miguel chaves narcotrafico

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Miguel Chaves*

Anlise Social, vol.

XXXIV

(153), 2000, 893-932

Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico

Este artigo tem como base uma pesquisa desenvolvida no Casal Ventoso entre os anos de 1993 e 1996. Nela se adoptaram alguns dos procedimentos clssicos do mtodo etnogrfico, nomeadamente a manuteno de um dirio de campo redigido durante um largo perodo de permanncia no terreno, no qual se desenvolveram procedimentos dirios de observao directa, diversificando-se os perodos e os segmentos internos observados e registando-se os aspectos das vivncias mais rotineiros e os mais singulares e espordicos. A tcnica de entrevista consistiu tambm num procedimento metodolgico central. Para alm dos diversos depoimentos obtidos na rua, bem como das entrevistas a informadores-chave, realizou-se ainda um extenso leque de entrevistas semidirigidas. Entre estas ltimas contam-se 40 entrevistas realizadas a adolescentes que frequentavam o Centro Social do Casal Ventoso, 35 entrevistas a progenitores desses adolescentes ou a pessoas que se apresentaram a substitu-los e 4 entrevistas colectivas a adolescentes que, na sua maioria, haviam sido j inquiridos individualmente. Depois de nos confrontarmos com a informao recolhida, e ao contrrio do que presumamos partida, encontrmos no interior do Bairro uma situao em que os valores dominantes de condenao do narcotrfico se apresentam largamente difundidos, mesmo entre os traficantes, no existindo qualquer sistema local de valores que legitimasse esta actividade internamente. Estes aspectos so desenvolvidos em detalhe noutros locais (Chaves, 1996). Neste texto pretendemos apenas apresentar uma sntese de um dos aspectos centrais que ressaltam da pesquisa: como que, no interior de uma situao de

* Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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Miguel Chaves ausncia de valores contra-hegemnicos ou alternativos, , mesmo assim, possvel produzir-se um conjunto de representaes que facilitam localmente o desenvolvimento e a adeso ao trfico1. Utilizamos a expresso conjunto de representaes, e no outras, como, por exemplo, sistema de representaes local, porque essas representaes no se apresentam de um modo articulado e sistemtico e dado que, por outro lado, so integralmente produzidas com base em valores dominantes. Neste sentido, poderemos adiantar desde j, utilizando a expresso feliz de Joo Sedas Nunes (1999), que nos encontramos, neste stio de Lisboa com larga proliferao do comrcio a retalho de herona e cocana, diante de uma modalidade exclusiva de global. ALGUMAS PR-NOES ACERCA DE DELINQUNCIA Um jornal dirio portugus colocou h alguns meses em circulao um suplemento de fim de semana intitulado Os rostos do crime, onde se procede a uma seleco de delinquentes consagrados. A se comentam os percursos de assaltantes, como Ronie Biggs, e de burles, como Alves do Reis, at se desembocar, como, alis, comum, nos serial-killers. A capa dos fascculos e a publicidade afixada em outdoors contm a representao pictrica de um criminoso que se destaca do cenrio de fundo, constitudo por um muro degradado e cinzento, pejado de algumas manchas vermelhas. O que surge, porm, de mais apelativo na representao o rosto, pelo qual se procura retratar a abstraco do grande criminoso universal. Para alm da face cinzenta, que se confunde com o fundo, e do encarquilhamento da pele da testa, os olhos destacam-se do rosto, sugerindo uma palidez de ao. Ficamos na dvida se no possuem crnea ou se, simplesmente, se encontram ocultos sob as plpebras. H muita coisa de manifestamente no humano e alguns traos de lobo nesta representao. A gravura poder no provocar qualquer sensao de estranheza, dado ser tributria de um imaginrio social muito vulgarizado em que o grande criminoso deveria aparentar diferenas de gestualidade, olhar, expresso, ou mesmo anatmicas. Enfim, caractersticas fsicas que exprimiriam atravs do corpo diferenas essenciais que o separariam do resto dos humanos. Esta imagem, que se ancora sobre o afastamento do fentipo normal, ver-se-, porventura, tanto mais agravada quanto maior for a crena relativa gravidade dos crimes. Acentuar-se- com o trfico de drogas, a violao e o homicdio, encontrando-se o serial killer no topo da hierarquia. Por relaoDaremos conta aqui apenas da produo de representaes que tendem a facilitar o desenvolvimento e a adeso ao trfico. A totalidade do processo motivacional que se encontra na base da adeso ao trfico no Casal Ventoso um assunto explorado em Da Gandaia ao Narcotrfico (Chaves, 1996), e no propriamente neste artigo.1

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico a este ltimo, a crena no afastamento fenotpico do normal parece, alis, to consensual que, quando esse facto parece a um primeiro olhar no se confirmar, acaba mesmo por gerar alguma estupefaco. No entanto, mesmo que no se defenda a ideia de que a mutao criminosa se expressa atravs de caractersticas inscritas no corpo, a crena de que se encontram, por um lado, diferenas de personalidade ou de padres culturais que permitem distinguir o infractor de determinadas normas do no infractor e, por outro lado, a convico de que na identificao dessas diferenas reside o enfoque central para a compreenso do desvio encontram-se muito generalizadas, quer ao nvel do senso comum, quer na prpria produo cientfica. As excepes, encontramo-las no momento em que se presume que esto em causa situaes de carncia manifesta, da ordem da subsistncia. O pobre que rouba porque tem fome surge talvez como o exemplo mais paradigmtico. Este tipo de crenas torna-se, por vezes, um pressuposto irredutvel para a produo de conhecimento sobre os desviantes, mesmo que estes no tenham sido previamente inquiridos e investigados. evidente que assumir o pressuposto de que o prevaricador um ser moral ou psiquicamente diferente sem o sujeitar a anlise , enquanto ponto de partida, eventualmente eficaz na inculcao da ordem moral e na produo de uma geografia do mal, mas errado de um ponto de vista heurstico. Assumir aprioristicamente o pressuposto da diferena sem o confrontar com informaes empricas tem, alis como qualquer presuno apriorstica, um carcter de pr-noo. Por vezes, este mesmo pressuposto emerge na teoria e na investigao sociolgicas, parecendo radicar na evidncia de que s podem distinguir-se trs interpretaes base para a delinquncia. Muito sucintamente: a existncia de patologias ao nvel da personalidade; uma orientao por determinados tipos de valores e ideais alternativos ou opostos constelao moral dominante; um dfice anmico ocorrido nos processos de socializao por relao aos valores e normas dominantes. Embora mltiplos trabalhos de pesquisa ou de reflexo terica nos tivessem de h muito obrigado a reconsiderar a insuficincia destas teses2, tais pressupostos continuam, no raras vezes, a ser assumidos como indiscutveis. Por vezes, isso acontece, mesmo quando o cometimento de infraces adquire uma forte expresso colectiva e passa, por exemplo, a abranger, num2 o caso de clssicos da investigao em contextos urbanos norte-americanos desenvolvidos por Hannerz (1969) ou Liebow (1967), ou dos clssicos da labeling theory, como o caso do outsiders (Becker, 1963). O mesmo se passa com as obras onde se propem reconceptualizaes do conceito de cultura ( o exemplo de Smelser, 1992) ou com as propostas conceptuais em torno da noo de self.

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Miguel Chaves curto espao de tempo, centenas ou milhares de pessoas com sexos, grupos etrios e profisses muito diversas, como o caso do Casal Ventoso. De facto, neste contexto de larga difuso do trfico de drogas circulava, no momento em que inicimos o trabalho de investigao, certo tipo de teses, das quais se destacava, por um lado, a de que se registavam caractersticas psquicas ou subculturais prprias daquela populao e, por outro, a de que estas teriam sido determinantes no prprio surgimento e forte expanso do trfico. A centralidade destas explicaes viria a ser visvel num projecto de interveno social em que o investigador participou. Tornou-se, no incio, bastante consensual entre os tcnicos, provenientes de reas distintas, como a psicologia, a sociologia e o servio social, que a interveno junto da populao adolescente deveria concentrar-se essencialmente em formas de ressocializao por relao a valores e a modelos dominantes. Estaramos, em larga medida, diante de uma populao homogeneamente caracterizada por baixos nveis de reflexividade, pela ausncia de uma ideia de gratificao diferida e pela escassez de modelos socializadores assertivos. A estes aspectos adicionava-se o sociologismo de que nos encontrvamos perante um colectivo com valores diferentes transmitidos intergeracionalmente em meio fechado, com base nos quais os adolescentes do Bairro passariam a desenvolver representaes e atitudes normalizadoras do trfico e de outras formas de ilegalidade. Estes pressupostos eram reforados pelo prprio dispositivo que utilizvamos diariamente para interpretar os eventos que se iam sucedendo no interior do Bairro. Ele passava por se deduzirem os valores das prprias condutas que, com recurso a eles, se procuravam explicar. Exemplificando, a violncia resultaria de valores que favorecem a violncia; a desero do homem de casa e a desagregao da famlia derivariam de dfices de socializao no papel de chefe de famlia e no valor da unio familiar; a rejeio do trabalho legal decorreria necessariamente de dfices de socializao com base no valor trabalho e da interiorizao de valores hedonistas e de curto prazo; as actividades ilegais, nomeadamente o trfico, radicariam em valores favorveis ao trfico, etc. (Chaves, 1996). Por ltimo, considerava-se possvel e aconselhvel reunir todos estes elementos no interior de uma vaga noo de subcultura delinquente. Alguns destes pressupostos radicam em obras que utilizaram, implcita ou explicitamente, a noo de subcultura delinquente ou simplesmente em leituras simplificadoras que delas se foram fazendo. Podemos encontr-los em alguns estudos, logo desde o dealbar da perspectiva ecolgica de Chicago. Sem querer ser exaustivo, so disso exemplo os trabalhos de Tannebaum (1938), Clifford Shaw (1930 e 1968), Shaw e Mckay (1968 [1942], e mais tarde Cloward e Ohlin (1960), Albert Cohen (1955) e Cohen e Short (1965). O mesmo pode dizer-se de artigos mais recentes que continuam a utilizar o termo subcultura desviante ou delinquente (Matsueda, Piliavin, Gartner e

