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Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Formação de Conselheiros Nacionais Curso de Especialização em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais Célia Hissae Watanabe POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO: A experiência das famílias agricultoras no Território do Sertão do Apodi/Rio Grande do Norte BELO HORIZONTE 2010

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Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Formação de Conselheiros Nacionais

Curso de Especialização em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais

Célia Hissae Watanabe

POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO:

A experiência das famílias agricultoras no Território do Sertão do Apodi/Rio Grande do Norte

BELO HORIZONTE 2010

CÉLIA HISSAE WATANABE

POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO:

A experiência das famílias agricultoras no Território do Sertão do Apodi/Rio Grande do Norte

Monografia apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção de título de especialista em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais. Orientador: Prof. Dr. Brian Wampler

BELO HORIZONTE 2010

CÉLIA HISSAE WATANABE

POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO:

A experiência das famílias agricultoras no Território do Sertão do Apodi/Rio Grande do Norte

Monografia apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção de título de especialista em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais.

Aprovada em____/____/_______

Orientador: Prof. Dr. Brian Wampler

Banca Examinadora

Prof. Ms. Vanderson Carneiro

Prof. Dr. Félix Garcia Lopez Júnior

Agradecimentos

Aos agricultores, agricultoras familiares e assentados e assentadas que vivem, labutam e constroem uma nova convivência com o sertão do semiárido brasileiro, em especial, as

pessoas que gentilmente dialogaram com o propósito do presente estudo, relatando suas lidas, objetivos, inquietações, sonhos e esperança.

Aos que fazem o Projeto Dom Helder Camara, em particular Espedito Rufino, Rosane Gurgel, Núbia, Felipe Jalfim e Roberto Ramos, pela receptividade, atenção e disposição em

fornecer informações e facilitar minha chegada ao território.

À Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte, em especial Gilberto Silva, Nivalda Camara e equipe pelas informações, pelo apoio e

acolhimento no território.

Aos professores, tutores, coordenação e colegas do curso, pelo companheirismo nessa jornada inovadora do curso de especialização à distância.

À Quintino, Jacqueline e Márcio pelo apoio na tradução, revisão ortográfica e formatação da monografia

Ao Professor Brian Wampler pelas orientações metodológicas para a realização da pesquisa e na elaboração da monografia de conclusão do curso.

Muito obrigada!

“Quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes.”

Dom Helder Camara

POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO:

A experiência das famílias agricultoras no Território do Sertão do Apodi/Rio Grande do Norte

Sumário Página

RESUMO/ABSTRACT .................................................................................... 06

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 07

2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO. 10

2.1. Breve contexto ................................................................................. 10

2.2. A ação do Projeto Dom Helder Camara – o foco nas pessoas ........ 17

2.3. Protagonismo no contexto do Projeto e as ‘diferentes diferenças’ .. 21

3. A PARTICIPAÇÃO .................................................................................... 25

3.1. Por que participar? .......................................................................... 25

3.2. O papel da mobilização social ......................................................... 27

3.3. Vida em comunidade ....................................................................... 30

3.4. Participação: protagonismo ou exigência? ...................................... 31

3.5. Dilemas da participação ................................................................... 33

4. AS APRENDIZAGENS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO ..........................................................................................

35

4.1. A participação e os processos de mudanças .................................... 35

4.2. Identidade e pertencimento .............................................................. 38

5. CONCLUSÃO ............................................................................................... 40

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 42

6

RESUMO

O semiárido brasileiro, em sua realidade de enfrentamento às adversidades climáticas, traduzidas em longos períodos de estiagens, de insuficiência de investimentos em infra-estrutura e em ampliação do acesso às políticas sociais, configura-se em uma das regiões mais pobres do país. Na superação da visão de que seria necessário realizar ‘obras contra as secas’ e oferecer socorro nas situações de flagelo, um novo conceito, o de convivência com a seca, foi inserido na perspectiva de elaboração de políticas públicas que garantam sustentabilidade ambiental, social e econômica. Nesse sentido, o Projeto Dom Helder Câmara foi criado com a finalidade de elaborar referenciais dessas políticas, valendo-se de metodologias participativas e de realização de ações com centralidade no ser humano em oito territórios do semiárido nordestino. O presente estudo faz uma aproximação aos sujeitos de um dos Territórios, o do Sertão do Apodi (RN) e procura refletir sobre a vida em comunidade, as dimensões organizativas das famílias agricultoras e assentadas, bem como as aprendizagens que a participação tem possibilitado construir.

PALAVRAS-CHAVE:

Políticas de convivência com a seca, mobilização social, comunidade rural, cidadania

ABSTRACT:

The Brazilian semi-arid, because of its reality to facing the climatic adversities characterized by long periods of droughts, the inadequacy of investments in infrastructure and the difficult for improvement the access for social politics, has been configured as one of the poorest areas of the country. To overcome the vision that it would be necessary to accomplish 'works against the droughts' and to offer help in the scourge situations, a new concept, the one of coexistence with the drought, it was inserted in the perspective to elaboration of public politics that guarantee environmental, social and economical sustainability. In that sense, the Project Dom Helder Camara was created with the purpose of elaborate references of those politics, based on participative methodologies and on accomplishment of actions with the human being as the center of the actions, in eight territories of the semi-arid Northeast region. The present study makes an approach to the social agents of one of the Territories, the Sertão de Apodi (RN) and tries to contemplate about the life in community, the organized dimensions of the farming and seated families, as well as the apprenticeships that the participation has been making possible to build.

KEY-WORDS: Coexistence politics with the drought, social mobilization, rural community, citizens

7

1. INTRODUÇÃO:

O presente estudo procura refletir a experiência do Projeto Dom Helder Camara nos

territórios do sertão do semiárido nordestino em sua missão de construir referenciais de

políticas públicas de convivência com a seca, valendo-se do enfoque metodológico

participativo, a fim de estimular o protagonismo das pessoas envolvidas e as aprendizagens

que essa participação ajuda a construir.

O conceito de convivência é relativamente recente, e sua inserção na agenda pública

se deu em um cenário de manifestações de movimentos sociais e de um conjunto de entidades

atuantes no bioma caatinga, movidos por uma leitura crítica ao tratamento historicamente

dado aos problemas com os quais a população convivia e convive, tornando evidente a luta

política travada entre as diferentes concepções de desenvolvimento para a região do

semiárido.

Dentre as concepções adotadas, aquela que provavelmente mais se contém coerência

política (Silva, 2008) considera a convivência com a seca, focada nas pessoas, com manejo

sustentável, tecnologias apropriadas e de baixo custo, que possibilitem geração de trabalho,

renda e qualidade de vida.

Alinhada com a esta alternativa, faz-se necessário discutir, elaborar e implementar

políticas públicas de convivência com a seca. Nessa perspectiva, o Projeto Dom Helder

Camara, cuja missão é ‘investir no ser humano e transformar o semiárido’, foi constituído

para atuar na execução de ações locais nas comunidades de agricultura familiar e nos

assentamentos da reforma agrária, visando a incorporação de práticas sustentáveis que

possibilitem a convivência com as adversidades inerentes ao semiárido e que pudesse orientar

a construção das políticas públicas em questão.

O Projeto está organizado a partir de uma estrutura de técnicos e gestores na Unidade

de Gestão (UGP), com sede em Recife (Pernambuco) e uma Unidade de Supervisão Local

(ULS) em cada um dos territórios atendidos, além de contar com uma rede de parcerias com

Organizações Não Governamentais para assessoria técnica e com entidades vinculadas aos

8

movimentos sociais para a mobilização social. A gestão do Projeto se dá nos espaços do

comitê gestor1 e dos comitês territoriais2, sendo estes últimos, lugares de realização de

planejamentos participativos, monitoramento, análise e avaliação das ações, sempre com a

presença majoritária dos representantes das comunidades rurais.

O que se pretende aqui é refletir sobre as aprendizagens que a vivência participativa

das famílias beneficiárias constroem na lida cotidiana da vida no território e de como

articulam os processos organizativos e produtivos. No contexto da participação, compreender

como tem influenciado no resgate e vivência de valores e princípios que venham a reforçar a

organização, trazendo elementos sobre a construção do protagonismo dos sujeitos.

O estudo procura refletir também sobre em que medida esse conhecimento tem

ajudado negar a ação assistencialista dos governos, cuja intervenção histórica favoreceu os

segmentos políticos que sempre procuraram se beneficiar diante das mazelas e condições de

descaso com as quais a população foi submetida.

A pesquisa de campo foi realizada no período de 3 a 6 de novembro de 2009 em um

dos territórios de atuação do Projeto, o Sertão do Apodi, no Estado do Rio Grande do Norte3.

Constituiu-se em visitas às comunidades e entrevistas semiestruturadas com agricultores

familiares, assentados da reforma agrária, entre mulheres, homens, jovens, adultos e pessoas

da terceira idade; e reuniões com os mobilizadores sociais e técnicos do Projeto Dom Helder

Camara.

As questões orientadoras das entrevistas estavam relacionadas às aprendizagens

construídas a partir da participação, às mudanças individuais e coletivas no cotidiano da vida

em comunidade, no âmbito da produção e da organização, e às percepções das pessoas sobre

os processos participativos na perspectiva do desenvolvimento rural sustentável.

