente, nos estudos de Bakhtin sobre a
especificidade do romance de Dostoievski, na noção de dialogia. Para ele, o corte
saussuriano que exclui o sujeito, o interlocutor e as marcas espaço-temporais,
desconsiderando a fala porque ela escapa à sistematização própria à língua, exclui
também da língua sua perspectiva dialógica, ou seja, a da palavra sendo um ato de duas
faces, determinado tanto por quem o emite, quanto por quem o recebe. Cada palavra
expressa o “um” em relação ao “outro” (VOLOSHINOV, 1976:118 apud
GUIMARÃES, 1987:19-20). Bakhtin considera que
a verdadeira realidade da linguagem não é o sistema abstrato de formas lingüísticas, nem a fala monológica isolada, nem o ato psicofisiológico de sua realização, mas o fato social de interação verbal que se cumpre em um ou mais enunciados (idem:19).
E a fala
10? O enunciado, para Ducrot, se distingue da frase, pois a frase é um objeto teórico, não pertencendo ao domínio do observável, mas constitui uma invenção da gramática. Já o enunciado é a manifestação particular, a ocorrência hic et nunc de uma frase (DUCROT, 1984:164). Trabalharemos, pois, com enunciados.
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é na sua totalidade um produto da interação social, tanto da imediata, determinada pelas circunstâncias do discurso, como pela mais geral determinada pela totalidade das condições nas quais opera uma comunidade de falantes (ibidem:19).
Ducrot11 incorpora à sua teoria o conceito de dialogia, diferenciando-se, porém,
do pressuposto de Bakhtin de que a lingüística não seria capaz de dar conta da dialogia e
do fato de que, para Bakhtin, a dialogia era possível somente entre enunciados e para
Ducrot existe a possibilidade de encontrar no interior de um mesmo enunciado a voz do
outro, vozes diferentes, ou ainda, vozes em confronto (INDURSKY, 2000:76). A
semântica da enunciação, pela incorporação do conceito de polifonia formulado por
Bakhtin, considera as diversas representações do sujeito da enunciação no enunciado.
Vejamos.
A teoria polifônica de Ducrot12 quer mostrar como num mesmo enunciado
isolado é possível detectar mais de uma voz, assinalando, em sua enunciação, a
superposição de diversas vozes, contestando o pressuposto da unicidade do sujeito
falante13 (DUCROT, 1987:161-172).
Entre as vozes que podemos distinguir num texto, o locutor e o enunciador são
as que nos interessam neste estudo. Interessam no sentido de que, através de sua
identificação nos recortes14 enunciativos analisados, poderemos perceber a
11 Ducrot retoma Bakhtin e o atualiza, na medida em que percebe que para Bakhtin, há toda uma categoria de textos (...) para os quais é necessário reconhecer que várias vozes falam simultaneamente, sem que uma dentre elas seja preponderante e julgue as outras: trata-se do que ele chama (...) a literatura popular, ou ainda carnavalesca. Mas Bakhtin aplicou sua teoria a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais aos enunciados de que estes textos são constituídos. Segundo Ducrot, Bakhtin não questionou o postulado segundo o qual um enunciado isolado faz ouvir uma única voz. Já Ducrot o faz, questionando o pressuposto da unicidade do sujeito. (DUCROT, 1987:161)12? Ducrot apresenta sua primeira formulação para uma teoria lingüística da polifonia em 1980, distinguindo locutor de enunciador, alocutário/destinatário. Em 1984, no artigo Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação, retoma estes conceitos e os atualiza. Trabalharemos neste estudo com os conceitos de 1984.13? Enquanto Benveniste pensa um sujeito único, para Ducrot ele é fragmentado. Indursky compara os dois teóricos e percebe que a dialogia em Benveniste configura-se como uma troca constante entre um EU e um TU, instaurando a intersubjetividade. E para Ducrot, a dialogia institui-se pela possibilidade do sujeito fragmentar-se entre locutor e enunciador, e veicular tanto a voz do outro como a própria voz no bojo de seu enunciado ( INDURSKY, 2000:86).14? O conceito de recorte que iremos adotar em nosso trabalho se apresenta em Orlandi. Para ela, o
recorte é uma unidade discursiva, ou seja, fragmento correlacionado de linguagem e situação. O texto organizaria
os recortes, relacionando-os às condições de produção, com a situação discursiva(ORLANDI, 1996:139-
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fragmentação do sujeito. Pretendemos identificar estes dois pontos de vista veiculados
num mesmo enunciado - E1 e E2 - e mais, pretendemos nos deslocar para o quadro
teórico da Análise do Discurso para poder observar esta fragmentação do sujeito à luz
de Formação Discursiva e de um sujeito historicamente determinado. Mas, neste
momento, voltemos à noção de locutor e enunciador.
O locutor é fragmentado em duas representações15 : a) o locutor (L) sendo o ser
representado como responsável pelo dizer, mas não é um ser no mundo, pois se trata de
uma construção discursiva. É aquele que fala, que conta, que é tido como fonte do
discurso. É aquele a que referem o pronome eu e as marcas da primeira pessoa; b) o
locutor (l) enquanto ser no mundo; ambos constituídos no enunciado e, portanto, seres
do discurso. A identificação de (l) só é possível através de (L). Guimarães (1987: 21)
nos diz que (l) não pode ser visto apenas como a pessoa referida pelo eu ou formas do
paradigma do eu (L). O locutor enquanto pessoa no mundo deve ser caracterizado social
e historicamente. Para nossas análises vamos considerar somente (L).
O enunciador (DUCROT, 1987:193 e 202) se distingue tanto do locutor (ser do
discurso) quanto do sujeito falante (ser empírico). É a figura da enunciação que veicula
diferentes pontos de vista de onde os acontecimentos são apresentados. Nos enunciados
analisados, teremos muitas vezes o seguinte: um enunciador E1, veiculando
determinado ponto de vista, e os operadores argumentativos mas, embora introduzindo
o ponto de vista do enunciador E2 - que se opõe a E1 - com o qual o locutor se
140). Para a autora, a noção de recorte não é segmental, recorte é pedaço, isto é, o recorte é um fragmento da situação discursiva que pode apreender a incompletude como constitutiva do sentido e condição da linguagem. Apaga-se o limite que separa o dizer do sujeito do discurso e o do outro. Parte do sentido do que o sujeito diz está no outro e vice-versa. A fala não é vista pela autora como algo linear e cronológico: alguém fala, eu retomo e completo, o outro retoma e completa, etc. (idem: 140). 15? Segundo as palavras de Ducrot, (L) é o responsável pela enunciação, considerado unicamente enquanto tendo esta propriedade, enquanto (l) é uma pessoa ‘completa’, que possui, entre outras propriedades, a de ser a origem do enunciado – o que não impede que (L) e (l) sejam seres do discurso, constituídos no sentido do enunciado, e cujo estatuto metodológico é, pois, totalmente diferente daquele do sujeito falante – este último deve-se a uma representação ‘externa’ da fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado (DUCROT, 1987:188).
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identifica. Queremos identificar estes diferentes pontos de vista e, ainda, pretendemos,
trabalhando com operadores argumentativos, mobilizar a noção de Formação Discursiva
– identificaremos esses dois pontos de vista - E1 e E2 - com duas Formações
Discursivas antagônicas: Formação Discursiva X e Formação Discursiva Y. Vamos
mobilizar estes conceitos da Análise do discurso porque não queremos apenas localizar
pontos de vista, queremos dizer que estes diferentes pontos de vista inscrevem-se em
FDs antagônicas que lhes determinam o que pode ou não ser dito. Discutiremos esta
(ultra)passagem de um campo teórico para o outro durante as análises.
3.2. Orientação argumentativa
Em nossa análise, vamos utilizar a noção de orientação argumentativa dos
enunciados, marcada a partir dos operadores argumentativos. Ou seja, vamos examinar
os recortes, num primeiro momento, em um nível semântico, examinando as marcas
deixadas no texto que apontam para diferentes pontos de vista.
Orientar argumentativamente com um enunciado X é apresentar seu conteúdo A como devendo conduzir o interlocutor a concluir C (também um conteúdo). Ou seja, orientar argumentativamente é dar A como razão para crer em C. Neste sentido, orientar argumentativamente é apresentar A como sendo o que se considera como devendo fazer o interlocutor concluir C. O que leva à conclusão é o próprio A. Ou seja, é tomado como uma regularidade do sentido do enunciado a representação de sua enunciação como orientada argumentativamente (GUIMARÃES, 1987: 25)16.
Acreditamos que a análise da superfície lingüística de um texto pode evidenciar
os traços de heterogeneidade que constituem sua a trama discursiva. Vamos, pois, olhar
também para estes operadores argumentativos com um olhar discursivo, buscando
apreender e analisar estes mecanismos lingüísticos que, se atestam a heterogeneidade,
produzem, por outro lado, efeito de unidade. O olhar discursivo quer entender como
16 Ducrot define argumentação como argumentar para C (uma conclusão) através de A (empregar A em favor da conclusão C) é, apresentar A como devendo levar o destinatário a concluir C, dar A como razão para crer em C (1976:14 apud GUIMARÃES, 1995:49-51).
16
várias formações discursivas podem estar atravessando um texto, seja porque há
enunciadores distintos do locutor, seja porque o locutor se representa no texto em
diferentes posições enunciativas, filiadas, por sua vez, à rede de formações discursivas
constitutivas da história de sua formação social.
3.3.Texto e discurso
Para Guimarães (1987), o texto é uma unidade empírica com começo, meio e
fim e uma unidade de análise que deve ser pensada no processo discursivo. O texto é
atravessado por várias posições do sujeito, sendo, também, uma dispersão de discursos.