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico Polakowski, 1992) ou que, mesmo no o utilizando, parecem ter subjacentes essas perspectivas (Chamboredon, 1971). No entanto, preciso referir no s que qualquer destas obras contm contribuies teis para a compreenso do desvio, como tambm que o uso que nelas feito da noo de subcultura delinquente no se apresenta de forma alguma homogneo. Deste modo, no temos condies para colocar aqui objeces a estas obras, mas antes a perspectivas que perpassam com frequncia a reflexo sociolgica a propsito do desvio, sobretudo quando este adquire um formato ilegal. Em primeiro lugar, criticamos a utilizao (pelo menos quando indiscutida) de termos como subcultura delinquente, tradio delinquente ou, como tambm j ouvimos referir, habitus delinquente. Defendemos noutros momentos (Chaves, 1996 e 1997) que, para alm dos equvocos que estas noes podero levantar, a sua utilidade analtica muito limitada. Em segundo lugar, contestamos o princpio de que para se explicarem situaes de delinquncia colectiva possamos assumir como pressuposto que os grupos possuem dfices de socializao por relao ao sistema central de valores ou, inversamente, que so socializados no interior de valores alternativos. No mximo, este princpio deve ser encarado como hiptese terica a testar na pesquisa, e no como evidncia irredutvel. Ora, justamente na pesquisa realizada no Bairro no se encontraram quaisquer valores e crenas diferenciados que legitimassem o trfico, nem sequer uma omisso dos valores que condenam esta actividade. Menos ainda se deparou com um sistema de valores independente construdo em torno das actividades ilegais e generalizado populao. Existe de facto, e como veremos, um conjunto interno de representaes que facilitam o desenrolar do trfico enquanto actividade colectiva, facilitando tambm a prpria adeso das pessoas a essa actividade. No entanto, quanto a este aspecto, h a destacar trs pontos: em primeiro lugar, essas representaes incluem no seu interior o valor de condenao do trfico; em segundo lugar, constituem-se apenas com base em valores dominantes; por ltimo, foram, em larga medida, construdas e difundidas depois de o trfico ter surgido, no estando necessariamente dependentes de processos de transmisso intergeracional. HETEROGENEIDADE DE ESTILOS DE VIDA E CONTRADIES ENTRE CRENAS E CONDUTAS O Bairro do Casal Ventoso, com cerca de 3653 habitantes, ocupa uma rea com um forte declive do Vale de Alcntara na freguesia do Santo Condestvel. Trata-se de uma das reas residenciais degradadas da cidade de Lisboa que comeou a ser construda ainda na primeira dcada do sculo XX

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Miguel Chaves e que sofre presentemente um processo de demolio. Durante a dcada de 90, o Bairro tornou-se emblemtico por a proliferar o narcotrfico, tendo-se convertido no smbolo mais meditico e expressivo do problema da droga a nvel nacional. Desde o incio do sculo que esta populao urbana, caracterizada por uma baixa mobilidade social e espacial intergeracional, se encontra numa situao de instabilidade laboral, baixos nveis de solvncia e destituio de ttulos escolares significativos (Chaves, 1996). Esta caracterizao de carcter geral seria, porm, insuficiente se no se procurassem detectar diferenciaes internas de um modo mais detalhado, designadamente no que concerne aos horizontes de trabalho que a populao masculina pode vislumbrar. Trata-se de uma diferena crucial para se compreender a prpria diversidade dos estilos de vida internos, sobretudo antes da fase do trfico, ou seja, em todo o perodo anterior dcada de 80. O facto de o homem possuir um ofcio ou o de, pelo contrrio, no deter qualquer tipo de especializao ou qualificao profissionais so aspectos que afectam a sua insero na estrutura ocupacional, nomeadamente atravs do prestgio da ocupao, da estabilidade dos rendimentos que poder obter e das expectativas de melhorar a sua situao. A qualidade dessa insero tem muitas vezes um forte impacto multiplicador no estilo de vida do agregado a que pertence, efeito que se tornar ainda mais notrio se o homem em causa for o chefe de famlia. Relativamente ao leque de actividades ilegais anteriores ao trfico, a evidncia emprica de que dispomos indicia que a populao do Bairro que se encontrava ligada a estas correspondia a uma minoria. Reduzia-se ainda a algumas dezenas o nmero daqueles que se encontravam associados a actividades ilegais de modo exclusivo e durante largos perodos, desenvolvendo aquilo que designmos por estilo de vida ilegal (Chaves, 1996 e 1997). Em geral, os habitantes que desenvolveram esse estilo de vida estavam enquadrados em organizaes constitudas por algumas dezenas de membros, designadas internamente por famlias ou seitas, que funcionavam como microestruturas de oportunidades ilegais. O trfico de drogas surge no Casal Ventoso em meados da dcada de 80, mas at incios de 90 tratou-se de uma estrutura de oportunidades ilegais de acesso limitado. Tal situao deveu-se a vrios factores, dos quais destacamos dois. O facto de a procura de drogas nos finais da dcada de 80 no ser ainda to intensa e o do acesso s fontes de abastecimento exteriores ao Bairro por parte dos habitantes estar mais circunscrito. Este ltimo factor reduziu o nmero de organizaes internas (fortemente centralizadas) que, at esse momento, monopolizavam o comrcio. Certas transformaes que ocorreram no incio da dcada de 90 alteraram consideravelmente a forma como o comrcio ilegal se encontrava organizado. Em termos gerais, conduziram a uma maior facilidade no acesso a for-

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico necedores exteriores, bem como multiplicao e flexibilizao das redes existentes. Tais alteraes, aliadas ao aumento do nmero de consumidores, propiciaram o alargamento da estrutura de oportunidades a um conjunto muito amplo de habitantes. Durante a dcada de 90, o trfico passou a estabelecer-se sobre uma situao de relativa heterogeneidade de estilos de vida. Aderiram ao trfico desde pessoas que tinham estado conectadas com actividades ilegais anteriormente at um conjunto de habitantes que nunca tinha estado envolvido em quaisquer prticas desse tipo. O comrcio ilegal introduziu importantes alteraes no leque das identidades internas, pois minou intensamente o quadro de classificaes anterior, introduzindo novos critrios para a definio das similaridades e das diferenas. Os primeiros prendem-se, naturalmente, com a adeso ou no adeso ao trfico. Ou seja, ser traficante ou ser no traficante tornaram-se, para alm de circunstncias que atingiram de forma rpida e incisiva os montantes de capital econmico, categorias identitrias centrais. Mas, mesmo que nos centremos exclusivamente no interior de cada uma delas, continuamos a encontrar uma diversidade de situaes identitrias. Por exemplo, na categoria dos no traficantes distinguimos desde aqueles que no possuem nas suas redes sociais ligaes com traficantes at outros que com eles estabelecem relaes intensas, designadamente no seu prprio agregado. J por relao aos traficantes, poderamos distinguir cinco condies base de identificao: as redes em que estes se encontram inseridos; a posio hierrquica que ocupam no interior dessas redes; o tempo de ligao actividade; a forma como so investidos os ganhos obtidos; finalmente, as representaes que so elaboradas acerca do trfico. Esta situao de heterogeneidade interna coloca-nos perante a evidncia de que existem interesses contraditrios, concorrentes e conflituantes no Casal Ventoso. E, se poderamos identificar situaes mais detalhadas, fiquemo-nos, no entanto, pelos dois focos centrais de confronto de interesses. Melhor dizendo, pelas duas fontes que acentuam mais claramente os riscos da actividade ilegal. Em primeiro lugar, as denncias que os no traficantes, sobretudo aqueles que no pretendem aderir actividade, podero fazer dos sujeitos envolvidos. Em segundo lugar, as que os prprios traficantes podero produzir uns dos outros, na medida em que, como concorrentes, podem vir a obter com isso vantagens econmicas imediatas. Numa palavra, encontramo-nos perante situaes de ameaa de delao que aumentam os riscos do trfico e que, em ltimo caso, podem conduzir sua falncia. Para alm destas situaes de contradio de interesses, regista-se uma outra que acentua os riscos de delao: a contradio existente entre crenas e prticas. Com efeito, o trfico desenvolve-se aqui no interior de um contexto de hegemonia. Isto acontece porque o valor da conduta honesta/traba-

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Miguel Chaves lho legal, a norma no traficar e a imagem dos traficantes como principais culpados do problema da droga so conhecidos e assimilados no curso das dinmicas intersubjectivas. Por essa razo, afirmmos que os traficantes, alvos da violncia legtima exercida pelo Estado, aceitam abstractamente a justeza e a legitimidade do seu exerccio (Chaves, 1996). Embora estes argumentos tenham sido desenvolvidos em detalhe noutros momentos, gostaramos de relembrar que, durante a pesquisa, a tentativa de se encontrarem formas de legitimao do trfico com base em valores alternativos que o defendessem ou que, no mnimo, apresentassem justificaes para o seu desenvolvimento foi largamente infrutfera. Tal verificou-se, quer nas entrevistas individuais e colectivas realizadas, quer nos processos de observao directa. Foi sobretudo com base nestes ltimos que se tornou possvel assistir, inclusivamente, a discusses entre traficantes. Mesmo nessas situaes de comunicao, a ideia de responsabilidade moral pela actividade de trfico continuava a salientar-se, produzindo-se, inclusivamente, formas de acusao e de atribuio de responsabilidade. As mais comuns consistiam na projeco da responsabilidade moral para aqueles que alegadamente se encontrariam em posies hierrquicas mais elevadas, sobretudo se o acusador no dependesse desses ltimos para continuar envolvido no comrcio. A circulao de valores e normas hegemnicas fortemente condenadoras do trfico e a inexistncia de valores ou crenas que lhe fossem directamente favorveis acabaram por produzir essencialmente dois efeitos fortemente ameaadores para a manuteno da estrutura de oportunidades ilegais. Em primeiro lugar, exponenciam a ameaa de delao e, em segundo, tornam-se factores que dificultam moralmente a adeso individual actividade. Esta situao hegemnica, em que a dominao simblica e o estigma se encontram incorporados no interior do Bairro, no obriga, no entanto, a que o trfico seja desenvolvido num contexto de absoluta desaparelhagem simblica. De facto, a ameaa de delao e a dificuldade de adeso individual so em parte atenuadas pela produo simblica, que ainda possvel accionar neste contexto. Tal torna-se possvel atravs de argumentos que so construdos e difundidos no interior das prticas colectivas realizadas em contexto comunitrio. Atravs deles os sujeitos produzem, em larga medida de forma inadvertida, uma situao que favorece a manuteno da estrutura ilegal de oportunidades. Isso acontece, em primeiro lugar, porque esses argumentos permitem colocar a comunidade preexistente num patamar mais favorvel ao trfico, j que reduzem os perigos de delao e de quebra de secretismo. Em segundo lugar, porque, a partir do momento em que passam a fazer parte desse patrimnio comunitrio renovado, tais argumentos permitem uma reconstru-

