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Artigo de Bernardo Carvalho para a Folha de S. Paulo, 26.10.04, sobre as questões associadas ao documentário Corps Étrangers, de Sophie Brédier:  

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FSP 26/10/04 - Ilustrada

BERNARDO CARVALHO

Michael Moore da vida privada

Diz bastante sobre o tempo em que vivemos que, entre os filmes em cartaz em Paris que falam de uma volta s origens ("Terra da Fartura", de Wim Wenders, "M Educao", de Almodvar), tenha sido justamente um documentrio sem maior importncia exibido na televiso numa madrugada de sbado que atraiu a minha ateno.

Sophie Bredier uma jovem cineasta francesa, de origem coreana, que foi adotada aos quatro anos. Seu primeiro filme, "Separees" (Separadas), tratava de sua volta Coria em busca dos pais biolgicos desconhecidos. "Corps Etrangers" (Corpos Estrangeiros), exibido agora pelo canal franco-alemo Arte, acompanha a documentarista, grvida do primeiro filho, fazendo as perguntas em princpio mais impertinentes, tolas e inadequadas a todos os que encontra pela frente, e obtendo eloqentes silncios e perplexidades como respostas que rompem com a facilidade do conforto compartilhado. Na sua aparente simplicidade intelectual, a cineasta acaba expondo as feridas das diferenas fsicas e culturais, e do racismo, para alm do esperado e do correto.

A volta s origens um assunto surrado. Almodvar j fez melhor com o mesmo tema. E faz tempo que o maneirismo discreto dos primeiros filmes de Wenders cedeu a um sentimentalismo piegas e moralista. A nostalgia do lar, a xenofobia e o isolacionismo americano em "Terra da Fartura" do a impresso de no passar de elementos esquemticos para comover e conscientizar o espectador.

"Corps Etrangers", ao contrrio, procura a genealogia como quem inflama o que parecia cicatrizado. O filme pode ser convencional na forma; so as perguntas da documentarista em cena, se arriscando diante da cmera como uma espcie de Michael Moore da vida privada -mas sem nenhum cinismo- que o tornam to surpreendente.

Aqui a busca das origens despertada pela imponderabilidade do futuro. Como uma criana procura de respostas para tudo, Sophie Bredier quer por fora saber quem ser o seu filho. Numa civilizao cada vez mais organizada pela gentica, nada mais natural que a futura me se mostre especialmente obcecada pelo destino biolgico da criana.

A documentarista consulta os mdicos. Quer saber se o filho ter cara de asitico. "E se um dos meus pais biolgicos no for asitico?" Faz as perguntas mais idiotas, as que em geral no tm resposta. Fragiliza-se diante da cmera, e os mdicos, a seu tempo, se vem constrangidos pelas duas (pela cineasta e pela cmera). Logo estaro falando de "doenas que atingem mais os asiticos" etc. Era o que a cineasta esperava ouvir. Ela que se faz de tonta. Quer que falem das diferenas biolgicas entre os seres humanos e de suas conseqncias. Quer que revelem o que h de impublicvel no seu discurso privado, no discurso da cincia. Quer que o mundo fale s claras sobre as diferenas fsicas entre os homens, sobre aquelas que a fazem se sentir estrangeira em seu prprio corpo.

Vai atrs de documentos que provem a sua origem, mas no os encontra. Faz-se de desentendida para ouvir de uma recepcionista que, embora seja francesa, ter que fazer seu pedido junto ao Ministrio das Relaes Exteriores. Procura uma amiga, tambm de origem coreana e adotada por franceses, e a leva a dizer que se sente estrangeira, mais coreana do que francesa, embora sempre tenha vivido na Frana. Busca a contradio.

Vai casa da me adotiva. Quer saber por que a escolheram, uma coreana e no uma francesa. A me diz que nunca levou isso em conta. Pergunta filha se ela no se lembra de que, desde pequena, era ela e no a me quem vivia obcecada pela idia da disparidade fsica, pelo fato de seus olhos amendoados serem diferentes dos olhos dos pais. A documentarista diz que no se lembra. Pergunta por que a me, que sempre viajou tanto, nunca quis ir Coria. A me tenta escapar e, por fim, diante da insistncia da filha, d o brao a torcer : "Por uma razo que eu nunca lhe direi".

As perguntas sem resposta so as mais dramticas, as que falam pelo filme. A emoo provocada pela busca sem fim de Sophie Bredier atrs de si mesma no pode ser esquemtica ou piegas. Porque no exterior. resultado de uma loucura latente, contida, que transborda na sua luta por entender o que significa afinal ser uma pessoa, um indivduo, diferente dos que o cercam.

A cineasta pergunta se a me adotiva ficou magoada quando ela decidiu voltar Coria em busca dos pais biolgicos. A me diz que no, achou que seria uma forma de a filha reencontrar o equilbrio emocional. A loucura, entretanto, volta com a gravidez. A idia de uma descendncia, que a documentarista achava impossvel, refora o problema da ascendncia. Para ter um filho, Sophie Bredier precisa saber quem eram seus pais.

A me adotiva lhe pergunta por que ela esperou quatro meses para lhe revelar que estava grvida. E a documentarista, com lgrimas nos olhos, fala da traio: na sua loucura, ficar grvida significava trair a me infrtil que a criou.

Poucos filmes hoje conseguem ser to intensos e inesperados ao falar do problema da identidade. "Corps Etrangers" faz as perguntas certas, as mesmas que uma criana faria. As perguntas de algum que tem a coragem de dizer que acha estranho viver no seu prprio corpo e com isso desafia a pretensa normalidade do mundo.