1 Compõem o Comitê Gestor, representantes do Governo (MDA/SDT, INCRA, BNB e representantes dos

governos dos estados de PE, PB, SE, RN, PI e CE); e da Sociedade civil (Representantes dos beneficiários dos estados de PE, PB, SE, RN, PI e CE)

2 Os Comitês Territoriais tem a representação das famílias agricultoras, dos governos municipais, estaduais, dos movimentos sociais locais, das organizações parceiras e representantes do Projeto Dom Helder.

3 Foram entrevistados 12 agricultores (as)/assentados (as) e realizadas rodas de conversas com toda equipe de mobilizadores sociais da base da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte: 1 coordenadora e 12 mobilizadores, e também com a Supervisora Local e uma assistente técnica de uma das entidades parceiras.

9

Para as reflexões foram considerados os estudos realizados ao longo do curso

“Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais” a partir do instrumental

disponibilizado4 e das leituras complementares sobre o tema.

O Projeto Dom Helder Camara está presente em oito territórios localizados em seis

estados do nordeste, e a opção por uma aproximação ao Território do Sertão do Apodi se deu

por questões de logística. O trabalho está focado mais na questão da participação da sociedade

civil e menos na ação do Estado enquanto executora de projetos e programas.

4 Vídeo-aulas, textos de apoio para as disciplinas, fóruns de discussão, salas de bate-papo com professores e

tutores, encontros presenciais, orientação para o trabalho final.

10

2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRID O

2.1 Breve contexto

Na percepção do país em suas dimensões continentais e seu histórico de desigualdades

inter e intra-regionais, é evidente o conjunto de fatores que configuram ao semiárido

nordestino, em sua maior extensão, a condição de atraso. Prevalecia com muita força a visão

de “estagnação ou a lentidão do crescimento econômico e a permanência de indicadores

sociais abaixo da media nacional e regional”, cuja “situação estrutural de pobreza ainda se

transforma em calamidade nos períodos prolongados de seca” (Silva, 2008: 15 e 16).

A idéia de combate à seca, reproduzida por gerações, tinha a função de junto aos

poderes constituídos, facilitar a permanência de uma elite dirigente e perpetuação da condição

de subalternidade dos atingidos pela seca, pois fundamentava um conjunto de ações que

associavam o descaso, favorecimento, apadrinhamento no atendimento das emergências e do

‘assujeitamento’ das pessoas destituídas de seus direitos.

Em situações de longas estiagens, as mazelas sociais ganham maior visibilidade, e a

população afetada passam a cobrar dos governantes que instaurem medidas de amparo,

considerando a situação de extrema dificuldade. As atitudes então esboçadas pelo Estado

brasileiro gravitavam em torno de cada conjuntura política (Fischer e Albuquerque, 2002),

seja no volume de recursos, seja no tipo e qualidade das intervenções.

O semiárido brasileiro corresponde a quase 90% da região nordeste, considerando os

estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e

Bahia, e mais a região setentrional do Estado de Minas Gerais, num total de 1133 municípios

e uma área de 969.589,4 km2. São cerca de 21 milhões de pessoas que convivem com as

adversidades como a aridez climática, baixa, imprevisível e mal distribuída precipitação

pluviométrica5 e solos empobrecidos de matéria orgânica (Silva, 2008).

5 Médias igual ou inferior a 800 mm anuais

11

Delimitação do semiárido brasileiro:

Municípios do semiárido em destaque, de acordo com a nova delimitação pelo Governo Federal em 20056. Fonte: Brasil, Ministério da Integração Regional/Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional

6 A nova delimitação se deu a partir de análises feitas pelo Grupo de Estudos Interministeriais criado para esse

fim e considerando os seguintes critérios técnicos: i) precipitação pluviométrica media anual inferior a 800 milímetros; ii) índice de aridez até 0,5 calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial no período entre 1961 e 1990; e iii) risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 1 1990 (Brasil, 2005).

12

A questão do desenvolvimento tem sido alvo de disputas ao longo das décadas com

pelo menos duas visões. De um lado a opção e fomento do Estado brasileiro com foco na

estratégia urbano industrial com priorização da região centro sul, e, consequentemente

ampliando as diferenças regionais; de outro a contraposição a esse modelo a partir de uma

visão contra-hegemônica, com argumentos críticos ao desenvolvimentismo dos anos de 1930

e com ênfase nas décadas de 1950 a 1980.

As iniciativas governamentais para a região, pouco consideraram a população mais

pobre, sem terra, sem trabalho e sem renda, focando o investimento público para os grandes

empreendimentos, pautando as lavouras de monocultura, conforme o modelo agroexportador

apregoado pelo desenvolvimentismo. Uma das consequências dessa opção foi o

favorecimento da concentração fundiária. São aspectos que associados à ausência de

investimentos em infraestrutura e em políticas sociais, aprofundaram as condições de pobreza

da população, em especial os habitantes do espaço rural.

Para Demo (2006) não é a seca que produz a pobreza, mas a ‘indústria da seca’. A

falta de chuva por si é uma condição natural, não é um problema social. Para o autor, a

pobreza não está associada somente à fome, a privação de bens materiais, apesar de esses

indicadores serem mais visíveis. Está também na humilhação, subserviência, degradação

humana, na segregação que transforma a pobreza em um produto da sociedade, cujo contexto

na história leva a população vulnerável a esse estado, com a reprodução da condição de não

acesso às ‘vantagens e oportunidades sociais’ vindo a configurar ou a reforçar as

desigualdades:

A pobreza não é a miséria pura e simples, mas aquela impingida, discriminatória, ou, mais do que tudo, aquela da maioria em função do enriquecimento da minoria. Pobre é, sobretudo, quem faz a riqueza do outro sem dela participar. Pobreza na sua essência é discriminação, injustiça. (Demo, 2006:7)

As alternativas governamentais para amenizar os conflitos sociais gerados pelo alto

nível de comprometimento do abastecimento das famílias chegavam em forma de ação

emergencial nas condições de flagelo. Quando o estado de calamidade pública é decretado, a

esfera governamental é levada a alocar recursos para políticas de socorro, focando geração de

renda, abastecimento de água e alimentar (Fischer e Albuquerque, 2002). No entanto, a

limitação de investimentos públicos para o semiárido pontualmente nas condições de

emergência não era o suficiente para garantir a sustentabilidade das vidas.

13

Silva (2008), ao analisar as alternativas de desenvolvimento para o semiárido na

perspectiva de superação da visão dos pessimistas que acreditam não haver possibilidades de

desenvolvimento para a região, sistematizou a contribuição de vários atores sociais na

formulação de propostas/alternativas com distintas visões de desenvolvimento: i) combate à

seca e aos seus efeitos; ii) a modernização e investimentos em polos dinâmicos com o

aumento da produção e produtividade com base em práticas como a irrigação; iii) a

convivência com o semiárido, que possibilite combinar produção a partir de práticas

apropriadas e qualidade de vida para a população.

A propósito de realizar ações de combate à seca, a primeira alternativa trazia seu foco

no atendimento às situações de emergência em condições de flagelo ocasionada por estiagens

prolongadas. Essa prática tinha entre outros objetivos, o de mover uma engrenagem política

eleitoral favorável à manutenção de uma elite governante, pois alimentava uma sucessão de

práticas assistencialistas. Não agregava ações em caráter permanente que garantisse a

produção e a manutenção das famílias durante todo o ano (Silva, 2008).

O fomento às tecnologias capazes de promover elevação de produção e de

produtividade, com centralidade no crescimento econômico, é a base da segunda alternativa.

Sua implementação tornou visível a mão do Estado desenvolvimentista, ao tempo em que

incentivou a existência dos chamados polos dinâmicos, principalmente com agricultura

irrigada, configurando ilhas em uma região tomada pela pobreza e miséria (Silva, 2008).

Sobre essas duas alternativas o autor nos informa serem assumidas enquanto políticas

de governo para o semiárido, incorporando a exploração econômica, de forma fragmentada,

tecnicista. Complementa:

Em relação à primeira alternativa, verifica-se que atualmente quase não há defesa do combate à seca e aos seus efeitos, como orientação das políticas públicas. Em relação à segunda concepção, verifica-se que planejadores, governantes, empresários, estudiosos da região (...) apostam na continuidade dos investimentos para ampliar o processo de modernização econômica nesses espaços dinâmicos de desenvolvimento. (Silva, 2008: 24)

Em contraponto às duas visões, a terceira alternativa foi articulada e sistematizada

pelos novos atores sociais interessados prioritariamente na dimensão da convivência com o

semiárido, de modo a garantir o desenvolvimento sustentável.

14

O semiárido passa a ser concebido enquanto um espaço no qual é possível construir ou resgatar relações de convivência entre os seres humanos e a natureza, com base na sustentabilidade ambiental e combinando a qualidade de vida das famílias sertanejas com o incentivo às atividades econômicas apropriadas. (Idem: 24)

A entrada desse conceito seguiu um processo de mobilização regional. A sociedade

civil organizada demonstrou o seu elevado nível de descontentamento e sua indignação com

a ação governamental que não respondia aos problemas que a população estava submetida,

limitada à realização de obras contra a seca, e que em certa medida contribuía com o

agravamento da situação, dada a omissão quanto às questões estruturantes do

desenvolvimento. Realizou em 1993 uma grande mobilização na região nordeste, culminando

com a realização de um ato na SUDENE (Superintendência de desenvolvimento do Nordeste),

como forma de pressão por ações imediatas para a situação de flagelo provocada pela grande

seca que assolava a região e por políticas de desenvolvimento do nordeste brasileiro (ibidem).