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico o parcial da identidade pessoal dos habitantes, facilitando a sua adeso actividade ilegal. Comecemos por analisar o primeiro ponto. COMUNIDADE E PRTICAS DE INTERACO Embora o conceito de comunidade conte com uma utilizao inflacionada e muitas vezes mal definida, mesmo no patrimnio sociolgico3, pode revelar-se extremamente til para compreender as dinmicas e o tipo de relaes que ocorrem presentemente no Casal Ventoso. Por comunidade pretendemos designar um conjunto de representaes colectivas e sentimentos de pertena (comunidade de representaes) que se constituem dialecticamente por relao a um conjunto de prticas e interaces sociais (comunidade de prticas). A comunidade de representaes responsvel pela constituio e manuteno da comunidade de prticas, dado que sustenta os princpios que lhe subjazem, estabelecendo obrigaes e deveres recprocos atravs da valorizao de determinados vnculos preferenciais e da construo de expectativas interpessoais. Mas, ao mesmo tempo que essas representaes possibilitam a existncia e a reproduo de um conjunto de prticas colectivas so, por estas ltimas, possibilitadas, designadamente atravs dos contextos de negociao e actualizao que as situaes de interaco propiciam4. As vivncias comunitrias tendem a espacializar-se, a incluir e a excluir pessoas, sendo que os prprios sentimentos de pertena se projectam sobre determinados espaos e sobre determinados grupos e pessoas5. Para compreender e ilustrar as formas pelas quais a comunidade existente no Casal Ventoso actua e, por outro lado, se actualiza e transforma, adoptando um formato mais propcio manuteno da estrutura ilegal de oportunidades, seleccionmos uma prtica colectiva particularmente expressiva: o dar fuga. Trata-se de uma prtica de natureza defensiva que funciona comoPara alm de com ele se procurarem por vezes designar realidades muito distintas (Newby, 1980), encontra-se associado a mltiplos mitos (Newby, 1980; Calhoun, 1980; A. P. Cohen, 1985). 4 Atravs dessas interaces poderia ocorrer inversamente a fragmentao ou dissoluo da comunidade. 5 importante considerar que mesmo as prprias interpretaes, afirmaes ou rejeies que os membros de um dado grupo produzem relativamente s prticas e s representaes comunitrias so diversas. No caso do Casal Ventoso, algumas pessoas que habitam no Bairro podem ser excludas ou excluir-se (mesmo que parcialmente) de algumas prticas comunitrias. Inversamente, outras que no residem no Bairro podem ser abrangidas e participar nessas dinmicas.3

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Miguel Chaves um prolongamento do quadro formal de vigilncia existente no Casal Ventoso e que assegurado por vigias colocados em locais estratgicos, onde possvel obter condies de boa visibilidade e uma rpida circulao de mensagens. O dar fuga accionado justamente quando esse sistema falha e consiste numa forma de presso exercida por dezenas de habitantes sobre agentes policiais que acabaram de deter um ou mais filhos do bairro. As pessoas cercam-nos e tentam aproximaes consecutivas com a finalidade imediata de proteger e libertar os detidos. Embora essas aproximaes sejam realizadas individualmente, a movimentao desenvolvida em conjunto e assemelha-se ao movimento das mars ou ao jogo infantil do toca e foge. Quando, finalmente, algumas dessas pessoas, ou simplesmente a presso de todos, conseguem libertar o detido, todos os participantes correm ao seu lado, interpondo-se entre ele e os agentes policiais e impedindo, dessa forma, que seja novamente apanhado ou baleado. Quando o detido se encontra em segurana, os libertadores introduzem-se em casas ou aguardam em locais distantes, prevenindo possveis disparos. A particular expressividade do dar fuga para entendermos os processos de adaptao comunitria s novas circunstncias reside no facto de no seu interior se registarem mltiplas performances, executadas por cada um dos participantes perante todos os outros, bem como pelo prprio facto de serem a produzidos e postos em circulao mltiplos argumentos que podero ser assimilados. Neste sentido, o dar fuga converte-se num evento com um largo potencial de inventividade e de aprendizagem conjunta. Concentremo-nos agora em algumas situaes de dar fuga registadas durante o trabalho de campo realizado no Casal Ventoso. Antes disso descreveremos alguns aspectos de vigilncia que com ele se encontram estreitamente relacionados. DAR FUGACASO 1: ASPECTOS DE VIGILNCIA

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Faz parte das rotinas do Bairro que um ou outro carro da polcia pare no Casal Ventoso de Cima e a permanea alguns minutos, enquanto os vendedores aguardam, simplesmente, que ele se v embora. Nessa altura, no Casal Ventoso de Baixo, frequente que os vigias e outras pessoas comentem qualquer coisa a esse respeito. Foi isso que aconteceu numa tarde de Julho de 1994, dia de calor intenso, em que podiam observar-se do Bairro extensas filas de carros nos acessos ponte 25 de Abril. Muitas pessoas, sobretudo crianas e adolescentes, deslocavam-se em fato de banho, afirmando ir procura de algum com quem teriam combinado deslocar-se at uma piscina prxima ou at s praias da Costa da Caparica.

Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico O chafariz do Bairro, junto aos tanques de lavagem, vertia gua ininterruptamente. Vrios consumidores aproximavam-se. Aproveitavam para beber gua ou lavar a cara. Algumas crianas, depois de esperarem, faziam o mesmo. Estava a falar h algum tempo com M quando um veculo policial se imobilizou no cimo da Rua Costa Pimenta (M um adolescente nascido no Bairro, que fez h pouco 18 anos, tendo comeado a vigiar h dez meses, quando ainda tinha 17). Aproveitou para comentar que o carro mais lindo que a bfia tem, todo branco, com uns pneus muita grossos. Referiu-se tambm marca e disse que um amigo tinha um carro parecido. Depois de ter feito mais algumas aluses, o carro comeou a avanar. M fez ento alguns sinais na direco em que se encontrava outro vigia, abanando os braos sobre a cabea. Pouco depois voltou a fazer outro sinal o gesto vulgar dos dois polegares na vertical dizendo que estava tudo bem. Passaram cerca de cinco minutos quando outro vigia que no do Bairro se aproximou, preocupado com outro carro que avanava devagar com cinco pessoas no interior. Este vigia era consumidor. Chegou ali a coxear, limpando o suor da testa com um guardanapo de papel. Era visvel o esforo que tinha feito. M olhou l para dentro: Deixa estar, est limpo, eu conheo dois gajos que vo l dentro. (Estar limpo um termo utilizado para designar um veculo ou um espao sem agentes policiais.) Comeou a suspirar de enfado. Perguntou-me: Por que que no vais para a praia? Pegas na tua mida e vais at Montechoro. Eu que j no tenho o carto, se no emprestava-to. Algum tempo depois foi rapidamente buscar um walkman. Quando voltou, sentou-se no cho, tirou uma caneta do bolso. Disse parker e examinou-a durante alguns segundos, esticando o brao na direco do sol e agarrando-a com dois dedos, como se a utilizasse para fazer pontaria. Comeou a desenhar uma mota num papel que tinha encontrado, mostrando-a a seguir: Ts a ver esta mota? Era igual que eu tinha. O meu irmo rebentou-a toda, seno ias ver se no ia a Montechoro este fim de semana... e no tenho licena. Tambm, se os bfias me mandassem parar, no tinham acelerao para aquilo... era prego a fundo... nem me viam. (Confirmei que M tinha ido a Montechoro um fim de semana e que o carto era uma carta normal de acesso que dada a todos os turistas.) Explicou-me que estava espera de arranjar dinheiro para pagar os custos de reparao da mota: O arranjo da mota mais de quinhentos contos. Perguntou depois para que que eu estava ali em vez de ir at praia ou ao Onda Parque tomar um banhinho. Eu que estou a bulir6 seno ia. Este sbado certinho. Agora, se tu no tens nada para fazer e podes estar aqui a falar, vai mas at praia.

frequente no Casal Ventoso o uso do termo bulir como sinnimo de trabalhar ou para designar o cumprimento de uma tarefa que implica esforo. utilizado por uma pessoa

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Miguel Chaves Para alm da existncia de vigias a funcionarem desta forma e que consistem, sem dvida, na face mais visvel da vigilncia, o sistema de vigilncia e a sua eficcia so garantidos por disposies colectivas para vigiar. Essas disposies so particularmente legveis nos momentos em que a entrada da polcia suficientemente rpida ou dissimulada. Pelo menos, o suficiente para provocar distores nos ritmos normais de circulao de mensagens. Quando isso acontece, os procedimentos algo montonos, acima descritos, so quebrados por situaes de pnico e o grito uga sinal mais frequentemente utilizado pelos vigias para denunciarem situaes de alarme torna-se quase colectivo7. Os ritmos habituais de deslocao so alterados, as conversas interrompidas e algumas pessoas deslocam-se apressadamente para os locais onde se encontram familiares em risco. Poucos minutos depois da conversa descrita trs mulheres que estavam sentadas na rua em cadeiras de praia com quatro bebs no colo viram que a uma distncia de cerca de trinta metros se aproximava um Fiat Uno branco com quatro agentes policiais no interior. Foram elas prprias a gritar uga num tom estridente. Merda, no vem nada, disseram, controlando a ateno dos vigias. O consumidor que vigiava mais frente estava, no entanto, atento. Apenas esperou para ver se o carro avanava ou no e respondeu: Calma. preciso ter calma.CASO 2: DAR FUGA O INSUCESSO

Em meados do ms de Setembro de 1994 romperam, provenientes do Casal Ventoso de Cima, pela Rua Costa Pimenta, trs carros-patrulha com as sirenes ligadas. Um deles era facilmente identificvel como veculo policial, transportando diversos agentes uniformizados no interior. Os outros dois eram vulgares e velhos. A movimentao foi muito rpida, apesar de a rua ser estreita, surpreendendo as pessoas que a se encontravam. A curva que se sucedeu fez com que depressa os tivssemos perdido de vista. Entretanto, as aparentes rotinas do Bairro foram alteradas. A populao nas ruas multiplicou-se, surgindo em catadupa de diversos ptios e do interior de casas em direco Rua Fresca uma rua constituda por escadas, ladeadapara se referir actividade de vigilncia, como o foi neste caso, mas tambm actividade de trfico propriamente dita. frequente, por exemplo, alguns consumidores chegarem ao Bairro e perguntarem: O Y j est a bulir? Procuram assim informar-se se Y j iniciou a actividade comercial desse dia. 7 O grito uga corresponde a uma forma rpida e abreviada de dizer fuga. Encontra-se muito expandido, tratando-se de um sinal sobejamente conhecido no Bairro e que accionado vrias vezes por dia. Para alm dele, pode distinguir-se um conjunto de sinalizaes criadas no momento e divulgadas entre os vendedores, como, por exemplo, a abertura e o fecho de um guarda-chuva, como indicao, respectivamente, das aproximaes e afastamentos de um determinado agente policial j identificado.

