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Universidade Federal do Rio de Janeiro RAZÕES OCULTAS: representações do conservadorismo na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar Everardo Borges Cantarino 2013

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Page 1: Memórias sentimentais de João Miramar · na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar Everardo Borges Cantarino Dissertação de Mestrado apresentada

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

RAZÕES OCULTAS:

representações do conservadorismo na composição vanguardista das

Memórias sentimentais de João Miramar

Everardo Borges Cantarino

2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

RAZÕES OCULTAS: representações do conservadorismo

na composição vanguardista das Memórias sentimentais

de João Miramar

Everardo Borges Cantarino

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do Título de Mestre em

Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Prof. Doutor André Luiz de Lima Bueno

Rio de Janeiro

Julho de 2013

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Para meu filho Fábio

que com o seu grande poder de síntese

buscou uma solução para logo me ter a seu lado:

“Eu escrevo tudo em duas páginas”.

Para Sandra

por mais esta estrada percorrida juntos.

Para meus irmãos

pelo apoio e compreensão.

À memória de meu pai

Plinio Jotta Cantarino

E para minha mãe querida

Elbia Borges Cantarino.

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AGRADECIMENTOS

A André Bueno, meu orientador, pelas observações decisivas e por toda a sua

contribuição desde a época da graduação.

Aos Professores Eduardo Coelho e Eleonora Ziller Camenietzki, meus primeiros

leitores, pela gentileza de comporem a banca examinadora.

À Pró-Reitoria de Ensino, à Direção-Geral do Campus São Cristóvão III e à Chefia

do Departamento de Língua Português e Literaturas do Colégio Pedro II, pelo

afastamento para estudos que facilitou a realização deste trabalho.

Aos servidores do Colégio Pedro II, que pela luta conquistaram a transparência na

normatização que hoje regulamenta o afastamento para estudos.

A Fátima, secretária do Programa de Pós-Graduação, pelas informações sempre

precisas.

Às amigas Elaine Correa Barbosa Ramos e Elisa Maria Soares Fernandes Vieira,

pelas parcerias na vida e no trabalho.

A Sandra Lopes Machado e Natália Cantarino Féres, pela colaboração.

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Vim pelo caminho difícil,

a linha que nunca termina,

a linha bate na pedra,

a palavra quebra uma esquina,

mínima linha vazia,

a linha, uma vida inteira,

palavra, palavra minha.

Paulo Leminski

No fim de sua vida, em 54, levei-o à 2ª Bienal. Era no Ibirapuera de Niemeyer, da

oficialização definitiva da arquitetura e da arte moderna que daria Brasília.

Estávamos naquela tarde praticamente sós, sob as arrojadas estruturas de concreto

e cercados de arte abstrata. Oswald sentia-se como um dos principais autores

daquela conquista. Ele chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha.

Sentia-se apoiado e com a razão. Era algo que acontecia na sua cidadezinha

provinciana, depois de uma vida de trabalho.

Rudá de Andrade

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Cantarino, Everardo Borges A553.2mec Razões ocultas: representações do conservadorismo na

composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar / Everardo Borges Cantarino. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

ix, 153 f. ; 30 cm Orientador: André Luiz de Lima Bueno. Dissertação (Mestrado): Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2013.

Referências bibliográficas: f. 147-154. 1. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de

João Miramar – Crítica e interpretação. 2. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de João Miramar – Personagens. 3. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de João Miramar – Estilo. 4. Modernismo (Literatura – Brasil). 5. São Paulo (SP) – Vida e costumes sociais. 6. Literatura e sociedade – Brasil. 7. Cartas na literatura. I. Bueno, André Luiz de Lima. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD B869.35

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RESUMO

CANTARINO, Everardo Borges. Razões ocultas: representações do conservadorismo na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.

Estudo do romance Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de

Andrade, em que são analisados aspectos estéticos e ideológicos, postos em

movimento e relacionados. A renovação da linguagem literária apresentada nesse

romance rompe com as fórmulas acadêmicas, para tratar de uma realidade urbana

em transformação no início do século XX, em São Paulo, em que convivem os

avanços da modernidade e a mentalidade conservadora de um passado rural

oligárquico de raízes escravistas. João Miramar é o autor ficcional do livro, o

narrador e o protagonista que encarna essa dicotomia, já que a composição de seu

texto é vanguardista, mas como integrante da classe de cafeicultores, se insere no

conservadorismo dessa elite que na cidade se instala, na formação da burguesia

urbana no Brasil. A análise das técnicas empregadas pelo escritor ficcional João

Miramar na escrita de suas Memórias foi a estratégia que possibilitou uma melhor

compreensão do enredo. Cabe à recepção do texto realizar dois níveis de leitura que

são complementares: uma “vertical”, em que cada episódio contém uma experiência

completa relembrada por Miramar, e uma “horizontal”, na qual a recepção faz uma

montagem juntando episódios a partir de estruturas temáticas ou linguísticas. Dessa

forma é possível perceber níveis de consciência e atitudes críticas de Miramar ao

longo do romance. Assim, através dos elementos do texto, esse estudo busca

compreender a crítica à sociedade brasileira esboçada na obra.

Palavras-chave: Modernismo; modernidade; crítica e interpretação; Oswald de

Andrade.

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ABSTRACT

CANTARINO, Everardo Borges. Ridden reasons: representations of conservatism in the vanguardist composition of Memórias sentimentais de João Miramar. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.

Study of the novel Memórias Sentimentais de João Miramar, by Oswald de Andrade,

in which esthetical and ideological aspects are analyzed, set into motion and related.

The renewal of literary language presented in this novel disrupts with academic

formulas to deal with a changing urban reality in the early twentieth century in São

Paulo, where live the advances of modernity and the conservative mentality of a rural

oligarchic slavery roots past. João Miramar is the fictional author of the book, the

narrator and the protagonist who embodies this dichotomy, since the composition of

his text is avant-garde, but as a member of the class of coffee growers, is included in

this elite conservatism that settles in the city, in the formation of urban bourgeoisie in

Brazil. The analysis of the techniques employed by the fictional writer João Miramar

in writing his memoirs was the strategy that enabled a better comprehension of the

plot. Is it up to the reception of the text to perform two levels of reading that are

complementary: a "vertical" in which each episode contains a complete experience

recalled by Miramar, and a "horizontal" in which the reception makes an assembly

gathering episodes from thematics or linguistics structures. That way is it possible to

realize levels of consciousness and critical attitudes of Miramar throughout the

romance. Thus, through the elements of the text, this study aims to understand the

critique of Brazilian society outlined in the literary work.

Keywords: Modernism; modernity; criticism and interpretation; Oswald de Andrade

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 ESTUDOS SOBRE AS MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR 23

2.1 MIRAMAR E SERAFIM: “O PAR ÍMPAR” 23

2.2 A VANGUARDA NA MIRA 37

2.3 UMA NARRATIVA ORGANIZADA EM ESTRUTURAS MÓVEIS 51

3 NACIONALISMO E RADICALISMO 56

3.1 O NACIONALISMO NA LITERATURA E NA CRÍTICA LITERÁRIA 57

3.2 O DISCURSO RADICAL E O PENSAMENTO CONSERVADOR 71

4 TÉCNICAS DO ESCRITOR JOÃO MIRAMAR 78

4.1 O PREFÁCIO E A PRIMEIRA INFÂNCIA 78

4.2 O COMPILADOR E EDITOR DE CARTAS PESSOAIS 91

4.2.1 Cartas e sexualidade 96

4.2.2 Cartas e papéis sociais 102

4.2.3 Cartas e localismo 107

5 A MORAL CONSERVADORA E O ESTILO VANGUARDISTA 114

5.1 PROPRIEDADE E FAMÍLIA 114

5.2 O HUMOR E A RIGIDEZ DO CARÁTER, DO ESPÍRITO E DO CORPO 129

6 CONCLUSÃO 140

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1 INTRODUÇÃO

Memórias sentimentais de João Miramar, romance escrito por Oswald de

Andrade, teve a sua primeira publicação em 1924, pela editora Independência, com

um pequeno número de exemplares. Apenas quarenta anos depois, em 1964, o

público leitor teve acesso ao que era um livro “quase clandestino”1, com a sua

segunda edição, lançado pela Difusão Europeia do Livro. A terceira veio em 1971,

no projeto da editora Civilização Brasileira em publicar as Obras Completas de

Oswald de Andrade, decorrência da redescoberta do autor nos anos de 1960. A

partir de então, o Miramar2 passou a ser materialmente acessível, com algumas

reimpressões. Houve também uma edição do Círculo do Livro na década de 1980.

Em 1990, o romance ganhou uma nova edição no projeto da editora Globo de

publicação das Obras Completas de Oswald de Andrade, um pouco mais completo

do que o da Civilização Brasileira, e com as sucessivas reimpressões ao longo dos

últimos anos, o Miramar é hoje um livro disponível ao público leitor.

Além da dificuldade de se encontrar um volume do Miramar por pelo menos

quarenta anos desde sua primeira edição, a recepção desta obra também não

contou com um trabalho de crítica literária consistente e contínuo, ficando restrito a

alguns poucos artigos escritos por ocasião do lançamento do romance. Sem uma

análise mais profunda da obra, os comentários se voltaram mais ao comportamento

do autor do que à sua literatura. Portanto, as Memórias sentimentais de João

Miramar cumpriram o percurso de um romance “quase clandestino”, tanto pela

escassez de exemplares do livro disponíveis para o público leitor durante quarenta

anos, como pelo desprezo da crítica especializada pela obra, até tornar-se

reconhecidamente um dos romances mais importantes da primeira fase do

Modernismo brasileiro. Para esse reconhecimento, foram fundamentais a reviravolta

dos estudos críticos literários sobre os romances de Oswald de Andrade, da qual

podemos identificar como marco inicial o ensaio “Estouro e libertação”, de Antonio

Candido, e a produção artístico-cultural que teve a obra oswaldiana como referência,

em especial a dos anos de 1960. Acrescenta-se ainda que, bem além do campo

mais específico da literatura, a produção oswaldiana tem o sentido de pensar a

cultura brasileira, inserida no mundo. Esse é um dos aspectos da sua atualidade.

1 Expressão de Antonio Candido, em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”.

2 Abreviamos o título do romance e grifamos a forma abreviada para distinguir da referência ao protagonista.

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Outra peculiaridade da obra está no fato de que toda a prosa romanesca de

Oswald de Andrade teve por traço de criação a escrita feita ao longo de muitos anos.

Querer datar com precisão o início da elaboração das Memórias sentimentais de

João Miramar é sempre um risco. Há quem diga que o autor começou a escrevê-las

em 1916, assim como quem indique o seu início no ano de 1912. O fato é que

Oswald tinha por hábito registrar anotações esparsas, escrever diários não

convencionais, e tudo isso, em certa medida, se incorporaria a sua obra. Todos

concordam, entretanto, que a versão final desse romance foi feita em 1923, ano em

que o autor passou na Europa, tão próximo aos experimentos da vanguarda a ponto

de redefinir a linguagem do romance que escrevia e reescrevia há anos. É bastante

evidente a importância desse convívio direto para a versão final das Memórias

sentimentais, como se observa ao cotejá-la com trechos de versões anteriores

publicados na imprensa.

O romance de Oswald de Andrade é constituído por 163 capítulos,

extremamente reduzidos, chegando mesmo a haver alguns com uma única frase de

poucas palavras. Essa inovação criou na crítica uma elasticidade ao se caracterizar

e denominar esses pequenos trechos, esses fragmentos, esses diminutos blocos,

até porque, além de sintéticos, há certa autonomia entre eles, o que altera a

acepção clássica de capítulo. Apesar dessas particularidades, adotaremos em nosso

trabalho a denominação “capítulo”, como fez, entre outros, Mário de Andrade no

ensaio “Oswaldo de Andrade” de 1924 (1972a), dedicado ao estudo do Miramar, e

também Samira Nahid Mesquita (1995) que comparou as Memórias sentimentais de

João Miramar com as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,

pontuando os curtos capítulos do romance machadiano. Assim, os capítulos do

romance de Oswald de Andrade seriam uma radicalização do que fora feito no

século XIX por Machado, o que demonstra o conhecimento que Oswald tinha de

nosso passado literário e a sua capacidade intelectual ao identificar os traços dos

períodos anteriores que continham valor para o século XX, ou seja, o passado que

não se encontrava estagnado, desprovido de significado diante da nova realidade

que se apresentava3. Oswald, nas Memórias sentimentais, também inovaria

3 Na conferência pronunciada por Oswald de Andrade na Sorbonne, em 1923, intitulada “O esforço intelectual

do Brasil contemporâneo”, o autor referiu-se aos romances de Machado de Assis como “nossas melhores obras

de ficção” (2011c, p. 43). Citou também Euclides da Cunha como um escritor que alargou o “horizonte do país”,

ao expandir-se para além do Rio de Janeiro.

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incorporando ao texto o aparato paratextual de um livro que costuma ter funções

pré-definidas e são extratextos, como o prefácio, a epígrafe, o título. Na obra, esse

aparato torna-se texto do romance, pois gera outros significados que extrapolam a

sua função inicial. Esses aspectos estruturais somados aos gramaticais geraram

uma linguagem vanguardista que surpreendeu e provocou forte impacto na

recepção.

O Modernismo brasileiro da primeira fase (1922-29) se fundamenta numa

proposta de renovação a partir da ruptura com as fórmulas acadêmicas, estagnadas

em suas proposições artísticas e temáticas. Nessa época, a vida se modificava, o

Rio de Janeiro e São Paulo, cada um a seu modo, cresciam e incorporavam em seu

dia-a-dia as novas técnicas dos tempos modernos. Além dos avanços tecnológicos

do transporte, da comunicação, da diversão, também no campo social havia

novidades, com o crescimento da população operária, fortemente marcada pela

imigração em São Paulo, com um passado rural oligárquico de raízes escravistas se

renovando em um presente urbano burguês conservador, com o acirramento de

conflitos políticos na esfera do poder, assim como os questionamentos aos papéis

sociais então consagrados, como o da mulher, por exemplo, que começavam a

ganhar forma. Nesse contexto, mesmo quando a arte não é explicitamente social,

observa-se que a proposta modernista não dissocia o estético do ideológico. No

“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, por exemplo, divulgado no mesmo ano da

publicação das Memórias sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade afirma

logo nas primeiras frases do texto: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de

açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”

(1978a, p. 5). Ao conferir à realidade vulgar a qualidade de estético, Oswald carrega

de sentido ideológico o texto que produz. Miramar se insere nesse contexto

moderno, provocando polêmicas por sua composição inovadora associada à figura

irrequieta do autor. Em nosso estudo, trataremos os aspectos estético e ideológico

postos em movimento e necessariamente relacionados. Sob essa perspectiva é que

nos propomos a fazer a revisão crítica da recepção desse romance.

As primeiras reações logo após a publicação das Memórias sentimentais de

João Miramar foram contraditórias: os passadistas definiram a obra como desprovida

de sentido, uma brincadeira de seu autor fanfarrão e piadista; os modernistas

elogiaram a ousadia e as inovações do texto. Um dos principais textos críticos da

época, publicado na revista Estética, em 1925, de autoria de Sérgio Buarque de

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Holanda e Prudente de Moraes, neto, identificou a fragmentação da obra como um

conceito estético atual e destacou o papel do leitor, tendo de dar organização ao

texto juntando as peças que se apresentam soltas na narrativa. No contexto da

década de 1920, as posições conflitantes diante do Miramar revelam uma obra

polêmica, assim como era também polêmico o momento histórico de sua publicação.

Não que o romance seja, ao pé da letra, mimeses dos fatos extraliterários, mas em

certo sentido há uma relação entre o literário e o extraliterário, como veremos mais à

frente.

Ainda na década de 1920, a partir das Memórias sentimentais de João

Miramar até o romance Serafim Ponte Grande, concluído em 1929 e publicado em

1933, Oswald de Andrade trilhou um percurso dentro do projeto moderno de

renovação artística publicando, além dos dois romances, os livros de poemas Pau-

-Brasil, em 1925, e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, em

1927, e os Manifestos da Poesia Pau-Brasil, em 1924, e Antropófago, em 1928. Há

nesse conjunto de obras um projeto estético e ideológico que se diferencia do

projeto dos romances da Trilogia do Exílio, cujos dois primeiros volumes foram

publicados nessa mesma década de 1920 e o terceiro saiu em 1934, como se

houvesse em Oswald de Andrade, sem clara definição, dois projetos, um de ruptura

e outro que se vincula em muitos aspectos à tradição romanesca. A escada

vermelha, terceiro romance da Trilogia, indica ainda a mudança de rumo na

produção romanesca do autor, que seria consolidada em Marco Zero, cujos dois

volumes foram escritos ao longo dos anos de 1930 e publicados em 1943 e 1945, e

se torna explicitamente ideológica quanto às questões sociais, provavelmente pela

adesão de Oswald à militância comunista e pelo contexto da década de 1930. Com

essa mudança de rumo da produção literária oswaldiana, associada à valorização do

romance social nos anos de 1930, característica da segunda fase do Modernismo

brasileiro, a prosa renovadora da primeira fase ficou esquecida pela crítica literária.

Só na primeira metade da década de 1940, surgiria um trabalho feito por um

pequeno grupo de intelectuais responsável pela revista Clima, no qual se inseria

Antonio Candido, que busca resgatar a produção oswaldiana da primeira fase do

Modernismo, articulada com a segunda fase.

O ensaio “Estouro e libertação”, de Antonio Candido, saiu em 1945, sendo um

“estudo fundamental sobre a prosa de Oswald” (CAMPOS, 1971b, p. 106). De fato,

antes de Candido, os estudos críticos realizados na década de 1920 foram mais

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pontuais, identificando inovações no campo da expressividade ou demarcando o

debate sobre a formação nacional, inclusive, em alguns casos, realçando a

elaboração de uma língua literária brasileira numa perspectiva nacionalista, que

teve, em certa medida, um peso significativo para a primeira fase modernista. Deste

período, mesmo sem leituras aprofundadas sobre Memórias sentimentais de João

Miramar, podemos destacar como produtores de artigos críticos que trataram desse

romance Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto, Mário de Andrade,

Paulo Prado, Menotti del Picchia, Martins de Almeida, o jovem Carlos Drummond de

Andrade, entre outros. Na década de 1930, como já dissemos, a produção literária

da primeira fase modernista foi posta de lado. Portanto, só na década de 1940, num

esforço praticamente isolado do grupo Clima, se tentou fazer uma nova leitura da

obra de Oswald de Andrade, com destaque para a análise de Antonio Candido.