Centenas de trabalhadores rurais liderados pelas FETAG’s (Federações Estaduais dos

Trabalhadores na Agricultura) dos estados do Nordeste, organizados na CONTAG

(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e apoiados por outros segmentos,

a exemplo da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da CPT (Comissão Pastoral da

Terra), ocuparam a sede da SUDENE em Recife, exigindo ações permanentes e eficazes para

a situação.

Iniciou-se então, um amplo processo de debates na região, envolvendo mais de 300

entidades e, 2 meses após a ocupação, foi realizado o Seminário Ações Permanente par o

Desenvolvimento do Semiárido Brasileiro Sudene. Foi criado o Fórum Nordeste que assumiu

a responsabilidade de elaborar um programa de ações a serem executadas pelo governo na

perspectiva do desenvolvimento sustentável (Silva, Freitas, 1993; Diniz, 2002, apud Duque,

2008).

As discussões em nível dos estados continuaram a ser feitas, de acordo com as

diretrizes definidas pelo Fórum Nordeste em na proposição de ações coletivas, conferindo

centralidade ao conceito de convivência com o semiárido em oposição ao de combate à seca.

O novo conceito veio a fortalecer a mobilização da sociedade civil para a elaboração de

“referências tecnológicas e organizativas propostas para um novo modelo de políticas

públicas de longo prazo, estruturantes, que permitissem a convivência com o semiárido, de tal

forma que os socorros pudessem ser definitivamente dispensados” (Duque, 2008: 136), com

centralidade no fortalecimento da agricultura familiar e na democratização das políticas

15

públicas (Silva, 2008).

Algumas medidas significativas foram implantadas. A chamada cisterna de placa7 é

uma delas. Resgatada das práticas camponesas tradicionais para captação e armazenamento de

água de chuva para consumo humano, baseou-se em um modelo encontrado no sertão da

Bahia, com tecnologia simples e de baixo custo. Passou a ser difundida e desenvolvida em

parceria de diversas entidades financiadas por um sistema de fundos solidários, vindo a

contribuir com o fortalecimento dos processos organizativos nas comunidades (Duque, 2008).

A construção das cisternas nos sítios tem grande impacto, pois as chuvas são escassas

e mal distribuídas, e a obra permite coletar e armazenar adequadamente a água para suprir as

necessidades básicas das famílias durante o ano inteiro. É construída a partir da organização

das famílias na comunidade, que participam de um processo de formação. As próprias pessoas

da comunidade se envolvem na construção das cisternas:

– Eu trabalho eu faço serviço, cisterna de placa, fui capacitado através da Terra Viva8, eu acho bom, eu gosto, eu me sinto bem fazendo algo para alguém. Não é a quantidade que a gente vai ganhar. A gente ganha 205,00 para fazer uma cisterna, mas o que eu vejo não é aquilo, é o benefício que aquela família vai receber. Hoje eu tenho uma e a minha vida melhorou. (Agricultor e cisterneiro do Município de Apodi, 52 anos)

– De chegar numa comunidade e não ter uma cisterna e nem uma perspectiva de ter porque na cidade de Rafael Godeiro não tinha um fórum das associações. Com a atuação da mobilização a gente criou um fórum eu fui atrás de todas as associações, até as que eu não trabalhava, que existia 12 e só uma que funcionava, e hoje em cada casa que eu bato tem uma cisterna. A gente conseguiu o maior número de cisternas de toda a história, 265 cisternas no município de menos de 5 mil habitantes, isso é muita coisa e você saber que foi a partir de uma comunidade. (Agricultora familiar, Mobilizadora Social, Município de Olho d’Água dos Borges, 37 anos)

As vozes do sertão expressam a importância de partilharem a responsabilidade pela

construção das cisternas, a utilidade das mesmas na captação de água para consumo humano

possibilitando certa independência, de menor susceptibilidade às práticas de socorro

emergencial.

7 A ASA – Articulação do Semiárido, constituída em 1999, envolvendo cerca de 700 entidades, elaborou o

P1MC – Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: 1 Milhão de Cisternas Rurais, compreendendo formação de cisterneiros, das famílias e gestão, financiado pelo governo federal. Posteriormente e na continuidade do P1MC, foi criado o P1+2 (Por uma terra e duas águas) considerando a democratização do acesso à terra, a cisterna para coleta e armazenamento de água para consumo humano, e água para produzir (Duque, 2008). Segundo a ASA, até 10/12/2009, 287.439 cisternas foram construídas (www.asabrasil.org.br)

8 ONG de assessoria técnica parceira do Projeto Dom Helder Camara

16

O conceito de convivência, numa visão de permanência, guarda relação com

sustentabilidade em três vertentes: i) econômica, ancorada em atividades que garantam

resultados suficientes para satisfazer as necessidades materiais e culturais; ii) social, com o

fortalecimento da relações sociais, equidade de gênero e geração, com oportunidades para a

população, garantindo a permanência das pessoas no semiárido, de modo a interagir com o

ambiente e sua diversidade; e iii) ambiental, com manejo adequado, que permita a produção

em longo prazo, livrando o espaço de técnicas que provoca poluição, destruição ambiental e

desertificação progressiva (Duque, 2008).

O processo de mobilização da sociedade gerou um conjunto de iniciativas e

investimentos pela realização da reforma agrária e pelo fortalecimento da agricultura familiar,

com significativo impacto nos territórios do semiárido, como é o caso do PRONAF Programa

Nacional de Agricultura Familiar), com a disponibilidade de crédito; do Seguro Safra,

direcionado aos agricultores em caso de perdas de 50% da produção em função da seca, com

seguro financiamento e renda mensal durante 5 meses; do Programa Nacional do Biodiesel no

incentivo ao plantio de mamona; do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) para

formação de estoques e distribuição de alimentos em casos de insegurança alimentar (Silva,

2008).

Soma-se a esse conjunto de iniciativas, o Projeto Dom Helder Camara, que

desenvolve ações de segurança hídrica, alimentar, produção, comercialização, gestão social e

acesso ao crédito na construção de ações referenciais para a convivência com o Semiárido,

com o incentivo à produção de alimentos pela agricultura familiar, e o protagonismo dos

agricultores familiares e assentados, na formulação, implementação e controle social das

políticas públicas (Idem).

Na base de atuação do Projeto Dom Helder Camara (PDHC), são visíveis os efeitos de

outras ações descritas no parágrafo anterior, na medida em que tem facilitado o acesso aos

programas. No entanto, parte significativa das famílias acessam programas sociais, como é o

caso do Bolsa Família. Essa questão indica ser necessário ainda, reforçar a capacidade de

auto-sustentabilidade das famílias, a partir da ampliação das possibilidades de trabalho e

renda.

17

2.2. A ação do Projeto Dom Helder Camara – o foco nas pessoas

O Projeto Dom Helder Camara, oriundo de um acordo de parceria do Governo Federal

através do Ministério do Desenvolvimento Agrário – Secretaria de Desenvolvimento

Territorial (MDA/SDT) com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA)

nasceu a partir do desenho das seguintes estratégias: i) foco prioritário na reforma agrária

como fundamental para a desconcentração de terras e superação da pobreza rural no nordeste

brasileiro; ii) apoio aos assentados para o desenvolvimento de suas capacidades produtivas;

iii) estímulo e apoio aos projetos da participação dos beneficiários; iv) proteção ao meio

ambiente; v) apoio à educação de jovens e adultos, com alfabetização e programas de

qualificação profissional (FIDA, 2007).

Para atingir o propósito de fomentar ações pela melhoria das condições sociais e

econômicas das famílias beneficiaria da reforma agrária e das comunidades de agricultores

familiares, o Projeto busca ampliar o nível de participação das pessoas envolvidas na base das

ações. Está presente nos territórios do Sertão do Pajeú e do Sertão do Araripe em

Pernambuco; do Sertão do Cariri na Paraíba; do Sertão Sergipano em Sergipe; Sertão de São

João do Piauí no estado do Piauí, do Sertão do Apodi no Rio Grande do Norte; do Sertão do

Central e do Sertão dos Inhamuns no Ceará.

18

Áreas em destaque: Municípios dos oito territórios atendidos pelo Projeto Dom Helder Camara. Fonte: Projeto Dom Helder Camara

Para além de ser considerada a delimitação do espaço, o território é visto como eixo da

política pública, articulando vários conceitos que possibilitam maior compreensão das

estratégias de desenvolvimento rural sustentável. Os processos de inserção das pessoas são

construídos historicamente no espaço, “definindo distintas características e expressão destas

19

(...) o que resulta na manifestação denominada identidade”, expressando as dimensões étnicas,

culturais, econômicas e políticas (Perico, 2009:25), de modo a contemplar a integração

produtiva e o aproveitamento desses recursos como mecanismos que favoreçam a cooperação,

solidariedade e co-responsabilidade ampla dos atores sociais presentes no território (MDA

apud CONTAG, 2009).

Território passa a ser considerado como um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo a cidade e o campo, caracterizado por critérios multidimensionais – tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições – e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial. (MDA apud CONTAG, 2009:20)

No Território do Sertão do Apodi, o Projeto tem ações em 10 dos 17 municípios do

território, conforme delimitação feita pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA): Apodi, Campo Grande, Caraúbas,

Felipe Guerra, Governador Dix-Sept Rosado, Janduís, Olho d’Água do Borges, Rafael

Godeiro, Umarizal e Upanema. Localizado na região ocidental do estado do Rio Grande do

Norte, faz divisa com o estado do Ceará e o município que sedia a Unidade de Supervisão

Local (ULS) do Projeto, Apodi, fica a 350 km de Natal (Sidersky e Jalfim, 2009).