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico por casas, que permite obter um acesso rpido da zona mais baixa ao local mais elevado do Casal Ventoso de Baixo. Gerou-se uma situao confusa. O barulho tornou-se ensurdecedor, numa amlgama de gritos e sirenes. Os carros da polcia atravessavam a grande velocidade o corao do Casal Ventoso sem que tivesse sido dado qualquer aviso e sem que fosse possvel saber para onde se dirigiam. As trocas de palavras eram extremamente vagas e as indicaes da populao bastante contraditrias. Vo l para baixo, para a Avenida de Ceuta, ou vo l para cima.... Alguns segundos depois j se sabia que os carros tinham parado junto aos contentores do lixo de uma colectividade conhecida. Ningum sabia, no local em que me encontrava, na Rua Costa Pimenta, do que se tratava, se de uma rusga autorizada a alguma casa ou de alguma captura na rua. A nica indicao que circulava, enquanto os acontecimentos se precipitavam, era a de que isto foi de certeza denncia. Geraram-se situaes de pnico, sobretudo de mulheres que tinham os filhos no segmento do Bairro atingido. Umas com medo de capturas, outras com receio de previsveis confrontos. Dezenas de pessoas comearam a galgar as escadas da Rua Fresca, onde se encontrava j muita gente concentrada. No cimo das escadas, um homem era mantido algemado por alguns agentes policiais no fardados, enquanto um outro, com a ajuda da populao em volta, conseguiu fugir, sendo de novo capturado. Quando os reforos policiais chegaram ao local, foram atingidos com pedras. O confronto durou poucos segundos. Comearam a suceder-se os disparos e os agentes passaram a agredir pessoas que se entrepunham. Aos primeiros disparos vagas sucessivas de habitantes comearam a descer as escadas a grande velocidade. A aco foi muito rpida e no durou mais do que trs, quatro minutos. Entretanto, enquanto as ltimas pessoas que corriam alcanavam o ltimo patamar das escadas, sucederam-se os primeiros comentrios. Algumas mulheres que estendiam roupa ou que se mantinham a assistir aos acontecimentos na janela do 1. andar das casas ou do Centro Social podiam relat-los para aqueles que se encontravam nas ruas. Nessa altura a polcia j comandava os acontecimentos e por isso os comentrios referiam-se todos violncia das agresses policiais: Esto a dar pancadas na nuca das pessoas e o rapaz vai algemado e todo a sangrar. Olha a pancada que esto a dar no homem... Os comentrios das mulheres eram realizados atravs de gritos, que rompiam o burburinho, tornando-se facilmente audveis. No entanto, duas mulheres lideravam a argumentao e acabaram por formar dois blocos compostos por outras mulheres sua volta. Tinham ambas nascido no Bairro. Uma delas concentrava em seu redor as cozinheiras e algumas empregadas do Centro Social. Todas se mantinham em silncio, enquanto ela tecia comentrios de forma estridente: As pessoas que agrediram a polcia fugiram, os traficantes fugiram e as pessoas que estavam l perto levaram tareia. Darem-

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Miguel Chaves -lhes trs tiros certeiros... [nos traficantes]. Dizia isto enquanto simulava uma arma com a mo. Uma outra mulher confirmava este juzo: Pois , os que atacaram a polcia deviam l ter ficado at ao fim. A habitante que liderava o outro bloco tinha sado do ptio onde vivia. Gritava to alto que acabou, vrias vezes, por perder a voz. Esta ltima estava envolvida no trfico. No momento em que os acontecimentos tiveram lugar encontrava-se em casa, manifestando agora o pnico que parecia possu-la. Os gritos expressavam revolta e indignao projectada contra a polcia: Chamem a SIC! Pois a SIC no vem c filmar isto, mas vem c filmar os traficantes, isso que vem, agora a porrada que eles do, o que eles fazem, no. Anda toda a gente a comer conta disto, dentro e fora do Casal, e eles s vm filmar os traficantes. Repetiu a ltima frase muitas vezes, enquanto entrava e voltava a sair da entrada do ptio. Os dois grupos de mulheres encontravam-se a menos de uma dezena de metros um do outro, embora simulassem no se ouvirem mutuamente. Alguns minutos depois os argumentos, praticamente decalcados dos da mulher do ptio, circulavam pelo Bairro, mesmo em zonas relativamente distantes. Por vrias vezes e por vrias pessoas, o argumento foi repetido, enfatizando-se a agresso policial e a ausncia da SIC. Os acontecimentos tinham tido lugar no Casal Ventoso de Baixo. Alguns minutos depois os ltimos polcias abandonaram o Bairro. O grupo de mulheres detractoras do trfico desfez-se. Por sua vez, as mulheres do outro grupo continuavam entrada do ptio, onde mais algumas vieram juntar-se. Falavam baixo. A conversa era agora apenas entre elas. Referiam-se ao homem que tinha sido apanhado e condenavam a mulher que estivera no centro do outro grupo. Um comprador passou por mim e disse-me que o gajo (que tinha sido detido) era bem porreiro. Entretanto, o resto do Bairro, nomeadamente o Casal Ventoso de Cima, continuava com o movimento comercial normal. possvel que tivesse continuado sempre, apesar dos incidentes no Casal Ventoso de Baixo. Numa sala em que entrei pouco depois dos incidentes estavam reunidos cerca de vinte homens. Entre eles figuravam alguns vigias e vendedores. Provavelmente, faziam o balano do que sucedera: resolvendo os problemas de substituio das pessoas detidas e precavendo-se relativamente descoberta da zona de venda. A minha entrada acabou por perturbar a conversa. Calaram-se, olhando-me fixamente, enquanto esperavam que resolvesse ir-me embora. A nica mulher que estava presente disse: O que que foi, p? da casa.... Continuaram a conversa, mas era visvel a perturbao que continuava a causar e pensei que era melhor sair. Um dos vigias era acusado entrada desse recinto de no ter corrido a avisar. No se tratava de um natural do Bairro, mas sim de um consumidor residente. Argumentava que no tinha tido tempo. Por seu lado, o acusador dizia que ele tinha tido tempo: [...] em cima da hora, mas

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico tinhas tido tempo, no tens tomates. No dia seguinte o vigia j no se encontrava no posto habitual de trabalho. Provavelmente, tinha sido despedido8. No Casal Ventoso de Baixo eram agora os adolescentes que estavam juntos em grupos e que comentavam os acontecimentos. Num ajuntamento estavam sete jovens encostados a um carro em frente dos tanques de lavagem da roupa. Dois tinham 18 anos, os restantes possuam idades compreendidas entre os 15 e os 18, exceptuando um deles, que tinha 12 anos e era irmo de um dos mais velhos. Eram praticamente todos vigias ou dealers. Inicialmente, trocaram algumas histrias relativamente heroicidade de alguns actos contra a polcia e acerca de quem foi capaz das proezas mais extraordinrias. O mais novo apontava para um dos mais velhos e disse: O Pedro deu tanta porrada.... Outro disse-me que o que lhes valeu foram os cassetetes e as pistolas seno ias ver... rebentavamo-los todos. O Cacholas, um dos que tem 18, respondeu: Quais cassetetes? O pior eram as pistolas, no eram os cassetetes. Disso no tenho medo nenhum. Todos pareceram concordar que o maior problema eram, de facto, as pistolas. A alguns metros de distncia conversavam outros trs adolescentes. Estavam a arfar por causa da correria. Alguns segundos depois chegaram mais dois de mota que no tinham assistido ao que se passara. O pendura saltou do assento e, enquanto tirava o capacete, perguntou: Ento...? O condutor permaneceu em cima da mota. Chegaram ainda mais dois, descendo a escada onde tinha acontecido a fuga. Uma rapariga desceu com eles e, antes de se afastar, fez uma aluso ao agente paisana que, na verso corrente, tinha sido responsvel pela captura, dizendo: O Mouro no nenhum otrio. Esse no da Lourinh...9. Ouviam-se alguns comentrios relativos ao armamento usado pela polcia e forma como cada um tinha reagido em relao a isso. Entre eles encontrava-se B, um adolescente baixo e com uma aparncia dbil, que normalmente participa muito activamente em qualquer discusso. Comeara, finalmente, a ouvir a conversa, pois at esse momento permanecera a falar, distncia, com um homem com cerca de 50 anos. Ficou algum tempo calado e depois disse, exaltando-se muito repentinamente: Eu s queria ter uma metralhadora... matava-os todos. Isso provocou alguns risos. No muitos, porque o momento era de tenso. Habitualmente as pessoas riem-se muito quando B diz qualquer coisa. B e um outro adolescente provocam muitosPerguntei a algumas pessoas o que teria acontecido a esse vigia, mas todas me afirmaram no saberem. Tratava-se de um toxicodependente que apresentava sinais crescentes de debilitao fsica. 9 Otrio um termo frequentemente empregue no Bairro, mas no de forma alguma interno. Literalmente, trata-se de um animal crustceo. Neste contexto corresponde a um sinnimo de parvo ou estpido. No ser da Lourinh uma expresso com um significado prximo de uma mais comum: no ser saloio.8

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Miguel Chaves risos sempre que intervm nalguma discusso. Algum me disse que sem eles o Casal Ventoso era como um jardim sem flores. B prosseguiu: O primeiro a matar... sabem quem que eu matava...? (Os segundos de intervalo que se seguiram geraram alguma expectativa e as pessoas calaram-se; tinha-se a sensao de que os mais atentos tentavam adivinhar a que agentes policiais que B iria referir-se.) O Mouro e o Marreco, esses dois. Havia um senhor que andava fardado e agora anda civil... Outro adolescente disse-me pessoalmente: Eu detesto a polcia, detesto... so maus para a gente. Geraram-se algumas conversas paralelas. Quando estas comearam a esmorecer, ficou no ar uma frase que, embora nos tivesse parecido descontextualizada, foi das ltimas a serem proferidas e, como uma espcie de concluso, parece ter gerado uma concordncia generalizada antes de o grupo comear a desfazer-se: Quem quer ficar no Casal Ventoso fica, quem no quer vai-se embora... mesmo assim. Pouco depois comearam a circular verses acerca da provenincia dos carros da polcia e acerca da forma como os vigias no tinham dado por nada e tinham sido engrupidos10 outra vez pelo Mouro. O Mouro trata-se da alcunha conferida, no Bairro, a um agente policial que actua no Casal Ventoso h j alguns anos e que conhecido praticamente por todos. A verso que passou a circular a de que o Mouro fez quase tudo sozinho, o que representou uma derrota para o sistema de vigilncia. A denncia era esta a histria que circulava teria sido feita por um consumidor de herona. Apanhado pelo Mouro, o consumidor fora obrigado, na esquadra, a dizer a quem tinha comprado. O Mouro vestira ento a roupa do consumidor, utilizando a sua mota. Fizera seguidamente perguntas no Bairro acerca do local onde se encontrava o vendedor denunciado. Este foi apanhado com o produto e, nesse momento, teriam partido os reforos, constitudos por agentes em carros da polcia que, segundos depois, estariam envolvidos na batalha campal acima descrita. CASO 3: DAR FUGA O SUCESSO Num dia de Abril de 1993 comearam a ouvir-se disparos junto da mesma zona onde se verificou a captura descrita no caso anterior. Nessa altura iniciava eu um dilogo com um adolescente que imediatamente interrompeu a conversa e disse: Vem a a bfia aos tiros... que bom, temos caldo! Desen90810

Expresso similar a enganados ou enrolados.

Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico rolou-se novamente uma corrida colectiva pelas escadas a cima at ao local. A encontrava-se um polcia que estava to bem disfarado que parecia mesmo um drogado. Quem que dizia que aquilo era um polcia?, comentou comigo outro adolescente que se encontrava no local. O agente policial apoiava o joelho sobre o corpo de um rapaz de 16 anos apanhado com produto. A casa qual pertencia a droga que ele transportava para o espao de venda fora imediatamente fechada. O agente policial referido disparava tiros para o ar, enquanto outro que o acompanhava, igualmente paisana, solicitava reforos por um intercomunicador. Debaixo do seu joelho e imobilizado, o adolescente gritava: No quero ir dentro, no quero ser preso.... No decorrer dessa cena o adolescente libertara alguns maos de notas, que se espalharam pela rua. Um consumidor comeou a apanh-las avidamente, o que provocou risos. Dezenas de pessoas tentavam aproximar-se do polcia. Quando se aproximavam demasiado de si prprio ou do colega, o agente disparava alguns tiros para o ar. Nesses momentos as pessoas afastavam-se, mas rapidamente voltavam a aproximar-se. Surgiu pouco depois um consumidor conhecido por uma alcunha: o Pistola. No nasceu no Bairro, mas j a permanece h alguns anos, vigiando para a organizao na qual trabalha o rapaz detido. Empurrou o agente com fora, gritando: Dispara em mim que tenho a tua idade e larga o puto. Foge, puto.... Este ltimo, levantando-se rapidamente, correu pelas escadas da Rua Fresca. sua volta correram dezenas de pessoas, que impediram os dois agentes posicionados no cimo da rua de dispararem. Assim que o rapaz conseguiu chegar ao fundo das escadas, as pessoas que corriam entraram nas casas (muitas atravs de janelas) ou colocaram-se em corredores de acesso, evitando qualquer possvel disparo. Alguns segundos depois chegaram reforos policiais, que no intervieram. As pessoas concentraram-se para assistirem sada da polcia, acenando e rindo. Comearam, inclusivamente, a ouvir-se gargalhadas quando um carro da polcia ficou, por instantes, entalado num buraco e com dificuldade em subir a rua extremamente ngreme. Enquanto isso, uma velha que no identifiquei apareceu com uma criana com apenas alguns meses porta de casa gritando repetidas vezes a mesma frase: Mas isto o Texas para andarem aos tiros? Vo disparar pr Texas. Segundo informaes que obtive posteriormente, soube que a fuga tinha sido feita atravs de um ptio at Avenida de Ceuta. As conversas entre adolescentes que ocorreram a seguir eram especialmente efusivas. Contavam-se histrias acerca da actuao de cada um deles, mas sobretudo comentava-se o comportamento do Pistola: O Pistola que foi um granda homem; tu tinhas alguma vez coragem para fazer o que fez o Espingarda, no? Um outro participante chegou e comentou: A Marisa estava branca, agora j t boa, foi l a me busc-la. Todos pareciam saber por que que a Marisa estava branca. Resolvi perguntar e disseram-me que o adolescente capturado, quando a me fora presa, tinha estado uns meses em casa dela e era como se fossem irmos.

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Miguel Chaves Encostei-me a um carro e continuei a conversar com alguns adolescentes. Pouco depois outro vigia voltou a gritar com uma falta de pacincia notria: Uga! Vem a a bfia outra vez. A rua estava vazia. Comeara a chover.CASO 4: O DESESPERO

Numa incurso policial que teve lugar em 1993 na Vila M. E. a surpresa foi total. O sistema de vigilncia no se tinha apercebido de que os carros no identificados transportavam dezenas de agentes paisana. Estes estavam j entrada da vila quando algumas mulheres que circulavam na Rua Costa Pimenta comearam a correr com a inteno de congregarem apoio, gritando uga. Os agentes policiais que estavam ainda dentro dos carros saram. Desmobilizaram o incio do ajuntamento com tacos de baseball e impediram que algum gritasse. A mais breve insinuao de grito era impedida com uma tacada. Permaneceu durante essa rusga um silncio surpreendente, perturbado por alguns gritos no interior do ptio. Vrios agentes policiais permaneciam entrada do ptio, enquanto outros comearam a subir para os telhados ou a entrar dentro das casas. O dispositivo estava demasiado armado (utilizando-se metralhadoras, pistolas e os dissuadores tacos de baseball) para que a populao pudesse intervir. No seu conjunto, a rusga apareceu investida de uma aparncia extremamente organizada. Neste caso no foi possvel populao sequer assistir, sendo obrigada a permanecer afastada. Ouviam-se apenas vagos insultos e lamentos distantes, incompreensveis. Sucederam tambm alguns desmaios. As pessoas que choravam ou desmaiavam eram socorridas por outras imediatamente. O DAR FUGA E A COMUNIDADE DE REPRESENTAESA COMUNIDADE PREEXISTENTE

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A montante do dar fuga existe uma comunidade de representaes. De facto, a realizao de prticas como a do dar fuga tem como condio de possibilidade a existncia de vnculos interpessoais e de sentimentos de pertena que as pessoas possuem, ou acreditam possuir, entre si. A construo dos vnculos interpessoais e a sua valorizao, enquanto laos prioritrios, por parte dos habitantes so favorecidas no Casal Ventoso por trs tipos de circunstncias. Em primeiro lugar, pelo facto de a posio homloga dos habitantes na estrutura social tornar semelhantes muitos dos seus esquemas de percepo, significao e linguagem, bem como muitas das dimenses dos seus problemas e experincias. Em segundo lugar, pelo

Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico facto de esses habitantes manterem entre si uma proximidade espacial prolongada, que , inclusivamente, reforada pelo carcter intergeracional, pela baixa mobilidade espacial verificada e pelo desenvolvimento de formas internas de endogamia. Por ltimo, destaca-se a construo de um universo de sentido comum, universo esse que composto por uma histria e uma mitologia trabalhadas a partir dos materiais da memria (Connerton, 1993 [1989]; A. P. Cohen, 1985; Calhoun, 1980) e filtradas pelas novas circunstncias em que os produtores de mitologia se encontram. Nele se fazem referncias a personagens e a acontecimentos significativos para a relao entre as pessoas que os conhecem e que, em larga medida, no existem para quaisquer outras, mesmo para as que habitam em reas adjacentes ao Bairro. muito difcil, por exemplo, encontrar algum no espao exterior que conhea a Aleijadinha, o Alfredo Cego, a Quarenta e Trs, ou ainda personagens como o Espingarda, o Macaco Australiano ou o Macaco Sovitico11, pessoas que, no interior do Bairro, so conhecidas por todos e citadas diariamente. Este universo auto-referencial e exclusivo faz com que, fora das fronteiras do interconhecimento, os habitantes penetrem num espao de anonimato e desvinculamento. Pelo contrrio, no interior das redes relacionais internas eles adquirem o estatuto de personagens. So abordados de uma forma personalizada, historicizada e quase sempre designados por uma alcunha. O mesmo se regista com acontecimentos e dinmicas intergrupais que s so conhecidos no interior do Casal Ventoso, como, por exemplo, a propalada rivalidade entre as colectividades Unidos F. C. e o Lisboa F. C. O universo de sentido comum permite a habitantes que podem at no se conhecer entre si estabelecer vnculos e construir sentimentos de pertena em torno de uma concepo alargada de vizinhana. Assim, os sentimentos de pertena no so apenas, nem de forma preponderante, construdos com base no interconhecimento. Muitos habitantes produzem sentimentos desse tipo por relao ao prprio espao do Bairro. Quer os vnculos a que as pessoas conferem significado, quer os sentimentos de pertena, esto na base do surgimento de um sistema de direitos e obrigaes no Casal Ventoso, no qual se inclui justamente a prtica do dar fuga. Na verdade, a existncia desta prtica permite, s por si, a identificao de um direito e de uma obrigao: um filho do bairro deve participar na libertao de outros filhos do bairro e pode esperar o mesmo envolvimento por parte dos outros. Este princpio, que se inclui no leque de direitos e obrigaes, ocorre, muito embora o acordo tcito sobre quem filho do bairro no se encontre prvia e totalmente definido. que, embora os filhos do bairro sejam definidos internamente como aqueles que foram nascidos e criados no Casal Ventoso, essas dimenses no so satisfatrias de um ponto de vista analtico: ter nascido no Bairro no uma condio suficiente para11

Comentrios a propsito destas personagens podem ser encontrados em Chaves (1996).

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Miguel Chaves se obter este estatuto e, inversamente, no se apresenta como uma condio sine qua non. ACTUALIZAO A confirmao dos vnculos e sentimentos de pertena que se estabelecem entre as pessoas do Casal Ventoso um processo que tem lugar em diversas interaces quotidianas, designadamente nos prprios procedimentos de vigilncia (caso 1). Contudo, visto que o dar fuga uma prtica accionada em situaes limite (dado que um ou mais habitantes so detidos, ou esto prestes a ser detidos), ele promove ocasies ptimas para que essa confirmao ocorra de forma exacerbada. Os vnculos e as pertenas podem ser expressos neste evento de uma forma incisiva, rpida, concentrada numa regio espacial e temporalmente delimitada. Essa expressividade continua a ser possvel mesmo quando o efeito de libertao no produzido (caso 2) ou quando se encontra bloqueada qualquer posssibilidade de interveno colectiva (caso 4). Dos casos expostos, podemos registar, inclusivamente, que o dar fuga adquire um carcter eminentemente simblico e responde a funes organizativas, constituindo uma espcie de cerimnia de libertao. Se no consiste propriamente num drama claramente padronizado e previamente anunciado, os seus dispositivos dramticos so, porm, bastante claros12. Eles destacam-se com particular intensidade se compararmos o dar fuga com um outro acontecimento isolado que no possui, por si s, uma acentuada espessura dramtica: o dar de fuga. Esta expresso, utilizada emAbner Cohen (1974, p. 157), assumindo a proposta de Goffman, define drama como: [...] a limited sequence of action, defined in space and time, which is set aside from the ordinary flow of purposeful social activity. In this sense the drama is not an imitation of life, but a selective composition. Ordinary social life consists of complex processes of events, involving a multiplicity of actors, themes, variables, issues and purpuses in a never-ending sequence. The drama on the other hand selects a few elements that are not obviously related in ordinary life, indeed that are often contradictory, and integrates them within a unity of action and of form, a gestalt that temporarily structures the psyches of the actors and transforms their relationships. The more disparate the parts, the more intensive the drama. Considerando o prprio caso 4, podemos referir que, se as tentativas de interveno que culminaram em manifestaes de choro e de tristeza se verificassem em contextos de isolamento, no consistiriam em tcnicas de significao e no interviriam de forma ntida nos processos scio-culturais. Mas a partir do momento em que so assistidas e que se desenvolvem no contexto de um drama interferem na produo scio-cultural. Abner Cohen (1974, p. 207) d exemplos desse tipo relativos s prprias produes artsticas: A dress, a song, a poem can be an original artistic work in its own right, but when considered within the context of a drama, it is an aid used to enhance the dramatic effect, and can in that sense be regarded as a technique [...]12