Podemos dizer que esse trabalho de Candido publicado em 1945 foi revisto e

atualizado em 1970, com o ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de

Andrade”. O crítico propõe, então, uma análise conjunta de Memórias sentimentais

de João Miramar e Serafim Ponte Grande, denominando os romances de “o par

ímpar”, pela rebeldia, experimentação e novos percursos que ambos descobrem.

Dentre as observações de Candido está o estilo baseado no choque, na surpresa,

na descontinuidade, na tentativa de simultaneidade, além de salientar a diretriz

satírica das obras. Este último é um aspecto importante, pois ao enfatizar a sátira na

composição do texto, Antonio Candido realiza uma leitura da obra considerando o

ideológico. Ou seja, quando a sátira recai, por exemplo, sobre o “empolado

palavrório”4 dos discursos provincianos, portanto oposta à fórmula oswaldiana, há

uma crítica ideológica sendo exercitada, porque a partir da sátira ao estético

acadêmico, mesmo que não haja um engajamento político-social convencional,

questiona-se também o ambiente social no qual prolifera aquele tipo de discurso.

Assim, Antonio Candido resgata a proposta modernista que movimenta a renovação

nos campos estético e ideológico.

Outro importante trabalho de revisão da obra de Oswald de Andrade foi feito

pelos poetas concretos. Destacamos de Haroldo de Campos dois ensaios

publicados em 1964 que tratam das Memórias sentimentais de João Miramar,

“Miramar na mira” e “Estilística miramarina”, e um sobre Serafim Ponte Grande,

4 Expressão de Oswald de Andrade, no artigo “Modernismo atrasado”.

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intitulado “Serafim: um grande não-livro”, que teve a sua versão final publicada em

1971, na segunda edição do respectivo romance. Além desses textos, Haroldo

produziu outros que saíram na imprensa, em Suplementos Literários. Esse conjunto

de ensaios e mais os trabalhos críticos de Antonio Candido constituem ainda hoje as

principais referências para todos os estudos posteriores sobre os dois romances de

Oswald de Andrade que formam o “par ímpar”, mesmo quando tais estudos seguem

linhas críticas diferentes das desses autores.

Enquanto em “Estilística miramarina” Haroldo de Campos buscou decifrar a

linguagem do romance de Oswald de Andrade apoiado no estruturalismo de Roman

Jakobson, em “Miramar na mira”, o crítico procurou recuperar a importância dessa

obra relacionando-a com a de grandes autores universais no campo moderno,

James Joyce e Thomas Mann, conferindo à obra oswaldiana, dessa forma, um

status de cânone na história da literatura brasileira. O movimento do crítico foi

buscar no Manifesto Futurista de Marinetti uma origem comum para as obras dos

três escritores. A leitura de Haroldo de Campos destaca as inovações estéticas,

ressaltando o estilo telegráfico, a técnica cinematográfica, a influência das artes

plásticas, da vanguarda europeia, da estética do fragmentário, como um novo valor.

Entretanto, esse novo valor não movimenta apenas o campo estético, mas também,

necessariamente, categorias ideológicas, na medida em que estabelece novos

horizontes nas expectativas do que seja a arte, produzida num novo contexto em

que as técnicas industriais estão presentes no cotidiano das cidades que ganham

uma nova dinâmica, sobretudo após a Primeira Grande Guerra.

Outros autores também realizaram estudos sobre a obra oswaldiana que são

fundamentais. Para a introdução desse nosso trabalho, elegemos mais três

estudiosos da literatura, que somados aos dois já apresentados, formam um

conjunto com o propósito de delinearmos a fortuna crítica em torno do Miramar.

Alfredo Bosi, cujo conjunto da obra tem grande peso no cenário dos estudos

literários, afirmou ter Oswald de Andrade representado “a ponta de lança” do espírito

da Semana de Arte Moderna, pois foi “quem assimilou com conaturalidade os traços

conflitantes de uma inteligência burguesa em crise nos anos que precederam e

seguiram de perto os abalos de 1929/30” (1997, p. 403). Portanto, as questões

ideológicas estão nitidamente postas. Segundo o crítico, Oswald, com seu espírito

inquieto, acabou por superar a sua formação belle époque por arriscar-se, o que

teve por consequência, se podemos assim dizer, uma instabilidade. Se por um lado

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essa atitude significou a libertação, por outro gerou uma obra desigual, em que se

encontra, principalmente no romance, o melhor e o pior postos lado a lado, conforme

Antonio Candido já havia registrado. Bosi observou ainda que muito do que se

afirmou sobre Oswald esteve condicionado a generalizações de opções transitórias

do autor, o que não é significativo para um estudo mais aprofundado da sua

produção literária.

Em relação às Memórias sentimentais de João Miramar, o crítico demarca

que Miramar e Serafim satirizam “o Brasil da „aristocracia‟ cafeeira aburguesada nas

grandes capitais [...], mas nem uma nem outra deixa de ser o reflexo literário da

mesma „modernidade‟ mundana a que o escritor pertencia como filho (pródigo) da

classe que ironiza” (1997, p. 405). Essa afirmação, assim como a citada

anteriormente, considera a presença do ideológico na obra oswaldiana, pois

constata a intenção do autor em denunciar o grupo social ao qual pertence, valendo-

-se para isso do recurso da ironia. A figura de Miramar, contemplativo no próprio

nome, com vistas postas para o Atlântico, é representativa da aristocracia cafeeira –

mesmo que através de sua mulher, descendente rica de proprietário de cafezais – e

não esconde o comportamento dessa classe em defesa da manutenção do status

quo.

Quanto ao estilo das Memórias sentimentais, Alfredo Bosi sugere a

aproximação do Miramar e da poesia da Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade,

com “o telegrafismo das rupturas sintáticas, do simultaneísmo, da sincronia, das

„ordens do subconsciente‟, dos neologismos copiosos” (1997, p.406). Assim, o crítico

põe em evidência a relação das duas obras para afirmar em Miramar a continuidade

de procedimentos poéticos. E complementa dizendo da composição revolucionária

do romance: “são capítulos-instantes, capítulos-relâmpagos, capítulos-sensações”

(1997, p. 406). Oswald de Andrade trabalha no Miramar a colagem rápida, a

simultaneidade, tal como as “palavras em liberdade” reivindicadas no “Manifesto da

Poesia Pau-Brasil”. A visão crítica de Alfredo Bosi se fundamenta nas leituras de

Antônio Cândido e Haroldo de Campos.

O norte-americano Kenneth Jackson dedicou-se em seu doutoramento,

defendido em 1972, ao estudo da prosa vanguardista de Oswald de Andrade –

Miramar e Serafim –, no qual reconhece que “a inovação de Oswald representa uma

rejeição, não apenas a estilos artísticos precedentes, mas também ao contexto

social, cuja expressão teve ligação estreita com aqueles estilos”. E complementa a

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sua avaliação afirmando que as críticas contidas no romance expressam “a crítica e

a rejeição de Oswald de Andrade ao seu próprio passado” (1978, p. 30). Para

Jackson, Miramar representa o autor extraliterário, como um porta-voz, pois através

do personagem, Oswald denuncia a realidade de seu tempo, das figuras medíocres

que faziam aquele momento histórico. De forma geral, as personagens do romance

representam figuras do mundo “real” que são postas em julgamento crítico pelo

ridículo das situações em que são retratadas. É o caso de Machado Penumbra, por

exemplo, com seus discursos empolados, pouco práticos, à moda dos discursos

acadêmicos dos intelectuais de província. A ironia recai não apenas sobre o discurso

vazio, mas também sobre as normas sociais, e até mesmo sobre os modos

incompetentes de fazer negócio. Assim Oswald se mostra um crítico de seu tempo,

captava na vida os seus personagens, moldando-os conforme a sua sensibilidade.

As pessoas que representavam obstáculos para a modernidade não eram poupadas

de sua sátira corrosiva.

Há uma outra linha na análise de Kenneth Jackson sobre as Memórias

sentimentais de João Miramar que lida com o processo de conscientização do

personagem. O crítico vê no texto uma “leitura horizontal” e outra “vertical”. A

primeira se constitui na experiência cronológica ou histórica do personagem, ou seja,

apesar de não haver um enredo evidente na superfície do texto, os episódios podem

ser estruturados em “três grandes grupos de fragmentos, organizados em torno do

„fio-condutor‟ da vida de João Miramar” (1978, p. 50), os quais correspondem à

infância, incluindo-se aí o período escolar de Miramar, à viagem do personagem à

Europa e à tentativa de sua reintegração na sociedade paulista depois da viagem. A

“leitura vertical” é aquela que se faz a partir da descrição pessoal do narrador de

suas experiências decisivas que são apresentadas em episódios fechados em si

mesmo, ou seja, cada episódio contém uma experiência completa. Dessa forma, é

possível perceber a formação da consciência crítica de Miramar ao longo do

romance, segundo a abordagem de cada episódio. Daí Jackson defender a tese de

que Miramar se apresenta de três formas: uma primeira de consciência ingênua em

que a narração é “aparentemente sincera, direta e viva” (1978, p. 40); uma outra

ingressando na idade madura, “cuja consciência cresce através do acúmulo de

memórias” (1978, p. 41); e uma terceira em que Miramar já maduro narra as suas

memórias. Portanto, o acúmulo de memórias, à medida que os episódios são

relembrados ao longo da elaboração do livro, cria-lhe consciência e faz o narrador

Page 19: Memórias sentimentais de João Miramar · na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar Everardo Borges Cantarino Dissertação de Mestrado apresentada

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dar-se conta de que, em relação à sua vida, “é incapaz de mudar as direções ou

alterar o seu próprio caráter” (1978, p. 41). Os três narradores Miramar, com “níveis

de consciência e atitudes críticas diferentes no desenrolar da história da vida de

João Miramar” (1978, p. 42), constroem um percurso até a chegada do momento da

desistência do personagem em continuar a escrever as suas memórias,

provavelmente pela aquisição da consciência dada pelo processo da escrita que lhe

fez compreender a sua impotência diante da vida. Então Miramar se retira do

contexto social. Kenneth Jackson é leitor de Cândido e Campos, mas propõe

aspectos novos na recepção das Memórias Sentimentais de João Miramar.

No estudo intitulado Totens e tabus da modernidade brasileira, Lucia Helena,

ao tratar da prosa de ficção oswaldiana, defende a tese da duplicidade dessa

produção diferenciada pelos procedimentos miméticos. A partir dos conceitos de

símbolo e alegoria, respectivamente localizados nos polos da representação e da

construção da mimesis, estariam de um lado a Trilogia do exílio e Marco zero, que

teriam uma configuração “mimética de representação”, e de outro lado Miramar e

Serafim, como “mimesis de produção”. Dito de outra forma, à Trilogia e ao Marco

zero caberia uma dimensão simbólica porque essas obras reproduzem na linguagem

uma realidade extraliterária como uma representação direta, ou nas próprias

palavras de Lucia Helena, tomam “o real e o ficcional como uma totalidade

indiferenciada” (1985, p. 103). Já ao Miramar e ao Serafim caberia uma dimensão

alegórica da mimesis, pois esses romances produzem na linguagem uma realidade

literária, ou seja, a mimesis se apresenta “como mediação dialética entre o real e o

imaginário” (HELENA, 1985, p. 104), em que se nega a “aparência de realidade”

enquanto continuidade do real espelhado simetricamente no texto literário.

Isso ocorre porque a obra em estilo fragmentário não corresponde ao fluxo

linear e histórico, pois não tem comprometimento com a causalidade cronológica.

Como consequência para a recepção, os fragmentos descontínuos acabam por

frustrar as expectativas do leitor que estava habituado à fruição passiva – aquela em

que a recepção “se deleita frente a um texto que lhe oferecesse um mundo „similar‟

ao seu” (HELENA, 1985, p. 94) –, pois agora o leitor se depara com os saltos das

lembranças que parecem aleatórios, e acabam por dar uma outra feição à prosa,

mais poética. Assim, esses procedimentos novos do estilo moderno, ao diluírem as

fronteiras da prosa e da poesia, rigidamente demarcadas na concepção acadêmica,

não apenas geram uma ruptura com o academicismo ao criticar seus valores

Page 20: Memórias sentimentais de João Miramar · na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar Everardo Borges Cantarino Dissertação de Mestrado apresentada

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estéticos, como também colocam em xeque as concepções de vida representadas

pelas formas tradicionais de arte. Dessa maneira, Oswald de Andrade, cumprindo o

programa modernista, denuncia pela arte que a vida mudou, já não é mais aquela

postulada pelos textos acadêmicos. O trabalho crítico de Lucia Helena além de

apoiar-se em conceitos desenvolvidos por Walter Benjamin e Costa Lima, é

referenciado nos estudos de Antonio Candido, e também de Haroldo de Campos e

Kenneth Jackson.

Nosso propósito, conforme já dissemos, em apresentar alguns aspectos de

estudos críticos realizados por Antonio Candido, Haroldo de Campos, Alfredo Bosi,

Kenneth Jackson e Lucia Helena, foi o de delinear a fortuna crítica em torno do

Miramar, e que no desenvolvimento de nosso trabalho aprofundaremos. Apontamos

também, nessa introdução, a nossa linha de análise no que diz respeito à

movimentação dialética do estético e do ideológico, como tentativa de montar uma

visão do Miramar em relação à sociedade, ao país, à época, a partir do que é

externo à obra e se torna elemento interno em sua composição vanguardista. Nesse

caminho, faremos uso também da contribuição de aparatos historiográficos com o

propósito de nos auxiliar na compreensão do enredo. Além dos autores acima

citados, são também nossas referências os trabalhos de Roberto Schwarz, Pascoal

Farinaccio, Samira Nahid Mesquita, Mário de Andrade, Mário da Silva Brito, Walter

Benjamin, Mikhail Bakhtin, Nicolau Sevcenko, entre outros. Pretendemos, com esse

nosso estudo, contribuir na busca de uma melhor compreensão da obra de Oswald

de Andrade, hoje reconhecidamente um dos pilares do Modernismo brasileiro,

apesar de ainda pouco pesquisado diante do volume e da complexidade de sua

obra. Mas nem sempre o autor foi assim reconhecido. Houve o tempo em que

Oswald era suprimido de compêndios escolares e antologias dedicadas ao

movimento modernista. Portanto, o reconhecimento do valor do trabalho de Oswald

de Andrade é fruto das pesquisas sobre as diversificadas produções do autor.

Em suma, nosso objetivo geral é investigar o romance Memórias sentimentais

de João Miramar, escrito por Oswald de Andrade, tentando compreender o ponto de

vista da crítica à sociedade brasileira esboçada na obra. Para tal, nos fazemos uma

pergunta inicial: Como João Miramar, representativo da oligarquia cafeeira paulista,

da mentalidade conservadora dessa classe, escreveu um livro cuja linguagem e

projeto são tão avançados, tão arrojados? A tentativa de responder a essa pergunta

é o propósito mais específico de nosso trabalho. De certa forma, João Miramar

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concentra em si a peculiar combinação de avanço e atraso, de moderno e arcaico,

de vanguarda e retaguarda, ponto central do Modernismo brasileiro, considerando o

contexto do Modernismo de São Paulo presente no Miramar.

Quanto à organização desse estudo, iniciaremos por uma revisão crítica, o

capítulo dois, tendo como “âncora” os estudos realizados por Antonio Candido e

Haroldo de Campos. Esses dois autores são ainda referências importantes para as

análises das Memórias sentimentais de João Miramar, nosso objeto de estudo. No

capítulo seguinte, abordaremos dois temas vitais para a nossa empreitada: o

nacionalismo e o radicalismo. O primeiro, trata de uma questão que envolveu todos

os modernistas, mesmo que prevalecessem pontos de vista distintos e polêmicos.

Essa questão precisa ser, dentro da medida de nosso trabalho, estudada em relação

ao nosso autor, sem a pretensão de esgotá-la. O segundo tema, radicalismo, será

abordado a partir de um estudo de Antonio Candido no qual o autor busca

caracterizar o comportamento de membros da classe dominante que se voltam

politicamente contra a própria classe a que pertencem. Talvez aí possamos

vislumbrar alguma resposta à nossa pergunta inicial.

Nos capítulos quatro e cinco, faremos a análise mais específica do Miramar.

Iniciaremos, no quarto capítulo, com o estudo do prefácio escrito por Machado

Penumbra e da primeira infância de João Miramar, tentando reconhecer o estilo do

autor ficcional articulado ao contexto em que está inserido. Como as Memórias

sentimentais, além do texto narrativo que cabe ao narrador, contam com diferentes

discursos dos personagens, o que constitui um “cadinho” com uma variedade de

gêneros textuais, elegemos as cartas pessoais, escritas ficticiamente por

personagens e publicadas nas Memórias de Miramar, para assim aprofundarmos a

investigação sobre a composição desse romance, buscando uma leitura de

costumes que movimentam o enredo, a partir dos discursos de personagens. Nosso

propósito é tentar entender alguns métodos do escritor ficcional João Miramar para,

dessa forma, alcançarmos uma melhor compreensão da obra oswaldiana. No quinto

capítulo, desenvolveremos estratégias de análise com o objetivo de tentar responder

de forma mais sistemática à pergunta inicial de nosso estudo. Isso não significa dizer

que buscamos uma resposta pragmática e definitiva, o que seria um erro. Por isso

pretendemos articular questões vinculadas à moral da elite paulista ao estilo

miramarino. No último capítulo de nosso trabalho, a “Conclusão”, o nosso propósito

será analisar o último capítulo do romance de Oswald de Andrade, resgatando

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alguns aspectos desenvolvidos ao longo em nosso trabalho, à guisa de uma

conclusão, além de apontar possíveis desdobramentos de nossa pesquisa.