Municípios do Território do Sertão do Apodi atendidos pelo Projeto:

Área em destaque: Municípios do Território do Sertão do Apodi atendidos pelo Projeto Dom Helder Camara Fonte: Sidersky e Jalfim, 2009

20

Busca realizar e fomentar ações voltadas para práticas inovadoras de convivência com

o semiárido, na perspectiva da segurança alimentar e nutricional; segurança hídrica,

considerando consumo humano, animal e para o cultivo; renda; acesso às políticas sociais. As

famílias participam diretamente no planejamento das ações locais e territoriais, acompanham

a execução e avaliam os passos dados. A forma de execução dessas ações são em parceria

com organizações da sociedade civil, com assistência técnica diferenciada, na construção de

articulações locais, no acesso à programas e políticas públicas, no apoio à organização social

das famílias (FIDA, 2007).

Para dar conta do enfoque participativo a que se propõem, todas as ações do PDHC a

serem desenvolvidas nas comunidades passam por uma discussão ampla com as pessoas

interessadas. Trata-se de uma inversão da prática convencional de assistência técnica. A

facilitação, o instrumental de moderação e a ação proativa do Projeto estão inseridos no ato de

planejar, partindo da comunidade com a realização de um Diagnóstico Rápido Participativo

(DRP), que por sua vez passa a alimentar o Plano Operativo Anual (POA) do Território. Essas

etapas precedem a contratação das parcerias de assessoria técnica (Sidersky e Jalfim, 2009).

– Uma coisa que eu acho positivo é acabar com pacotes que chegam prontos e muitas vezes acaba não dando certo. E a gente, no caso as parceiras o sindicato, a assistência técnica acaba sendo culpado por isso, com o planejamento feito, com a participação deles, dá autonomia para eles dizerem o que querem e também a questão da responsabilidade. Se não der certo eles também acabam se responsabilizando por isso, não foi nada que a gente trouxe e colocou lá na comunidade a força para que eles administrem. (Agricultor, Município de Janduís, 40 anos)

E a forma encontrada para responder a essa demanda tem sido através de realização de

parcerias com organizações da sociedade civil que tem uma intervenção reconhecidamente

qualificada, em contraposição ao modelo convencional da assistência técnica estatal voltada

para a implementação de pacotes ancorados na estratégia desenvolvimentista, dentre outras

razões.

A Assessoria Técnica Permanente (ATP) do Projeto Dom Helder é orientada por

princípios da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), a saber:

utilização de metodologias participativas; exercício de um papel educativo; facilitação de

processos de desenvolvimento rural sustentável com base em dinâmicas ecológicas; resgate e

valorização do potencial endógeno das comunidades e dos conhecimentos dos povos do

campo; estímulo ao uso sustentável dos recursos locais; enfoque holístico e integrador das

21

estratégias de desenvolvimento; abordagem sistêmica visando a equidade e inclusão social

(MDA apud Sidersky e Jalfim, 2009).

No Território do Sertão do Apodi são 10 organizações da sociedade civil que

estabeleceram parcerias com o Projeto para o atendimento das famílias. Estão afinadas com o

conceito de convivência e com vivência das metodologias participativas, que conforme

exposto, são requisitos para contratação de assessoria técnica. Mais que isso, são organizações

que são reconhecidas no território por sua atuação na perspectiva do desenvolvimento

sustentável.

Na sua condição de construtora de referenciais para políticas públicas de convivência

com o semiárido, o Projeto atua de forma restrita, direcionada a algumas comunidades do

território. A condição de diferenciação no âmbito da vizinhança é passível de gerar tensões a

respeito de ‘quem é e quem não é’ beneficiário do Projeto. Embora as ações coletivas sejam

mais abrangentes, com ações educativas que envolvem um público inclusive de comunidades

vizinhas, na prática somente os grupos das comunidades atendidas são beneficiadas

diretamente com ações produtivas e sócio-organizativas.

A focalização, nesse caso, deixa de fora muitas famílias que se encontram nas mesmas

condições daquelas participantes. É uma tensão que gera grandes expectativas para que o

Projeto de fato se transforme em políticas públicas com atuação universalizada.

2.3 Protagonismo no contexto do Projeto e as ‘diferentes diferenças9’

Ao assumir ser central o protagonismo das famílias beneficiárias, o PDHC investe em

uma metodologia que busca construir os conhecimentos de forma coletiva, em um permanente

processo dialógico buscando garantir a transversalidade de gênero, de geração, raça e etnia. É

importante destacar que o agravamento das desigualdades limita acesso e presença das

chamadas minorias, inclusive nos espaços de participação se não-representadas, dificilmente

terão suas demandas debatidas.

9 Uma alusão ao dizer de Marlise Matos (2009)

22

Homens não trazem os sentimentos das mulheres, brancos não falam por negros,

jovens não são representados por outros segmentos etários. Dar voz aos sujeitos é condição

para a participação cidadã. Por vezes, a inclusão daqueles e daquelas que desconhecem seus

próprios direitos exige ações reparatórias, afirmativas. As desigualdades estão fundadas em

relações de poder, reproduzidas ao longo da história e não serão desconstruídas enquanto

existirem sujeitos subalternos uns aos outros, sejam nas modulações de gênero, étnico-racial

ou geracional.

Para Matos (2009), a expansão da democracia advém da ampliação dos direitos e da

cidadania civil e política, e essa democratização ocorre também no plano social, imerso em

desigualdades sócio-econômicas. É um processo lento, gradual que implica em considerar

formas, regras e conteúdo da inclusão das minorias, considerando as diferentes diferenças.

A importância de se acentuar a multidimensionalidade inerente à atual cidadania, especialmente à cidadania social, que tem se apresentado cada vez mais plural e associada a múltiplos pertencimentos, tentando acrescentar ao debate elementos suplementares para se entender que, nos dias de hoje, há dimensões complexas e paradoxais (de gênero, raça/etnia, geração, classe, religiosidade etc.) que estão associadas ao conceito de cidadania. Estes elementos vêm se somar (de modo suplementar e não substitutivo), ao clássico embate referido aos elementos materiais inerentes às respectivas posições de classe e de luta social. (Matos, 2009: 04)

Os passos rumo à cidadania implica em superação de preconceitos, em vários

aspectos. Em se tratando do mundo rural, a discriminação adquire feições multiplicadas: de

gênero, de geração, étnico-racial e mais, as consequências da dicotomia campo-cidade, com a

visão do campo enquanto o lugar do atraso, de pessoas de pouca ou nenhuma instrução, de

condições de vida deterioradas e da cidade, como o lugar do progresso, de pessoas

desenvolvidas ‘urbanizadas’, termo este compreendido como sinônimo de educação e de

polidez.

É necessário desconstruir o preconceito e ampliar a perspectiva do desenvolvimento e

das políticas públicas com o viés da construção da igualdade e equidade, reafirmar o

protagonismo das mulheres, debater e estimular alternativas produtivas, culturais, esportivas,

educacionais, de renda aos jovens, para que estes não se rendam aos atrativos das cidades,

muitas vezes falsos. Muitas iniciativas no campo das ‘boas práticas’ trazem as evidências de

avanços organizativos, em especial de mulheres e jovens, conforme relatos:

23

– Hoje a participação da mulher é superior a participação dos homens, elas se identificaram com o processo de organização, vêem o seu espaço não mais como um espaço de imposição, que você tem que ir, não. (Agricultor, Mobilizador Social, Município de Apodi, 24 anos)

– A comissão de mulheres tenta organizar, conversar, pra ver como é que ta o trabalho do grupo, pra não desestimular, para fortalecer e não desanimar, porque tem grupos que acha que a gente consegue projetos, mas não é bem assim, é uma longa história, um processo muito lento (Assentada, Coordenadora da Comissão de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Município de Apodi, 37 anos).

– A gente foi de um pequeno grupo, a gente ficava conversando no fim da tarde e teve uma idéia que surgiu por uma jovem e aí a gente ta se organizando e aí a gente pediu uma força a outro grupo que já era formado que é da igreja na cidade pra nos ajudar. (Agricultora, Campo Grande, Unaria).

Instrumentos que revelam potencial mobilizador e estratégias inovadoras são

assumidas e difundidas junto às famílias. Trata-se das visitas de intercâmbio, das Unidades

Demonstrativas (UD) e acesso ao Fundo de Investimento Social e Produtivo (FISP). Os

intercâmbios possibilitam que os agricultores conheçam práticas produtivas e organizativas

realizadas em outras áreas, comunidades, ou territórios e busquem estabelecer uma

comunicação para troca de experiências. (Sidersky e Jalfim, 2009).

– .... a questão dos intercâmbios, ir buscar outras experiências fora foi uma iniciativa onde a gente pode enriquecer essa questão de sensibilização para participar do movimento.... você ver outras experiências fora, outros grupos organizados, não é a inveja, mas é olhar pra outras coisas que estão acontecendo e dando certo a gente começou a trabalhar nesse sentido. (Assentado, município de Apodi, 36 anos)

As Unidades Produtivas combinam formação e produção, uma vez que as

“experiências produtivas devem constituir módulos reaplicáveis cujo tamanho possa ser

multiplicado, caso a caso, para a posterior constituição de áreas produtivas com objetivo de

gerar renda, segurança hídrica e alimentar” (PDHC, 2004, apud Sidersky e Jalfim, 2009:32).