O texto17 constitui a representação do sujeito na posição-autor que procura criar a ilusão
da unidade textual ao mesmo tempo em que procura criar a ilusão de unidade do sujeito ,
pois esta posição assume como suas as palavras que de direito são do interdiscurso18
(GUIMARÃES, 1995: 65). Nessa perspectiva, o texto seria um acontecimento histórico.
A textualidade se constitui ao representar como unidade o que é disperso (idem: 66).
Este autor, ao considerar a historicidade, a relação com o interdiscurso, o
sentido, entre outros aspectos, aproxima-se da posição defendida por Orlandi para
quem o texto é uma unidade significativa:
[...] as palavras não significam por si. É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade (ORLANDI, 1995: 109).
17 O texto escrito é um tipo específico de discurso onde alguém se fixa como locutor, fixando o(s) outro(s) como destinatários, não havendo a possibilidade (ao menos, imediata) de troca de papéis entre ambos; predomina, neste tipo de discurso, uma organização interna, pelo fato de não haver possibilidade de reajustes de relações entre os interlocutores para cada evento particular de enunciação(GUIMARÃES, 1981).18? Por interdiscurso entende-se como a instância de formação/repetição/transformação dos elementos de saber de uma FD, em função das posições ideológicas que ela representa em uma conjuntura determinada. Dito de outra forma: o interdiscurso é o lugar de formação do preconstruído e funciona como um elemento regulador do deslocamento das fronteiras de uma FD, controlando a sua reconfiguração e permitindo a incorporação de preconstruídos que lhe são exteriores, provocando redefinições, apagamentos, esquecimentos ou denegações entre os elementos de saber da referida FD (INDURSKY,1997:35-6). O interdiscurso seria, então, visto como o lugar de memória do dizer, os já-ditos onde não é mais possível identificar a autoria. No interdiscurso as vozes são anônimas pois não podemos mais identificar quem disse o quê, perdendo-se assim a origem.
17
Orlandi desloca a noção de texto da Enunciação para a Análise do Discurso,
olhando-o não como uma unidade fechada19, mas instalando a incompletude como
constitutiva do texto e tomando-o como sua unidade de análise (INDURSKY,
1997:17), pois o discurso manifesta-se materialmente através de textos (id.: 21).
Para a AD, o texto seria um “objeto” lingüístico através do qual se tem acesso ao
discurso20 Indursky, em recente artigo21, faz um estudo exemplar sobre a
heterogeneidade e a incompletude constitutiva do texto. Para esta autora, o texto é
heterogêneo, um espaço simbólico, não fechado em si mesmo, pois, além da relação
lingüística, mantém relação com a exterioridade, vale dizer, com o contexto22,
intertexto23 e interdiscurso. Estas relações fazem do texto um espaço heterogêneo, um
local que remete para muitos lugares. Pensar o texto em suas relações com o contexto -
que de termina suas condições de produção24 – e com a interdiscursividade25 remete
imediatamente para a heterogeneidade. Indursky (1999) explica em seu trabalho que o
19? Podemos ver um texto como um objeto completo, possuidor de uma organização interna que segue as regras de coesão e coerência para criar a textualidade, não considerando relevante para sua constituição a relação com a exterioridade. Esta seria a perspectiva adotada pela Lingüística Textual.20? Pêcheux (GADET & HAK, 1990:92 apud INDURSKY, 1998:11) estabelece que o discurso é efeito desentidos entre interlocutores que enviam para lugares determinados na estrutura de uma formação
social. Aanálise de discurso não trabalha com indivíduos mas com sujeitos historicamente interpelados.O discurso é um objeto teórico que se relaciona com o exterior, em que língua e história estão indissociavelmente relacionadas e está vinculado às condições de produção desse discurso, relacionando-o à exterioridade, à conjuntura histórico-social em que foi produzido e à rede de formulações que outros discursos estabelecem (INDURSKY, 1998:12). Ou seja, o discurso é um objeto histórico-social, cuja especificidade está em sua materialidade, que é lingüística. ( ORLANDI, 1999:17)21? Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto e suas implicações no processo da leitura. 1999. Inédito (no prelo).
22 As relações contextuais remetem o texto para o contexto sócio-econômico, político, cultural e histórico em que é produzido, determinando as condições de sua produção ( cf. INDURSKY, 1999: 3)23? Intertextualidade é a retomada/releitura que um texto produz sobre outro texto, dele apropriando-se para transformá-lo e assimilá-lo. O processo de intertextualidade lança o texto a uma origem possível e aponta para outros textos que têm a mesma matriz e também para textos que ainda não foram produzidos, mas que participarão da mesma família textual (INDURSKY, 1999: 3). Para ver conceito de interdiscurso, ler nota 18. 24? As condições de produção mostram a conjuntura em que um discurso é produzido, bem como suas contradições. Esta noção discursiva teve sua primeira formulação em Pêcheux (1969). Para ele, “as CP remetem a lugares determinados na estrutura de uma formação social”. As relações de força entre esses lugares sociais encontram-se representadas no discurso por uma série de “formações imaginárias que designam o lugar que o destinador e o destinatário atribuem a si e ao outro”, construindo desse modo o imaginário social (cf. INDURSKY, 1997:28). 25? Freda Indursky neste trabalho propõe designar genericamente as relações intertextuais e interdiscursivas como interdiscursividade.
18
efeito de unidade que encontramos em um texto é dado a partir da tessitura ou
“costura” dos diversos recortes textuais relacionados a diferentes redes discursivas
mobilizados pelo sujeito-autor que organiza este material heterogêneo e disperso e essas
diferentes vozes a partir de sua posição-sujeito26 (id.: 3). O sujeito-autor organiza e
reúne os recortes heterogêneos e dispersos provenientes do exterior, produz a
textualização desses elementos que, ao serem aí recontextualizados, se naturalizam,
“apagando” as marcas de sua procedência, de sua
exterioridade/heterogeneidade/dispersão (ibidem:4). A autora acrescenta que este
trabalho discursivo de textualização é o responsável pelo efeito de textualidade27, do
qual decorre outro efeito essencial, o de homogeneidade do texto28. Assim, apresenta-se
como uniforme e sem marcas aparentes o que, na verdade, é produto da
interdiscursividade, produzindo o efeito-texto. Este efeito-texto apresenta-se como uma
forma completa, fechada, acabada, com começo, meio e fim, dando a ilusão de que tudo
que devia ser dito foi dito, nada faltando e nada sobrando (ibidem:5). O texto, com estas
características constitutivas, seria, nas palavras de Indursky, uma heterogeneidade
provisoriamente estruturada.
3.4. Leitor
Quando pensamos o texto na perspectiva discursiva – como uma
heterogeneidade provisoriamente estruturada -, devemos pensar também em quem lerá
26? Um texto é produzido por um sujeito interpelado ideologicamente e identificado com uma posição-sujeito inscrita em uma Formação Discursiva, ou seja, o sujeito produz seu texto a partir de um lugar social e, ao fazê-lo, exerce a função enunciativa de autor (INDURSKY,1999: 3). 27? Indursky propôs a expressão efeito de textualidade para distingui-la de textualidade - uma qualidade textual formulada pela Lingüística Textual. Ela elabora este conceito que passa pela organização lingüística do texto mas vai além. O efeito de textualidade é uma qualidade discursiva que deriva da inserção e textualização de recortes discursivos provenientes de outros textos, de outros discursos, enfim, do interdiscurso (cf. INDURSKY, 1999: 4).
28 No momento em que os recortes discursivos são textualizados no texto, eles parecem ali ter sido produzidos e ali encontram-se de forma tão natural que produzem o efeito de homogeneidade. Ou seja, essa homogeneidade textual é uma ilusão discursiva resultante do trabalho discursivo de textualização (INDURSKY, 1999:4.)
19
esse texto. O leitor, para a Análise do Discurso, terá características que o distingue das
teorias textuais. Vejamos. O leitor é um sujeito interpelado ideologicamente e
identificado com uma formação discursiva. Isso implica dizer que o sujeito-leitor vai
ocupar uma posição-sujeito29 em relação àquela ocupada pelo sujeito-autor, com ela
identificando-se ou não (INDURSKY, 1999: 5). Isto quer dizer que o sujeito-leitor vai
produzir sua leitura de acordo com seu lugar social, dentro de uma formação discursiva
que lhe determina o que pode ou não ser dito. Muitas vezes o sujeito-autor pode estar
inscrito na mesma FD, mas isto não é garantido, nem necessário à prática da leitura. Daí
vem a identificação ou não com o efeito-texto. É nesse espaço – de identificação ou não
com o texto lido - que se estabelece a primeira interlocução entre o sujeito-autor e o
sujeito-leitor. O leitor começa seu próprio trabalho discursivo, a prática discursiva da
leitura (id.: 6).
Dito de uma outra maneira: um texto visto como uma heterogeneidade
provisoriamente estruturada30 dá a impressão de completude. Parece que o texto surgiu
somente do trabalho do autor, mas isso é uma ilusão: muitos recortes discursivos fazem
parte da constituição do texto, que remetem a muitos e diversos lugares sociais, a muitos
e diversos sujeitos e autores, a formações discursivas de diversa natureza. Tudo isso
posto de forma “natural”, ocultada pelo trabalho de textualização produzido pelo
sujeito-autor (ibidem:6)
Mas esta heterogeneidade provisoriamente estruturada que é o efeito-texto
somente se manterá como tal enquanto não for lida. A partir do momento que o leitor ler
o texto, ele acaba com esta estruturação. Instala-se novamente a incompletude, pois o
leitor vai procurar as lacunas que têm que ser preenchidas e estas lacunas que existem
29? A posição-sujeito não é uma realidade física, mas um objeto imaginário. Os sujeitos ocupam, na estrutura de uma formação social, posições determinadas que estarão representadas no processo discursivo.