Enfim, esse é um estudo que se propõe a acrescentar ao rol de interpretações

da obra oswaldiana mais uma contribuição, que se somará para o entendimento

global das Memórias sentimentais de João Miramar. Nosso enfoque buscará estudar

alguns mecanismos desse romance para a representação da mentalidade

conservadora da classe hegemônica na São Paulo do início do século XX, cuja

realidade urbana se redesenhava.

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2 ESTUDOS SOBRE AS MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR

2.1 MIRAMAR E SERAFIM: “O PAR ÍMPAR”

“Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino, pelas que passa nos

contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro” (1970b, p. 35).

Assim Antonio Candido inicia o ensaio “Estouro e libertação”, escrito em 1944,

refundindo artigos de 1943, e publicado no livro Brigada ligeira, que saiu em 1945.

As datas interessam na medida em que demarcam o início de uma virada no campo

da crítica literária, ainda que fosse um esforço quase solitário na época, para a

tentativa de compreensão do conjunto da prosa de ficção produzida por Oswald de

Andrade. Os artigos que serviram de base para o ensaio foram escritos no mesmo

ano da publicação do primeiro volume de Marco zero, obra aguardada e cercada de

expectativas como uma obra de superação, promessa do escritor de um romance

maior do que os escritos anteriormente. Com Marco zero, Oswald de Andrade

pretendia atingir um público leitor mais amplo e se inserir como romancista social de

um Brasil histórico e concreto do pós 1930, não mais o Brasil mítico da fase de

afirmação do Modernismo. As frases iniciais do ensaio nos parecem conter certa

ambiguidade quanto ao destinatário para dar conta de dois propósitos do crítico:

demarcar com firmeza a sua posição que identifica haver dificuldades da crítica

literária diante da obra de Oswald de Andrade – aspecto que interessa ao nosso

estudo –, como também buscar, com sutileza, uma interlocução com o escritor que

havia publicado o artigo intitulado “Antes do Marco Zero”5, no qual rebate duramente

os artigos de Candido que serviram de base para o ensaio, procurando assim o

crítico atrair o escritor para o campo da crítica literária e evitar o campo da polêmica

pessoal.

Em certa medida, ambos os propósitos foram alcançados. No ensaio

“Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, escrito em 1970, Candido, “num

tom de quem escreve sobre o que também viveu”, conforme apontou Lucia Helena

(1985, p. 82), relata o encontro casual que tivera com Oswald na Livraria Jaraguá

após a publicação de Brigada ligeira, em que a situação conflituosa entre os dois

fora desfeita por iniciativa do escritor, que reconhecera a atitude objetiva do jovem

5 Encontra-se esse artigo em Ponta de Lança, livro que reúne textos de Oswald de Andrade publicados na

imprensa no ano de 1943 e três conferências pronunciadas neste e no ano seguinte.

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crítico. Por sugestão de Oswald de Andrade, passaram então a consolidar uma

amizade em uma convivência mais íntima que durou até o falecimento do escritor,

em 1954. Ainda nesse mesmo ensaio, Antonio Candido reconheceu que os artigos

de 1943 possuíam erros e havia “aquela agressividade misturada de

condescendência que parece tão oportuna aos vinte e cinco anos” (1970a, p. 61),

que justificavam a irritação de Oswald. Mas deixemos o terreno pessoal e voltemos

ao campo literário, ao ensaio “Estouro e libertação”, cujos acertos e erros foram, em

certa medida, o ponto de partida para estudos que outros críticos fariam da prosa de

ficção de Oswald de Andrade.

A produção crítica sobre os romances de Oswald de Andrade feita até então

pelos contemporâneos do escritor, salvo algumas exceções situadas na década de

1920, assinalava a incompreensão da obra oswaldiana por falta de um critério

metodológico em que o texto literário fosse o objeto central da análise. Por isso era

fácil a esses textos críticos perderem-se por outros caminhos desviantes. Antonio

Candido escreveu que para a crítica literária comprometida com a investigação da

obra oswaldiana seria necessário “estabelecer a seu respeito juízos cuidadosamente

formados, e não oriundos das conversas de café ou da informação apressada. Com

efeito, é desta última forma que tem sido mais ou menos julgado Oswald de

Andrade” (1970b, p. 35). Em suma, havia uma omissão da crítica especializada da

época em que fora publicado o ensaio “Estouro e libertação” em lidar com as

inovações de caráter vanguardista articuladas por Oswald de Andrade em sua

literatura, substituída em relevância pelo personagem em que o escritor se

transformara. Muito provavelmente o público não conhecesse a literatura de Oswald

de Andrade, mas as peripécias do personagem, suas piadas, a fama de ter escrito

obscenidade, entre outros fatos romanceados de sua vida. Mas não era só isso.

Somam-se a esse aspecto apontado por Antonio Candido dois outros reducionistas:

a abordagem impressionista do trabalho crítico dos anos de 1930 limitada aos

cânones do gênero e o critério nacionalista da crítica produzida pelos próprios

escritores modernistas como categoria judicativa da obra analisada (FARINACCIO,

2001), que veremos mais à frente.

Apontada a falha na análise da obra oswaldiana, Antonio Candido

desenvolveria o seu trabalho procurando compreender a obra ficcional de Oswald de

Andrade a partir de um método em que busca construir a análise crítica tendo por

referência principal o texto literário enquanto uma representação reduzida do “real”,

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em que não se descarta nem o contexto nem a estrutura da obra. Essa metodologia

norteia o trabalho crítico de Antonio Candido como um todo, seja essa

representação de ordem mimética ou não. Para tentarmos explicitar de forma

sucinta esse método de Candido, antes de prosseguirmos o nosso texto, recorremos

aos seus estudos publicados em O discurso e a cidade. Nos ensaios da primeira

parte desse livro, Antonio Candido analisa textos realistas, em que os aspectos

sociais e históricos estão, em certo sentido, explicitados. O crítico trata esses textos

observando o processo pelo qual “a realidade do mundo e do ser se torna, na

narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja

estudada em si mesma, como algo autônomo” (CANDIDO, 2010b, p. 9). Dessa

forma, os materiais escolhidos no mundo extraliterário pelos autores são

organizados esteticamente e submetidos a leis próprias, diferentes das leis do

mundo e da vida, mas fazem parecer ao leitor que a realidade do mundo exterior à

obra está presente no texto literário. Nas palavras do próprio crítico:

“Esta dimensão [a de estar em contato com realidades vitais] é com certeza a mais importante da literatura do ponto de vista do leitor [...]. O crítico deve tê-la constantemente em vista, embora lhe caiba sobretudo averiguar quais foram os recursos utilizados para criar a impressão de verdade. De fato, uma das ambições do crítico é mostrar como o recado do escritor se constrói a partir do mundo, mas gera um outro mundo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária. Se conseguir realizar esta ambição, ele poderá superar o valo entre social e estético, ou entre psicológico e estético, mediante um esforço mais fundo de compreensão do processo que gera a singularidade do texto” (2010b, p. 9).

Nessa perspectiva, o que interessa ao crítico é o resultado final, ou seja, o

texto literário. Na segunda parte do livro, Antonio Candido analisa textos que

buscam transfigurar a realidade. Sem referências da “realidade documentária”,

esses textos enveredam por uma livre fantasia, “criando mundos arbitrários” sem

referências históricas e sociais explícitas, mas “nos quais se infiltram entretanto

dramas e angústias de civilizações que conhecemos, no passado e no presente”

(CANDIDO, 2010b, p. 11). O crítico mostra que esses textos são capazes, como os

da primeira parte, “de transmitir um profundo sentimento da vida” até mesmo pela

liberdade que conquistam penetrando, assim, em certos aspectos do mundo “real”

exatamente “por não terem compromisso documentário, mas obedecerem sobretudo

à fantasia, paradoxo inerente à literatura” (2010b, p. 10). Daí o crítico conclui que os

textos, em seu propósito de convencimento do leitor, dependem “mais da sua

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organização própria que da referência ao mundo exterior, pois este só ganha vida na

obra literária se for devidamente reordenado pela fatura” (2010b, p. 10). Antes de

serem ou não verossímeis, os textos de ambas as partes do livro oferecem ao leitor

uma impressão de verdade porque são compostos coerentemente. Feito esse

parêntese, voltemos ao ensaio de 1945.

Como dizíamos, Antonio Candido priorizou o texto literário como objeto de

sua análise. Dessa forma, em “Estouro e libertação”, todos os julgamentos de

caráter pessoal, positivos ou negativos, que cercavam o escritor Oswald de Andrade

foram afastados. Esses julgamentos, oriundos da vigorosa presença de Oswald,

contribuíam para a constituição do personagem no imaginário público e acabavam

por sobrepor o polemista e inveterado piadista ao texto literário, conduzindo a uma

análise deformada da obra oswaldiana. Assim, temos uma primeira contribuição

para a análise da obra oswaldiana, que foi importante até para desfazer a falsa

suposição, em voga naqueles tempos, de ser Oswald um escritor fanfarrão, pouco

dedicado aos estudos, voltado sobremaneira à pilhéria. Nessa caracterização

depreciativa pode ser vista uma estratégia de isolamento de Oswald de Andrade

para depois colocá-lo no esquecimento pelo incômodo que o escritor provocava às

forças hegemônicas. O próprio Oswald denunciara tal estratégia:

Criou-se então a fábula de que eu só fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio tentou encobrir a ação pioneira que dera o Pau-Brasil, donde no depoimento atual de Vinicius de Moraes, saíram todos os elementos da moderna poesia brasileira. Foi propositadamente esquecida a prosa renovada de 22, para a qual eu contribuí com a experiência das Memórias sentimentais de João Miramar.

6 (1971b, p. 31).

Posteriormente, após a desmistificação do personagem, a vida do escritor passaria a

fornecer elementos que auxiliam a compreensão da obra literária oswaldiana,

sobretudo a que se realizara apoiada nas experiências próprias vivenciadas pelo

escritor.

Uma segunda contribuição da análise de Antonio Candido, de significativa

relevância até hoje, foi evitar as armadilhas da cronologia baseada nas datas de

publicação das obras, já que os romances de Oswald de Andrade foram escritos por

períodos relativamente longos e muitas vezes concomitantes, e também publicados

em tempo intermitente, que entrecruzava volumes de diferentes faces do escritor.

6 Artigo intitulado “Fraternidade de Jorge Amado”.

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Tendo em vista essa característica, Candido estabeleceu, a partir do texto literário, o

seu estudo crítico em três faces distintas da produção romanesca de Oswald de

Andrade: a Trilogia do exílio, o par Miramar-Serafim e Marco zero. Antonio Candido

trata em “Estouro e libertação” essas faces como fases de uma evolução, com

contradições mas também coerências. Segundo o crítico, a primeira fase tem por

elemento norteador a “atitude católica e pós-parnasiana”, sendo constituída pelos

volumes Os condenados, publicado em 1922, A estrela do absinto, em 1927, e A

escada vermelha, 1934 – esses os títulos das primeiras edições, assim como o

primeiro dado ao conjunto, que passaram por alterações ao longo do processo de

escrita e das publicações, que para o nosso estudo não interessa detalhar. A

segunda fase foi demarcada pelo crítico por ter procedimentos completamente

diferentes, opostos mesmo, se cotejados com a primeira fase, desde a linguagem,

voltada para a sátira social, até a atitude literária, em que os conceitos então

definidores da “boa” obra artística são completamente desconsiderados, e tudo

estruturado num tom de demolição, de subversão de valores. Constituem a segunda

fase os romances Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, e

Serafim Ponte Grande, em 1933. A terceira fase seria, para Antonio Candido, um

tipo de síntese do conflito entre as duas linhas anteriores, sob a inspiração da

realidade sócio-política da década de 1930. As contradições da diretriz católica da

primeira fase diante da rebeldia anárquica da segunda fase alcançariam uma síntese

socialista, decorrência da hegemonia do romance social, da arte social, dos debates

da vida política daqueles anos. Em linhas gerais, a intenção do escritor nessa fase

seria proceder ao inventário da burguesia decadente, para assim contribuir com os

preparativos da revolução social. No entanto, para Candido, o projeto literário,

apesar de elaborado sobre consistentes dados históricos, apresenta muitas falhas

de composição. Do projeto inicial de Marco zero com cinco volumes, apenas dois

foram escritos e publicados: A revolução melancólica, que saiu em 1943, e Chão,

publicado em 1945. Este último volume não foi estudado pelo crítico em “Estouro e

libertação”. Ele saiu um pouco antes da publicação de Brigada ligeira, mas após a

elaboração do ensaio, sem que disto implicasse alguma alteração na análise de

Antonio Candido.

Essa organização da obra romanesca de Oswald de Andrade em três faces,

evitando a cronologia das publicações, possibilitou a sua compreensão numa

perspectiva literária sem que o ziguezague do percurso do autor confundisse as

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análises. Assim foi possível identificar e respeitar as contradições que eram do

próprio Oswald de Andrade, e valorizar sobremaneira o que havia de muito especial

na produção daquele conjunto de romances. A alternância da Trilogia – com a

presença na literatura das concepções religiosas maniqueístas entre o bem e o mal,

sobretudo nos dois primeiros volumes, ou reflexos de um esteticismo burguês,

consequências da formação a que fora submetido o escritor – com os protestos

virulentos do par Miramar-Serafim – uma tentativa de libertação – pode ser mediada

como se pela contradição Oswald efetuasse uma busca. Dessa forma, ao invés de

fixar o que havia de maior contra o que existia de menor na produção literária

oswaldiana, Antonio Candido, em seu procedimento analítico, valorizou o jogo

dialético que o levou a apontar o par como o melhor da prosa de ficção de Oswald

de Andrade, acima mesmo de Marco zero, cuja publicação, conforme já dissemos,

era apresentada pelo autor como a obra que sobrepujaria as demais de sua

produção romanesca. Em suma, das três faces, Antonio Candido destacou, pelas

suas qualidades literárias, o par Miramar-Serafim como a melhor realização no

conjunto da obra do romancista Oswald de Andrade.

Ainda, no ensaio publicado em 1945, o crítico apontou Memórias sentimentais

de João Miramar como um livro mais bem realizado do que Serafim Ponte Grande,

conceito que seria revisto no ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de

Andrade”. Essa nova posição do crítico foi tomada em decorrência do estudo feito

por Haroldo de Campos de Serafim Ponte Grande. Apoiado em novas perspectivas

para a análise literária, dadas pela mudança dos métodos de abordagem do texto,

Haroldo escreveria uma primeira versão do ensaio dedicado à análise dessa obra

com o título “Serafim: um grande não-livro”, publicado no Suplemento Literário de O

Estado de São Paulo, em final de 1968. Três meses depois, em março de 1969, o

poeta e crítico publicaria no mesmo Suplemento Literário um estudo ampliado,

abordando com mais detalhes as grandes unidades sintagmáticas de Serafim Ponte

Grande, sob o título “Serafim: análise sintagmática”. Finalmente, no volume

publicado pela Editora Civilização Brasileira, em 1971, que reuniu a terceira edição

de Memórias sentimentais de João Miramar e a segunda edição de Serafim Ponte

Grande, saiu o estudo definitivo de Haroldo de Campos com o mesmo título da

primeira versão, o qual expressa a retomada que Campos fez da concepção de

Candido sobre Serafim apresentada em “Estouro e libertação”, quando este tratou

tal romance como “fragmento de grande livro”. Entretanto, ao retomar o conceito de

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Antonio Candido, Haroldo de Campos propõe recolocá-lo de outra forma: “o Serafim

é um grande não-livro de fragmentos de livro” (1971b, p. 107).

Oswald de Andrade, confirmando as primeiras frases do ensaio “Estouro e

libertação”, passara mais uma rasteira em um crítico. Não há qualquer demérito

nessa afirmação para com Antonio Candido, que reconsiderou o seu juízo de vinte e

cinco anos atrás em decorrência de uma análise mais bem aparelhada, feita anos

depois, quando a teoria literária praticada no Brasil em muito havia evoluído. Nas

palavras de Antonio Candido:

Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicional da unidade de composição, o princípio estabelecido por Aristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor de formas ainda mais drásticas de descontinuidade estilística. (1970a, p. 84)

Ou seja, a estrutura de Serafim Ponte Grande havia sido considerada pelo crítico em

“Estouro e libertação” como o ponto frágil do romance, porque, naqueles tempos,

Antonio Candido ainda tinha como referência de gênero uma estrutura ideal, da qual

Serafim Ponte Grande se afastara extraordinariamente. A novidade da análise feita

por Haroldo de Campos foi perceber que a força de Serafim Ponte Grande estava

exatamente na sua estrutura, por colocar em discussão o próprio gênero romance, e

num sentido mais amplo a própria prosa, por estar dotado de uma função

metalinguística.

O procedimento de Oswald de Andrade em Serafim Ponte Grande foi, a partir

da colagem de variados gêneros textuais, sendo que nenhuma dessas formas tenha

se tornado protagonista no esquema narrativo, construir um livro com fragmentos de

livros cujas narrativas seguem estruturas padrões, mas que rearranjados em um

novo conjunto, articulam uma outra estrutura que se distancia completamente de

qualquer estrutura ideal, e assim exige do leitor uma atuação efetiva para a

realização da leitura, dando sentido ao que parece caótico. Esse último aspecto

demonstra que Oswald de Andrade se alinha ao que havia de mais experimental na

produção artística da época, e que só muitos anos depois chegou à teoria literária

produzida no Brasil, consolidada com a teoria da recepção. A técnica da

fragmentação ao estilo cubista, ou metonímico, conforme denominação de Haroldo

de Campos (2010), realiza-se em Serafim Ponte Grande na estrutura geral da obra,

desarticulando o gênero romance, indo, portanto, para além do que Oswald fizera

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nas Memórias sentimentais de João Miramar, em que esse estilo ocorre na estrutura

sintática das frases e o projeto se compõe como um livro fragmentário, com feição

de uma antologia dele próprio. Nessa perspectiva, Oswald radicalizou o projeto

literário iniciado nas Memórias sentimentais, se embrenhando por outras invenções.