O interessante nesse processo é a vivência coletiva que possibilite a incorporação desses

fazeres na lida cotidiana da comunidade, de forma permanente e continuada, oferecendo

contornos e jeitos de viver no campo.

– Hoje somos um grupo de 23 jovens, estamos trabalhando apicultura..... Já tinha alguns projetos na comunidade com os pais da gente, mas não deu certo, e através de uma Unidade Demonstrativa de apicultura a juventude vem se unindo à comunidade (Assentado, município de Caraúbas, 29 anos)

24

O FISP, administrado pelo PDHC, não reembolsável pode financiar iniciativas

produtivas visando a consolidação de uma proposta no campo econômico e projetos de infra-

estrutura social, como por exemplo reforma ou construção de sede da associação. É

concedido mediante elaboração de projeto que exige ampla e intensa participação (Sidersky e

Jalfim, 2009).

As iniciativas citadas estão associadas à organização de um grupo de pessoas

(mulheres, jovens, quilombolas,...) interessadas nesse processo de aprendizagem, de

multiplicação e de produção e com interesses afins. O conhecimento sobre as práticas

produtivas, sobre o contexto das políticas públicas e das relações sociais estabelecidas no

território, fortalece os sujeitos e suas organizações. Essa intencionalidade que traduz uma

perspectiva pedagógica de ir para além do domínio das técnicas produtivas, é também uma

dimensão importante para consolidar ações e estratégias de desenvolvimento sustentável com

centralidade humana, considerando a elevação do nível de qualidade de vida.

25

3. A PARTICIPAÇÃO

3.1. Por que participar?

A efetivação de políticas públicas na atualidade está inserida em um processo que

demanda ações coletivas para ampliar o leque das escutas sobre as carências e necessidades,

bem como das condições para sua realização. Mudanças ocorridas no formato da gestão

destas implicam em se reconhecer efetivamente quem são os atores envolvidos, quais os seus

papéis e qual o desenho dos processos decisórios.

Há de se tornar claro, as especificidades do corpo técnico, geralmente vinculado ao

Estado e dos representantes escolhidos eleitoralmente e dos cidadãos e cidadãs no exercício

da participação direta nos espaços das políticas públicas. Quando os processos demandam a

combinação da democracia participativa e da representativa, ou seja, da participação direta

com a ação de gestores, governantes e parlamentares, essa ‘engrenagem’ adquire contornos

mais complexos e exige articulações entre as partes.

Jacobi (2003) ao se referir ao papel dos cidadãos, indica ser necessário internalizar a

possibilidade de avançar no sentido de garantir que a co-responsabilização dos sujeitos

envolvidos possa reforçar a prática participativa. Questionar e ao mesmo tempo estimular os

espaços públicos enquanto lugares de interação solidária da sociedade civil com o Estado, de

modo a induzir o rompimento com as lógicas de tutela e dependência e instituir praticas

associativistas e de cooperação. “Novas relações devem ser construídas, negociadas,

acordadas, pactuadas, mas horizontalmente, e não verticalmente com reprodução de

subalternidade”. (Idem: 24)

Fortalecer a compreensão sobre a imprescindibilidade da participação exige

contraposição ao pensamento hegemônico de democracia, que reforça o viés da representação

e centralização do poder político e fomenta, ao mesmo tempo, a não-participação da

população nas decisões sobre questões inerentes a todos. O povo é conclamado a participar

somente no momento de eleger seus representantes e durante o cumprimento dos respectivos

mandatos, é desestimulado a participar e tem dificuldades para acessar as informações de

interesse público.

26

Segundo Santos e Avritzer (2009) a insistência nessa visão de democracia eleitoral,

também chamada de ‘baixa intensidade’ implica na degradação das práticas democráticas, e

sua expansão veio a coincidir com uma crise nos países centrais onde havia se consolidado e

manifestada na patologia da participação com elevado índice de abstencionismo e na

patologia de representação, onde os eleitores não se consideravam representados pelos eleitos.

O estímulo à não participação é um mecanismo fartamente apropriado por segmentos

interessados em manter a histórica relação de submissão, que segundo Pontual (2004), advém

de uma forte ‘herança cultural’ da relação com o Estado brasileiro, que historicamente foi

caracterizado pelo populismo, clientelismo, com práticas de cooptação, colocando a

população em uma situação de submissão.

Quanto menos pessoas demonstrarem interesse pela política, maiores serão as chances

de consolidação do elitismo democrático, que por sua vez, investe na ampliação do o

sentimento de apatia do povo. Sobre essa questão, Hannah Arendt faz a seguinte reflexão:

Surgiu assim o problema de como o homem, se tem de viver em uma pólis, pode viver fora da política. Esse problema, que por vezes apresenta uma estranha semelhança com a nossa própria época, muito rapidamente se converteu na condição de como é possível viver sem pertencer a nenhuma comunidade politicamente organizada, vale dizer, em condições de apolitismo, ou o que hoje diríamos em condição de não cidadania. Ainda mais sério foi o abismo que imediatamente se abriu e desde então nunca mais se fechou, entre pensamento e ação. (2008:46)

Em concordância com a autora, o discurso do apolitismo, é facilmente identificado na

atualidade brasileira, refletido nos processos eleitorais, na medida em que o povo tem o

exercício da cidadania restrito ao momento de escolher os seus representantes.

A participação direta das famílias beneficiárias nos comitês territoriais do Projeto

Dom Helder Camara se depara como desafio de valorizar decisões coletivas, os interesse

comuns das comunidades, assentamentos e do território. Essas decisões não devem estar

respaldadas numa lógica de disputas, mas de uma análise correta do contexto e de apropriação

dos benefícios, considerando as relações sociais no território.

Na teoria da democracia participativa, o cidadão tem seu papel educativo intermediado

com a expressão da vivência política, uma vez que aprende a conviver com as diferenças, “a

tolerar as diversidades, desenvolver a virtude cívica, temperar o fundamentalismo e o

egoísmo” (Cole, Portman apud Teixeira, 2001).

27

3.2 O papel da mobilização social

A mobilização social enquanto uma ação planejada, envolvendo lideranças de

movimentos históricos presentes no território e do estado, organizados para “animar” os

processos se constitui em um importante mecanismo de articulação entre as pessoas,

comunidades e suas organizações.

É fomentada pelo PDHC, que compreende ser a participação, uma dimensão

estratégica e deve ser alimentada na perspectiva de dar concretude aos propósitos de seus

componentes10, estando presente em especial no de organização, com o intuito de contribuir

com a promoção do protagonismo das famílias beneficiárias no acompanhamento da

discussão de planos de ação, bem como sua elaboração, monitoramento e avaliação de sua

execução, numa perspectiva de aperfeiçoar os mecanismos de controle social; na difusão de

informações a respeito de programas e políticas públicas para a agricultura familiar,

contribuindo com a ampliação do acesso e atuando enquanto agentes multiplicadores; no

acompanhamento das capacitações e na aplicação de instrumentos para avaliação,

monitoramento e avaliação das ações do Projeto e das ações das organizações parceiras; e no

fortalecimento da participação em espaços políticos locais, como os comitês territoriais,

conselhos e fóruns (FIDA, 2007).

Para tanto, o Projeto procurou estabelecer parcerias com organizações sociais, que por

sua vez criou as equipes de mobilizadores sociais. Dentre estas parcerias, estão as Federações

dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (FETAG’s) que atuam juntamente com

seus sindicatos dos trabalhadores rurais filiados nos seis estados em que está inserido, ao

Movimento dos Sem Terra (MST), Associação dos Alunos na Universidade Camponesa11

(AAUC) e Quilombos, uma organização quilombola atuante no estado do Piauí. Estas

parceiras selecionam os mobilizadores sociais em acordo com as famílias beneficiadas nas

10 Os componentes do Projeto são: i) desenvolvimento produtivo e comercialização; ii) serviços financeiros; iii)

formação e educação e iv) organização para gestão social, além de contar com uma abordagem transversal, de gênero, geração e raça e etnia.

11 A Universidade Camponesa é uma iniciativa da Universidade Federal de Campina Grande, com o objetivo de contribuir com a formação de agentes de desenvolvimento (cursos de extensão), em especial jovens agricultores no Sertão do Cariri no estado da Paraíba, uma das regiões de menor índice pluviométrico no semiárido nordestino. Maiores informações, vide: http://www.ufcg.edu.br/~unicampo/

28

comunidades ou assentamentos. São agricultores e agricultoras, majoritariamente jovens, que

vivem nas comunidades atendidas pelo Projeto e estão organizados nos respectivos

movimentos sociais. No caso específico do Sertão do Apodi, a parceria feita foi com a

Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte, a FETARN.

Nessa relação, o Estado cumpre o seu papel de estimular a participação da sociedade

civil, e os movimentos sociais de fortalecer e organizar as pessoas envolvidas, de articular os

processos dialógicos com outros segmentos presentes nos territórios. Os mobilizadores sociais

são da própria comunidade ou de outras vizinhas, convivem no espaço do território e estão em

permanente articulação com os atores sociais do território, elemento indispensável para a sua

atuação junto aos comitês territoriais e na organização das famílias em associações,

sindicatos, grupos produtivos e outras formas.