30 Esta expressão é cunhada por Freda Indursky em seu já citado trabalho.
20
dentro do texto cada leitor vai preencher de uma maneira diferente e aí o texto já não
será o mesmo. O trabalho do leitor, de cada leitor, é desconstruir esta heterogeneidade
provisoriamente estruturada.
A produção discursiva de leitura, salienta Indursky (1999:9) não se limita a
desconstruir o efeito-texto produzido pela função-autor.
Para que ela cumpra seu ciclo, impõe-se que o texto seja recomposto. Ao preencher as brechas produzidas por sua prática discursiva de leitura, o sujeito-autor reconstrói o texto, dá-lhe uma nova estruturação, igualmente heterogênea e provisória.(...) E é isso que torna a leitura uma prática social e o sujeito-leitor dele emerge como sujeito-autor, pois ele passa agora, por sua vez, a organizar as diferentes vozes da interdiscursividade que atravessam e dão sustentação à sua prática de leitura, assumindo a responsabilidade pela produção de um novo efeito-texto, posto que foi re-siginificado, e tão heterogêneo e provisório quanto aquele que lhe deu origem( idem:9-10).
3.5. Sujeito
As teorias enunciativas e as do discurso não se sobrepõem teoricamente –
embora ambas tenham como objeto de análise o texto – principalmente em função da
maneira distinta como concebem o sujeito.
Para a Enunciação,31 o sujeito é livre, senhor de suas palavras, decidindo
livremente seu dizer. Benveniste resgata a subjetividade nos estudos lingüísticos ao
mostrar que a língua tem formas para possibilitar que o sujeito se assuma como locutor
ao apropriar-se da linguagem e, desse modo, funde sua subjetividade, pois podendo
dizer-se EU, pode dizer TU ao outro, constituído como seu interlocutor (INDURSKY,
1998:9). Ao pensar o sujeito, porém, ele o concebe muito centrado, dotado de
consciente, senhor de suas decisões, intenções e estratégias (id.:11). Nessa perspectiva
31? A partir da década de 40, Benveniste inicia sua reflexão que propõe o resgate das exclusões saussirianas, ou seja, os elementos extralingüísticos que também são constitutivos da linguagem. O sujeito e a situação são incorporados aos estudos da linguagem. O eu, tu, o aqui e o agora – marcas da instância discursiva – fazem a representação do extralingüístico no interior do lingüístico (INDURSKY, 1997:27). A enunciação preocupa-se com o locutor – quem é o sujeito da enunciação e como se caracteriza sua emergência no discurso; o interlocutor – para quem o discurso é produzido e como sua presença se materializa na enunciação; a situação em que a enunciação é produzida - marcas espaço-temporais de produção do discurso; o referente do discurso – sobre quem se fala. A teoria da enunciação, entretanto, ao preencher as lacunas da lingüística, no que tange à subjetividade, acabou propondo um sujeito muito forte, portador soberano e consciente de intenções e responsável por suas decisões e seu dizer (id.:27).
21
cada sujeito tem referência própria e corresponde a um ser único (BENVENISTE,
1966: 254 apud INDURSKY, 1998:11).
A Análise do Discurso questiona o sujeito como ser único, central, origem e
fonte do sentido, porque na sua fala outras vozes também falam, é uma construção
polifônica que se constitui a partir de muitas vozes e está marcado pela ilusão de
autonomia. O sujeito deixa de ser um eu marcado pela subjetividade que o situa como
centro e senhor de seu discurso, e se constitui na interação deste eu com o tu.
A AD, ao incorporar a ideologia e o inconsciente ao sujeito, provoca um
deslocamento teórico que a distancia da Enunciação. O sujeito se constitui no e pelo
discurso, na sua relação com o outro, na permanente oposição entre interioridade e
exterioridade. Não há um sujeito único, centro e origem de seu discurso, mas diversas
posições-sujeito que, por sua vez, relacionam-se com determinadas formações
discursivas e ideológicas. O sujeito, pois, pensa que domina o que diz mas, que, de fato,
é determinado, sem se dar conta, a dizer o que seu lugar na formação social impõe que
seja dito (ibidem: 11).
A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos (BRANDÃO, 1994:23), isto é,
ela faz com que cada indivíduo inconscientemente seja levado a se identificar
ideologicamente com grupos ou classes de uma determinada formação social. Contudo,
o sujeito tem a impressão de que é senhor da própria vontade. A isto é que se denomina
assujeitamento ideológico ou sujeito assujeitado (idem: 38). O papel da ideologia é
constituir indivíduos concretos em sujeitos, mesmo quando realizam opções morais e
escolhem valores que definem sua ação individual.
Os indivíduos são interpelados em sujeitos-falantes (em sujeito de seu discurso)
pelas formações discursivas que se definem pela relação que possuem com as
formações ideológicas32 (PECHEUX, 1975:145 apud BRANDÃO, 1994:64). Isto ocorre
32 Formação Ideológica (FI) constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não
22
porque a formação discursiva é constituída por um conjunto de enunciados marcados
pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de formação, isto é, os textos que
fazem parte desta formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica.
Neste espaço é que fica determinado “o que se pode e deve ser dito”, a partir de
um lugar social historicamente determinado. Os sentidos são construídos a partir de sua
relação com determinada FD e um mesmo enunciado inserido em diferentes FD
produzirá, necessariamente, sentidos diferentes (INDURSKY, 1997:32). O sentido de
cada enunciado, pois, muda de acordo com a formação discursiva em que se inscreve.
A identificação do sujeito do discurso com a formação discursiva que o domina
constitui o que Pêcheux chama a forma-sujeito. A forma-sujeito é, portanto, o sujeito
que passa pela interpelação ideológica, o sujeito afetado pela ideologia (BRANDÃO,
1994).
Os processos discursivos nesta concepção não têm origem no sujeito, pois este
está determinado pela formação discursiva em que está inscrito (INDURSKY, 1997). O
sujeito é afetado por dois tipos de esquecimento, criando uma realidade discursiva
ilusória (cf. BRANDÃO, 1994:65-66). O sujeito se coloca como fonte e origem
exclusiva do sentido do seu discurso. Por esta ilusão discursiva, o sujeito rejeita, apaga,
inconscientemente, qualquer elemento que remeta ao exterior da sua formação
discursiva. Daí as escolhas de determinadas expressões. O sujeito tem a ilusão de que é
ele o criador de seu discurso. De natureza inconsciente e ideológica – aí o ponto de
articulação da linguagem com a teoria da ideologia - é uma zona inacessível ao sujeito,
sendo por isso o lugar constitutivo da subjetividade (ilusão-esquecimento nº 1). Além
disso, ele acredita que domina seu discurso, que escolhe livremente entre o que é dito e
são individuais nem universais, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras (PÊCHEUX & FUCHS, 1975:11 apud INDURSKY, 1997:32). Esses elementos, segundo Indursky (1997), não são discursivos e são exteriores à FD, mas se “refletem” no seu interior. As FI comportam necessariamente uma ou várias FD interligadas que determinam “o que pode e o que deve ser dito” em uma manifestação discursiva, em uma certa relação de lugares, no interior de uma aparelho ideológico e inscrito em uma relação de classes.(idem: 32)
23
o que deixa de ser dito, elegendo algumas formas e seqüências que se encontram em
relação de paráfrase e “esquece”, oculta outras. Essa operação dá ao sujeito a ilusão de
que o discurso reflete o conhecimento que tem da realidade. Isto se passa num nível pré-
consciente ou consciente na medida em que o sujeito retoma seu discurso para explicitar
a si mesmo o que diz, para formulá-lo adequadamente, para aprofundar o que pensa,
utilizando-se de “estratégias discursivas” tais como, por exemplo, “interrogação
retórica, a reformulação tendenciosa e o uso manipulatório da ambigüidade” (ilusão-
esquecimento nº 2) (id.:66).
A idéia de que o sujeito é o centro ou origem do sentido constitui para a A.D.
uma “ilusão necessária” que constrói o sujeito. A Análise do Discurso, no entanto, não
só se posiciona criticamente em relação a essa ilusão, recusando-se a reproduzi-la, como
retoma a noção de dispersão do sujeito de Foucault (1969), ao reconhecer o
desdobramento de papéis segundo as várias posições que o sujeito ocupa dentro de um
mesmo texto. É isso que leva Orlandi e Guimarães (1986) a conceberem o discurso
como uma dispersão de textos e o texto como uma dispersão do sujeito. Por texto,
enquanto dispersão do sujeito, entenda-se a perda da centralidade de um sujeito uno
que passa a ocupar várias posições enunciativas, por discurso enquanto dispersão de
textos entenda-se a possibilidade de um discurso estar atravessado por várias formações
discursivas (cf. BRANDÃO, 1994:66).
Sem o espaço da diferença, a comunicação é doutrinação e produz aquiescência e obediência.
Vital Brasil
24
4. Da análise
Analisaremos o texto veiculado na Zero Hora de 31/12/99 e 01/01/00, na seção
reservada à Retrospectiva de final de ano. Este texto foi publicado na página 12 e leva a
assinatura de Luiz Antônio Araújo.
4.1. Recortes enunciativos
(1) O Piratini implantou o Orçamento Participativo, mas não conseguiu cumprir a
maioria das promessas de campanha.
(2) O governador Olívio Dutra chegou ao final de seu primeiro ano de mandato
amparado por algumas realizações que levam a marca do PT e da Frente Popular,
mas sem qualquer garantia de paz e tranqüilidade para o futuro.