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico diversos contextos populares, equivale simplesmente a pirar-se, dar de frosques ou fugir. No entanto, quando um dar de fuga ocorre no interior do dar fuga, a sua natureza altera-se. Isto acontece porque o dar fuga caracteriza antes uma aco colectiva em que o grupo concede ou oferece a fuga a uma pessoa, ou melhor, oferece essa pessoa fuga, considerando que o termo fuga ocupa aqui o lugar de substantivo. O fugitivo corre, sendo essa corrida secundada por dezenas de pessoas que o envolvem, interpondo-se entre ele e os agentes policiais, impedindo-os de dispararem ou de o recapturarem. Essa corrida em conjunto assemelha-se a uma fuga colectiva. Actores e fugitivos diluem-se num mesmo corpo, onde se torna impossvel distingui-los, mas no qual cada participante realiza uma performance dramtico-simblica perante todos os outros. Poder-se-ia destacar, inclusivamente, a interveno de alguns heris e, porventura, de alguns mrtires, embora no se conheam casos concretos. importante, todavia, acrescentar que confirmar vnculos no significa simplesmente obedecer-lhes e submeter-se a eles, mas tambm, e sempre, actualiz-los por relao s novas circunstncias nas quais aqueles que os possuem esto envolvidos. Considerando as profundas alteraes introduzidas pela actividade de trfico, o dar fuga um dos momentos onde se torna possvel aos participantes manifestar que o sistema de obrigaes continua vlido apesar de muitas pessoas estarem ligadas actividade ilegal. Atravs da sua participao nesta prtica, os no traficantes, ou os traficantes concorrentes, podem sinalizar de um modo enftico que os seus vnculos continuam a ser vlidos. Isso torna-se particularmente visvel quando no traficantes, ou traficantes de redes concorrentes daquela a que pertence o filho do bairro aprisionado, participam na sua libertao. Da mesma forma, os traficantes podem conhecer, atravs da identificao de quem participa nesse evento, quais os habitantes que, embora primeira vista paream possuir interesses contrrios aos seus, continuam a expressar de modo intenso a existncia e prioridade dos vnculos13. TRANSFORMAO semelhana do que acontece noutras situaes de interaco, so desencadeados no dar fuga processos de inveno e assimilao de argumentos que enriquecem e transformam a comunidade de representaes. Este evento no se esgota, portanto, numa mera actualizao dos vnculos e naGostaramos, porm, de chamar a ateno para o facto de os participantes no dar fuga poderem no estar, necessariamente, a pautar-se pela obedincia a vnculos ou pela inscrio num sistema de obrigaes, mas simplesmente a defender interesses individuais (v. Chaves, 1996, pp. 220-223)13

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Miguel Chaves confirmao das obrigaes interpessoais. Os argumentos so constitudos com base em formas de hierarquizao de valores, nas quais se contrape o valor no traficar, largamente difundido internamente, a outros valores existentes que fazem apelo a obrigaes ou a lealdades elevadas, ou ento a formas de avaliao negativa de agentes sociais exteriores, entendidos como nocivos14. Como veremos, quer esses outros valores, quer as formas de avaliao negativa de agentes sociais exteriores, no podem ser entendidos como alternativos e exclusivos do Casal Ventoso. Pelo contrrio, tm um uso muito extensivo fora do Bairro e podero, em larga medida, ser entendidos como dominantes. Os valores que fazem apelo a lealdades mais elevadas no possuem em si mesmos um carcter inovador no Casal Ventoso. A novidade reside antes no facto de a sua importncia ao nvel da comunidade de representaes ter vindo a acentuar-se. o caso do valor que possibilita a prpria realizao do dar fuga: Proteger ou libertar um filho do bairro. Contudo, este no serve como referencial para a aco de todos os habitantes. Muitas pessoas no o respeitam quando sabem, por exemplo, que um determinado filho do bairro em causa traficante. Algumas chegam, inclusivamente, a criticar a existncia de uma prtica como a do dar fuga. Um habitante expressou essa discordncia claramente numa entrevista: Eu no gosto de ver um filho do bairro ir parar cadeia e acho que ningum gosta. So midos que ns conhecemos, que vimos crescer. Mas tambm no andar a a correr atrs da polcia quando ela anda a cumprir o dever dela. As pessoas que se meteram por caminhos errados, por onde no se deviam ter metido. Um outro valor , porm, aceite de forma bastante generalizada no Casal Ventoso: no chibar ou no bufar um filho do bairro. Essa aceitao representa, muito possivelmente, o aspecto mais importante na manuteno da estrutura de oportunidades ilegais. Ao contrrio do anterior, onde se defende a obrigao de libertar um sujeito de uma situao de apuros, neste apenas se defende que os outros habitantes no devem coloc-lo em situaes desse tipo, sobretudo atravs do que possam dizer a seu respeito. Assim, agir em conformidade com o valor no chibar no exige tanto uma participao positiva dos filhos do bairro na proteco de um outro filho do bairro.Estas formas de avaliao de agentes exteriores conduzem prpria construo e reforo das fronteiras internas (Chaves, 1996; A. P. Cohen, 1985). Entendemos que a fronteira comunitria largamente simbolizada, que no esttica e que no percepcionada igualmente por todos os habitantes do Casal Ventoso. No entanto, a representao e a percepo das similaridades e das distines relativamente ao exterior tm, de alguma forma, de ser construdas e assimiladas, pois, como refere A. P. Cohen (1985, p. 20): If the members of a community come to feel that they have less in common with each than they have with the members of some other community, then, clearly, the boundaries have become anomalous and the integrity of the community they enclose has been severely impugned.14

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico Obriga antes a uma participao negativa, a uma aco pela no aco, a um controle sistemtico do silncio15. A sua importncia legvel em diversos episdios dirios, nomeadamente no facto de as prprias pessoas que condenam o trfico se referirem frequentemente ao facto de no serem chibos e de, portanto, no denunciarem ningum. Ao responder, por exemplo, questo se sabe quem so os traficantes, por que no os denuncia?, um dos homens que reconhecido como opositor do trfico, estabelecendo por vezes conflitos verbais com traficantes, respondeu simplesmente, demostrando ter ficado perplexo com a questo: Mas acha-me com cara de chibo? Os males que podem advir do chibano, bem como a sua imoralidade, so ensinados em diversos momentos de interaco. A propsito dele contam-se, inclusivamente, diversas histrias que passam a circular no Bairro. Uma delas foi registada ainda na sequncia do caso 3. Duas pessoas comentavam entre si terem ficado felizes com a libertao do adolescente. Uma delas afirmava: O adolescente [designado por uma alcunha] estava todo acagaado. A me e o irmo dele, j no dia antes, tinham apanhado quatro anos de cadeia por terem mandado as culpas um para o outro por causa dos panfletos16 [que agentes policiais haviam confiscado]. Comearam: ah, isso foi o meu filho... ah, isso foi a minha me... e o juiz disse: Ento para no serem estpidos, leva quatro anos cada um. Esta verso sui generis correspondente leitura de uma sentena comporta, para alm de julgamentos morais, um aviso. Quem a proferiu mostrou-se chocado com aquele comportamento de delao mtua, que, para alm do mais, ocorreu entre membros de uma mesma famlia. Demonstrou, para alm disso, que o chibano tinha sido contraproducente para cada um deles Ao invs de o crime no compensa, nela defende-se que a delao no compensa e demonstra-se porqu. Segundo essa verso, teria sido, curiosamente, o prprio juiz a sancionar o chibano. Por ltimo, convir referir que, por vezes, se faz apelo a um outro valor cuja natureza se distingue dos j referidos: o de no intromisso na vida privada. Ele legvel em diversos momentos e encontra um bom exemplo no seguinte depoimento de um traficante com cerca de 20 anos: Eu estou farto de gajos que tm a mania que andam a dizer que este vende, que aquele vende. No sei o que eles tm a ver com isso. Por que que no levam a vida deles e no chateiam? O que que eles tm a ver com o que se passaJ o prprio Simmel (1955) tinha reflectido acerca da manuteno do secretismo nas sociedades secretas, referindo que a instruo dos intervenientes na arte do silncio desempenha um papel fundamental: [...] socialization offers each of them psychological support against the temptation of disclosure (p. 355). 16 O panfleto uma embalagem de papel de prata que contm uma dose individual de herona cortada. A quantidade varivel. As referncias obtidas so as de que no Casal Ventoso os panfletos podem ir de 0,05 g at 0,2 g.15

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Miguel Chaves na vida dos outros? Houve um [no traficante] que j me quis tramar e outros que vo l para a televiso dizer que aqui h traficantes. L est, no se metem na vida deles e mais... s se lembram do presente, no olham para o passado nem para o futuro. O valor de no intromisso entra, aparentemente, em contradio com o valor no chibar, pois, em lugar do apelo a vnculos prioritrios, convoca princpios de individualidade, de autonomia, de privacidade. Confere ao trfico o estatuto de actividade privada. Contudo, apesar da contradio, qualquer deles acaba por ter um efeito semelhante: a facilitao do trfico. J no que concerne s formas de avaliao negativa dos agentes exteriores, podemos referir que uma delas consiste, ao mesmo tempo, na mais habitual e mais til: a que produzida por referncia aos agentes policiais. Trata-se de uma forma de avaliao com uma certa durabilidade no interior do Bairro e radica na crena de que os agentes policiais tm atitudes e condutas ameaadoras e segregadoras para com a populao. Tal pode ser exemplificado pela afirmao de um entrevistado: [...] o que lhes ensinam na polcia... que no Casal Ventoso so todos marginais. Tambm no conhecem o Casal Ventoso. Isto -lhes dado a beber pelos comandantes deles: Eh p, vo para o Casal Ventoso quaquilo so tudo marginais. o que lhes dado a beber. Noutros depoimentos torna-se legvel que alguns habitantes fazem apelo durabilidade e historicidade do conflito com as polcias. Manifestam desse modo a crena de que as formas de resistncia da populao para com os agentes policiais consistem numa espcie de comportamentos tradicionais, que devem, por isso mesmo, ser preservados17. No reagir s penetraes policiais equivaleria, por conseguinte, a uma espcie de traio para com uma putativa tradio de resistncia. A prevalncia deste gnero de crenas encontra um bom exemplo na seguinte observao de um rapaz de 20 anos: Dantes no havia nada disto, dantes... eu ainda no tinha nascido, a polcia no entrava aqui dentro... no punham aqui os butes... Agora entram a quando querem. Rebentam com as portas com eixos de camio ou com as pistolas... rebentam a porta toda. No outro dia fui ver uma porta que eles tinham rebentado, aquilo j no era porta no era nada. No entanto, para alm deste tipo de juzos, circulam no interior do Bairro algumas condenaes de agentes policiais de formulao mais recente, dado que coincidem com o perodo do trfico. o caso daquelas em que se17 A propsito das questes da memria social e da construo do passado e da tradio, v., naturalmente, Hobsbawm (1983), Connerton (1993 [1989]) e A. P. Cohen (1985). Como refere este ltimo: [...] the past is being used here as a resource in a number of ways. The manner in wich the past is invoked is strongly indicative of the kind of circumstance which makes a past reference salient (A. P. Cohen, 1985, p. 99).