A mobilização social a partir do local (comunidade) para o contexto da vizinhança e

para o espaço do município e do território explicita uma visão de organização, onde as

pessoas partilham o conjunto de interesses, articulam um movimento “de dentro para fora” e

negam a perspectiva por vezes difundida de agentes externos que buscam construir ações de

“fora para dentro”, de uma ação onde algum agente instaure práticas com objetivos de

angariar vantagens para si ou para seu grupo, com disseminação da idéia de favorecimento, de

concessão. Trata-se de valorizar a capacidade das pessoas em explicitarem suas idéias e

influenciarem diretamente as decisões.

É um processo de diálogo com as famílias repleto de desafios. Os mobilizadores

sociais convivem com dificuldades inerentes à realidade do espaço rural brasileiro. A infra-

estrutura no campo deixa a desejar, pois comumente inexistem linhas de transporte público, os

meios de comunicação são insuficientes e algumas comunidades ainda não dispõem de

energia elétrica. Em tempos de conexões virtuais, a comunicação para a mobilização social

exige criatividade e muitos deslocamentos entre e nas comunidades rurais do território.

Henriques (2009) ao abordar as possibilidades de comunicação para a realização da

mobilização social suscita a preocupação de aproximar a linguagem da realidade dos grupos

sociais, de modo que as mensagens sejam compreendidas. Em muitos casos, deve-se valer da

oralidade, sem, contudo, abandonar as escritas. Sugere lançar mão de mecanismos como as

rádios comunitárias, o que efetivamente acontece.

Mas a baixa escolaridade ou dificuldades com a leitura e escrita, não são, nem devem

ser entendidas como barreiras para o diálogo. Para Freire (1970), é necessário conhecer as

29

condições estruturais que dialeticamente constituem o pensar e a linguagem do povo, pois o

pensar e a linguagem de ambos (educador e povo) se realizam em uma dada realidade. Sendo

os (as) mobilizadores (as) sociais pessoas do lugar, a ‘intimidade’ tende a colar suas ações ao

cotidiano, facilitando a sua presença na comunidade, de não estar chegando com algo pronto,

mas com a disposição em construir junto em uma relação dialógica:

(…) não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes “conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos. (Freire, 1970:48)

Estar nesse lugar da mobilização social, é acessar muitas oportunidades de participar

de intercâmbios entre comunidades, municípios, territórios e estados, de participar de ações

formativas, tanto realizadas por suas entidades de origem, quanto por decisão do comitê ou

mesmo por iniciativa do Projeto Dom Helder Camara. A mobilização social acompanha

algumas ações das organizações parceiras, como por exemplo, o planejamento,

monitoramento e avaliação das ações. É responsável pela animação, articulação das reuniões

territoriais, de modo a favorecer o envolvimento maior das pessoas e segmentos

representados.

- Hoje, se a gente discutisse qualquer tipo de temática eu tenho mais condições de entender, por exemplo, a agroecologia, a questão da juventude, eu tenho acompanhado muito. Nota-se que a gente tem um conteúdo muito grande, a aprendizagem é um elo muito grande nisso. É um livro que a gente está escrevendo e a gente não encontra fora desse movimento desse diálogo com os agricultores. (Agricultor e Mobilizador Social, Município de APODI, 24 anos)

As equipes de mobilização social são, de um modo geral, selecionadas e respaldadas

pelas famílias atendidas pelo Projeto Dom Helder, por seu perfil de engajamento na vida da

comunidade. Participam das associações, dos grupos organizativos, produtivos, dos sindicatos

e possuem um bom nível de entendimento sobre as questões das políticas públicas. São ao

mesmo tempo, mobilizadores e pessoas interessadas nas ações, uma vez que também são

público do Projeto.

30

3.3 A vida em comunidade

Segundo Hobsbawn (1996 apud Bauman, 2003), o termo comunidade é um termo

desgastado (expressão nossa). Reiteradamente utilizado de forma indiscriminada e vazia de

significados, tornou-se rara de ser encontrada na vida real em seu sentido sociológico. E, por

isso, as pessoas vivem à procura de grupos aos quais possam pertencer de uma forma mais

duradoura, e vivem na incerteza, pois no mundo, tudo se move e desloca.

As cidades clamam por proteção, liberdade e segurança12 que as pessoas acreditam

encontrar nas comunidades:

Comunidade é um lugar ‘cálido’, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem se fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui na comunidade, podemos relaxar – estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros. (Bauman, 2003: 07)

Essa comunidade dos sonhos é uma extrapolação de lutas para identidade que povoam suas vidas. É uma ‘comunidade’ de semelhantes na mente e no comportamento, uma comunidade do mesmo. (idem: 61)

Há, no entanto, nuanças que diferenciam o mundo urbano do rural. Viver em

comunidade, pertencer a uma comunidade é uma dimensão forte para a população camponesa.

São várias as motivações para a vivência em comunidade no campo. Desde as relações de

família, laços afetivos, até interesses produtivos e unidade de movimento, como é o caso dos

acampamentos e assentamentos da reforma agrária, as comunidades rurais merecem um

reflexão à parte das urbanas, onde a dinâmica cotidiana traz necessidades e demandas

específicas.

Não raro, a população camponesa vai a busca dos mesmos desejos e sentimentos

quando se refere às comunidades, fortalecida nas vivências pré-existentes, ou seja, são

12 Bauman (2003) levanta uma polêmica quando afirma serem a liberdade e a segurança dimensões

incompatíveis entre si, pois acredita que a procura de segurança nas cidades implica em abrir mão da liberdade e a construção de mecanismos de proteção à violência é também um caminho para a reclusão, para o auto-cerceamento da liberdade. afirma também que muitos acreditam não necessitar das comunidades. No entanto, indica haver exceção quando se trata de comunidade tradicionais, das minorias étnicas. O presente trabalho pontua essa premissa e incorpora no mesmo campo, as populações camponesas, onde também é possível compartilhar segurança e liberdade. Mais elementos sobre essa reflexão vide “Comunidade”, obra do autor, publicada em 2001, com edição em língua portuguesa em 2003.

31

pessoas que trazem em suas trajetórias, razões e elementos da vida em comunidade, enquanto

que comumente, os que vivem nas cidades são compelidos a um cotidiano mais

individualizado, em um contexto de competição, medo e insegurança, atributos da

contemporaneidade.

Isso não significa que o campo está isento dessas condições e nem trata-se aqui de

polarizar o rural e o urbano enquanto lugares possíveis ou não de construção e existência de

relações comunitárias e de partilhas, mas que o modo de vida e a dinâmica camponesa torna

mais evidente a vivência das comunidades.

3.4. Participação: protagonismo ou exigência?

São diferenciadas as expectativas que as pessoas nutrem em relação à vivência de

processos coletivos. Scherer-Warren (2009: 01-02), faz uma aproximação ao entendimento de

ação coletiva, tido como um conceito empírico com leituras diversificadas e abrangentes pode

ser qualificado como “toda e qualquer forma de ação reivindicativa ou de protesto realizada

através de grupos sociais, tais como associações civis, agrupamentos para a defesa de

interesses civis ou públicos comuns, organizações de interesse público”, ou ainda, em uma

perspectiva amplamente inclusiva, em diferentes níveis de atuação.

O presente estudo considera que a perspectiva coletiva dos agricultores empreende

várias ações coletivas, muitas delas estimuladas por movimentos sociais que em sendo mais

complexas,

“transcendem as organizações empiricamente delimitadas e que conectam (...) sujeitos individuais e atores coletivos em torno de uma identidade ou identificações comuns, de uma definição de um campo de conflito e de seus principais adversários políticos ou sistêmicos e de um projeto ou utopia de transformação social” (Scherer-Warren, 2009:3).

Embora para Scherer-Warren (2008) o movimento sindical, no caso dos trabalhadores

e trabalhadoras rurais protagonizada pela CONTAG (Confederação Nacional dos

Trabalhadores da Agricultura), se distancie da categoria movimentos sociais por sua atuação

direta nas negociações institucionalizadas com o poder público, é importante estabelecer um

32

contraponto com a autora e destacar que as lutas estão respaldadas em ações de massa e

trazem dimensões acima descritas. Tomando por exemplo a luta pela reforma agrária, a

Confederação e suas entidades filiadas realizam ocupações, atos públicos, além de estar

presente em outras frentes e articulações, como é o caso do Fórum Nacional pela Reforma

Agrária e Justiça no Campo, juntamente com outros movimentos de luta pela terra.

Reafirmar essa opinião é necessário, pois a FETARN (Federação dos Trabalhadores

da Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte) e seus sindicatos filiados, entidades

participantes da estrutura sindical da CONTAG, se fazem presentes em todos os municípios o

território, no estímulo ao protagonismo de seus representados para garantir condições e

qualidade de vida no campo, onde a participação é um caminho para a efetivação de políticas

públicas. Há uma intensa participação nos conselhos municipais, como os de

desenvolvimento, saúde, educação, assistência social e outros, e seguem uma estratégia de

aperfeiçoamento da democracia participativa, apoiados em uma Política Nacional de

Formação13.