(3) Embora tenha reduzido o déficit do Estado de R$ 1,2 bilhão para R$ 460 milhões
entre janeiro e outubro, o governo fracassou em obter o aval da Assembléia
Legislativa para aumentar as alíquotas de ICMS de alguns produtos e terá
dificuldades para administrar receita e despesa no início deste ano.
(ZH, 31/12/99:12)
4.2. A análise semântico-discursiva
Vejamos o recorte 1.
(1) O Piratini implantou o Orçamento Participativo, mas não conseguiu cumprir a
maioria das promessas de campanha.
Este recorte, para efeitos de análise, pode ser desdobrado em:
E1: (a) O Piratini implantou o Orçamento Participativo
e
E2 (b) o Piratini não conseguiu cumprir a maioria das promessas de campanha
25
(a)= uma promessa de campanha que Olívio Dutra realizou
(b)= as outras promessas que Olívio Dutra deixou de cumprir.
O mas é introduzido pelo trabalho argumentativo do locutor, quando ele se
identifica com E2 e recusa o dizer de E1. Aí é que inicia o trabalho do locutor, pois a ele
cabe unir e organizar essas vozes discordantes.
Podemos, neste recorte discursivo, assim como nos demais – (2) e (3) -, dizer que
há polifonia – ou seja, há outras vozes além da voz do locutor (L) – pois parece
improvável que L se responsabilize por (a) e (b). Queremos dizer com isso que há duas
perspectivas enunciativas nos enunciados, e elas se opõem mutuamente, apontando para
dois enunciadores diferentes, E1 e E2. Vemos, pelo modo como L conduz seu
argumento para o sentido negativo de (b), que ele se identifica com E2 – perspectiva
que mostra o que não foi feito -, construindo um sentimento de adesão à necessidade de
repudiar os feitos do governo popular instalado no Piratini e assinalado pela perspectiva
de E1. Ou seja, E1 aponta aspectos favoráveis que L prefere desconsiderar em sua
avaliação. Já a segunda perspectiva assume a direção dada pelo operador argumentativo
mas e busca a adesão do leitor/alocutário. O papel do mas é de inverter a direção da
argumentação. Sem a introdução do mas a orientação da argumentação só poderia ser
positiva. Com isso queremos dizer que um enunciado que principia por O Piratini
implantou o Orçamento Participativo, sem o uso deste operador, só poderia ter seu
sentido construído numa direção favorável ao Piratini. O mas determina o sentido do
recorte enunciativo que vai se dando na direção apontada por mas não conseguiu
cumprir a maioria das promessas de campanha.
O enunciado (a) não tem relação direta com (b) – (b) refere-se àquilo que o governo
não conseguiu fazer -, mas como o locutor não pode negar o que (a) sinaliza, coloca (b)
26
no mesmo enunciado para fazer um contraponto, criando uma ligação entre (a) e (b),
onde (b) é mais importante que (a), (b) anula (a). Como o locutor não tem como dizer
que o enunciador de (a) está errado, pois (a) é um fato, ele mobiliza (b) para desmerecer
(a). O enunciado é, pois, orientado para o valor negativo de (b).
Ao unir as perspectivas de E1 e E2 num mesmo enunciado por meio do operador
argumentativo mas, L tem em mente determinada conclusão que pretende fazer chegar
ao leitor/alocutário. Esta conclusão não está dita, mas fica implícita pela direção que
toma sua argumentação. O locutor, então, até reconhece os atos referidos em (a), mas
menciona-os para reforçar o valor negativo de (b), desacreditando E1. Seu ponto de
vista é insuficiente.
O locutor (L) identifica-se sempre com um dos enunciadores – E2 - e se antagoniza
com o outro, E1. Em nenhum momento, Ducrot associa a identificação a um dos
enunciadores ou o antagonismo ao outro a relações que extrapolem o lingüístico e que
residam no ideológico (INDURSKY, 2000: 84). Por isso, embora também nos interesse
observar os aspectos semânticos que organizam a argumentação a partir do uso dos
operadores argumentativos, associamos a Análise do Discurso à Semântica
Argumentativa, pois não queremos apenas mostrar pontos de vista de indivíduos,
queremos mostrar que temos aí posições de sujeito ideologicamente constituídos que se
opõem uns aos outros. Ducrot não considera – ao contrário da AD – que estas diferentes
posições-sujeito presentes no enunciado são indicativas de diferentes posicionamentos
ideológicos.
O discurso jornalístico, aparentemente imparcial, na verdade, abriga uma
diversidade de vozes que se confrontam, divergem, opondo-se umas às outras. Esta
diversidade polifônica aponta para uma diferença ideológica que remete jornal e
governo do Estado para campos opostos. O jornal, então, organiza essas diferentes
27
vozes para conduzi-las na direção que pretende e esta direção é a direção onde os seus
interesses e os interesses da classe que ele representa são preservados. O jornal seria, em
última análise, o lugar de embate entre formações discursivas que estão em lugares bem
distintos na formação social, onde somente a sua própria voz é validada. Nesse sentido,
o governo não teria espaço na mídia para fazer ouvir a sua voz e, por isso, entre outros
motivos, dizemos que o discurso jornalístico não é um mero instrumento de informação
de longo alcance e sim um importante aparelho reprodutor que colabora na produção de
uma determinada forma de pensar, perceber, sentir e agir no mundo.
Podemos, ainda, nos colocar algumas questões. Não aparece em nenhum momento
do texto quais as promessas de campanha que o governo depois de eleito não conseguiu
cumprir. A maioria sinaliza uma indeterminação semântica, isto é, não sabemos quantas
promessas o governo deixou de cumprir nem quais. Nos perguntamos, ainda, quais as
promessas que o governo se comprometeu em cumprir em um ano de mandato. Existem
lacunas neste texto, pois faltam informações que seriam necessárias ao leitor para que
ele pudesse, ao par delas, interpretar a notícia. Ao leitor resta, então, aderir ou não ao
posição-sujeito, e, por conseguinte, à formação discursiva do jornal.
A Semântica Argumentativa, ao não considerar a historicidade e os lugares sociais
em que os sujeitos estão inscritos, não oferece a possibilidade de nos remetermos para a
exterioridade lingüística e vermos sua contribuição para a constituição da textualidade e
do sentido. Já a Análise do Discurso, como veremos em seguida, ao pensar o texto e a
leitura como heterogêneos e lacunares, vai pensar essas questões no que denominamos a
prática discursiva da leitura.
Vejamos este outro recorte enunciativo que tem uma estrutura similar:
28
(2) O governador Olívio Dutra chegou ao final de seu primeiro ano de mandato
amparado por algumas realizações que levam a marca do PT e da Frente
Popular, mas sem qualquer garantia de paz e tranqüilidade para o futuro.
As observações feitas no início do recorte1 são válidas para este recorte também.
E1: O governador Olívio Dutra chegou ao final de seu primeiro ano de mandato
amparado por algumas realizações que levam a marca do PT e da Frente Popular
e
E2: O governador Olívio Dutra chegou ao final de seu primeiro ano de mandato sem
qualquer garantia de paz e tranqüilidade para o futuro.
Como no anterior, neste recorte discursivo percebemos, pelo emprego do
operador argumentativo mas, que há dois enunciadores e que um se opõe ao outro:
enquanto E1 admite que existem realizações do governo durante o primeiro ano, E2
sinaliza para o fato destas realizações não serem suficientes para garantir a
governabilidade no próximo ano. Novamente aqui se estabelece o jogo: lança-se uma
avaliação positiva para, em seguida, atribuir-lhe um valor negativo. O operador
argumentativo mas sinaliza no enunciado a mudança de voz, de perspectiva.
Percebemos que, em E1, não há uma especificação, as informações são vagas: quais são
as realizações do governo? Por que não mencioná-las? E algumas é o pronome
indefinido que marca esta indeterminação semântica.
O locutor, ao mobilizar o dito de E1, demonstra uma atitude aparentemente
conciliadora em relação ao Governo do Estado. Como já foi dito acima, L até reconhece
os atos mencionados por E1, parece apoiar os feitos do governo. Porém, o operador
argumentativo mas conduz o argumento em direção contrária: mas sem qualquer
garantia de paz e tranqüilidade para o futuro. Quer dizer, algumas realizações foram
feitas, reconhece L, mas nada que dê governabilidade. O locutor reformula, a partir do
29
mas, sua afirmação inicial, tirando-lhe o mérito, apontando razões para identificar-se
com E2, mesmo quando, aparentemente, dá voz a pontos de vista divergentes dos seus.
Dizemos aparentemente porque, na verdade, apenas dá espaço em seu enunciado a
outro ponto de vista para desvalorizá-lo. Isso acontece porque a posição-sujeito que o
locutor ocupa, ao orientar o sentido para comprovar seu ponto se vista, inscreve-se
numa formação discursiva antagônica à posição sujeito de E1. Ao entrarmos no campo
do ideológico, vemos que um sujeito interpelado só diz aquilo que sua FD permite que
seja dito. Ora, a Zero Hora, na voz do autor que reproduz seus discursos, não poderia e,
como vimos, não o faz em nenhum momento, reconhecer o valor de qualquer ação
efetuada por um governo do qual ela diverge e que, se se mantiver no poder, vai
prejudicar seus interesses e os interesses de seus aliados.
Um outro operador argumentativo – embora – será mobilizado nesta análise.
Observaremos como ele funciona no recorte (3):
(3)Embora tenha reduzido o déficit do Estado de R$ 1,2 bilhão para R$ 460
milhões entre janeiro e outubro, o governo fracassou em obter o aval da
Assembléia Legislativa para aumentar as alíquotas de ICMS de alguns produtos
e terá dificuldades para administrar receita e despesa no início deste ano.