Se em “Estouro e libertação” há erros, há também importantes acertos, como

a afirmação do valor literário do par Miramar-Serafim, enquanto romances maiores

de Oswald de Andrade. As razões que conduziram o crítico a essa definição se

encontram no ensaio formuladas dentro da dinâmica que relaciona e compara as

três faces da prosa de ficção de Oswald de Andrade. Temos, portanto, de pinçar do

texto os aspectos mais específicos das Memórias sentimentais de João Miramar e

Serafim Ponte Grande, que possam nos orientar sobre os critérios de Candido para

eleger o par como os romances maiores. Comecemos com a seguinte afirmação de

Antonio Candido: “Antítese da atitude parnasiana, Serafim se junta às Memórias,

formando ambos a fase da negação” (1970b, p.45). Negação a quê? À atitude

parnasiana, conforme explicitado no texto. Essa atitude, entretanto, não diz respeito

apenas ao estilo, apesar de considerado sobredeterminante pela crítica. Sem negar

essa abordagem – a modernização da linguagem foi enfatizada pelos próprios

modernistas dos anos de 1920 –, numa perspectiva histórica, considerando a

combinação da linguagem moderna com o novo espaço-tempo da cidade que

crescia e se modificava, pode-se observar a negação tanto aos elementos dos

estilos literários do passado estagnado, que insistiam em sobreviver na literatura

brasileira mesmo que combatidos pelo movimento modernista, como também ao

contexto social da burguesia que referendava aquela literatura passadista, em

anacronismo com o novo espaço-tempo citadino. Entretanto deve-se identificar que

as críticas sociais estruturadas em Miramar “são pessoais ao invés de doutrinárias,

compatíveis com a linha de crítica individualista” (JACKSON, 1978, p. 31), o que era

comum entre os modernistas da primeira fase. Talvez por isso Machado Penumbra,

em seu prefácio, não se refira a uma crítica social, mas a um painel de eventos

tratado de um ponto de vista individual: “Memórias Sentimentais – por que negá-lo?

– é o quadro vivo de nossa máquina social que um novel romancista tenta

escalpelar” (1971a, p. 10-11). A “fase da negação” se consagra pela originalidade do

par, o que não ocorre com a Trilogia, que contém ainda muitos aspectos

tradicionalistas, além de lhe faltar o tom demolidor e subversivo da sátira e do

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humor. Dessa forma, Miramar e Serafim apontam de fato para o novo, estilística e

ideologicamente, numa perspectiva antagônica à ordem vigente.

Outro trecho do ensaio nos possibilita vislumbrar a visão de Antonio Candido

sobre as Memórias sentimentais de João Miramar e do seu método de trabalho.

Inicialmente o crítico enfatiza a seriedade com que Oswald desenvolve o seu estilo e

a narrativa, contrapondo-se de imediato a qualquer especulação que viesse a tentar

encaixar aí uma perspectiva piadista – “além de ser um dos maiores livros da nossa

literatura, é uma tentativa seríssima de estilo e narrativa”. E proclama, ainda na

mesma página do ensaio, ser o livro uma sátira social da “burguesia endinheirada

[que] roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade

apavorante” (1970b, p. 43). Na sequência, Candido caracteriza o narrador e a

narrativa:

Miramar é um humorista pince sans rise que (como se diria naquele tempo) procura kodakar a vida impertubavelmente, por meio de uma linguagem sintética e fulgurante, cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar. Graças a esta linguagem viva e expressiva, apoiada em elipses e subentendidos, Oswald de Andrade consegue quase operar uma fusão da prosa com a poesia. (1970b, pp. 43-44)

A expressividade, para o crítico, é uma categoria fundamental para a

definição da qualidade da obra. Esse é um aspecto de tal forma enfatizado no

ensaio, e reforçado pelas leituras que se fazem dele, que a sua aliança com o plano

ideológico parece relegado. Entretanto, podemos observar o estético e o ideológico

caminhando juntos. O vazio da burguesia se torna componente da estrutura literária,

calcada na sátira social. Daí a importância das características do discurso, da

estrutura sincopada, da elipse, do valor telegráfico que a linguagem oswaldiana

adquire, articuladas com o conteúdo ideológico.

Poderíamos destacar mais alguns trechos do ensaio de 1945, porém não

teríamos contribuições que avancem muito além do já exemplificado. A explicação

para essa economia na análise de Miramar e Serafim pode ser vista em “Digressão

sentimental sobre Oswald de Andrade”. Conforme consta nesse último ensaio, na

época da elaboração de “Estouro e libertação”, havia uma forte expectativa em torno

da publicação de Marco zero, gerando assim uma atitude mais cautelosa do crítico,

afinal esperava-se por grandes obras de Oswald de Andrade que estariam por vir.

Antonio Candido reconhece que apesar do entusiasmo que sentia pelos dois

romances, atenuara-o bastante em função da expectativa criada por Oswald com

Page 32: Memórias sentimentais de João Miramar · na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar Everardo Borges Cantarino Dissertação de Mestrado apresentada

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Marco zero, pois o escritor ainda não havia encerrado o seu ciclo de romancista, e

talvez o melhor ainda estivesse por vir, mesmo que o primeiro volume houvesse

decepcionado o crítico. Em 1970, já não havia outra possibilidade, o melhor da prosa

de ficção de Oswald de Andrade estava consolidado nos dois livros que constituem

o “par ímpar”. Podemos então prosseguir nossa busca pelas razões que levaram

Candido a identificar Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte

Grande como os melhores romances de Oswald de Andrade no ensaio de 1970.

“Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade” foi elaborado contendo

seis partes, das quais Antonio Candido dedica uma delas ao estudo de Memórias

sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, que apresenta o sugestivo

título “O par ímpar”. Como já dissemos, a expressividade é uma categoria

fundamental para Antonio Candido desenvolver o seu juízo sobre a produção

romanesca de Oswald de Andrade. Em certo momento do ensaio afirma:

“Esquematicamente, diríamos que nos melhores livros de Oswald o que sobressai é

a maneira” (1970a, p. 83), ou seja, a invenção estilística. Porém, repetimos, isso não

significa que o plano ideológico seja desconsiderado. Os processos de composição

mais gerais empregados por Oswald de Andrade, como o estilo centrado no choque,

na síncope, na elipse, com blocos curtos, justapostos, rompendo as sequências

lógicas e contínuas da tradição realista, em Miramar e Serafim são conduzidos até o

limite. Na Trilogia, as inovações encontram-se presas a um ponto de vista moral,

vinculado de certa forma ao padrão realista tradicional, e no Marco zero, Candido

identifica um recuo no uso desses processos de composição em favor de uma

tentativa de Oswald de Andrade em buscar uma unidade estrutural com o propósito

de retratar um panorama social na sua totalidade. Seria isto um engano de Oswald

de Andrade, pois, diante da nova e complexa realidade urbano-industrial do século

XX, a representação ampla de um panorama social não era mais alcançada pela

narrativa unitária realista. Ao contrário, essa realidade social seria mais bem

apreendida pelo leitor com a multiplicidade de enfoques e cenas, justapostas,

apresentadas como estruturas móveis, de maneira descontínua. Dessa forma, se

atingiria a representação do objeto com mais amplitude do que com a narrativa

unitária.

Antonio Candido aborda ainda o inconformismo, traço presente em todos os

romances oswaldianos, ressaltando que quando tratado pelo viés do sarcasmo, da

ironia, da sátira, aumenta em muito a sua expressividade. O mesmo não ocorre

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quando o tom é sério. O inconformismo, neste caso, parece não ter o mesmo

alcance, perdendo em intensidade e precisão, como ocorre na Trilogia e no Marco

zero, cujos romances estão ancorados na retórica decadentista e naturalista,

respectivamente. Pelo sarcasmo, Oswald de Andrade dirige a sua crítica ao seu

próprio meio social, e assim expõe as estruturas elitistas da sociedade paulista

provinciana do início do século passado. Mas esse aspecto do estilo de Oswald de

Andrade não se constitui baseado apenas no sarcasmo. Antonio Candido observa

também que “o tom melhor de Oswald implica a sua fusão com a poesia, sobretudo

pela extensão de processos poéticos a contextos quaisquer. Sarcasmo-poesia, e

não sarcasmo-sarcasmo” (1970a, p. 79-80). Dessa forma nos deparamos com um

tipo de ruptura com as formas fixas dos gêneros literários e dos critérios tradicionais

de valoração do material literário. Como consequência desse procedimento,

engendram-se novas possibilidades estilísticas, em que se compreende a estrutura

do romance como uma extensão de visões poéticas. Candido, com o propósito de

sintetizar em uma expressão o que considera o melhor de Oswald de Andrade,

estabeleceu a seguinte fórmula: “máximo de descontinuidade + máximo de

sarcasmo-poesia = máximo de expressividade” (1970a, p. 86).

Outro aspecto apresentado por Antonio Candido para a caracterização do par

enquanto o melhor da prosa oswaldiana foi a transfiguração das experiências

pessoais vivenciadas pelo escritor para os seus livros. Esse é um importante

aspecto que não foi considerado no ensaio de 1945, provavelmente devido à

abordagem dos estudos literários daquele momento, em que a vida do personagem

Oswald de Andrade se sobrepunha à sua literatura, conforme já dissemos, e a

necessidade de romper com esse paradigma. Podemos identificar a presença

consolidada dessa transfiguração tanto no par como na Trilogia, enquanto no Marco

zero, Oswald tende a se afastar desse procedimento, pois nesta fase a intenção do

autor é mais documentária, no sentido histórico-social. Segundo Antonio Candido,

em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, quanto mais Oswald se

afasta das transfigurações das experiências pessoais, mais se afasta de si mesmo,

das qualidades que fazem dele um grande escritor. Dito de outra forma, o melhor da

produção romanesca de Oswald de Andrade está exatamente nos textos amparados

nessa transfiguração. Entretanto não apenas isso. Comparando a transfiguração na

Trilogia e no par, Antonio Candido observa que a associação com o veio humorístico

é determinante para a qualidade dessa realização. Em Miramar e Serafim a

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transfiguração ocorre dessa forma e tem por resultado um dinamismo no enredo e a

elaboração de personagens convincentes, pois preservam a humanidade

característica da vida “real”. Quando o tom é sério, conforme ocorre na Trilogia, as

personagens tendem a aproximar-se de clichês, assim como o enredo parece

forçado, com propósitos moralistas.

Após a publicação de “Estouro e libertação” e com uma convivência mais

próxima com o escritor, Antonio Candido passou a insistir para que Oswald de

Andrade escrevesse a sua autobiografia. O crítico, de alguma forma, intuía as

contribuições desse trabalho para uma melhor compreensão da obra. Em 1952,

Oswald iniciaria a redação de suas memórias, no mesmo dia em que havia recebido

Candido em um almoço e lhe teria prometido começar a escrever o “diário

confessional”, que viria a ser publicado em 1954 sob o título: Um homem sem

profissão. Memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. Esse primeiro e único

volume escrito e publicado das memórias de Oswald, um projeto de quatro tomos

interrompido pelo falecimento do autor, fora apresentado pelo texto “Prefácio inútil”,

escrito por Antonio Candido, em que o crítico deixa claro já no primeiro parágrafo

que vida e obra nunca se separam em Oswald de Andrade. Em 1970, numa carta

endereçada a Antonio Candido após a leitura dos originais do ensaio “Digressão

sentimental sobre Oswald de Andrade”, Rudá de Andrade corrobora com essa

compreensão: “Creio que a obra de Oswald não pode ser estudada desvinculada de

sua vida”7 (apud CANDIDO, 1970a, p. 89). De fato, a leitura de Um homem sem

profissão faz ver ao leitor a relação profunda entre a vida e a obra do escritor.

Quando cotejamos, por exemplo, as Memórias e confissões de Oswald de Andrade

com as Memórias sentimentais de João Miramar, há passagens do primeiro que

saíram do segundo, e vice-versa, a ponto de não haver uma fronteira rígida entre o

mundo “real” e o mundo “ficcional”. Ficção e confissão interagem. Há um espaço

biográfico reconhecível, traduzido como matéria ficcional, que a nosso ver antecipa

um debate que ganharia vulto ao longo do século XX e do atual, inclusive no campo

das chamadas ciências exatas, sobre a demarcação de limites entre realidade e

ficção. A autobiografia de Oswald de Andrade possibilita-nos ainda perceber como o

escritor captava na vida os seus personagens, moldando-os conforme a sua

7 Carta publicada como anexo do ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”.

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sensibilidade. E é esta sensibilidade, conforme registra Candido, a responsável pela

desenvoltura quando o tom é satírico, como no par Miramar-Serafim.

Podem ser observados ainda em “Digressão sentimental sobre Oswald de

Andrade” a apresentação de dois traços fundamentais para o estudo da obra

oswaldiana e que estão presentes também na personalidade do escritor: devoração

e mobilidade. A devoração, segundo Antonio Candido, para além do aspecto

simbólico da Antropofagia, atua como um dispositivo ligado à compreensão do

mundo por Oswald, constituinte de sua personalidade. É um procedimento de

captação, moagem e recomposição do mundo, para assim compreendê-lo e

expressá-lo. Daí resultaria o seu discurso fragmentário, aos pedaços, que exige do

leitor a atitude de recompô-lo. Portanto, essa devoração não teria o sentido

destrutivo como valor absoluto, mas seria uma estratégia de construção de outro

mundo, de outra literatura, de outras utopias. Nesse procedimento há um certo

anarquismo espontâneo e boêmio, que comporta uma perspectiva libertária. Para

Candido, mesmo após a adesão de Oswald ao marxismo, esse anarquismo nunca

foi superado, “porque ele foi o segredo da sua elasticidade e um dos fatores da sua

mobilidade sem fim” (1970a, p. 78). Este é o outro traço fundamental da vida e da

obra de Oswald de Andrade abordado por Antonio Candido: mobilidade. Na vida do

escritor, é flagrante a mobilidade enquanto diretriz: as mudanças de endereços, de

amores, de amizades, as viagens, as polêmicas etc. Na literatura, Candido reflete

sobre a composição dos romances de Oswald com as seguintes palavras:

Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente, tanto o implícito quanto o explícito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. (1970a, p. 78)

Em 1954, Antonio Candido escreveu o ensaio “Oswald viajante”, dedicado à

questão da mobilidade. Tanto as Memórias sentimentais de João Miramar como

Serafim Ponte Grande têm nas viagens intercontinentais realizadas pelos

personagens um elemento fundamental da narrativa que estabelece a articulação

entre o novo e o arcaico, processo pelo qual se forja a consciência da necessidade

de revisão dos valores tradicionais arraigados na América diante das novas

experiências vivenciadas no deslocamento. Nesse sentido, mesmo quando

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realizadas apenas por entretenimento, as viagens representam não apenas a

descoberta de novidades, mas acabam por fornecer a compreensão a respeito das

lacunas culturais dos personagens em relação ao próprio país. Dito de outra forma,

as viagens permitem, a partir do distanciamento e do deslocamento, uma nova

percepção que resulta em outro reconhecimento do Brasil. Esse seria o sentido das

viagens nas obras de Oswald de Andrade, que se estende também ao estilo, como

movimento constante das frases e estruturas. Seria ainda o sentido do drama de

João Miramar e Serafim Ponte Grande, o choque entre as poderosas amarras

ancestrais de classe e os impulsos de libertação, sempre em conflito e inconciliáveis.

Seria também o drama de Oswald de Andrade, transfigurado para a literatura: em

Memórias sentimentais de João Miramar como instintivo, em Serafim Ponte Grande

como processo consciente e utópico. Conforme já vimos anteriormente, quanto mais

os procedimentos empregados por Oswald de Andrade na elaboração do texto se

aproximam da essência do próprio autor, maior é a expressividade literária. Nas

palavras de Antonio Candido, uma espécie de síntese em relação à questão da

mobilidade: “Oswald consegue na verdade encarnar o mito da liberdade integral pelo

movimento incessante, a rejeição de qualquer permanência” (1970c, p. 56).

Vimos, portanto, um quadro de aspectos, sem o propósito de esgotá-lo, que

levou Candido a eleger o par Miramar-Serafim enquanto o melhor da produção

romanesca de Oswald de Andrade. Esse quadro também nos oferece uma boa

reflexão sobre essa produção. Por fim, recolocamos a questão de que as Memórias

sentimentais de João Miramar constituíram uma base sobre a qual Serafim Ponte

Grande seria desenvolvido, num processo de radicalização do experimento

oswaldiano. No ensaio de 1945, Antonio Candido escreveu que Miramar era “mais

bem comportado” do que Serafim. Essa afirmação se explica pois, na comparação

entre os dois romances, aquele estaria mais próximo de um modelo de estrutura que

tem a unidade como elemento fundamental. Sobre esse aspecto, Haroldo de

Campos, no ensaio “Serafim: um grande não-livro”, afirmou que embora Miramar

seja montado em estilo fragmentário, o que produz “um efeito desagregador sobre a

norma da leitura linear”, preserva sobre essa mesma norma “um rarefeito fio

condutor cronológico” (1971b, p. 104). Isso porque há em Miramar certa unidade

estrutural sustentada por índices de uma cronologia das fases da vida do narrador-

-personagem, que orienta a recepção das Memórias sentimentais. Estamos diante

de um romance que articula uma “desordem” sincrônica apoiada em indícios de uma

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“ordem” diacrônica. Ou seja, o princípio articulador dos episódios não é a lei da

causalidade, como ocorre em um romance tradicional, no qual um capítulo é seguido

necessariamente de outro, até o desfecho, como um processo de causa e efeito, o

que conduz a narrativa a uma sequência com início, meio e fim, facilmente

detectada pela recepção. Em Miramar, há uma colagem de episódios que

justapostos formam blocos, digamos, autônomos. Daí a ordenação dos episódios

não obedecer a uma lógica imperativa, entretanto há um fio condutor cronológico

sobre o qual aportam esses episódios que, teoricamente, podem modificar as suas

posições.