Para Paoli (apud Santos e Avritzer, 2009:31) as práticas de democracia participativa

no Brasil são legado dos novos movimentos sociais e sindicais nas décadas de 1980 e 1990,

“entendidas através de uma teoria renovada do conflito social que apontava para formas de

participação popular e lutas plurais (...) no processo de distribuição de bens públicos e

formulação de políticas públicas”

Ainda no que diz respeito aos conceitos de democracia participativa, controle social e

participação, Carvalho (1998) afirma que estes não possuem o mesmo significado para os

diferentes atores sociais, pois os construíram a partir de suas trajetórias históricas e práticas

sociais distintas. A autora prossegue informando que todo o processo participativo e

democrático das decisões e ações que pautam os destinos da sociedade brasileira, está inscrita

em uma longa e difícil jornada de conquistas por esta mesma sociedade, considerando o perfil

do Estado brasileiro, tradicionalmente autoritário e privatista que nutre relações corporativas

com setores elitistas.

13 A Política Nacional de Formação elaborada pelo conjunto de trabalhadores na base da CONTAG, busca

articular todas as iniciativas de formação da entidade em linhas de ação, sendo que uma delas trata dos temas democracia, participação e políticas públicas.

33

3.5. Dilemas da Participação:

A participação colocada enquanto uma exigência para acessar programas, projetos

benefícios, ou outras vantagens é um risco permanente no interior de processos como esse.

Seja por apatia, desencanto, individualismo, ou ainda, por não acreditar no potencial dos

sujeitos coletivos, muitas pessoas se recusam a se associarem às outras. Trazem consigo uma

forte influência de práticas assistencialistas difundidas ao longo dos tempos e acreditam ser a

participação um meio de ‘concessão’ de serviços e recursos, ou ainda como um mecanismo de

legitimação de decisões induzidas por segmentos artificialmente fortalecidos nos espaços de

decisão. É uma condição a ser cumprida para que as deliberações sejam reconhecidas, um

requisito para satisfação de suas necessidades imediatas.

– Se não fossem os projetos a maioria não participaria, eu acho que a gente tem que dizer a verdade (...) e a gente vê assim, que tem muitas famílias que continuariam participando, que são aquela famílias que mesmo antes do PDHC mesmo antes de algum projeto de assistência técnica procuravam se organizar, mas a gente sabe que tem famílias que ficam na esperança de receber algum projeto de ser beneficiado. (Agricultora, mobilizadora social, município de Olho d’Água dos Borges, 37 anos) – A maioria das famílias que eu trabalho vieram mais por necessidade mesmo, necessidade de receber algum benefício. A gente sabe que aqui as perspectivas de quem mora o sitio, se você não tiver organizado, ta atrasado, bastante atrasado.(Agricultora, mobilizadora social, município de Upanema, 20 anos)

Os relatos acima expressam o risco de as pessoas cultuarem uma relação de

dependência dos organismos estatais e/ou das instituições parceiras, descaracterizando a

participação em um contexto amplo de construção da cidadania, de inovar, de buscar

alternativas. Essa postura convive com outras práticas de grupos plenamente convencidos da

estratégia organizativa para alcançar a autonomia desejada. São visões e práticas que

sobrevivem em permanente disputa e por vezes são identificadas nas ambiguidades presentes

nos espaços públicos, pois ao mesmo tempo em que são lugares de exercício da participação

cidadã, expressam também a existência de uma expectativa de favorecimento, com

atendimento de interesses localizados.

O assessoramento técnico é um dos serviços mais esperados e demandados pelas

comunidades. É um elemento ‘motivador’ da presença de parcela das pessoas nas discussões

coletivas e por isso, é recorrente a preocupação das famílias agricultoras com a

34

descontinuidade desses serviços, como é possível identificar no relato de um assentado da

reforma agrária:

– Na verdade essa questão da dependência da assessoria técnica na agricultura, algumas famílias já conseguem seguir. (...) Mas hoje não tem por onde conviver sem a assessoria técnica e por um projeto, algum recurso que eles trazem para melhorar alguma cadeia, por exemplo, a atividade de polpa, a gente tá com alguns problemas e a gente só vai buscar os recursos através desses projetos, a gente não tem como andar ainda sem apoio desses projetos. (Assentado, Município de Apodi, 36 anos)

A superação da crença utilitarista da participação, para encampá-la na condição de

construtora de soluções coletivas e permanentes, continua sendo o maior desafio colocado

para o efetivo protagonismo dos (as) agricultores (as) familiares nas decisões nas

comunidades rurais. No exemplo dado sobre assessoria técnica, uma perspectiva defendida no

território é de participar e fortalecer os sujeitos coletivos, no sentido de influenciar o formato

e a implementação de uma política pública de assistência técnica comprometida com a

agricultura familiar, em lugar de se fazer presente nos colegiados para, em troca, garantir os

serviços.

É uma dimensão a ser trabalhada pela formação continuada pelas organizações e pelos

movimentos sociais no sentido de enraizar a democracia participativa, desconstruindo a lógica

vigente, de exclusão dos processos pela não participação. É um momento fértil para

problematizar esses elementos, ainda no âmbito da construção dos referenciais de políticas

públicas e avançar no sentido de ter a participação incorporada na vida em comunidade,

menos por exigência e mais pelo exercício do protagonismo, de serem efetivamente ‘donos de

suas histórias’.

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4. AS APRENDIZAGENS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPA ÇÃO

4.1 A participação e os processos de mudanças

A vivência na base do Projeto Dom Helder Camara tem contribuído com a elevação

do nível de conhecimentos sobre desenvolvimento rural sustentável14 e sobre as políticas

públicas, na percepção de suas especificidades em relação à programas e projetos.

– O que mais agente adquire é conhecimento, desde quando a gente participa de grupos menores na nossa comunidade até quando a gente chegar num grupo desse na mobilização que é praticamente uma família, a gente aprende a se comunicar mais conhece vários assuntos relacionados ao nosso meio rural onde a gente vive. (Agricultora, mobilizadora social, município de Campo Grande, 21 anos)

Há muitas expressões de enraizamento de práticas e de valores, sejam por estarem

tradicionalmente comprometidos com esse ‘jeito de viver’, sejam pelas oportunidades de

formação no decorrer da implementação das ações produtivas e organizativas. As falas

reforçam que as aprendizagens construídas para além dos conhecimentos sobre os diversos

temas tratados pelos colegiados:

– ... a gente sabe, amanhece, anoitece sabendo que a família tem sua galinha caipira pra comer, que ela mesma cria, tem o ovo, tem cuscuz de milho, que ele produz na comunidade, tem o bode, tem o leite tem a polpa de fruta que tá num clima importante, fruta de sequeiro que era um desperdício e que agora ta sendo aproveitado, o mel de abelha, (...) eu vejo isso, me orgulha dizer o quanto melhorou a alimentação dos filhos da gente, (...) melhorou a educação porque cada um tá se adaptando com sua realidade, vendo o que pode melhorar na produção, melhorou muito depois que a gente tá com assessoria técnica, se não for isso tem muita coisa que ainda desanda (Assentado, mobilizador social, município de Apodi, 32 anos)

– Minha alimentação, mudou porque hoje trabalho com hortas orgânica. (Assentada, mobilizadora social, município de Upanema, 20 anos)

– A gente vai pensando ‘eu não devo mais comer enlatados, porque isso não é bom para a minha saúde, eu devo aderir a esse proposta de produtos orgânicos’. Você pensa nos produtos de uma forma geral agroecológica, tudo mais coletivo. (Agricultora, mobilizadora social, Município Olho d’Água dos Borges, 37 anos,)

– A gente aprende a ser mais solidário, não pensar de modo individual, com os momento que a gente teve, a gente já teve muita coisa boa. (Assentada, Município de Apodi, 37 anos,)

14Desenvolvimento rural sustentável fundamentado em princípios da agroecologia e em contrapondo à uma visão

dominante de desenvolvimento ancorado na lógica do agronegócio.

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As preocupações com as questões ambientais também se fazem presentes. A dimensão

do cuidado com a natureza e a incorporação de uma visão de sustentabilidade do bioma

caatinga enfrenta algumas resistências, quando por exemplo, agricultores familiares ou

assentados realizam queimadas em suas áreas, ou ainda, resistem à manutenção de áreas de

preservação em seus lotes ou sítios. Na direção da ‘contaminação’ pelas boas práticas, essa

realidade vem se transformando, a partir da criação dos processos de multiplicação de

experiências realizadas em áreas menores, conforme relata um assentado do município de

Apodi sobre a experiência de agrossistemas de gestão familiar:

– Hoje quando se fala na comparação do antes e do depois, investimos muito na gestão ambiental, o manejo sustentado da caatinga. Uma experiência que começou em 1 hectare (...) e hoje é sucesso para o Nordeste, foi experiência que expandiu, hoje estamos no território em 8 municípios, com 8 áreas de experimento. Dentro do (Assentamento) Moacir Lucena a gente saiu de 1 hectare para 120 hectares, vendo outras comunidades que acataram e hoje tá com 10, 20 hectares, tudo com recuperação de solo, outras com a introduzindo plantas que já tinha, e hoje não tem mais, outros preservando pra nós do Moacir Lucena que nos organizamos e chegamos nesse patamar, mas ainda tem muito que melhorar, a gente não para de sonhar, se parar é porque morreu. São 762 hectares, cada lote são 20 ha, tem 5 ha que é área coletiva, mais 5 ambiental para cada pessoa, mas que não é dividido, todo mundo coloca bode, abelha, na área ambiental só entra animal.(Assentado, mobilizador social, município de Apodi, 32 anos)

A vivência participativa tem, entre outras possibilidades, estimulado que a relação

entre Estado e sociedade civil seja foco de reflexões, pois na medida em que esses atores se

abrem para o diálogo, percebem que suas relações podem adquirir novas configurações, a

partir de “uma significativa na constituição de novas esferas públicas democráticas e na

promoção de um processo progressivo de publicização do Estado e desestatização da

sociedade” (Pontual, 2004).