Temos aí, três desdobramentos para efeitos de análise:
(a) Embora o governo tenha reduzido o déficit do Estado de R$ 1,2 bilhão para R$ 460
milhões entre janeiro e outubro
(b) O governo fracassou em obter o aval da Assembléia Legislativa para aumentar as
alíquotas de ICMS de alguns produtos
(c) O governo terá dificuldades para administrar receita e despesa no início deste ano.
30
Neste enunciado, o autor nos dá três argumentos que, aparentemente, não têm
relação uns com os outros. Mas, analisando-os dentro da perspectiva da semântica
argumentativa, vemos que eles estão juntos para orientar a leitura em direção à
determinada conclusão.
O locutor, novamente, mobiliza as perspectivas enunciativas de E1 e E2:
E1 = (a)
E2 = (b) e (c)
Outra vez, o jogo polifônico: E1 é a perspectiva que não prevalece no discurso
de L, pois ele identifica-se com E2, sendo essa perspectiva, que é também a perspectiva
de L, a que prevalece. Deste lugar enunciativo, o locutor procura dar unidade ao texto
que constrói. E1, neste caso, é a perspectiva do governo, com o qual o locutor diverge.
Embora não concorde com E1, L é obrigado a contemplar o dizer de E1; seu saber é
imposto a L pois o tema do artigo trata justamente daquilo que o governo fez ou não
durante o ano.
O recorte é organizado a partir do operador argumentativo embora, para não ser
apenas um relato, mas também uma avaliação da relação entre o que foi feito e o que
não pôde ser realizado. Trata-se da interpretação dos fatos oferecida pelo jornal.
Em E1, o operador argumentativo embora sinaliza esta avaliação do locutor
sobre o fato do governo ter conseguido diminuir o déficit do Estado e nesta avaliação o
governo sai perdendo: E2 mostra que tal façanha não é importante o suficiente para
gerar estabilidade. O que estamos percebendo é que o locutor, ao iniciar seu enunciado
por embora não apresenta simplesmente os fatos: já os interpreta para o leitor,
desqualificando o feito de o governo ter diminuído drasticamente o déficit..
E2 nos diz que o governo não conseguiu passar pela Assembléia o projeto para o
aumento das alíquotas de ICMS. Citando Germano Bonow, em entrevista veiculada na
mesma edição do jornal, à página 6, sobre a “sistemática” recusa da Assembléia,
31
predominantemente oposicionista, em passar os projetos do governo, o presidente do
PFL - uma voz da oposição –, diz: Dos 70 projetos encaminhados em 1999 pelo
Piratini, foram aprovados 60. Ora, então este é apenas um dos 10 projetos que não
foram aprovados, os restantes 60 o foram. No texto de Luiz Antônio Araújo, não há
menção aos projetos mandados pelo Piratini que foram aprovados. Eles não são
relevantes para a construção do ponto de vista do locutor, por isso são omitidos.
Já (c) é posto como resultado direto de (b), o que é questionável: como a derrota
de um único projeto poderá colocar em cheque toda a administração futura? É de se
esperar que haja outras alternativas para contornar a crise financeira que se instaurou ao
ser barrada uma opção prevista pelo governo para colocar suas contas em dia. Como se
vê, há muitas lacunas, muitas informações omitidas, muitos implícitos que conduzem o
leitor na direção dada pelo jornal aos fatos. Vamos nos deter nessas questões na
próxima parte do trabalho, quando olharmos esses recortes da perspectiva discursiva.
Por enquanto, voltemos à nossa análise semântico-discursiva.
Vemos novamente aí um jogo: (a) e (b) não têm o mesmo valor, (b) é posto
como mais relevante que (a) e como o governo não conseguiu (b), mesmo (a) tem seu
valor neutralizado, principalmente em função do enunciado já iniciar com embora, cuja
função é a de descartar de imediato o que poderia ser considerado um ponto altamente
positivo e o resultado previsível é (c).
Embora sinaliza no enunciado a voz do autor e do jornal, que podemos perceber
a) não ser imparcial, b) ser desfavorável ao governo, c) minimizar (a) e superestimar
(b).
Já (c) – o resultado provável, segundo a interpretação do jornal – é ambíguo no
sentido em que não fica claro se a dificuldade prevista em administrar a receita e
despesa em 2000 é resultado direto de (b) ou é uma previsão baseada em outro
32
pressuposto não mencionado no texto. Nos parece que (c) foi colocado como
conseqüência direta da segunda perspectiva enunciativa, mas se a analisarmos – uma
proposta que foi derrubada pela Assembléia – nos parece que somente (b) não
justificaria (c). Vemos aí que este recorte é construído para deixar o leitor com a idéia
de que em 2000 o governo não poderia administrar receita e despesa – estaria em
profunda crise financeira – mas não nos dá todas as informações, pois, repetimos,
embora o último argumento pareça resultado do segundo, somente ele não
comprometeria a governabilidade da maneira como é sugerido por (c).
O embora é o lugar da manifestação da autoria. É o elemento que marca a
construção da unidade textual. A Semântica Argumentativa descreve o funcionamento
do embora de modo a mostrar como ele faz o que faz neste recorte enunciativo. Embora
é uma forma que, ao funcionar na enunciação, mobiliza o discurso sobre a importância
do governador não ter conseguido passar a votação do ICMS na assembléia,
desconsiderando por completo o fato de que este mesmo governo reduziu o déficit do
estado em R$ 740 milhões em dez meses de governo.
(a) que deveria ter um valor positivo, ao ser antecedido do embora perde parte
de seu valor que é neutralizado, assumindo, pois, um valor negativo.
Novamente neste recorte vemos em um mesmo enunciado duas posições-sujeito
antagônicas num embate em que o destino do texto já está determinado, pois a Zero
Hora não dá possibilidade para se ouvir uma voz que não esteja inscrita na mesma
formação discursiva que a sua. Com isso queremos dizer que mesmo que possamos
perceber que existem posições-sujeito provenientes de outras FDs, essas posições não
terão como determinar a direção argumentativa neste jornal, pois ele controla, organiza
e seleciona o que será veiculado, validando apenas o seu ponto de vista, que é
cristalizado como se fosse o único ponto de vista possível, valendo-se, para isso, da
33
impressão de neutralidade, de imparcialidade que cultiva habilidosamente para
disfarçar/encobrir a manipulação que faz dos fatos.
Esperamos que tenhamos conseguido mostrar, nestas análises, como se constrói
lingüisticamente a argumentação, a partir das perspectivas de diferentes enunciadores,
com orientações discursivas distintas, e como o locutor (L), ao proceder à organização
textual desses recortes, promove a organização do texto, conduzindo-o a uma
determinada direção, e fazendo prevalecer uma dessas perspectivas no sentido de
determinada conclusão. Associamos esses diferentes pontos de vista à diferentes
posições-sujeito, inscritas em FDs antagônicas, pois é nosso objetivo, também, levantar
um questionamento para pensarmos o fato de que quem diz alguma coisa, o faz de um
determinado lugar social que lhe determina seu dizer e, no caso do jornal, podemos
pensar que, ao mesmo tempo em que só reproduz e valida seu ponto de vista, o faz de
maneira tal que deixa uma impressão de imparcialidade que faz com que o leitor acate
seu ponto de vista, como o único, naturalizando-o.
4.3. Uma possível interpretação...
Para a AD, (COURTINE, 1981 e 1982 apud INDURSKY, 2000:80) os recortes
discursivos acima seriam um exemplo de enunciado dividido que veicula posições
sujeito antagônicas, próprias de diferentes Formações Discursivas (FD) em um mesmo
enunciado discursivo. Dentro de cada FD, há uma série de possibilidades de
formulações de um enunciado. Estes enunciados refletiriam a sua FD que organiza o
que pode e o que não pode ser dito por um sujeito por ela afetado. Em outras palavras,
se o sujeito inscreve-se em uma FD X – identificada com forças conservadoras – este
sujeito faz soar em seu discurso enunciados identificados com esta FD X e quando fizer
referência a enunciados provenientes de outra FD, FD Y – identificada com forças
34
trabalhistas e progressistas –, ele irá opor-se a esta voz, pois seu discurso é, de certa
forma, pré-determinado por sua FD. Um sujeito interpelado só diz aquilo que pode ser
dito.
Mencionamos acima, ainda na análise semântico-discursiva, que havia questões
colocadas que seriam respondidas, em parte ao menos, pelo viés da análise discursiva.
Vamos a elas.
Nos perguntamos, na análise do recorte 1(b), quais as promessas de campanha
que Olívio Dutra deixou de cumprir e, ainda, quais as promessas que ele havia se
comprometido a cumprir.
O recorte, como se vê, deixa muitas lacunas, e essa é uma questão da qual logo
nos ocuparemos. Mas agora, voltemos às promessas de Olívio Dutra. Sobre essa
questão, temos uma colocação interessante de Schieben-Lange (1975:85-6 apud
INDURSKY, 1998:195-6): a promessa política é historicamente determinada,
vinculando-se estreitamente às instituições onde nascem e se constituem. Indursky
desloca essa reflexão para o âmbito da Análise do Discurso e acrescenta que a promessa
política é historicamente determinada tanto por quem a formula como por quem a
interpreta. Ou seja, para que uma promessa funcione discursivamente como promessa
deve relacionar necessariamente interlocutores afetados por uma mesma determinação
histórica. Quando tal determinação não engloba igualmente esses dois pólos, o efeito
de promessa não tem condições de se instaurar (grifo nosso). Ou seja, não existe
promessa política universal porque não é possível pretender que todos os interlocutores
de uma formação social estejam inscritos em uma mesma FD (cf. INDURSKY,
1998:195-6). Em outras palavras, o autor do artigo e, por conseqüência o jornal, por
estar inserido em uma Formação Discursiva antagônica à do governo, não tem
condições de avaliar com imparcialidade as questões relacionadas ao governo com o
35
qual ele não se identifica. Tudo que o jornal veicular já está determinado,
necessariamente, por sua FD.