2.2 A VANGUARDA NA MIRA

Todos os estudos sobre o movimento modernista brasileiro concordam com o

fato de haver uma sintonia deste com a vanguarda artística europeia. Esse é um

ponto pacífico, no entanto nos interessa ver como Haroldo de Campos analisou a

estrutura das Memórias sentimentais de João Miramar, tendo por referência o

cubismo e o futurismo. No ensaio “Estilística miramarina”, publicado no Suplemento

Literário de O Estado de São Paulo, em outubro de 1964, e incorporado ao livro

Metalinguagem, cuja primeira edição saiu em 1967, o crítico debruçou-se sobre o

estilo do Miramar, enfatizando os aspectos cubistas. Na conclusão desse estudo,

Haroldo fez a seguinte afirmação: “Desidentificando berrantemente seu estilo dos

padrões aceitos, rompendo inclusive consigo mesmo, Oswald, através das Memórias

sentimentais de João Miramar e, depois, do Serafim Ponte Grande, plantou o marco

definitivo de nossa prosa nova” (2010, p. 106). Temos nessa sentença três aspectos

que nos chamam a atenção: a criação por Oswald de Andrade de um estilo

inaugural, excessivamente distinto dos padrões vigentes aceitos pela comunidade

que dominava o cenário literário no Brasil daqueles tempos; o fato dessa criação ser

também uma ruptura com o que o próprio autor já produzira; e, como terceiro

aspecto, serem as Memórias sentimentais um marco, consolidado depois por

Serafim Ponte Grande, para toda a nova prosa de caráter inventivo que viria a ser

elaborada. Procuraremos ver, primeiramente, como esses três aspectos, que

necessariamente se articulam como um conjunto, foram desenvolvidos ao longo do

texto de Haroldo de Campos.

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O crítico iniciou o ensaio “Estilística miramarina” observando que a prosa de

Oswald de Andrade contém o impacto provocado pela linguagem pictórica da

vanguarda europeia com a qual o escritor travara contato nas exposições de Paris,

no período anterior à Primeira Grande Guerra. Daí a visualidade como elemento

marcante no texto de Oswald. Em especial, os elementos futuristas e cubistas

pareciam dar a Haroldo de Campos o sentido da prosa em Miramar. A partir dessa

observação, o crítico recorreu a Roman Jakobson para buscar uma chave que

conduzisse a uma possível decifração da prosa oswaldiana, naquilo que talvez

caracterize o que há de mais perturbador nessa obra. Reproduziremos aqui algumas

considerações, expressas por Haroldo, sobre o estudo de Jakobson dedicado à

investigação dos aspectos linguísticos na síndrome da afasia, no qual o linguista e

crítico literário russo, instalado nos Estados Unidos, concluiu poder haver dois tipos

de perturbações em decorrência da síndrome que afetariam as operações de

substituição ou de combinação. No primeiro caso, atingiria as relações de

similaridade, que viabilizam a elaboração da metáfora, enquanto no segundo caso,

afetaria a capacidade de hierarquização das unidades linguísticas e formação de

contextos, abrangendo as relações de contiguidade, que propiciam a metonímia.

Segundo Jakobson, ambas as orientações atuam no discurso em sua forma natural,

mas em situações específicas pode prevalecer uma das operações. Este seria o

ponto de relevo para Haroldo de Campos, pois no processo de elaboração artística

tende-se a enfatizar uma dessas operações. Daí Haroldo observou haver nas

Memórias sentimentais de João Miramar uma ênfase na operação metonímica que

lhe pareceu caracterizar essa obra. Caberia, então, buscar compreender como a

operação metonímica ocorre no romance de Oswald de Andrade e como ela

surpreende, a ponto de gerar os três aspectos acima destacados.

Para Jakobson, na arte, conforme o estilo, há preferência por uma das

operações. Na poesia romântica, por exemplo, ocorre o predomínio da operação

metafórica, que se realiza sobretudo no plano semântico e evidencia os mecanismos

de substituição, similaridade e contraste; enquanto no realismo, a operação

metonímica é primordial, pois prevalece neste estilo o princípio da contiguidade, que

se estabelece nas relações sintagmáticas, pelo qual o autor vai da realidade exterior

às representações nas obras, hierarquizando as unidades linguísticas e formando

contextos. Esta última operação envolve tanto a metonímia como a sinédoque.

Considerando que esse processo não se destina única e exclusivamente à

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linguagem verbal, pode-se observar que na pintura cubista também predomina uma

orientação metonímica, entretanto realizada de forma diferente da representação

realista e renascentista, pois se rompe com a mimética tradicional, cujo conceito é

posto em xeque. O aspecto fundamental da pintura cubista está na especificidade da

linguagem, pois o objeto representado é decomposto em partes que constituem os

elementos organizados na estrutura da obra, em diferentes planos e ângulos, em

espaços múltiplos e descontínuos, constituindo um “sistema sinedóquico”. Cabe ao

espectador, com o seu olhar, remontar o objeto.

Assim, nessa pintura, não há mais a representação do objeto enquanto cópia

da forma apreendida tradicionalmente pelo nosso olhar na realidade exterior ao

quadro, e a sua compreensão se dá no material do universo próprio da pintura, na

composição das possíveis relações dos elementos. Da mesma forma, a realização

da prosa cubista “não se refere imediatamente à representação de um objeto do

mundo exterior ao texto, mas sim ao texto em si mesmo, como seu próprio objeto

estético, no sentido da realidade do mundo que lhe é privativo” (BENSE, 1962 apud

CAMPOS, 2010, p. 101). Ou seja, o estilo cubista é constituído por partes de

objetos, poderíamos dizer fragmentos, que são articulados na obra dando-lhe o

sentido estético. Portanto, a obra cubista, em princípio, é “um objeto variável, cujos

elementos se prestariam sempre a uma outra apresentação, a um outro arranjo”

(CAMPOS, 2010, p. 101). Antonio Candido, em “Digressão sentimental sobre

Oswald de Andrade”, apresenta semelhante conclusão ao abordar a mobilidade

como um aspecto relevante da obra de Oswald de Andrade, cuja composição seria

feita pela “busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos

segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo” (1970a, p.78).

Dessa forma, Candido explica a escrita fragmentária de Oswald de Andrade,

observando que ela tende à obra aberta, conforme já referido. Assim, os fragmentos

das Memórias sentimentais de João Miramar são estruturas móveis, com as quais

Oswald de Andrade cria um estilo novo na prosa brasileira ao realizar uma colagem

por justaposição desses fragmentos, que requer a participação efetiva do leitor na

formulação dos significados do texto.

Haroldo de Campos destacou do capítulo “50. ADEUS E JAZZ BAND”, do

Miramar, um exemplo da prosa cubista de Oswald de Andrade: “Um cão ladrou à

porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicolor mostrou os iluminados

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na entrada da parede.”8 (1971a, p. 34). Nessa frase, a porta recebe qualidades que

são do porteiro, que por sua vez é apresentado ao leitor por elementos realçados de

sua figura total, ou seja, a barba e as mangas de camisa. Percebe-se claramente o

“sistema sinedóquico” da operação metonímica, em que elementos da realidade

exterior são selecionados e combinados livremente, numa nova ordem, constituindo

o objeto estético. O mesmo procedimento ocorre para dizer que o porteiro trazia uma

lanterna com a qual iluminou as pessoas que ali chegaram, na porta de entrada,

numa prosa sobremaneira plástica, que possibilita ao leitor compor a cena na sua

totalidade. Verifica-se que na prosa miramarina o estilo cubista guarda certa relação

criativa com o mundo exterior. Diferentemente do realismo tradicional que busca

formar um contexto ficcional que, de certa forma, reproduz com “fidelidade” a

percepção comum da realidade exterior à obra, o que conduz a um enfoque que

prioriza as articulações temáticas, no Miramar é a nova estrutura da obra que está

realçada. Com ela, Oswald de Andrade narra um fato corriqueiro da realidade, cuja

temática por si só não seria matéria artística, transformando-o em informação

estética. Assim, pode-se inferir que nesse procedimento do escritor está implícita

uma crítica à maneira naturalista de representar a realidade exterior.

Posto isso, vê-se que a prosa miramarina mantém, em certa medida, um

vínculo com a realidade extralinguística. E isso é necessário por exigência de uma

das linhas fundamentais das Memórias sentimentais de João Miramar: a sátira. Para

a sua realização, tanto ao nível social como linguístico, é preciso que se estabeleça

um vínculo com a realidade da faixa social satirizada no texto, situada no tempo e no

espaço do mundo exterior. O próprio Oswald de Andrade registrou a necessidade

desse vinculo entre a sátira e a realidade exterior à obra em conferência proferida

em 1945, que consta no livro Estética e política, com o título “A sátira na literatura

brasileira”. Afirma Oswald:

Qual o prestígio da sátira? Qual a sua finalidade? Qual a sua função? Fazer rir. Evidentemente isso está ligado ao social. Ninguém faz sátira rindo sozinho. A eficácia da sátira está em fazer os outros rirem de alguém, de alguma instituição, acontecimento ou coisa. Sua função é, pois, crítica e moralista. (2011, p. 102)

8 Todos os trechos das Memórias sentimentais de João Miramar têm por referência a edição de 1971, mesmo

quando citados por outro autor.

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Mais à frente nesse texto, referindo-se a Bergson, Oswald diz “que o riso deve ser

uma espécie de gesto social” (2011, p. 103, grifo nosso). Portanto, não há sátira sem

a referência à realidade exterior à obra. No entanto esse vínculo não deve ser

limitador das intenções críticas do autor, função de fundo da sátira.

Como a operação metonímica realizada nas Memórias sentimentais localiza-

-se na estrutura da obra, um novo contexto é fundado no próprio texto. Na

autobiografia de Oswald de Andrade, Um homem sem profissão, já vimos que

conforme se avança na leitura mais se reconhece nas pessoas “reais” as

personagens das Memórias sentimentais de João Miramar, e também da Trilogia e

de Serafim Ponte Grande. Portanto, várias personagens das Memórias sentimentais

foram extraídas dos ambientes frequentados por Oswald, com as deformações

criadas pela impressão pessoal e intenção do autor. Mas em todas as personagens

das Memórias sentimentais, reafirmamos, foi mantido o caráter humano, tal qual se

manifesta na realidade da vida exterior ao texto. Isso demonstra o nível de

articulação do texto com essa realidade, e também que a experiência de Oswald de

Andrade diante da vida transposta para a obra literária é parte importante do

procedimento de criação artística do romancista.

Assim, a prosa miramarina vincula-se à realidade exterior ao texto para o

efeito da sátira, mas sem se submeter a essa realidade, que é livremente

reordenada na obra numa perspectiva humorística que dê ampla liberdade para o

escritor exercer a crítica. Esse é um aspecto importante, e Oswald faz a crítica a

partir de seu próprio meio social pelo recurso da paródia. Talvez por isso, quando

Oswald de Andrade acerta o tom do sarcasmo, aumenta a expressividade, e em

caminho oposto, quando o tom é sério, o texto perde a contundência da crítica, pois

fica limitado pela necessidade de provar um ponto de vista moral ou ideológico

vinculado à realidade exterior ao texto. Nesse procedimento, com o tom sério,

Oswald parece perder a medida exata da linguagem dada pela orientação

metonímica do estilo cubista, e então a tendência é lidar com a realidade exterior ao

texto sob os limites da temática. Talvez seja esse um dos motivos para a Trilogia

conter traços conservadores em seu estilo, ou conforme registrou Haroldo de

Campos, pela predominância da orientação metafórica, enquanto prosa poética.

Em relação às Memórias sentimentais de João Miramar, o procedimento

metonímico conduziu Oswald de Andrade a romper estilisticamente com ele mesmo,

enquanto autor da Trilogia. Portanto, sintetizando, a partir da orientação metonímica

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assimilada das pinturas cubistas expostas no início do século passado em Paris, e

de outros experimentos da vanguarda europeia vivenciados pelo escritor, como o

futurismo, tudo isso submetido ao filtro de uma ótica pessoal, o que possibilitou a

reelaboração dessas técnicas modernistas sob sua sensibilidade, Oswald de

Andrade criou uma prosa liberta das convenções do “bem escrever” ditadas pela

sociedade provinciana em que se formara, dominada por uma mentalidade

oligárquica rural e arcaica. Assim, com Memórias sentimentais de João Miramar,

Oswald de Andrade abriu uma porta para um campo de experiências artísticas a ser

explorado na evolução da literatura brasileira e, de forma mais ampla, da arte

brasileira.

Na sequência, buscaremos encorpar a análise crítica da obra de Oswald de

Andrade com outro estudo do próprio Haroldo de Campos, intitulado “Miramar na

mira”, publicado no mesmo ano de 1964, pouco antes de “Estilística miramarina”,

como introdução à segunda edição das Memórias sentimentais de João Miramar.

Nesse ensaio, Haroldo de Campos tem por intenção analisar a estrutura do Miramar

a partir de uma possível aproximação desse romance de Oswald de Andrade e

Ulysses, de James Joyce, este último escrito a partir de 1914 e publicado em 1922.

Ao nosso estudo não interessa seguir esse percurso, mas buscar registrar

importantes observações e análises que Haroldo fez das Memórias sentimentais.

Como em “Estilística miramarina” o crítico deteve-se nas influências cubistas, aqui

nos dedicaremos em especial às influências futuristas.

Dos muitos manifestos futuristas, os mais importantes voltados à literatura

foram publicados por Marinetti em 20 de fevereiro de 1909, o manifesto fundador “O

Futurismo”, e em 11 de maio de 1912, o “Manifesto técnico da literatura futurista”,

que recebeu um “Suplemento” em 11 de agosto do mesmo ano, em resposta às

publicações na imprensa que polemizaram com o manifesto, o que demonstra a

efervescência da época em Paris. As datas são importantes, pois Oswald de

Andrade embarcou no porto de Santos em 11 de fevereiro de 1912, rumo à Europa,

de onde retornou ao Brasil, sete meses depois, a 13 de setembro. Foi a primeira

viagem de Oswald ao continente europeu, quando ocorreu um dos mais decisivos

contato de um modernista brasileiro com os movimentos da vanguarda artística

europeia (BRITO, 1978). Nessa viagem, quando estava em Paris, Oswald teve a

oportunidade de ler os manifestos futuristas, que associavam a literatura às novas

técnicas urbano-industriais da vida moderna, combatiam frontalmente “a imobilidade

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pensativa” do academicismo, dos museus, das bibliotecas, do moralismo – tudo que

se encontrava estagnado –, e exaltavam “a coragem, a audácia e a rebelião”, “o

movimento agressivo”, “o salto mortal”, “o bofetão e o soco”, “a beleza da

velocidade”. Pregavam uma nova literatura a partir da “destruição da sintaxe”, a

abolição da pontuação, o uso das “palavras em liberdade”, cujas relações se dariam

por analogia, para assim “fundir diretamente o objeto com a imagem que ele evoca,

fornecendo a imagem de esguelha, mediante uma única palavra inicial”

(MARINETTI, 1912 apud BERNARDINI, 1980, p. 82). Além da agressividade

enquanto elemento imprescindível no processo de ruptura com o passado, nota-se

nos manifestos a extraordinária atenção com a imagística.

Pela importância da visualidade no futurismo, e pelo propósito de buscar uma

possível aproximação entre Miramar e Ulysses, Haroldo de Campos recorreu a

James Johnson Sweeney, crítico de artes visuais que produziu um estudo sobre a

obra joyciana, observando a sua evolução da escrita em direção à imagística.

Segundo Haroldo, Sweeney analisou as influências futuristas sobre Joyce

considerando apenas o futurismo plástico, evocando A Pintura Futurista – Manifesto

Técnico, publicado em abril de 1910. Entretanto os preceitos do futurismo plástico

têm seus correlatos na poesia e na prosa futuristas, entre os quais a simultaneidade,

tratada por Sweeney como “interpretação simultânea de superfícies” (apud

CAMPOS, 1971a, p. xxxiii). A simultaneidade é um elemento fundamental da arte

moderna, imprescindível na vanguarda. A simultaneidade já havia sido apontada no

primeiro manifesto, de 1909: “O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já

no absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade onipresente.” (MARINETTI apud

BERNARDINI, 1980, p. 34). A velocidade atrai as imagens, abolindo dessa forma as

referências de tempo e de espaço, à procura de um eterno presente.

O poeta e pintor Ardengo Soffici, em sua Estética Futurista, pensou a

simultaneidade enquanto a manifestação de “todas as sensações e emoções, sem

perspectiva de espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativo poético”

(apud CAMPOS, 1971a, p. xxxix). A simultaneidade entrecruza os tempos e os

espaços. Dessa forma, por exemplo, um simples objeto do cotidiano se liga como

imagem a um pensamento profundo sobre a existência, a um estado de espírito, que

por sua vez se liga a outro elemento mundano. Esse é um procedimento da técnica

do romance moderno. Por exemplo, nas Memórias sentimentais de João Miramar, a

simultaneidade já ocorre no capítulo “1. O PENSIEROSO”: uma recordação da

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infância, em que as imagens do quarto materno se misturam com uma prece e com

impressões maliciosas surgidas no pensamento da criança, sem que haja

referências rígidas sobre espaço e tempo. Importam as sensações, as impressões,

as emoções – ingênuas e irônicas, nesse caso. Assim há uma reunião de assuntos,

espaços e tempos. A simultaneidade, a superposição, a fragmentação são aspectos

que não dizem respeito só ao futurismo, mais também ao cubismo e a outras

tendências da vanguarda artística, e da arte moderna.

A partir da simultaneidade, Haroldo de Campos percorreu dois caminhos em

“Miramar na mira”: um no qual apontou uma aproximação de Miramar da sintaxe

analógica do cinema – entendido à maneira eisensteiniana, neste caso, a nosso ver,

sem o devido aprofundamento teórico –, que de certa maneira deságua no segundo,

em que seguiu um percurso para a reflexão sobre a simultaneidade, a

descontinuidade e a fragmentação, considerando o procedimento da arte moderna

que remonta à estética do fragmentário, a qual possibilita uma reflexão consistente

sobre a estrutura da obra oswaldiana.