As parcerias e articulações locais podem adquirir diferentes contornos e inovar no

campo das ações coletivas a partir da abertura de diálogo no território. Um exemplo disso, é a

iniciativa conjunta da FETARN (Federação dos trabalhadores da Agricutura do Rio Grande

do Norte), da Escola Agrícola de Jundiaí (RN), do Projeto Dom Helder Camara, da EMATER

(Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), da UFRN (Universidade Federal do Rio

Grande do Norte) e do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário).

Em regime de parceria, filhos de trabalhadores rurais, agricultores familiares e

assentados sindicalizados participam da formação técnica em agropecuária (pós-médio). O

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curso recebe 40 alunos a cada ano e tem se configurado em uma experiência com excelente

repercussão no Estado e no Território do Sertão do Apodi. A iniciativa contribui efetivamente

para a qualificação de jovens das comunidades rurais, que com sua formação técnica,

retornam para o sítio da família ou buscam suas próprias áreas para produzir. Há também

aqueles que passam a atuar nas organizações de assistência técnica no próprio território ou em

outros, e também situações em que os jovens se submetem a concursos públicos para atuarem

na profissão, com significativo êxito.

Participar gera novas dinâmicas, favorece a mobilização dos grupos para atingir seus

objetivos. Na medida em que as pessoas começam a participar, reforçam o compromisso,

individualmente e na convivência com outras pessoas na comunidade. Esta por sua vez, passa

a dialogar em uma perspectiva coletiva, em constante movimento de incentivo mútuo e de

valorização das articulações, fortalecendo a caminhada.

– É uma coisa que quando a gente começa sendo uma coisa, nunca termina sendo só aquilo, começa aparecendo outra coisa a gente vai ganhando na luta, acho que é um verme que a gente pega. (Assentado, Município de Apodi, 33 anos)

– Eu comecei a participar com 13 anos de idade, eu participava de um grupo de jovens em outra comunidade, eu via a participação, a intervenção do jovem tentando melhorar a vida, buscando alternativas para a juventude, e aí eu achando muito interessante, e aí eu comecei a ver não só a problemática da juventude, mas as questões da minha comunidade., a importância de uma associação, os benefício que isso pode trazer. E aí, eu me interessei, e resolvi participar, me integrar, e hoje eu participo de uma rede de jovens em Apodi, políticas de juventude, as demandas e qual a opinião dos jovens frente aos problemas sociais. (Agricultor, Município de Apodi, 24 anos)

Na experiência estudada, o projeto de mobilização social cumpre um importante papel

para manter as pessoas estimuladas a participar, mas não é a única motivação. Ver as coisas

darem certo é um grande passo, e por isso mesmo, as ações não exitosas também podem

provocar desilusões e desmobilizar as pessoas.

A organização é uma dimensão pré-existente no território, pois tem sido relatadas

algumas experiências de ocupação de terras e consequente criação de assentamentos da

reforma agrária. Muitos se encontravam na condição de meeiros15 e precisavam dar um basta

15 Meeiro é a condição em que o agricultor sem terra produz em propriedades alheias e como pagamento entrega

parte da produção. Uma prática quase sempre desvantajosa para o trabalhador, que tem de arcar com os riscos, pois os prejuízos com a seca, por exemplo, não entram no rateio. Há casos em que o proprietário “vende” produtos e alimentos para o sustento da família e para a viabilização da agricultura. Ao fim da safra, o trabalhador paga a parcela do acordo pelo uso da terra e entrega a sua parte para saldar as suas dívidas.

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nesse regime de exploração difundido por proprietários que viviam do trabalho de outras

pessoas.

Algumas lideranças que se destacaram nesses itinerários continuaram a atuar na

mobilização do Projeto, mas outras surgia e surgem na medida em que se torna necessário

construir diferentes mecanismos para garantir que a sustentabilidade dos assentamentos e das

comunidades de agricultura familiar na região.

4.2. Identidade e pertencimento

As escutas também suscitaram sentimentos de natureza variada. Chama a atenção a

incidência de falas que ressaltam a sua condição camponesa, de identificação com seus pares

nas comunidades. Primeiro, por sua origem, nascidos na mesma comunidade em que vivem

ou em outra das proximidades, ou ainda com fortes laços familiares pelos arredores. Segundo,

pelos propósitos do movimento, por compartilharem de objetivos comuns em sua atuação

militante. E terceiro, pela solidariedade estreitada para o encaminhamento das ações coletivas

no âmbito da produção e da organização.

Em contraposição aos preconceitos existentes na relação urbano/rural, conforme

citado anteriormente, muitos relatos trazem o sentimento de pertencimento ao meio rural,

desejo de estar em comunidade junto aos seus, de continuar no campo, de ver sua comunidade

avançar, melhorar, alimenta a atuação das pessoas. A juventude, fortemente comprometida

com a mobilização social apresenta argumentos de que a ilusão ‘vida melhor’ no espaço

urbano é vã, muito embora esteja ressentida das dificuldades de acesso à determinadas

políticas como é o caso da educacional, de esportes e lazer. Traduz sua disposição em

encontrar caminhos para uma vida decente, com autonomia para produzir, comercializar e

lutar por melhores condições para a sua permanência no campo

A saída para a cidade quase sempre justificada pela falta de perspectivas e de

alternativas para produzir e viver dignamente da produção perde força na voz da juventude

sertaneja, na medida em que conseguem visualizar possibilidades de conquistarem o que lhes

falta, e expressam sentimentos de satisfação e de alegria, reforçando o seu pertencer:

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– Moro aqui, aqui é meu lugar e eu não pretendo sair daqui. Pretendo me formar e voltar pra aqui de novo. (...) Eu pretendo permanecer na comunidade, não pretendo deixar de ser agricultor porque me identifico muito. To fazendo ciências sociais porque alguns fatos sociais, alguma coisa que acontece na sociedade que eu procuro entender, mas meu futuro, minha estadia é aqui na comunidade, (Agricultor, município de Apodi, 24 anos)

– Meu sonho é não sair do sítio (Agricultora, mobilizadora social Município de Campo Grande, 24 anos)

– Meu sonho é voltar para o sítio definitivamente, e meu objetivo daqui a quatro anos é me tornar Presidente do Sindicato (Assentada, mobilizadora social, município de Upanema, 20 anos)

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5. CONCLUSÃO

A aproximação com a experiência no Território do Sertão do Apodi trouxe vários

elementos que reforçam motivação para a pesquisa. Dentre as percepções, o discernimento

entre conceito de políticas públicas e programas ou projetos merece destaque, pois ao mesmo

tempo em que sugere maior engajamento nas questões coletivas, possibilita refletir que as

pessoas não desejam que os benefícios sejam ‘dados” mas que estejam inscritas na lógica dos

direitos e da cidadania. Percebem o que Jacobi (2003) chama de déficit de cidadania, “saindo

da retórica e indo para a ação”, buscando soluções no aprimoramento da interlocução do

Estado com a sociedade civil, e cuja constituição de cidadãos ativos se dê a partir de

mudanças das práticas sociais. O autor nos informa que:

A criação de espaços participativos está vinculada ao espaço público, cuja existência no Brasil ainda é recente, dada a predominância histórica do espaço estatal. (...) Essa construção passou por tantos anos de autoritarismo, em que não foi rompida essa tutela, e está vinculada à noção de espaço público, o qual é restrito na sociedade brasileira. A construção do público é muito recente no país, necessitando de espaços onde os conflitos venham a tona e as diferenças sejam aceitas (JACOBI, 2003:25)

O avanço da participação das famílias ao demandar ações e políticas caminha para

uma possibilidade de exercer o controle social com maior eficiência. É estar, como no dizer

de Tatagiba (2002) mais perto do Estado, de definir em uma lógica mais democrática, a

alocação prioritária dos recursos públicos, ampliando suas capacidades de negociação,

inclusive com outros grupos sociais, caminhando para a incorporação da noção de interesse

público em detrimento de interesses corporativos.

Participar, aprender uns com os outros e construir coletivamente um novo

conhecimento que fortaleça o sentido de viver em comunidade, de pertencer a ela, favorecem

as expressões animadoras sobre o desejo viver no campo. Vem reforçar o sentido presente no

conceito de convivência com o semiárido, com base na sustentabilidade social, econômica e

ambiental e traduzem que são muitas as possibilidades de transformar o que foi difundido por

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gerações como uma realidade a ser combatida, de modo a produzir com dignidade,

melhorando significativamente a qualidade de vida.

Participar qualitativamente é um processo que fortalece a construção da autonomia e

possibilita ampliação das capacidades das pessoas em gerir políticas e projetos com objetivos

de combater a pobreza rural, garantir a segurança hídrica, alimentar e nutricional.

Mesmo nos casos em que a participação em espaços coletivos não tenha sido motivada

pela noção de organização, são grandes as possibilidades de que as pessoas sejam tocadas pela

determinação daqueles e daquelas que acreditam e se lançam corajosamente na tarefa de

mobilizar forças para tornar o semiárido lugar de produção e reprodução, de construção da

identidade, que segundo Bauman (2003), é um processo sem fim e permanentemente

incompleto, que permite re-significar e partilhar valores de vida e de felicidade.

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