Devemos nos perguntar também: para quem o governo do Estado fez as suas
promessas? Com que segmento da sociedade ele está comprometido? Qual a avaliação
que este segmento da população fez do governo durante esse período? As promessas
que o governo cumpriu que não interessam ao jornal e a classe social com o qual ele
está comprometido são consideradas nessa avaliação que o jornal publicou?
Essas questões, discutidas brevemente, colocam uma outra questão: para quem a
Zero Hora escreve seus textos? Já vimos que o texto jornalístico é escrito por um sujeito
em determinado lugar social, inscrito em determinada Formação Discursiva que lhe
determina o que pode ou não ser dito. E para quem esse sujeito, na posição-autor,
escreve seu texto? Quem é o leitor imaginário ou virtual a quem é destinado o texto
jornalístico? Nossa hipótese é que esse leitor imaginário da ZH pertença à mesma
Formação Discursiva em que o jornal se inscreve. Percebemos isso porque, nesse jornal,
conforme nossa análise, não tem lugar para outras vozes, pois quando o tema da
reportagem obriga a veiculação de idéias que pertençam a outra FD, os operadores
argumentativos são mobilizados no sentido de desvalorizar e neutralizar essas vozes
divergentes.
Orlandi já havia colocado a questão de haver um leitor imaginário para quem o
autor destina seu texto e para quem ele se dirige (cf. ORLANDI, 1999:9). Ele poderia
ser um cúmplice ou adversário do autor. No caso da ZH, é um cúmplice. O leitor virtual
da Zero Hora concorda com o tratamento dado pelo jornal a determinadas questões. Ele,
e os leitores reais que se identificam com a FD a que pertence o jornal, fazem uma
36
leitura parafrástica33 que se caracteriza pelo reconhecimento (reprodução) de um
sentido que se supõe ser o do texto (dado pelo autor).
Passaremos, agora, a outra questão que, de certa maneira, já foi posta nas
análises semântico-discursivas, mas que, naquele lugar teórico, ficou sem resposta.
Vamos revê-la sob o escopo teórico da Análise do Discurso, pensando-a em sua relação
com a prática discursiva da leitura.
Nos recortes percebemos que havia muitas lacunas, muita coisa ficou por ser
dita, informações foram omitidas e geraram muitas questões que não foram respondidas
pelo texto, enfim, no momento em que esse texto foi lido, foi desconstruído pelo
trabalho de leitura e esta heterogeneidade provisoriamente estruturada desestruturou-
se. Vimos que o texto que parecia num primeiro olhar um objeto homogêneo, era, na
verdade, heterogêneo, que o sujeito que o produziu, exercendo a função enunciativa de
autor, mobilizou vários recortes textuais relacionados que veiculam vozes inscritas em
diferentes Formações Discursivas, que ele tentou organizar e dar um efeito de
homogeneidade. Desse trabalho do sujeito-autor decorre o efeito de unidade e sentido
desse efeito-texto.
Esse efeito-texto, de aparência tão homogênea, onde o sentido parece ser aquele
que o autor pretendeu, ao ser submetido ao processo de leitura, por um leitor que
também é um sujeito interpelado e que pertence a uma FD, esse sentido vai se
desestabilizar. O sujeito-leitor, no momento em que instaura o processo de leitura, vai se
confrontar com o leitor virtual (cf. ORLANDI, 1999:9). O leitor real pode identificar-se
ou não com esse leitor imaginário. O sujeito-leitor também ocupa uma posição-sujeito
em relação àquela ocupada pelo sujeito-autor, com ela identificando-se ou não. (cf.
33 A leitura pode ser dar de dois tipos: parafrástica, onde se produz o mesmo sentido de várias formas (matriz da linguagem) e a polissêmica, que é a responsável pelo fato de que são sempre possíveis sentidos diferentes, múltiplos ao texto( polissemia vista como fonte da linguagem) (cf. ORLANDI, 1999:20)
37
INDURSKY, 1999:5). Acrescente-se a isso a história de leituras e de outros discursos
que ressoam desde o interdiscurso, atravessando-se na sua leitura (idem: 7).
O sujeito-leitor vai interagir com o efeito-texto, desconstruindo-o, nas palavras
de Indursky (1999:8), desestabilizando os sentidos e é esse o resultado do trabalho
discursivo da produção de leitura: desestabilizar sentidos que parecem estabilizados.
Durante o processo de leitura aparecem as lacunas do texto – em nossa análise
apontamos várias – onde podemos perceber as faltas, as omissões, as ambigüidades, os
lapsos, os implícitos que o trabalho de tessitura textual, para provocar o efeito de
textualidade, tenta organizar e homogeneizar. Em vão. Chega o leitor e desestrutura
tudo de novo. Mas não é somente isso que o leitor faz: ao preencher as lacunas
implícitas ao texto o sujeito-leitor reconstrói o texto, re-significando-o, instaurando
novamente o efeito de homogeneidade. O sujeito-leitor ocupa agora a posição de
sujeito-autor pois é ele quem vai, agora, organizar as diferentes vozes da
interdiscursividade que atravessam e dão sustentação à sua prática de leitura, assumindo
a responsabilidade pela produção de um novo efeito-texto tão heterogêneo e provisório
quanto aquele que lhe deu origem (cf. INDURSKY, 1999:9-10).
Ou seja, é o leitor que terá que preencher as lacunas textuais e para preenchê-las
terá de contar com sua história, seus conhecimentos, suas leituras, o interdiscurso, o que
ele sabe sobre o assunto, aquilo que ele já ouviu dizer, enfim, são inúmeras as
contribuições que o leitor traz para dentro de sua leitura. E, dependendo de sua
formação discursiva, ele pode identificar-se ou não com a posição do autor que é a do
jornal. Caso aceite a interpretação dos fatos dada pelo jornal, sua leitura será
parafrástica e novos sentidos não serão mobilizados, mas, se, ao contrário, ele ocupar
outra posição-sujeito em outra formação discursiva, ele atribuirá outros sentidos,
realizando uma leitura polissêmica. Os sentidos são constituídos na articulação dos
38
processos parafrástico e polissêmico, neste retorno a um mesmo dizer sedimentado – a
paráfrase – e na tensão que aponta para o rompimento – a polissemia – que desloca o
mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do discurso, tensão entre
texto e o contexto histórico-social: o conflito entre o mesmo e o diferente, entre
paráfrase e polissemia (cf. ORLANDI, 1996:27).
O discurso jornalístico, marcadamente institucionalizado, é ideológico34. Nesse
sentido, não só o discurso jornalístico, mas todos os discursos o são. Este discurso
ideológico, valendo-se das manobras descritas acima, serve para legitimar o poder da
classe ou grupo social (cf. BRANDÃO, 1994:26-27) com o qual o jornal se identifica.
Nos discursos veiculados no jornal em análise, faz-se um recorte da realidade, uma
versão (possível) dos fatos. A ideologia funciona no discurso jornalístico – e no
discurso de maneira geral - de modo tal que, ao apresentar uma versão dos fatos, se
acredita que estes sejam “os” fatos. Pelo viés da ideologia, os sentidos se apresentam
como evidentes e transparentes. Ou seja, para aquela posição-sujeito, inscrita naquela
formação discursiva, o efeito de sentido se apresenta como “o” sentido. Para que esse
efeito de sentido apresente-se como o único possível, o jornal omite, atenua ou falseia
dados. Selecionando, dessa maneira, os elementos da realidade e mudando as formas de
articulação do espaço da realidade, a ideologia escamoteia o modo de ser do mundo. E
esse modo de ser do mundo, veiculado por esses discursos, é o recorte que o jornal - que
é um AIE cuja função é de reprodução do discurso da classe dominante, para a
manutenção e perpetuação do poder dessa classe dominante - faz da realidade,
retratando assim, de forma enviesada, uma visão de mundo.
34 O termo ideologia, (cf. BRANDÃO, 1994:26-27) ligado à tradição marxista, refere ao mecanismo que leva ao escamoteamento da realidade social, apagando as contradições que lhe são inerentes. Preconiza a existência de um discurso ideológico que, utilizando-se de várias manobras, serve para legitimar o poder de uma classe ou grupo social. De outro lado, temos uma noção mais ampla de ideologia que é definida como uma visão, uma concepção de mundo de uma determinada comunidade social numa determinada circunstância histórica.
39
O discurso, segundo Foucault (1979:74), é um espaço em que saber e poder se
articulam, pois quem fala, fala de um lugar, a partir de um direito reconhecido
institucionalmente. Esse discurso, que passa por verdadeiro, que veicula saber – o saber
institucional – é gerador de poder. A produção desse discurso gerador de poder é
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos que têm
por função eliminar toda e qualquer ameaça à permanência desse poder.
Na nossa reflexão, é possível pensarmos como se dá o jogo de poder e
manipulação dos indivíduos por determinados grupos no poder, através dos meios de
comunicação de massa. O indivíduo é assujeitado, ele próprio legitima o controle que
esses grupos exercem, passa a importar idéias, padrões de comportamento que não são
próprios à sua própria cultura, mas lhe são inculcados através da mídia. A sujeição vai
além de uma obediência externa, ela já está internalizada de forma inconsciente,
incutida nos sujeitos, e as técnicas de perpetuação do poder vão se tornando cada vez
mais sofisticadas.