Quanto ao primeiro caminho, Haroldo de Campos tomou a ideia da

simultaneidade do ensaio “Estouro e libertação”, no qual Antonio Candido,

analisando Os condenados, escreveu ser Oswald de Andrade quem “lançou

ostensivamente e em larga escala (pelo menos no Brasil) a técnica cinematográfica”,

caracterizada pelo processo “da descontinuidade cênica, a tentativa de

simultaneidade, que obcecou o modernismo” (1970b, p. 38). No contexto dessa

afirmação, Candido considerou o emprego da técnica cinematográfica por Oswald

em oposição ao da técnica do contraponto que o escritor, em uma entrevista,

segundo o crítico, disse ter lançado no romance. Contraponto, para Antonio

Candido, exige “na narrativa uma pluralidade de focos de atenção que não existe

nos romances de Oswald de Andrade antes de A revolução melancólica” (1970b, p.

38). No ensaio “Miramar na mira”, Haroldo de Campos cita Candido confirmando a

simultaneidade na caracterização da prosa cinematográfica e considera o emprego

dessa técnica nos romances oswaldianos esteticamente mais bem realizada no par

Miramar e Serafim, pois sem o propósito da monumentalidade da obra cíclica, a

síntese de Oswald alcançou um resultado pleno com a montagem de fragmentos. A

longa frase que dá sequência às conclusões de Campos, transcrita a seguir, além de

tratar do emprego da técnica cinematográfica por Oswald, apresenta a noção, que

não foi desenvolvida, da existência de diferentes tipos de cinema.

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Uma vez que a ideia de uma técnica cinematográfica envolve necessariamente a de montagem de fragmentos, a prosa experimental de Oswald dos anos 20, com a sua sistemática ruptura do discursivo, com a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa sequência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico- -satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeiras décadas do século, esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira eisensteiniana. (1971a, p. xli)

A caracterização da prosa oswaldiana como cinematográfica já havia sido

feita na década de 1920 por ensaístas como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de

Holanda, Prudente de Moraes, neto, Tristão de Athayde. Isso porque os

procedimentos oswaldianos pareciam análogos aos da narrativa cinematográfica,

muito ainda em relação ao grande salto dado com o cineasta norte-americano David

Wark Griffith, pioneiro na montagem cinematográfica com o propósito de

desenvolver a capacidade narrativa do cinema. Com Griffith, a câmera deixou de

assumir a posição fixa de um espectador de teatro, sentado no centro da plateia, de

onde se observam as cenas que ocorrem no palco, e passou a se movimentar,

aproximando-se e se afastando da cena, saltando para ocupar posições que um

espectador de teatro jamais ocuparia, fazendo enquadramentos inusitados para

aquela época, tudo isso em prol de uma narrativa cinematográfica que ganhava

identidade própria ao afastar-se do teatro. O romance de Oswald de Andrade

parecia trazer esses aspectos da montagem do cinema em sua composição. Assim,

a caracterização da prosa de Oswald de Andrade como cinematográfica se deu

principalmente pelos aspectos técnicos.

Quando Antonio Candido abordou essa questão em “Estouro e libertação”, o

fez de forma pontual, em que comparava duas técnicas narrativas. Haroldo de

Campos, anos depois, recuperou a relação da prosa oswaldiana com o cinema e, a

nosso ver, tentando escapar da generalização, buscou localizar a prosa

experimental de Oswald de Andrade dentro do campo do cinema – “pelo menos de

um cinema entendido à maneira eisensteiniana” –, não aprofundando o tema e se

limitando à questão da técnica cinematográfica, o que, de certa forma, reduz a

compreensão da montagem ao aspecto da junção de fragmentos, e assim cria uma,

digamos, fragilidade de ordem teórica. É certo que a fragmentação seja uma

característica do fazer cinematográfico, de tal forma que a emenda tende a

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permanecer visível, por isso a montagem é tão evidente no cinema. No entanto, a

fragmentação está na arte de vanguarda e é também uma característica da

modernidade, incorporada à linguagem. A montagem é tanto mais visível quanto

mais ela evidencia a descontinuidade. No caso da arte moderna, por exemplo, a

poesia tende a uma ruptura da ordem sintática, do encadeamento da frase, em que

a justaposição de palavras soltas evidencia a ideia de montagem. Daí a montagem

não ser um processo exclusivo do cinema, mas de todas as expressões artísticas.

Talvez a principal fragilidade nessa citação seja não se ter levado em conta que

Eisenstein (2002a; 2002b) concebeu a sua teoria da montagem cinematográfica

para além do campo fílmico e para além das fronteiras puramente técnicas,

colocando-se profundamente comprometido com as questões ideológicas do período

histórico em que produziu a sua arte.

Em relação ao segundo caminho a que nos referimos, Haroldo de Campos

assinalou que o fragmentarismo das Memórias Sentimentais de João Miramar é um

marco da introdução na nossa prosa moderna, e também de sua projeção, da

estética do fragmentário. Campos recorreu a estudo de Hugo Friedrich para afirmar

que a fragmentação pode ser vista na poesia e na prosa da última fase de Mallarmé,

cujo estilo se caracteriza pela decomposição da frase em fragmentos, pela

destruição da sequência linear e substituição das ligações sintáticas por

justaposições, sinais “de uma descontinuidade interior, de uma linguagem nas

fronteiras do impossível” (FRIEDRICH apud CAMPOS, 1971a, p. xlii). Nesse sentido,

o fragmentário tornou-se um postulado da Estética moderna, originado de um mundo

transformado pela Primeira Revolução Industrial. Mallarmé, com o procedimento de

fragmentação da linguagem, estampou a crise da linguagem lógico-discursiva para a

poesia, e para a prosa que dela se avizinharia, que não dava conta da nova

realidade urbano-industrial. Com a transformação das cidades e da realidade,

vieram as vanguardas do início do século XX, e muitas das concepções de Mallarmé

foram reintroduzidas pelo futurismo, e aparecem de maneira explícita, sobretudo, no

“Manifesto técnico da literatura futurista”, de 1912, tanto nos itens que abordam a

sintaxe, como nos que tratam da imagem.

Ainda nesse ensaio, Haroldo de Campos afirmou que por trás das Memórias

sentimentais de João Miramar (e também de Ulysses) “atuaram os manifestos, a

poesia e a prosa de combate dos futuristas” (1971a, p. xxxi). Sem dúvida, tanto no

aspecto estético do texto como na atitude de confrontação veem-se as raízes

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futuristas. Para demonstrar a forte influência que a literatura de Oswald de Andrade

recebeu da “imagística sonoro-visual” do movimento futurista, Haroldo comparou

trechos da prosa de Marinetti com trechos do Miramar. No entanto o crítico ressalvou

a presença de elementos tradicionais no romance Mafarka de Marinetti, publicado

em 1910, e apontou os manifestos como os principais textos do movimento. O

futurismo, com seus inúmeros manifestos sobre diversas áreas – literatura, pintura,

escultura, música, ciência, moral, política etc. – caracterizou-se principalmente como

um movimento de manifestos, forma sobre a qual divulgou e fixou os seus preceitos.

Oswald de Andrade também fixaria os seus preceitos modernistas em

manifestos publicados em 1924, “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, e em 1928,

“Manifesto antropófago”. Mas, além dos manifestos, produziria com qualidade uma

poesia e uma prosa nas quais se encontram esses preceitos, que estruturam a sua

obra. Ficaremos em nosso objeto de estudo: Memórias sentimentais de João

Miramar. O texto inicial desse romance, “À guisa de prefácio”, escrito ficticiamente

pelo Sr. Machado Penumbra, em estilo empolado e repleto de clichês acadêmicos –

uma linguagem estagnada, que não deve ser tida como modelo literário –, contrasta

brutalmente com o próprio estilo do livro que o Sr. Penumbra apresenta aos leitores,

este sim um exemplo de escrita moderna. Há nesse texto de apresentação jocoso,

de forma sutil, os preceitos programáticos de Oswald de Andrade que se

contrapõem à retórica artificial e falsa do academicismo que então predominava no

campo literário brasileiro. Haroldo de Campos sintetizou de maneira bastante precisa

esse jogo dual que Oswald realiza dizendo haver “um antimanifesto na paródia

linguística e um manifesto verdadeiro nas definições de técnica de composição que

nele estão insertas” (1971a, p. xviii). Essa paródia linguística está embebida de

futurismo, tanto na sua crítica ao estilo retórico, artificial e passadista, como na

atitude de “bofetear” ao ridicularizar o discurso oficial. Estão, portanto, nas

entrelinhas, muitas das ideias programáticas de Oswald de Andrade que seriam

explicitadas nos axiomas do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Não só no pseudo-

-prefácio, mas também em vários episódios das Memórias sentimentais de João

Miramar, a paródia foi empregada por Oswald de Andrade como recurso estilístico e

estrutural que põe em evidência e ridiculariza a linguagem pretensamente rebuscada

e falsa que servia de jargão a uma faixa social urbana letrada, caracterizada

satiricamente pela paródia, e um dos alvos da crítica oswaldiana. Assim, esse

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recurso fundamental da literatura moderna assume o papel de sátira social na prosa

de Oswald de Andrade.

Em novembro de 1922, Oswald de Andrade publicou no Jornal do Comércio o

artigo “O futurismo tem tendências clássicas”, em que estabeleceu uma diferença

entre classicismo e academismo: “clássico é o que atinge a perfeição de um

momento humano e universal (Fídias, o Dante, Nicolas Poussin, Machado de Assis).

Academismo, não. É cópia, imitação, é falta de personalidade e de força própria”

(2011, p. 32). Vemos, portanto, que o ataque é destinado a um passado estagnado,

a serviço dos ideais conservadores, oposição à possibilidade de “ver com olhos

livres”, ou seja, à elaboração de novos significados e novas ideias num novo mundo

em transformação. E conclui o artigo com preceitos futuristas:

Queremos mal ao academicismo porque ele é o sufocador de todas as aspirações joviais e de todas as iniciativas possantes. Para vencê-lo destruímos. Daí o nosso galhardo salto de sarcasmo, de violência e de força. Somos boxeurs na arena. Não podemos refletir ainda atitudes de serenidade. Essa virá quando vier a vitória e o futurismo de hoje alcançar seu ideal clássico. (2011c, p. 34)

Como o futurismo pregava a ruptura e tinha o combate enquanto um de seus

principais métodos de atuação, isso viria a incomodar a elite literária paulista

acadêmica, cuja mentalidade era ainda ruralista, patriarcal e muito conservadora.

Veremos agora, a partir de estudo de Mário da Silva Brito sobre os antecedentes da

Semana de Arte Moderna, a conotação que a palavra “futurismo” ganhou no Brasil.

Em 1912, Oswald de Andrade retornou da Europa trazendo na bagagem o

impacto das novidades que conhecera no velho continente, tornando-se, conforme

registra o crítico, “o primeiro importador do futurismo”, com o qual anunciou “o

compromisso da literatura com a nova civilização técnica” (BRITO, 1978, p. 29).

Cabe situar que o ambiente literário no Brasil daqueles tempos era

predominantemente parnasiano e a “civilização técnica” encontrava-se ainda em

estágio inicial. Contagiado pelo que vira na Europa, Oswald buscaria divulgar no

Brasil as experiências europeias, principalmente o futurismo. Naquele tempo, em

São Paulo e no Rio de Janeiro, a estrutura material obtivera os seus primeiros

avanços mais significativos sob o signo do progresso, com a implantação de

fábricas, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, o combate à febre

amarela com o saneamento da capital federal sob a coordenação de Osvaldo Cruz,

a reformulação do porto, a grande reforma urbanística do Rio de Janeiro e a

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expansão urbana e populacional da cidade de São Paulo, para onde se deslocavam

imigrantes que ocupariam postos de trabalho do setor industrial em crescimento.

Cabe registrar que a lei do povoamento do solo de 1907 facilitou a imigração, que já

ocorria de forma mais tímida desde o século XIX, possibilitando ao Brasil receber

uma espantosa quantidade de imigrantes de várias partes do mundo, o que levaria

Ronald de Carvalho a dizer que o brasileiro “não é mais o exclusivo produto da

mistura de três grupos raciais – o índio, o africano e o português” (apud BRITO,

1978, p. 27). O Brasil, entenda-se os principais núcleos urbanos, ingressava no ciclo

da técnica em busca de uma afirmação civilizadora. De fato, essa euforia não ia

além dos limites muito rígidos de uma sociedade ainda predominantemente agrária e

conservadora, sobretudo no que diz respeito à mentalidade, presa ao passado e ao

espírito tradicionalista. No plano literário, predominava o mito do “bem escrever” e a

extrema valorização da forma ideal, rigidamente construída. A atualização da

literatura brasileira exigiria uma atitude de conflito. Nessa perspectiva, o futurismo,

importado da Europa, com seu propósito de ruptura violenta com as velharias

estagnadas, desempenharia um importante papel para o movimento modernista

brasileiro.

A princípio, os preceitos do futurismo foram divulgados por iniciativas

pontuais. Posteriormente, o termo ganharia um significado particular no Brasil em

decorrência do acirramento do confronto entre a nova arte e a estética passadista

então consagrada. Nesse conflito, a palavra criada por Marinetti é aplicada pelos

tradicionalistas, conforme registra Mário da Silva Brito, como etiqueta de “sentido

pejorativo e significa, no mínimo, falta de equilíbrio; está ligada à ideia de loucura, de

patológico” (1978, p. 162). Essa era a maneira de as forças conservadoras atacarem

os artistas que se distanciavam dos padrões vigentes naquela época. Todos que se

afastavam um pouquinho das normativas consagradas eram etiquetados como

futuristas, e tudo que continha algo um tanto diferenciado era futurismo. Em

contrapartida, pode-se dizer, foi também uma forma de os adversários dos

modernistas arregimentarem diferentes artistas em um mesmo grupo, classificando

todos como futuristas, mesmo que não fossem seguidores dessa estética. Se por um

lado os conservadores erraram ao tratar indiferentemente todos por futuristas, por

outro, vieram a reconhecer a existência de uma arte que se opunha aos padrões

estéticos em vigência. Portanto, o bloco futurista era composto por artistas que,

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nesse sentido específico no Brasil, se distanciavam da arte acadêmica então

reinante, sem que fossem consideradas as diferenças específicas dos estilos.

Os artistas desse grupo, que viriam a realizar a Semana de Arte Moderna, em

1922, começaram a se encontrar mais constantemente por ocasião da exposição de

Anita Malfatti, em 1917, quando a pintora, após viver uma temporada na Europa,

onde travou contatos com o expressionismo alemão, e outra em Nova York, em que

pintou o primeiro nu cubista brasileiro, expôs os seus quadros que criaram grande

polêmica após a publicação em O Estado de São Paulo, edição da noite, em 20 de

dezembro de 1917, do artigo de Monteiro Lobato, “A propósito da Exposição de

Malfatti”. A princípio esses poucos artistas não constituíam ainda um grupo

propriamente dito. Depois receberam a incorporação de alguns outros artistas, como

a do escultor Victor Brecheret, também combatido pelo elitismo conservador, mas

que angariou elogios de parte da crítica, contribuindo com a causa modernista.

Monteiro Lobato foi um dos críticos que reconheceu a grandeza de Brecheret,

apesar de ter conservado a sua opinião de 1917 sobre Malfatti. E os artistas

modernos foram se fortalecendo com discussões, reuniões, debates, polêmicas.

Em 1920, a palavra “futurismo” já fazia parte do vocabulário paulista. Foi

nessa ocasião que os artistas da nova arte começaram a se definir e a se

movimentar objetivamente como grupo em oposição ao que era na época a

“inteligência nacional”. Oswald de Andrade achava interessante o uso da palavra

“futurismo” como um identificador do grupo, pois julgava que naquele primeiro

instante do movimento ela servia bem aos seus interesses. Então os “vanguardistas”

adotaram o rótulo – designaram-se “futuristas”, os “futuristas de São Paulo”. No

artigo “Futurismo”, publicado no Correio Paulista, em dezembro de 1920, sob o

pseudônimo Hélios, Menotti del Picchia nos dá uma impressão, mesmo que irônica,

que se tinha da palavra na época: “Que é o futurismo? Aí está um nome pavoroso,

que arrepia a pele ao conservador pacífico, bolchevismo estético, agressivo e

iconoclasta, lembrando um camartelo sonoro a estilhaçar a espinha vertebral da

ordem e do bom senso” (apud BRITO, 1978, p. 168). Entretanto, se a princípio

aceitou-se o epíteto “futurista”, depois começaram a renegá-lo. Segundo Oswald de

Andrade, os escrúpulos partiram principalmente de Mário de Andrade: “Ele, nacional

e nacionalista como era, não se sentia à vontade dentro do rótulo estrangeirante.

Assim, pouco a pouco, foi encontrada a palavra „modernista‟ que todo mundo

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adotou.”9 (2011, p. 191). O grupo paulista tinha se decidido pelo rompimento com as

tradições artísticas acadêmicas. As polêmicas foram acirradas ao longo do ano de

1921, para desaguar na Semana de Arte Moderna, em 1922, ano do centenário da

independência do Brasil, como consequência da evolução de um modo de pensar

contrastado com o estabelecido.

Nesse contexto, desde 1916, ou mesmo antes, Oswald de Andrade vinha

escrevendo e reescrevendo as Memórias sentimentais de João Miramar. A forma

definitiva foi alcançada em 1923, conforme já dissemos. A versão final e as

anteriores nos permitem observar que o estilo do Miramar foi se definindo conforme

o projeto modernista avançava. E nesse sentido, as Memórias sentimentais se

situam na linha mais vanguardista do movimento modernista brasileiro.

2.3 UMA NARRATIVA ORGANIZADA EM ESTRUTURAS MÓVEIS

Em 1972, o norte-americano Kenneth Jackson defendeu a sua tese de

doutorado sobre a prosa de vanguarda na literatura brasileira tratando dos romances

Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de

Andrade. Parte desse estudo foi publicada no Brasil em 1978, em um livro intitulado

A prosa vanguardista na literatura brasileira: Oswald de Andrade. Jackson reforçou a

tese de que o Modernismo brasileiro teve a vanguarda artística europeia do início do

século XX como principal referência, e que no período anterior à Primeira Guerra

Mundial se estabeleceu o contato decisivo do Modernismo brasileiro com essa

vanguarda, com as viagens de futuros modernistas ao velho continente, os estudos

e as leituras, além dos relacionamentos de nossos artistas com artistas

vanguardistas europeus.