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico argumenta que determinados agentes policiais seriam culpados pela actividade, alegando-se a existncia de formas de corrupo. As observaes deste tipo so as mais abundantes. Na maior parte das vezes so de um teor semelhante que foi proferida por um habitante com cerca de 40 anos: As pessoas esquecem-se, por vezes, que os polcias so os grandes culpados do que aqui se passa. So eles que a metem c dentro, e depois s vezes esto feitos com uns e para aqueles tudo bem, no fazem nada. Para os outros que se armam em heris e apanham este e aquele. s vezes os tipos da polcia que apanham mais traficantes so os piorzinhos. A anlise dos depoimentos permite-nos identificar ainda outro tipo de agentes exteriores em torno dos quais so produzidas formas de condenao, ou mesmo de responsabilizao pelo trfico, como legvel nesta observao proferida por uma mulher: Quem tem culpa da droga quem c a mete. So do governo, no? Eu acho que so do governo, pessoas grandes. Se no metem, deixam passar... Toda a gente sabe, no ? No entanto, seguidamente aos bfias, os agentes exteriores mais condenados quotidianamente so os prprios consumidores e os jornalistas, sobretudo televisivos. Relativamente aos primeiros, encontram-se argumentos em que lhes so atribudas responsabilidades na dinmica comercial gerada pela procura. Ela bem ilustrada por um depoimento, que tem a virtude de congregar os trs tipos de agentes condenados: Ns no os chamamos para c [consumidores]. Eles vm c porque querem. A polcia que anda a dizer na televiso que a droga do Casal Ventoso a melhor, que a mais pura, por isso vem tudo c compr-la. Relativamente aos jornalistas, podemos referir que o seu processo de condenao to recente que coincidiu com a prpria permanncia do investigador no terreno. Uma manifestao de condenao explcita encontra-se descrita no caso 2. Uma mulher que fora particularmente afectada pela captura gritava. As opinies que proferiu acerca da SIC foram rapidamente difundidas e repetidas no interior do Bairro. Nelas se acentuava que a reportagem do canal de televiso era injusta porque apenas incidia sobre os traficantes do Casal Ventoso e no sobre a actuao das polcias. No entanto, a maior parte dos argumentos a propsito dos jornalistas, elaborados quer por traficantes, quer por no traficantes, desenrolam-se em torno de duas ideias centrais. Em primeiro lugar, argumenta-se que esses produzem uma cobertura injusta porque incide exclusivamente sobre o Casal Ventoso e, no interior do Bairro, somente sobre a droga. Uma mulher que, muito provavelmente, no trafica referiu: sempre a droga, a droga, a droga, j chateia. No vem mais nada e nem lhes interessa. Voltou mais tarde a referir-se ao mesmo assunto noutros moldes: H pra tanta gente a vender, tanta gente importante e tantos bairros e sempre o Casal Ventoso a pagar... eu acho que foi sempre assim, mas ento agora parece que no sabem falar de mais nada. Um homem que se encontra associado ao trfico e que vende

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Miguel Chaves directamente ao consumidor no Casal Ventoso, mas que conhece bem outro bairro de Lisboa, comparou os dois: No sei ainda por que que andam sempre a dar em cima do Casal e no doutros bairros onde h a mesma coisa. O que se passa para eles andarem sempre em cima do Casal a filmarem, sabe o que ? que as pessoas do Casal no so como noutros stios, que pem os drogados a andar, deixam-os ficar por a, e j viu bem a quantidade de drogados que h. Em segundo lugar, os moradores destacam as consequncias que a estigmatizao espacial assente, em larga medida, sobre o trabalho jornalstico implicou para a sua vida pessoal. Referem-se, quase sempre, ao confronto com o mercado de trabalho. Algumas pessoas afirmaram que elas prprias, tanto quanto outros habitantes conhecidos, tm experimentado formas de discriminao no trabalho, contando alguns episdios a esse respeito. Por exemplo, uma mulher que vive na Rua Maria Pia e que trabalhou numa fbrica de malas contou o seguinte acerca do recrutamento de trabalhadores: Algumas pessoas do Casal Ventoso tinham l ido, e eles durante muito tempo queriam toda a gente, menos do Casal Ventoso. Mas houve l duas que eram do Casal Ventoso e que tinham dado moradas falsas fora do bairro... as moradas existiam, elas que no viviam l. Depois veio a saber-se, mas nessa altura viram que elas trabalhavam bem e no houve problema. Um outro exemplo o de um adolescente de 16 anos que tinha trabalhado numa oficina de reparao de automveis durante seis meses sem que tivesse revelado, por precauo, a sua morada: Eu fui l e a minha me tinha dito para eu dar a morada da minha tia de Campo de Ourique. Depois o meu patro acabou por saber... algum lhe disse ou ento no sei... mas ele, afinal, no se chateou nada, at reinava comigo e dizia assim aos meus colegas: cuidado que o gajo um perigo, do Casal Ventoso... escondam-se... No importante aqui afianarmos da veracidade dos dados contidos em tais argumentos, mas antes registar a sua eficcia simblica. Esta decorre do facto de qualquer deles ficar disponvel ao nvel da comunidade de representaes, sendo apropriado e partilhado no interior do Bairro, nomeadamente por habitantes no traficantes ou por pessoas crticas relativamente ao trfico, atenuando-se dessa forma as ameaas de delao. A produo de argumentos decorre aqui atravs de processos de hierarquizao de valores. A mais comum obtida atravs da formulao de proposies em que a conjuno mas surge entre os valores de condenao do trfico e os valores de no delao de um filho do bairro ou as condenaes de inimigos exteriores. Em diversas situaes de deteno comum ouvirem-se, por exemplo, pessoas argumentar, utilizando dispositivos engenhosos, que no consideram que seja errado aprisionarem-nas, mas que mais errado serem levadas por determinados agentes policiais que so considerados imorais, serem presas estas, enquanto outras que elas

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico entendem terem responsabilidades acrescidas na actividade de trfico ficam livres, ou serem detidas em virtude de terem sido chibadas por algum filho do bairro. Neste ltimo caso, considera-se que grave traficar, mas que bem mais grave ser denunciado por uma pessoa com a qual se pensa possuir vnculos e obrigaes. Estes exemplos permitem-nos compreender como que no Casal Ventoso podem elaborar-se formas de argumentao que facilitam a construo da comunidade em torno do trfico, mesmo que os habitantes no possuam necessariamente, e de forma homognea, dfices de socializao perante valores centrais, nem sequer valores de referncia alternativos. Com efeito, nos processos argumentativos que acabmos de descrever apenas se contrapem valores centrais, como o no traficar, a outros valores centrais, tais como o de no denunciar algum com o qual se acredita possuir vnculos prioritrios, ou ainda a ideias que se encontram muito difundidas em toda a sociedade, como, por exemplo, ser-se crtico relativamente a jornalistas sectrios ou contra agentes policiais corruptos. NARCOTRFICO, COMUNIDADE E RECONSTRUO DO SUJEITO18 Acabmos de ver como, atravs dos argumentos que se produzem em contextos de interaco, os sujeitos colocam a comunidade num outro patamar que permite a reduo dos riscos de delao. Estamos neste momento em condies de explorar, deixando neste caso o material emprico apenas implcito, o segundo aspecto da nossa questo inicial. Como que, mesmo neste contexto de hegemonia, encontramos elementos simblicos que facilitam a adeso dos habitantes do Casal Ventoso ao trfico? Em termos sintticos, podemos referir que tal sucede porque muitos sujeitos do Casal Ventoso interiorizam os argumentos do patrimnio de representaes comunitrio, abordados na primeira parte, convertendo-os no que designamos aqui por argumentos atenuadores. Designamo-los deste modo justamente porque estes so interiorizados pelas pessoas do Bairro, convertendo-se numa parte integrante do seu self total19.Na exposio que se segue, a noo de self destaca-se com particular relevncia. Procurmos abordar e explanar as suas implicaes tericas em Da Gandaia ao Narcotrfico (Chaves, 1996, pp. 275-280). Cf. tambm naturalmente as concepes de Mead (1963 [1943]), Pman (1993), Giddens (1987 [1984], 1993 [1989] e 1993 [1991]), Goffman (1974, 1982 [1963], 1993 [1959]), Burkitt (1991), Jenkins (1996) e muito especialmente J. Turner (1988). 19 Designamos por self total a totalidade dos selves situacionais que integram a estrutura da mente. Ou seja, os diversos selves, constitudos por relao constelao multirreferencial de grupos, instituies de referncia, bem como valores, ideais e representaes que cada um destes produz. O facto de possuir estes selves situacionais permite pessoa agir em contextos18

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Miguel Chaves Esta proposta intercepta, no obstante as diferenas terminolgicas, alguns dos argumentos fundamentais de D. Matza acerca da forma como os infractores tornam inteligveis as suas condutas e atenuam a ansiedade provocada pelos actos ilegtimos num mundo e por relao a um self normativamente hostis. Estas ideias encontram-se particularmente presentes nas suas primeiras obras e artigos (D. Matza, 1961 e 1964 [1957]), e no tanto em Becoming Deviant (Matza, 1969). Nelas Matza expe o que designa por uma naturalistic perspective atravs da qual procura analisar a relao entre crenas e aco, defendendo que os delinquentes neutralizam o cdigo moral da sociedade atravs precisamente do uso de tcnicas de neutralizao: We call these justifications of deviance behaviour techniques of neutralization; and we believe these techniques make up a crucial component of Sutherlands definitions favourable to the violation of law. It is by learning these techniques that the juvenile become delinquent rather than by learning moral imperatives, values or attitudes standing in direct contradiction to those of the dominant society (Skyes e Matza, 1957). Por seu lado, Taylor, Walton e Young (1973, p. 176) que comentam a perspectiva de Matza de forma muito didctica, afirmam: [...] They are phrases or linguistic utterances used by the deviant to justify his action. Their importance lies in the fact that they are not merely ex post facto excuses or rationalizations invented for the authorities ears, but rather phrases which actually facilitate or motivate the comission of deviant actions by neutralizing a pre-existing normative constraint20. Os mesmos autores (Taylor, Walton e Young, 1992 [1973], p. 177) sintetizam, inclusivamente, as cinco tcnicas fundamentais de neutralizao normativa propostas por Matza: denial of injury; denial of responsability; denial of victim; condemnation of the condemners e appeal to higher loyalties. Ora, qualquer das quatro ltimas tcnicas mencionadas corresponde aos elementos da comunidade de representaes que referimos no captulo anterior e que facilitam o trfico. Por exemplo, a negao da responsabilidade legvel na utilizao da escala hierrquica entre traficantes como forma dediferenciados e construir uma impresso de si mesma, criar uma iluso de realidade perante as outras atravs das suas habilidades expressivas. Relativamente ao self total, e como referia o prprio G. H. Mead (1962 [1934], p. 144): A multiple personality is in a certain sense normal [...] the various elementary selves which constitute, or are organized into, a complete self are the various aspects of the structure of social process as a whole; the structure of the complete self is thus a reflection of the complete social process. tambm neste sentido que Burkitt (1991) defende: [...] the different aspects of self are not regions that exist within us, but the places that our acts occupy within the social relations which become internal to the self (p. 205). 20 Torna-se oportuno referir o comentrio de J. Vala a propsito do novo primado das representaes sociais: As representaes no so j, ou no so apenas, mediaes, so factores constituintes do estmulo e modeladores da resposta, na medida em que dominam todo o processo (Vala, 1993a, p. 335).