Althusser, em Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1983), afirma que,
para manter a sua dominação, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação ou
de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração. O Estado,
através de seus aparelhos repressores – ARE (governo, administração, exército, polícia,
tribunais, prisões, etc.) – e aparelhos ideológicos – AIE (religião, escola, família,
Direito, política, sindicato, a cultura, a informação, etc.) – intervém ou pela repressão ou
pela ideologia, tentando forçar a classe dominada a submeter-se às relações e condições
de exploração (cf. BRANDÃO, 1994:22).
Os meios de comunicação de massa, em geral, e a imprensa escrita,
especificamente, trazem consigo toda a ideologia capitalista, assim como tudo que
caracteriza esse sistema, ou seja, traços de reificaçao e alienação. Reificaçao no sentido
40
de que eles transformam tudo em coisa, inclusive o homem, alienação no sentido de que
o homem, agora, reificado, torna-se acrítico e passivo, assimilando tudo que lhe é
oferecido. Se o sistema capitalista está baseado na alienação, os produtos deste sistema,
a indústria cultural, os meios de comunicação de massa, só podem estar também
baseadas na alienação, na exclusão do pensamento crítico e da reflexão do indivíduo.
Observa-se que uma das grandes forças na indução que o jornal produz é que o
meio é tido como sendo neutro. As pessoas acreditam que se foi publicado no jornal, é
verdadeiro. Há uma fachada de neutralidade que nos impede de ver a manipulação que
as informações sofrem até chegar a nós. Tem-se a sensação errônea e ilusória de que se
é livre, independente para qualquer decisão, mas, na realidade, há sempre por detrás
muita coisa que jamais poderá chegar às consciências dos indivíduos. Este processo de
alienação contínua se dá com o intuito de manutenção de status quo.
Toda classe procura, segundo Brandão (1994:25-6), segundo seus sistemas
políticos, legitimar-se, e para tal é necessário que haja correlativamente uma crença por
parte dos indivíduos nessa legitimidade. Como a legitimação da autoridade demanda
mais crença do que os indivíduos podem dar, surge a ideologia como sistema
justificador da dominação.
4.4. Mas e a escola, o que tem a ver com tudo isso?
A escola, assim como os meios de comunicação de massa e outros equipamentos
sociais, tem contribuído historicamente na reprodução da ordem social dominante, pois
a escola, como demonstra Althusser, é um AIE que tem como função reproduzir os
valores e os costumes – a ideologia – da classe dominante ou seja, reproduz uma visão
de mundo como sendo a única possibilidade.
41
Bourdieu (1974 apud ORLANDI, 1996:28) trata da escola como a sede da
reprodução cultural, e o sistema de ensino como sendo a solução mais dissimulada para
o problema da transmissão de poder, ao contribuir para a reprodução da estrutura das
relações de classe, mascarando, sob a aparência da neutralidade, o cumprimento dessa
função. Marilena Chauí (Folha de São Paulo, 29/06/1980 apud ORLANDI, 1996:28) vai
além e acrescenta que mais que a reprodução da ideologia dominante, das estruturas de
classe e das relações de poder, a educação agora é tomada pelo seu aspecto econômico
mais imediato, sendo a função da escola reproduzir a força de trabalho.
Orlandi em O discurso pedagógico: a circularidade (1996:15-23), caracteriza o
discurso pedagógico (DP) como um discurso autoritário. Por discurso autoritário,
entende-se aquele em que não há interlocutores, mas um agente exclusivo (cf.
ORLANDI, 1996:15). Ou seja, não é um lugar onde haja diálogo, no sentido de existir
um sujeito que fala e outro que ouve e esta situação poder ser revertida: aquele que
falou, agora ouve e assim por diante. No discurso autoritário, há somente um sujeito que
fala – o professor – e o sujeito que ouve - o aluno. E não é possível a troca, pois os
papéis sociais estão cristalizados. O professor é, pois, aquele que sabe e que está na
escola para ensinar ao aluno, que é aquele que não sabe e está na escola para aprender
(id.:21).
Essa autora diz que no DP há mascaramento (ibidem:18), pois o que é ensinado
justifica a sua necessidade e utilidade principalmente em função da autoridade que o
professor exerce em sala de aula, onde o saber institucionalizado que ele transmite é
considerado o conhecimento que se deve ter. O professor domina a metalinguagem
através da qual os saberes são transmitidos e essa posse o autoriza e cria a hierarquia em
sala de aula onde o professor é a fonte do saber.
42
A escola é o lugar onde o aluno vai para aprender o que não sabe e o professor
está para ensinar aquilo que sabe. Ou seja, é o lugar onde o discurso pedagógico reside;
este dizer institucionalizado, que serve para a manutenção do status quo, tem na escola
seu lugar natural onde este dizer se garante, garantindo a instituição em que se origina
e para a qual tende. Esse é o domínio de sua circularidade. Circularidade da qual
vemos a possibilidade de rompimento através da crítica ( ibidem:23).
Orlandi, em Para quem é o discurso pedagógico (1996:25-38), propõe que essa
tomada de posição crítica, que é necessária para romper a circularidade do DP, seria
possível se o discurso pedagógico se tornasse um discurso polêmico35. Uma forma de
interferir no caráter autoritário do DP seria questionar os seus implícitos, o seu caráter
informativo, a sua unidade e atingir seus efeitos de sentido.
Para o professor, uma possibilidade a considerar seria apresentar seus textos de
forma polêmica, expondo-se a outros efeitos de sentido possíveis, deixando um espaço
para o aluno intervir e colocar-se ele também no lugar de locutor e o professor se
colocar como ouvinte. É saber ser ouvinte do próprio texto e do outro.
Ao aluno caberia negar a fixação, própria do DP, de seu lugar como ouvinte sem
possibilidade de inversão de papéis. Ao se negar ao enquadramento fixado pelo DP o
aluno, junto com o professor, tem possibilidade de reverter esse discurso e desestabilizar
o sentido, abrindo espaço para a multiplicidade de sentidos, procurando práticas e
discursos escolares se abram para a multiplicidade das formas de existência, isto é, para
a construção do novo.
35 O discurso polêmico seria aquele que mantém a presença de seu objeto, sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar seu referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada (o exagero é injúria) (cf. ORLANDI, 1996:15).
43
Será que a liberdade é uma bobagem?...Será que o direito é uma bobagem?..
A vida humana é que é alguma coisa
A mais que ciências, artes e profissões.E é nessa vida que a liberdade tem um
Sentido, e o direito dos homens.A liberdade não é um prêmio, é uma
Sanção. Que há de vir. Mário de Andrade.
5.Implicações pedagógicas: como fica o ensino de Língua Portuguesa e a prática de
leitura em sala de aula?
5.1. A gramática e seus saberes
Nessa última parte de nosso trabalho, vamos trazer as reflexões feitas ao longo
do trabalho para dentro da sala de aula, mais especificamente, para a aula de Língua
Portuguesa e procurar estabelecer qual seria a contribuição da perspectiva semântico-
discursiva na formação de leitores.
A Gramática36 classifica – no nível morfológico - as palavras mas e embora
como conjunções adversativa e concessiva, respectivamente. Junto com as preposições,
classifica as conjunções como conectivos da seguinte maneira:
Duas classes de palavras invariáveis cujos membros funcionam como conectivos na língua, ou seja, como elementos que têm a função de estabelecer uma conexão entre partes dos constituintes internos das orações ou entre orações de um período. Tais palavras são invariáveis porque não podem receber marcas flexionais, apresentam-se sempre com a mesma forma, independente do contexto. Os conectivos são considerados palavras funcionais, pois, à diferença dos vocábulos que têm um conteúdo lexical (ou seja, um conteúdo que pode ser associado a algum referente no mundo exterior, como o conteúdo referencial dos nomes e dos verbos), o conteúdo semântico dos conectivos é puramente funcional, isto é, é a expressão de sentidos que se definem no interior do sistema lingüístico, na relação entre os elementos do enunciado (ABURRE & PONTARA, 2000:124).
36 A Gramática a qual nos referimos nesse trabalho não é a Gramática Tradicional, no sentido estrito, mas uma gramática que está sendo adotada no ensino médio, em escolas públicas estaduais que faz parte da coleção Base da editora Moderna, que está de acordo com o PCN. Esta gramática incorpora muitos conceitos da Lingüística Textual, da Teoria da Comunicação (Jakobson), Teoria da Variação (Labov), faz referência a sujeito, poder, ideologia, e a outros aspectos que interessam tanto para a Enunciação quanto para a Análise do Discurso, ficando mais próxima da Enunciação.
44
A importância dos conectivos está vinculada ao fato deles serem um dos
elementos importantes para o estabelecimento da coesão textual, pela função que
desempenham de estabelecer a conexão entre orações, marcando as relações de sentido
que se estabelecem.
As conjunções têm a função de criar um sistema de relações e referências no
interior do texto, garantindo, assim, a unidade entre as diversas partes que o compõem.
Como se vê, a Gramática trata do aspecto morfológico e sintático dessas
conjunções, e esses aspectos são importantes e têm de ser vistos e trabalhados em sala
de aula. Não queremos, aqui, dizer que não se deve ensinar gramática na escola. Deve-
se sim. Mas o ensino da gramática só é necessário e só se justifica para quem lê e
escreve. Quem não lê nem escreve não necessita estudar gramática. Mas a questão mais
importante é essa: ler e escrever é uma necessidade para a qualificação da cidadania e
da consciência crítica.
Pensamos que um projeto educativo, comprometido com a democratização
social e cultural, atribui à escola a função e a responsabilidade de contribuir para
garantir a todos os alunos o acesso aos saberes lingüísticos necessários para o exercício
da cidadania.