Inicialmente, em seu estudo, Kenneth Jackson buscou caracterizar o termo

“vanguarda”. O emprego do conceito francês de avant-garde em sentido literário

remete ao final do século XIX, quando pela primeira vez foi usado “para designar

artistas ou escritores parisienses que eram audaciosamente experimentalistas, no

sentido de rejeitar ou zombar das tradições literárias ou acadêmicas” (1978, p. 10).

Vemos aí a acepção do termo se referindo a uma arte de ruptura com as

convenções estabelecidas, sendo esse um procedimento audacioso, que se

9 Artigo intitulado “O Modernismo”.

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confronta com radicalidade com os modelos de uma tradição estagnada, que não

quer e não consegue acompanhar as mudanças da sociedade. “Ser radical é tomar

as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem” (MARX apud

CAMPOS, 1972, p. xi). Essa expressão de Karl Marx citada por Haroldo de Campos

no ensaio “Uma poética da radicalidade” ajuda-nos a perceber, mesmo que em outro

contexto, o sentido das vanguardas enquanto tentativas radicais de compreender a

vida humana em uma nova configuração social e material, resultado das

transformações engendradas pela revolução industrial. No Brasil, os artistas

modernistas absorveriam as tendências da vanguarda europeia para efetuar a

ruptura com os ideais e modelos retóricos parnasianos e pensar o país a partir de

novos paradigmas. Por ter sido o Modernismo brasileiro bastante heterogêneo,

essas rupturas com os modelos passadistas não ocorreram todas no mesmo nível

de confrontação nem de radicalismo, de tal forma que só algumas poderiam ser

vistas enquanto rupturas no sentido vanguardista. Sendo assim, Kenneth Jackson

buscou reconhecer o que efetivamente havia de vanguarda na prosa brasileira

daquele período, tendo por parâmetro os procedimentos ousados efetuados pelo

experimentalismo da vanguarda artística europeia do início do século XX,

reconhecendo ser o contexto daqui bastante diferente do europeu. Enquanto a

vanguarda europeia se situava em uma realidade de grande avanço tecnológico,

implementado para além das fronteiras nacionais, no Brasil, as inovações na

linguagem artística foram associadas a temas nacionais cuja perspectiva era “uma

observação mais precisa da vida brasileira” (JACKSON, 1978, p. 13). Daí Kenneth

Jackson estabeleceu que as obras vanguardistas do Modernismo brasileiro seriam

aquelas que reivindicam mudanças radicais, empregando o lastro do

experimentalismo das vanguardas artísticas europeias do início do século XX

adaptado ao contexto brasileiro. Seria esse o caso dos romances Memórias

sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.

Embora Kenneth Jackson tenha abordado vários aspectos das Memórias

sentimentais de João Miramar, apontando possíveis caminhos a serem

aprofundados, nos deteremos aqui aos aspectos estruturais da obra. O crítico

apresenta dois conceitos que consideramos fundamentais para a recepção das

Memórias sentimentais: a existência de um processo de amadurecimento de João

Miramar, conforme ele rememora os eventos de sua vida e procede à escrita; e o

fato de caber à recepção do texto realizar dois níveis de leitura complementares,

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uma “horizontal” e outra “vertical”. Na leitura “horizontal”, mesmo que não haja um

enredo evidente na superfície do texto do Miramar, o “fio condutor” da vida de João

Miramar, apesar de camuflado pelo estilo cubista, conforme observou Haroldo de

Campos, proporciona uma coerência interna à obra fundamentada numa cronologia

que abarca desde a infância até a meia-idade do protagonista, fornecendo indícios

sobre os quais os episódios podem ser estruturados, permitindo ao leitor uma

percepção de continuidade, mesmo que não haja uma linearidade que determine a

ordenação dos episódios. Já a leitura “vertical” se concentra em cada episódio do

romance que se apresenta fechado em si mesmo, ou seja, cada episódio contém

uma experiência completa de uma vivência do protagonista, o que gera a

“autonomia” dos capítulos. Essas experiências eleitas pelo memorialista enquanto

fundamentais para as suas Memórias são escritas conforme relatos relembrados ou

reproduzidas em forma documentária – cartas, discursos, notícias, por exemplo –,

que assumem um valor de documento de uma época e de um contexto social.

Assim, o encadeamento desses episódios, como uma “colagem de impressões” feita

com ironia e humor, dá ao romance “o relato de memórias sob a forma de uma

antologia de acontecimentos, como um álbum de fotografias que apresentasse uma

visão sincrônica da vida de Miramar” (JACKSON, 1978, p. 27). A articulação das

duas leituras, a “horizontal” e a “vertical”, numa perspectiva complementar em busca

de um sentido ao que parece caótico, possibilita a organização de estruturas que

permitem a identificação dos níveis de consciência e das atitudes críticas de Miramar

ao longo da história de sua vida rememorada. No trecho que transcrevemos a

seguir, podemos reconhecer uma síntese das ideias de Kenneth Jackson sobre esse

ponto:

A possível estruturação dos fragmentos em Miramar é, na verdade, muito mais flexível do que o seria uma antologia diacrônica uma vez que muitos fragmentos não se ajustam a um padrão fixo. A obra pode ser organizada em muitas estruturas críticas potenciais que se estendem para além do “fio condutor” da vida de João Miramar, em termos dos materiais internos das Memórias Sentimentais. Por conseguinte, a obra tem uma variedade de estruturas significativas possíveis que abrem perspectivas pessoais e cronológicas (vertical e horizontal) para o desenvolvimento de João, as viagens e o contexto social. Cada fragmento pode ser lido separadamente, como partes de uma antologia, ou em grupos – ambas as maneiras levam a visões críticas no interior das memórias. (1978, p. 28-29)

Jackson a fim de caracterizar as “estruturas significativas”, que são os grupos de

fragmentos organizados em torno de uma visão retrospectiva da vida de João

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Miramar, sempre flexíveis na obra de Oswald de Andrade, recorreu a Jean Piaget

que a define da seguinte maneira:

[...] há estrutura (em seu aspecto mais geral) quando os elementos se reúnem numa totalidade que apresenta certas propriedades enquanto totalidade e quando as propriedades dos elementos dependem, total ou parcialmente, dessas características da totalidade. (apud JACKSON, 1978, p. 22, grifo do autor)

Existe assim uma coerência interna numa “estrutura significativa” que se

estabelece pelas relações entre os diversos elementos ali presentes, construída ao

redor de um tema da vivência de João Miramar. Nesse sentido, um mesmo episódio

pode integrar diferentes grupos de fragmentos desde que os elementos de cada um

desses grupos estabeleçam relações entre si e apresentem “certas propriedades

enquanto totalidade”. Portanto, os episódios da vida de Miramar apresentados como

fragmentos em um total de 163 capítulos podem ser lidos de duas formas

complementares, o que exige da recepção uma postura ativa. Kenneth Jackson

referiu-se a essa estrutura como um “quebra-cabeça” a ser montado e interpretado

pelo leitor. Usando de outra imagem que nos parece mais próxima ao dinamismo

das estruturas móveis das Memórias sentimentais de João Miramar, Flávio Loureiro

Chaves, no ensaio “Contribuições de Oswald e Mário de Andrade ao romance

brasileiro”, refere-se ao Miramar como um “discurso caleidoscópico, composto de

fragmentos, sempre expostos a novas perspectivas de leitura” (1970, p. 17).

Também Lucia Helena, em Totens e tabus da modernidade brasileira, diz da

descontinuidade compondo “um painel caleidoscópico móvel e fragmentado” (1985,

p. 92). A ideia do caleidoscópio que rearranja os fragmentos coloridos formando

novas imagens nos parece dimensionar o potencial contido no processo de colagem

dos fragmentos das Memórias sentimentais, que exige um leitor ativo, não só do

ponto de vista interpretativo, mas também da própria montagem, selecionando e

combinando os fragmentos disponibilizados pelo autor, numa associação de

imagens e ideias. Numa perspectiva global da obra, as estruturas podem ser

compreendidas tendo por base o estilo cubista ou metonímico, conforme descrito por

Haroldo de Campos em “Estilística miramarina”.

Na década de 1920, os primeiros críticos a analisarem as Memórias

sentimentais já apontavam para a necessidade de um leitor ativo, capaz de juntar as

“peças soltas” que constituem uma antologia da vida de João Miramar. Sérgio

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Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, em ensaio publicado em 1925 na

revista Estética, afirmam:

Uma das características mais notáveis deste „romance‟ do Sr. Oswald de Andrade deriva possivelmente de certa feição de antologia que ele lhe imprimiu. [...] Se o autor em vez de situar esses episódios [da infância de Miramar] na página 15 ou 16 onde estão, os houvesse colocado na página 119 onde o romance termina, o conjunto pouco perderia. Isso não importa em dizer que o livro não tem unidade, não tem ação e não é construído. É a própria figura de João Miramar que lhe dá unidade, ligando entre si todos os episódios. A construção faz-se no espírito do leitor. Oswald fornece as peças soltas. [...] É só juntar e pronto. (1974, p. 218-219)

No entanto, essa junção não se apresenta de modo óbvio. As experiências

relembradas por João Miramar em episódios que isoladamente detêm autonomia,

por serem completos, e por isso criarem perspectivas críticas sobre si mesmo, são

dotadas de imagens poéticas que encobrem, em certa medida, os acontecimentos

da vida de Miramar e exigem do leitor a postura de “descobrir e elaborar um

significado e uma continuidade mais profundos, inerentes aos fragmentos, mas

nunca formulados explicitamente” (JACKSON, 1978, p. 26). Assim, o plano poético,

além de velar os acontecimentos de cada episódio, camufla a sua continuidade, pois

o estilo cubista da obra em geral desarticula o relato cronológico. Entretanto, João

Miramar, como narrador, só se reconhece no ato de escrever as suas memórias,

restabelecendo a continuidade como um procedimento fundamental das Memórias

sentimentais de João Miramar. Daí que as “estruturas significativas” da obra

implicam numa “inter-relação entre as perspectivas críticas de João Miramar e a

composição dos fragmentos de prosa” (JACKSON, 1978, p. 23).

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3 NACIONALISMO E RADICALISMO

A influência da vanguarda artística europeia do início do século passado,

conforme já vimos, foi determinante para o Modernismo brasileiro. No entanto,

mesmo que os contatos iniciais de futuros modernistas do Brasil com essa

vanguarda tenha se dado antes da Primeira Guerra Mundial, a aplicação dessa

influência por aqui só provocou repercussão em 1917, com a exposição individual de

Anita Malfatti. Inicialmente a exposição foi bem aceita pelo público, que assinava o

livro de presença, e com a venda de quadros. Entretanto, após o artigo de Monteiro

Lobato, que funcionou como um catalisador, a resistência dos tradicionalistas foi

vigorosa e destrutiva. A fragilidade dos novos artistas brasileiros e da arte nova ficou

exposta. Anita Malfatti, que já vinha sendo pressionada pela própria família que não

assimilava a sua pintura, sofreu profundamente com o choque da crítica. Houve

compradores que devolveram as obras que haviam adquirido. Oswald de Andrade

buscou defendê-la pelas colunas do Jornal do Comércio, entretanto, como afirmou

no artigo “O Modernismo”, “fi-lo timidamente, pois não tinha autoridade para

enfrentar Lobato e sua grei” (2011, p. 194). O acontecido em 1917 levou a uma

maior aproximação daqueles que compartilhavam os valores do movimento de

renovação artística. Porém a atuação dos futuros modernistas ainda seguiu de

maneira espontânea e individualizada até que os artistas viessem a se constituir

como um grupo, por volta de 1920, para então consolidar o movimento na Semana

de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, ponto crítico de um processo histórico. Esse

pequeno grupo heterogêneo, mas unido pelo propósito de uma nova arte em

oposição à arte acadêmica e à inteligência nacional de então, a partir da Semana,

assume um ponto de vista na história da cultura nacional.

No contexto posterior à Semana de Arte Moderna, a heterogeneidade dos

modernistas se manifestou mais nitidamente, com desdobramento em grupos que

tendiam a aplicar a bagagem fornecida pela vanguarda artística europeia, cujos

métodos inovadores de composição foram explorados por aqui para tratar de temas

ou caracterizações nacionais. Há, nesse aspecto, uma diferença significativa entre o

que se produzia na Europa e o que se produzia no Brasil. Enquanto lá as

experimentações usavam de uma linguagem arrojada para tratar de temas

universais, sintonizados com um espaço-tempo tecnológico que imprimia uma nova

realidade no cotidiano das pessoas, para além das fronteiras nacionais, aqui, a

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aplicação dessas inovações na linguagem vinculava-se a temas nacionais. Nicolau

Sevcenko, sobre o cubismo de Picasso e sua relação com o contexto, observa:

Picasso já trabalhava com temas predominantemente sociais, não só no seu início em Paris [...], como também desde seu ambiente original na Catalunha [...]. Sua inovação com o cubismo não foi assim uma transição para uma linguagem mais elitizada de impenetrável sofisticação formal. Ao contrário, por mais incrível que pareça atualmente, o cubismo significou um esforço de Picasso para traduzir em novos códigos formais as transformações radicais pelas quais passava o cotidiano dos trabalhadores dos subúrbios. (1995, p. 7-8)

Os modernistas brasileiros, portanto, apoiaram-se na vanguarda europeia em

relação às técnicas de composição para desenvolver temas nacionais. Assim, as

tendências do movimento buscaram imprimir uma nova perspectiva à literatura

brasileira, e fizeram isso com o emprego de técnicas de composição lançadas pela

vanguarda artística europeia adaptadas de maneira original e singular a temas

brasileiros, rompendo com o que então se produzia por aqui, imprimindo à produção

brasileira uma configuração própria, em que a ruptura com os modelos retóricos e os

ideais passadistas se dava dentro de um espaço-tempo nacional. Diante disso, faz-

-se necessário uma reflexão de nossa parte, mesmo que simplificada, sobre o

“nacionalismo”. Outro termo sobre o qual também precisamos refletir é “radicalismo”.

3.1 O NACIONALISMO NA LITERATURA E NA CRÍTICA LITERÁRIA

Vejamos, primeiramente, a questão do nacionalismo a partir da contribuição

de Antonio Candido com o texto “Uma palavra instável”, escrito em 1984, que trata

de acepções que a palavra “nacionalismo” ganhou durante alguns períodos do

século XX. Esse é um tema longo que não pretendemos um grande

aprofundamento, pois não é o objeto central desse estudo. Conforme nosso

interesse, vamos delimitá-lo nas décadas iniciais do século passado. Candido

apresenta uma primeira conotação para “nacionalismo” que se vincula “a um orgulho

patriótico de fundo militarista”, alimentado pelas vitórias brasileiras em conflitos

contra outras nações, sobremaneira a Guerra do Paraguai, na segunda metade do

século XIX, que marcou profundamente o jovem país. Nessa mesma linha, vincula-

-se também o “nacionalismo” às grandezas do país, sempre extraordinárias, com as

mais belas e mais férteis terras, onde vivia um povo generoso e trabalhador, sem

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preconceitos nem violências, etc. Esta visão “ufanista” seria ironizada pela parcela

mais crítica dos modernistas. Ambas as acepções acima, cujas origens encontram-

-se no período colonial, foram fortificadas pela campanha nacionalista por ocasião

da Primeira Guerra Mundial. Mesmo que a participação do Brasil no conflito tenha

sido pouco relevante, a guerra propiciou a intensificação da implantação da indústria

nas maiores cidades do país e a mudança de hábitos no convívio social. Nesse

tempo, pronunciavam-se discursos febris de amor pelo Brasil, discursos retóricos,

empolados, em que o patriotismo ganhou uma conotação nacionalista, num sentido

de superioridade e com certo toque de xenofobia.

Mas havia também uma outra face do nacionalismo, a face pessimista. Esta,

mais recente, de Sílvio Romero, de Euclides da Cunha, tem em Os sertões, de

autoria deste último, publicado em 1902, um marco por revelar um Brasil oposto ao

divulgado pelas classes dirigentes, com um interior miserável, cruelmente reprimido

pelas forças militares, mas tenaz, e por isso capaz de imprimir derrotas ao governo

central da recente República. A desmoralização das classes dirigentes veio em

função tanto das derrotas parciais sofridas, como do comportamento amoral das

tropas e dos procedimentos oficiais. Cabe frisar que o romance de Euclides da

Cunha apresentou grandes novidades, já que a censura à imprensa imposta pelo

governo na época do conflito criou uma outra “realidade” bem distinta da dos fatos

ocorridos, como o financiamento externo viabilizado pelos interesses do antigo

regime que patrocinava a rebelião com o propósito de derrubar o governo central e

restaurar a monarquia. Segundo Antonio Candido, a partir de Euclides da Cunha, o

tom eufórico que caracterizou um tipo de nacionalismo deveria ter se constrangido.

Além da literatura, trabalhos científicos confirmavam as mazelas das populações

rurais e sua cultura rústica, atrasada, segregada, o que comprometia a visão

otimista. Mesmo o saneamento do Rio de Janeiro, sob orientação de Oswaldo Cruz,

feito entre os anos de 1902 e 1906, e que redimiu a capital diante do olhar

estrangeiro, não suplantava o estado catastrófico do interior. Na metade da segunda

década do século XX, o médico Miguel Pereira – que dissera ser o Brasil ainda “um

vasto hospital” (apud CANDIDO, 2004b, p. 217) –, referindo-se à campanha pelo

serviço militar obrigatório, pela ótica de uma pátria que não oferece as mínimas

condições de vida digna para os seus filhos, afirmou que não havia o direito de se

pedir ao homem desassistido pela pátria que lutasse por ela. Diante dos conflitos e

contradições, ao invés de se constranger, houve uma intensificação na ação dos

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partidários da visão eufórica, como contraposição à visão pessimista. Vê-se,

portanto, que no início do século passado, havia pelo menos duas faces opostas e

complementares para a palavra “nacionalismo”: “a exaltação patrioteira, que hoje

parece disfarce ideológico, e o contrapeso de uma visão amarga, mas real”

(CANDIDO, 2004b, p. 217). No entanto, apenas na década de 1920, essas visões se

confrontariam de forma mais decisiva, com o Modernismo.