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico diferir e projectar a responsabilidade. A negao da vtima e a negao dos condenadores encontram-se directamente associadas ao processo de construo das condenaes internas, sendo que a primeira se prende com as imagens negativas produzidas acerca dos consumidores e a segunda se torna explcita nos argumentos de condenao dos condenadores nomeadamente das polcias e dos jornalistas. Por seu lado, o apelo a lealdades mais elevadas constitui-se em torno da comunidade enquanto sistema de direitos e obrigaes e est bem expresso no no chibar. O carcter de atenuao destes argumentos reside, em primeiro lugar, no facto de que estes princpios possuem um potencial argumentativo que se contrape s condenaes do trfico. Em segundo lugar, no facto de, por esse motivo, serem suficientes para responderem a parte das contradies morais que se colocam ao desenvolvimento da actividade no quotidiano. Esta ltima caracterstica dos argumentos atenuadores (tcnicas de neutralizao, na terminologia de Matza) faz com que, em termos cognitivos, eles se apresentem como elementos suficientes para que os traficantes funcionem sem que tenham de estar sistematicamente a interrogar-se a propsito de questes relativas a valores ou, simplesmente, sem que tenham de interrogar-se sistematicamente. Eles possuem, pois, um potencial de bloqueio dos procedimentos reflexivos e da prpria conscincia discursiva. Tal funcionamento permite que muitos traficantes se centrem mais na prpria prtica e que, em certa medida, tendam a naturaliz-la. Podemos afirmar, portanto, que o trfico adquire, para muitos traficantes, o estatuto de rotina, muito embora os processos de rotinizao em torno desta actividade sejam consideravelmente mais frgeis do que aqueles que se verificam em muitas das prticas legtimas realizadas em front regions21. Quando dizemos que a comunicao moral reduzida a um mnimo por relao conversa que muitos traficantes mantm no interior de si prprios, referimo-nos tambm s conversas que eles mantm entre si. em relao a este ltimo aspecto (a comunicao interpessoal) que o silncio se manifesta mais claramente em largos perodos do quotidiano do Bairro. Na verdade, de notar que a discusso entre traficantes a propsito do lugar do trfico na totalidade da vida praticamente inexistente: o comrcio de drogas , geralmente, uma aco, e no tanto um debate de ideias22. O Bairro torna-se, portanto, um meio bem mais seguro do que qualquer outra regio que no disponha de argumentos atenuadores difundidos e21 Tanto J. Turner (1988) como A. Giddens (1987 [1984] e 1994 [1991]) se aproximam muito da ideia de rotinizao a que nos referimos. Para uma definio das noes de front e back regions, v., naturalmente, E. Goffman e A. Giddens (1987 [1984]). 22 A prpria exigncia de secretismo favorece esta situao. Quanto mais escassas forem as conversas internas e externas ao sujeito, mais facilitado estar o funcionamento do trfico, nas condies que referimos ao longo da pesquisa.

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Miguel Chaves assimilados para que muitos traficantes mobilizem, em grande parte das situaes de comrcio, uma conscincia prtica, neutralizando tendencialmente aspectos discursivos. Como refere o prprio Giddens (1994 [1991], p. 32): A conscincia prtica a ncora cognitiva e emotiva dos sentimentos de segurana ontolgica caractersticos de largos segmentos da actividade humana em todas as culturas [...]. A atitude natural pe entre parnteses perguntas sobre ns mesmos, os outros e o mundo-objecto, que devem ser inquestionados de modo a prosseguir-se com a actividade quotidiana. Contudo, os argumentos atenuadores no funcionam para todos os habitantes como elementos totalmente eficazes na atenuao dos valores dominantes de condenao do trfico e, portanto, como condies para o situacionamento dessa actividade ao nvel da conscincia prtica. Registmos vrios exemplos de traficantes ou simplesmente de pessoas que querem entrar no trfico nas quais irrompem frequentemente elementos de discursividade. Os exemplos mais extremos so os daqueles que, embora possam entrar na estrutura ilegal, no o querem fazer, bem como o de outros que, tendo estado envolvidos no trfico, acabaram por sair ou ento apenas traficaram durante um curto perodo23. No entanto, so tambm comuns os exemplos de traficantes que se confrontam com elementos de reflexividade e que, inclusivamente, censuram a sua conduta. Mesmo que no a inviabilizem, tais elementos so, pelo menos, suficientes para que estes traficantes as sintam como inferiores e, em ltimo caso, se sintam eles prprios inferiores, dadas as suas condutas24. Isto acontece porque as pessoas experimentam uma forma de inconsistncia entre uma parte do self total, do qual fazem parte as condenaes do trfico, e o self situacional, constitudo enquanto traficante, onde se incluem os argumentos atenuadores. Tais formas de inconsistncia provocam ansiedade e consistem num estado de desequilbrio que os sujeitos procuram resolver: [...] people typically seek to maintain consistency among these core feelings, while at the same time they attempt to sustain consistency between this core self and their various situational selves (J. Turner, 1988, p. 202)25. A ansiedade experimentada pelas pessoas que sentem uma clivagem entre as crenas relativas conduta e os prprios actos muito particular. Se elaDos diversos exemplos disponveis regista-se o de uma mulher que traficou apenas numa noite, alegando questes de ndole moral para no voltar a faz-lo. 24 Goffman (1982 [1963]) refere, a propsito da interiorizao dos valores globais por parte da generalidade das pessoas, e no seguimento dos pressupostos que at aqui temos vindo a explorar: [...] os sistemas de honra separados parecem estar decadentes. O indivduo estigmatizado tende a ter as mesmas crenas sobre identidade que ns temos (p. 16). 25 Este um dos exemplos da sobreposio entre a noo de core self e de total self realizada por Turner (1988). Na nossa proposta a noo de core self, tal como aqui empregue por Turner, deve ser entendida por self total.23

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Dar fuga: comunidade e sujeito num contexto de narcotrfico afecta essencialmente a relao do self com a sua prpria conduta, poder ser designada por culpa. Se, abstraindo-se do prprio acto, ela se projecta no autoconceito, atingindo a prpria confiana bsica, cremos que se tornar mais adequada a utilizao do termo vergonha. Giddens tem produzido trabalho terico justamente em torno desta questo: A culpa uma ansiedade produzida pelo medo da transgresso quando os pensamentos ou actividades do indivduo no coincidem com expectativas de um tipo normativo [...] A mecnica da culpa foi muito explorada na literatura psicanaltica, mas, no respeitante a problemas de auto-identidade, a vergonha, que tem sido menos discutida, mais importante. Alguns autores argumentaram que, enquanto a culpa um estado de ansiedade privado, a vergonha pblica. Porm, este no o modo mais adequado de distinguir as duas, uma vez que ambas, nas suas formas mais pronunciadas, dizem respeito a figuras introjectadas [...] A vergonha depende de sentimentos de insuficincia pessoal, e estes podem incluir um elemento bsico de constituio psicolgica de um indivduo desde muito cedo. A vergonha deve ser entendida em relao com a integridade do self, enquanto a culpa deriva de sentimentos de infraco [...] A vergonha ataca a confiana bsica de forma mais corrosiva do que a culpa. (Giddens, 1994 [1991]), pp. 57-58). De tudo o que foi dito poderamos ser levados a concluir que se encontra no Bairro um grupo de traficantes que produzem a aco essencialmente em torno dos argumentos atenuadores, desenvolvendo uma conscincia prtica. Distinguir-se-iam, por outro lado, aqueles para quem os argumentos atenuadores seriam menos eficazes, encontrando-se num confronto mais permanente com os valores dominantes. Estes ltimos estariam, portanto, sujeitos a procedimentos de reflexividade, desenvolvendo formas de culpabilizao ou mesmo de vergonha. No entanto, no ser correcto, de um ponto de vista analtico, dividir os traficantes em dois grupos claramente diferenciados. Ou seja, no existem dois grandes tipos de traficantes a pensarem e a sentirem as suas condutas de forma absolutamente diferenciada. No podem detectar-se, por isso, dois tipos de traficantes por relao ao discurso condenatrio que proferem a propsito do trfico: o das pessoas totalmente cnicas, que estariam ligadas primeira categoria, e o das pessoas totalmente verdadeiras, que, neste caso, seriam apenas os no traficantes. Como o prprio Goffman j nos tinha alertado, (1993 [1959], p. 31): [...] o indivduo que apanhado pelo seu prprio desempenho e o indivduo cnico em relao a este ltimo so [...] termos finais de um continuum. Qualquer destas categorias deve ser considerada enquanto uma situao polar ideal-tpica que, porventura, no abarca casos reais. Entre elas estende-se um contnuo moral de situaes intermdias. A nossa hiptese a de que, num dos extremos do contnuo, entre aqueles que se confrontam essencialmente com uma conscincia prtica se encon-

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Miguel Chaves trariam com maior probabilidade as pessoas que, antes da expanso do narcotrfico nos anos 80, possuam j um estilo de vida ilegal, sobretudo os membros das famlias-seitas, dado que, para eles, o trfico surgiria como uma forma de substituio, quer ao nvel das suas vivncias, quer da sua conscincia, de actividades ilegais que j desenvolviam anteriormente26. No outro plo do contnuo distinguir-se-iam os traficantes que nunca antes tinham estado ligados a qualquer actividade ilegal, que condenam o trfico permanentemente, mas que, apesar disso, aderiram a ele. possvel que se consiga, no futuro, produzir, por relao a este contnuo, uma tipologia que detecte a maior proximidade ou distanciamento dos traficantes por relao a cada um destes plos, ou seja, entre aqueles que desenvolvem essencialmente uma conscincia prtica por relao actividade e aqueles que esto sujeitos a uma irrupo sistemtica de elementos reflexivos. Poder tambm vir a descobrir-se que a situao das pessoas ao longo desse contnuo moral no apenas causada pelo seu estilo de vida anterior, mas por uma srie de outros factores, como, por exemplo, a passagem por estabelecimentos prisionais, a durao do seu envolvimento no trfico ou o facto de terem ou no experimentado situaes de morte de pessoas com as quais detinham relaes afectivas e que tenham sido imputadas ao consumo de drogas. No entanto, a noo de contnuo moral no permite apenas dar conta da posio que as pessoas ocupam ao longo de uma linha entre estes plos de uma forma definitiva. A circulao ao longo do contnuo garantida pelo prprio funcioname