Nossa posição é a de que devemos dar condições, pelo ensino da gramática nos
seus aspectos mais formais – entenda-se morfológico-sintático -, de o aluno tomar
conhecimento do funcionamento da língua que fala.
Mas, em algum momento, devemos fazer a passagem necessária: mostrar que
mais do que meras palavras que ligam orações e que são responsáveis pela coesão
textual, que essas conjunções, quando estão em um texto, começam a produzir sentidos,
sendo, então, na perspectiva semântico-discursiva, vistas como operadores
argumentativos que produzem deslizamentos de sentido, que invertem orientações
45
argumentativas, apresentando o ponto de vista do enunciador (com o qual o locutor se
identifica). É preciso mostrar também que esses operadores argumentativos unem, em
um mesmo enunciado, diferentes pontos de vista (polifonia) que apontam para
formações discursivas antagônicas e mais, que esses pontos de vista são produzidos por
sujeitos interpelados ideologicamente que dizem o que dizem de um lugar social,
determinado pela sua inscrição em uma formação discursiva. Daí se chega à
historização do sentido e ao sujeito social.
5.2. Por que trabalhar o jornal em sala de aula? Algumas considerações
A leitura, já dizia Paulo Freire (1989) em A importância do ato de ler, é um ato
político, como o são todas as práticas sociais. Pensando assim, quando se organiza um
programa de ensino de língua materna, deve-se colocar o aluno em contato com o maior
número possível de textos para que se possa criar condições para que a prática da leitura
se estabeleça.
Sabemos da importância de colocar à disposição do aluno textos dos mais variados:
poesia, música, romances, crônicas, ensaios, editoriais, revistas, quadrinhos, charges,
panfletos, propagandas, enfim, trazer para a sala de aula toda a variedade que está fora
da sala de aula, produzindo sentidos, interferindo na vida das pessoas, fazendo história.
Não queremos excluir nenhum tipo de texto, pensamos que, se eles despertam o
interesse do aluno, incentivando-o a uma atitude reflexiva e crítica, serão bem-vindos.
Mas queremos falar de um tipo de texto em particular e de sua importância na formação
de leitores: o texto jornalístico.
Esse tipo de texto diferencia-se de outros textos no aspecto visual e de estruturação:
é um texto específico que visa chamar a atenção do leitor – leitor desinteressado não
compra jornal. A notícia é uma mercadoria – de ontem, diga-se de passagem – e está à
46
venda. Como mercadoria que quer ser consumida, ela se cobre de atrativos: há a
manchete – com um enunciado bem chamativo, muitas vezes sensacionalista e que não
tem muito a ver com a matéria que está escrita –, e o chapéu – um pequeno resumo
onde trata-se genericamente da questão da reportagem e que transmite uma idéia do tom
do texto. Lendo apenas a manchete e o chapéu, tem-se idéia do que trata o texto e
muitas vezes nem se chega a ler todo o texto; no texto jornalístico não é necessário que
se leia todo texto, ele é organizado para passar as idéias gerais nas manchetes e chapéus.
Mas não é apenas no visual que o jornal se diferencia de outros texto: as questões
dos acontecimentos do cotidiano são fixadas pelo jornal, que, como já vimos em nossas
análises, interpreta e avalia o fato que relata em seu texto, influencia o outro, alterando
suas representações da realidade e da sociedade e o rumo de suas (re)ações.
Nossos problemas sociais estão diariamente na mídia. E são veiculadas as mais
diferentes posições, vindas de diferentes segmentos da sociedade, inscritas em diversas
formações discursivas. E a imprensa reproduz. Mas faz mais que isso, e esse é o ponto a
que queremos chegar: a mídia reproduz estes discursos de uma posição social que
também lhe determina o que pode e o que não pode ser dito. E desta posição que ocupa
ela forma opinião. De preferência, a reprodução da sua própria. Nosso trabalho, como
educadores, é nos perguntar e fazer com que o aluno se questione: por quê? Por que a
imprensa faz o que faz? Quem ganha com isso? O que está em jogo? A essas perguntas
temos que dar condições ao aluno para – criando um ambiente onde tenha um lugar para
a discussão dos textos jornalísticos –, através da leitura crítica, responder. Não se pensa,
aqui, em dar respostas prontas – o professor ler e interpretar a notícia, traduzindo-a para
o aluno – pois seriam apenas as respostas do professor e não as do aluno.
O educador deve criar condições dentro da sala de aula para que possam ser lidos e
discutidos os acontecimentos do cotidiano e com essa discussão o leitor possa se
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posicionar criticamente em relação ao que ele leu. Em resumo, trazer o jornal para ser
lido em sala de aula.
O papel do professor, nessa perspectiva, é de criar condições para a leitura. Ou seja,
ele traz vários textos sobre os assuntos que interessam ao aluno – de preferência textos
que contemplem diferentes pontos de vista (para que o professor não incorra no erro de
querer, ele próprio, fixar uma perspectiva como a única possível). Isso é possível
trazendo diversas matérias, veiculadas em diferentes jornais sobre o mesmo assunto,
mostrando diferentes pontos de vista.
A idéia é que se dê a palavra para o aluno: o aluno lerá o texto em voz alta para os
colegas; se houver mais de um texto a ser lido os alunos fazem a leitura em voz alta, uns
para os outros, socializando a leitura. Depois, sob a orientação do professor, inicia-se
uma discussão onde cada aluno tem o direito de defender/expressar seu ponto de vista.
Depois de feita essa discussão, o aluno é capaz de se colocar na posição de autor,
tomar a palavra e escrever um texto para que o aluno, na posição-autor, organize a
discussão, encontrando as suas respostas a partir de suas reflexões.
Este é o momento do mostrar ao aluno essa transição que se faz do estudo de
conjunções para operadores argumentativos. Quer dizer, mostrar que as conjunções,
operando dentro de um texto, produzem sentidos, e mais, essas conjunções, que já não
são mais simples conjunções, mas operadores argumentativos, estão ali para orientar a
leitura e para conduzir o leitor a uma determinada conclusão. Mostrar que, ao usar os
operadores argumentativos na construção do seu texto, o jornal não está mais somente
conectando orações e informando, mas argumentando e, por conseguinte, interpretando
e avaliando e, por essa via, mostrando a ele – leitor – em que acreditar.
A partir dessa percepção, o professor deve questionar o aluno: a) qual a posição do
autor em relação ao assunto; b) onde estão as marcas lingüísticas que evidenciam isso;
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c) como o leitor pode percebê-las e, d) ao perceber essas marcas que conduzem a leitura
em determinada direção, fixando uma leitura e excluindo as outras como é que o aluno,
diante dessa percepção da manipulação dos acontecimentos que faz o jornal, se
posiciona como leitor. Ele concorda com o ponto de vista do jornal? Ele acha que se
justifica este tipo de manipulação para validar uma versão dos fatos? Pensar o texto
criticamente envolve uma atitude que não é passiva, ou seja, um leitor crítico não senta
e espera que lhe digam em que acreditar.
Desmistificar o texto impresso como fonte de “verdade indiscutível” é uma tarefa do
professor que pensa em contribuir para a formação de um cidadão leitor. O professor
tem como função questionar os alunos para que, gradualmente, possam ir além nas suas
discussões, progredindo em suas leituras.
O aluno, ao interagir criticamente com o texto, poderá, por si mesmo, perceber
que o jornal está comprometido com certos segmentos da sociedade e seus textos
refletem esse comprometimento na medida em que reproduz a voz desses grupos não
dando espaço para a alteridade. Perceberá também que interagir pela linguagem
significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma
determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinada circunstância
de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são
aleatórias – ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das condições de
produção em que o discurso é realizado.
O capitalismo se sustenta pela manutenção da desigualdade social. A escola mesmo
quando possibilita – e isso é questionável: a escola hoje possibilita a ascensão social? -
que o aluno consiga ascender socialmente, ela só perpetua a desigualdade. Porque o
sujeito que passa de uma classe social para outra adota os valores dessa nova classe.
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O que a escola deve fazer é dar outra alternativa que seja a do sujeito transformar a
sua vida e modificar sua realidade sem que precise passar de uma classe social para
outra, mas pensando em movimentos alternativos de conscientização. Quando a escola
detém seu olhar sobre os acontecimentos do dia-a-dia, através da leitura de jornais e
outros textos, possibilita ao estudante observar seu cotidiano de maneira crítica, fazendo
com que os costumes – estabilizados e naturalizados - sejam postos em discussão,
possibilitando, assim, que o aluno possa, ele próprio, modificar sua realidade,
interferindo nela em uma ação concreta de desvelamento de mundo. Parece que quando
o sujeito compreende que suas idéias e crenças são, na verdade, pré-determinadas por
sua inscrição a uma Formação Discursiva procura rediscutir suas certezas.
O sujeito que percebe criticamente sua realidade tem condições de conceber
estratégias para melhorar sua vida e de sua comunidade. Assim, desfaz-se o “círculo”
em que o Outro é o modelo. É nesse sentido que a leitura crítica da realidade, associada
a certas práticas claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-
se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica.
Deixar que o aluno pense por si mesmo é a tarefa. E, em Língua Portuguesa,
podemos começar este trabalho.
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No dia vinte e quatro de agosto de dois mil, nas dependências do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi realizada a defesa da Monografia de Final de Curso pela aluna Valéria da Cruz viana. A Comissão Examinadora, constituída pelas professoras Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira, Ana Zandwais e da orientadora, Dra. Freda Indursky, atribuiu a este trabalho, como conceito final A, com louvor.
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