Em outro ensaio, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, publicado em 1965,

Antonio Candido divide a literatura brasileira no século XX em três etapas: de 1900 a

1922, de 1922 a 1945 e a terceira a partir de 1945. A primeira fase corresponde a

uma literatura que reproduz os traços literários do período que se seguiu ao

Romantismo, em que se buscou um equilíbrio evitando-se a ruptura. Se nas duas

últimas décadas do século XIX, a contraposição ao Romantismo apresentava vigor,

isso já não ocorria no século XX, em que a reprodução sem a criação de novos

desenvolvimentos dava a impressão de estagnação da produção literária. O

propósito artístico nesta época era o que se chamou de academismo, em que pela

cópia se buscava alcançar o equilíbrio e a harmonia. Na prosa, o romance tinha por

objetivo entreter o leitor, com uma crônica social rala. Mesmo Os sertões, obra

diferenciada mencionada acima, só ganhariam uma leitura mais consistente a partir

do Modernismo. Assim também na poesia, em que a regularidade plástica

predominava, num tipo de “expressão ornamental”10.

Quanto à crítica literária, no final do século XIX, “por suas três principais

figuras – Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo, – havia [sido] desenvolvido

e apurado a tendência principal do nosso pensamento crítico, isto é, o que se

poderia chamar a crítica nacionalista, de origem romântica” (CANDIDO, 2010a, p.

123, grifo do autor). Com a independência política brasileira, o Romantismo se

constituiu enquanto uma busca de “afirmação nacional”, e nessa perspectiva

também de uma “consciência literária”. Entretanto, no século XX, quando já não

havia mais a necessidade e nem a coerência do século XIX, o “critério de

nacionalidade” permanecia como critério judicativo de uma obra artística em níveis

semelhantes ao do pensamento crítico do século anterior, sem um aprofundamento

ou uma renovação. Da primeira etapa do desenvolvimento da literatura brasileira no

século XX, Antonio Candido sintetiza:

10

Enunciação de Antonio Candido.

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As tendências oriundas do Naturalismo de 1880-1900, tanto na poesia quanto no romance e na crítica, propiciaram na fase de 1900-1922 um compromisso da literatura com as formas visíveis, concebidas pelo espírito principalmente como encantamento plástico, euforia verbal, regularidade. É o que se poderia chamar Naturalismo acadêmico, fascinados pelo Classicismo greco-latino já diluído na convenção acadêmica europeia, que os escritores procuravam sobrepor às formas rebeldes da vida natural e social do Novo Mundo. (2010a, p. 122)

A segunda etapa da evolução da literatura brasileira no século XX, de 1922 a

1945 – o Modernismo –, se desdobra em duas fases, a primeira nos anos de 1920 e

a segunda após 1930. No terreno da cultura, a década de 1920 foi de muita agitação

e novidade, rompendo-se com a estagnação das duas primeiras décadas do século.

Antonio Candido vê o Romantismo e o Modernismo como dois momentos decisivos

na literatura brasileira, que representam a ênfase do particularismo na “dialética do

local e do cosmopolita”. Isto é, Candido concebe uma possível “lei de evolução de

nossa vida espiritual” regida pela “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, em

que ora prevalece “a afirmação premeditada e por vezes violenta do nacionalismo

literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado

conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus” (2010a, p. 117). Diante

das novas condições estéticas e ideológicas do Modernismo, os debates em busca

de uma teoria e uma prática nacionalistas ganharam fervor. Deveria o nacionalismo

se opor ao socialismo e ao anarquismo, por serem tendências estas antipatrióticas e

internacionalistas? Seria uma necessidade estabelecer um socialismo dos oprimidos

que teria de ser nacionalista enquanto contrapeso ao colonizador e explorador, em

decorrência da opressão econômica e política dos países ricos em relação aos

pobres? Enfim, eram muitas as questões que se desdobrariam no decorrer do

século. O Brasil enquanto um país jovem e periférico culturalmente dependia das

referências dos países ricos do velho continente. Foi nessa encruzilhada que se

criou um paradoxo: se no campo social e político buscava-se a autonomia e para

isso entendia-se que o nacionalismo desempenhava um importante papel de

afirmação, no terreno da cultura, a jovem nação se espelhava nos países que

economicamente a dominavam. Daí uma dialética complexa que os modernistas

brasileiros tiveram de enfrentar. Nesse sentido, para Candido, foi fundamental a

valorização da temática nacional e a consciência a respeito da realidade brasileira,

com a reabilitação dos grupos sociais e seus valores marginalizados pela elite

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dirigente do país. Os modernistas brasileiros fizeram essa operação recorrendo aos

instrumentos libertadores da vanguarda europeia, mesmo que isso representasse ir

ao império cultural do qual buscassem se livrar.

Se o Romantismo e o Modernismo ocupam o mesmo campo do localismo na

“dialética do local e do cosmopolita”, e igualmente se inspiraram na arte europeia,

diferem quanto aos propósitos dessa relação. O Romantismo, expressão artística do

pós-independência política do Brasil, momento de nossa afirmação como nação, se

confrontou diretamente com os valores portugueses, procurando superar a influência

e a presença ostensiva de Portugal, afirmando uma literatura com características

peculiares, buscando assim uma identidade nacional pela diferenciação com o

antigo colonizador, mesmo que o modelo literário francês e inglês que seguimos no

século XIX tenha chegado a nós através de Portugal, que fixava o exemplo e o tom

da imitação. Esse processo de elaboração de uma identidade própria teve um

percurso em que lentamente fomos nos separando dos portugueses para nos

tornarmos brasileiros.

Cem anos após a independência política, com o amadurecimento da relação

com Portugal, o Modernismo ocorreu a partir de condições e propósitos diversos dos

que mobilizaram os românticos, apesar de as questões nacionais constituírem um

eixo essencial. A reação dos modernistas concentrava-se contra a estagnação

artístico-cultural patrocinada pelo academismo, que se consolidou na primeira etapa

do século XX, e investia no sentido de tentar superar uma série de recalques

históricos, sociais, étnicos, que seriam trazidos à tona na arte moderna. Isso porque

há uma ambiguidade em nossa cultura, cuja herança europeia, historicamente

valorizada, sempre foi a contragosto das classes dominantes perpassada pela

mestiçagem e influenciada por culturas primitivas, ameríndias e africanas, o que

dava “às afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se

resolvia pela idealização” (CANDIDO, 2010a, p. 127). Após a Primeira Guerra

Mundial, com o rápido aumento do nível de industrialização no Brasil, o que fez com

que o país ficasse mais ligado aos problemas sociais e econômicos europeus, o

desnível cultural entre os dois continentes tornou-se menos drástico. Nesse sentido,

a afirmação do local pelos recursos da linguagem artística europeia tem, no

Modernismo, um caráter bastante diverso em relação ao Romantismo, pois rompe

com a idealização ao reinterpretar as nossas “deficiências”, supostas ou reais.

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Portanto, assinala Antonio Candido, “o Modernismo foi um momento crucial

no processo de constituição da cultura brasileira, afirmando o particular do país em

termos tomados aos países adiantados” (2004b, p. 219), e também um esforço de

construção de uma literatura universalmente válida. É importante situar que as

acepções que vimos da palavra “nacionalismo” apresentadas por Candido, a face

otimista e a face pessimista, converteram-se em correntes culturais e políticas. Se

por um lado tivemos a exacerbação da primeira face desdobrando-se no

nacionalismo autoritário e conservador, representado na literatura pelo Verde-

-amarelismo e o grupo da Anta, com um nacionalismo sentimental, romântico,

patrioteiro e xenófobo, que se converteu em linha política nos anos de 1930,

corroborando com as modernas ideologias de direita, com suas derivações fascistas,

desaguando na ditadura do Estado Novo; por outro lado, da segunda face, tivemos a

poesia pau-brasil de exportação, buscando inverter a lógica da importação cultural

ditada às colônias, e a teoria da Antropofagia na qual Oswald de Andrade propõe a

devoração da cultura estrangeira, macerada e incorporada como “coisa nossa”, tudo

feito com muito humor, grande ousadia formal e autenticidade. Portanto, apesar dos

temas análogos, o espírito das duas faces é oposto. O embate entre essas correntes

no terreno das artes se acirraria no final da década de 1920, e no campo político, na

década de 1930.

Se as observações de Antonio Candido sobre esse ponto se situam mais na

produção artística, já que a produção crítica, com ensaios históricos e sociológicos

vinculados ao pensamento nacional, sob a perspectiva de uma redefinição de nossa

cultura diante dos novos fatores surgidos, teria na década de 1930 o seu período

mais importante, com os trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e

Caio Parado Júnior, as observações de Pascoal Farinaccio, em seu estudo Serafim

Ponte Grande e as dificuldades da crítica literária, abordam o caráter limitador que o

nacionalismo, enquanto critério de valoração da obra de arte, imprimiu à crítica

literária. No contexto em que se dava o embate entre a nova arte e a tradição

acadêmica, havia também o descompasso entre a produção artística moderna e

uma crítica bastante desatualizada. Um bom exemplo pode ser visto no próprio

contexto preliminar do movimento modernista, com o já mencionado episódio da

exposição das pinturas de Anita Malfatti e a crítica feita por Monteiro Lobato,

naquela época um escritor e crítico já reconhecido. Hoje, passado quase um século,

pode-se observar a fragilidade teórica da crítica da época em função da imensa

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repercussão que obteve o artigo publicado em O Estado de São Paulo. Esse

aspecto da incompreensão da arte moderna por parte da crítica se estende pelos

anos de 1920, o período da primeira fase do Modernismo brasileiro. E, pode-se

dizer, não é um privilégio da arte moderna no Brasil. Os artistas de vanguarda,

mesmo na Europa, tiveram de elaborar as suas próprias reflexões sobre a arte que

produziam, situando-a no contexto da produção material da sociedade capitalista. O

artista vanguardista é também um pensador da arte e do sistema cultural em que

está inserido, e precisa travar esse debate tanto por conta da desatualização da

crítica, como, sobretudo, pelo movimento complexo inerente à vanguarda no

processo de inserção no mercado capitalista, com a mercantilização da arte.

Em relação à exposição de Anita Malfatti, Monteiro Lobato produziu uma

crítica a partir de categorias analíticas realistas e naturalistas que efetivamente não

davam conta da análise do trabalho artístico de Malfatti e, consequentemente, da

arte moderna. Lobato, sem qualquer mediação, apelou para a aproximação, em tom

pejorativo e preconceituoso, da arte moderna com a expressão de alienados

mentais, estabelecendo como diferença entre ambas a sinceridade dos desenhos

estampados nas paredes internas dos manicômios e a falta de sinceridade da outra,

cujo propósito seria ludibriar o espectador. Isso porque a recepção de Lobato estava

condicionada por concepções estéticas estagnadas. Esse episódio ilustra bem a

incompreensão, digamos, generalizada da crítica em relação às novas propostas

estéticas da arte moderna e revela a ausência entre nós, naquele primeiro momento,

“de recursos intelectuais para incorporar organicamente a expressão moderna à

tradição nacional” (FARINACCIO, 2001, p. 27). Essa debilidade é um dos traços que

explicam a capacidade de resistência das formas e convenções passadistas.

Pascoal Farinaccio registra ainda que Oswald de Andrade tratou, no terreno

literário, nas Memórias sentimentais de João Miramar, desse descompasso entre a

produção artística de vanguarda e a recepção crítica desatualizada. No capítulo

“163. ENTREVISTA ENTREVISTA” (1971a, p. 94), em tom satírico, observa-se o

despreparo da inteligência local para compreender as experimentações modernistas.

No episódio, um jornalista busca saber as razões que levaram João Miramar a

interromper a escrita de “suas interessantíssimas memórias”. As primeiras

explicações do memorialista, seguindo advertência do Dr. Mandarim Pedroso, estão

no fato de ser viúvo e por já contar com trinta e cinco anos, por isso são indevidas as

atividades sentimentais escandalosas. Portanto, Miramar tem de se impor um recato

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a fim de não “servir de exemplo pernicioso às pessoas idosas”. Mas o entrevistador

insiste, mostrando que tanto a crítica como a posteridade irão cobrá-lo por não

continuar “tão rico monumento da língua e da vida brasílica”. Ao que Miramar

responde já possuir “o melhor penhor da crítica”, pois já lera o seu livro ao Dr.

Pilatos, que o aprovara, dizendo lembrar-lhe Virgílio, “apenas um pouco mais

nervoso no estilo”.

Dr. Pôncio Pilatos da Glória é um acadêmico do Instituto Histórico e

Geográfico. Ao comparar a prosa miramarina com Virgílio, produz uma

impropriedade analítica. Como seria possível um estilo vanguardista ser analisado

tendo-se por referência padrões estéticos do período clássico da literatura? Essa

incongruência revela ao leitor o universo cultural provinciano em que estão inseridos

os personagens. Dr. Pilatos é um intelectual incapaz de renovar as suas concepções

estéticas, por isso lê o novo pelo viés de uma tradição secularizada, o que gera uma

crítica anacrônica. Diante desses fatos, seja o de Monteiro Lobato, na vida “real”,

seja o do Dr. Pilatos, no mundo “ficcional”, há de se indagar sobre as razões desses

disparates. Segundo Farinaccio, o novo provoca um distúrbio nas expectativas da

recepção, que se vê forçada a redimensionar os critérios de avaliação, tarefa essa

nada fácil. Nesse ponto, o crítico recorre a Umberto Eco que aborda a relação entre

códigos retóricos e complexos ideológicos, que transcrevemos:

Mas toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetiva na medida em que se traduz em mensagens que também subverteram os sistemas de expectativas retóricas. E toda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus momentos definidos como “formalistas”, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias com as quais ele se identificava. (ECO, 1976 apud FARINACCIO, 2001, P. 28-29)

Nesse percurso, o que Pascoal Farinaccio busca averiguar são as possíveis

razões que oportunizaram uma resistência aos valores dos movimentos de

vanguarda. Então faz uma reflexão sobre o nacionalismo. Segundo ele, a arte

moderna no Brasil se deparou com várias dificuldades no seu processo de

implementação, dentre as quais teve no nacionalismo, entendido nesse caso

especificamente como critério de valoração das obras de arte, um elemento de

limitação em relação aos recursos formais e temáticos. Para sustentar os seus

argumentos, Farinaccio exemplifica com Portinari, pintor oficial no após 1930, por

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conter em seus trabalhos a expressão dos elementos nacionais definidos então

como critério essencial para a produção artística brasileira. Como consequência, o

prestígio de Portinari “alcançou tamanha amplitude que acabou por sufocar a

divulgação de outras soluções estéticas, como um Guignard e um Goeldi, fora dos

princípios estreitos preconizados pela compreensão nacionalista do moderno” (2001,

p. 30).

Em sentido geral, enquanto a vanguarda europeia propunha uma estética de

caráter universal, o Modernismo brasileiro, tributário de uma “ideologia da

brasilidade”, tinha a matéria nacional como questão central, que servia inclusive de

categoria analítica para o julgamento de uma obra de arte. Assim, mesmo que

renovadora, a ação modernista brasileira manteve-se afastada de pressupostos

radicais da vanguarda europeia, da qual selecionou aquilo que julgava adequado ao

nosso contexto. Pode-se explicar isso pela realidade sócio-econômica do Brasil,

muito diferente da europeia. A Europa vivia uma transformação radical, com a

intensificação das ações do movimento operário no contexto da luta de classes, e

também com o avanço continuado da técnica à disposição da industrialização e das

invenções modernas, como o automóvel, o cinema, a transmissão radiofônica, o

avião, entre outras. Inserida nesse quadro, a vanguarda artística europeia buscava

operar no mesmo nível da produção industrial, dessacralizando dessa forma a arte.

A consequência disso foi a redefinição dos papéis do artista e da obra. Esta passa a

ser pensada criticamente como um produto do sistema, uma mercadoria entre outras

tantas, sintonizada em um espaço-tempo tecnológico, e feita não mais por um ser

iluminado, possuidor de um dom (BENJAMIN, 1994).

Já no Brasil, o progresso científico e tecnológico, as linhas de montagem e

técnicas gerenciais encontravam-se muito aquém da desenvoltura europeia, o que

implicava na manutenção de uma economia e uma mentalidade tradicionalistas e

conservadoras. Sem esquecermos ainda de que fora dos maiores centros urbanos

do país, não se obtivera a conquista da técnica moderna. Portanto, sendo o poder

político conservador, havia pouca flexibilidade e tolerância para mudanças, e

consequentemente para a arte moderna. Não que a vanguarda europeia não tenha

enfrentado um confronto duro, porém havia mais lastro para sustentá-lo. No Brasil, o

contexto sócio-econômico definitivamente não se encontrava em patamar próximo

ao europeu, o que não impediu, entretanto, que as novas ideias transitassem por

aqui, mesmo que sob limitações, conforme observa criticamente Nicolau Sevcenko:

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“as latências do „novo homem‟ e da „ideia nova‟ se avolumaram num contágio

crescente e irreversível, mas sem raízes fundas, se propagando rápido no imediato

pós-guerra, porém com um horizonte de difusão limitado e sob compressão”

(SEVCENKO, 1992, p. 43).

O pós-guerra foi internacional, atuou em todo o mundo civilizado, abrindo

brechas nos sistemas culturais que apresentavam algum nível de esgotamento. Em

São Paulo, que se urbanizava com rapidez, fez-se sentir mais nitidamente o conflito

entre o provinciano e o citadino. Daí que as novas ideias circulavam, mas não

fincavam “raízes fundas” por conta do histórico do provincianismo e de sua presença

ainda muito forte. Segundo Alfredo Bosi, os modernistas, para tocarem o seu

projeto, precisaram consolidar uma cidade moderna, por isso “as imagens novas da

indústria, da máquina, da metrópole, do burguês, do proletário e do imigrante, e,

sinal de relevo, do intelectual sofrido e irônico, puderam surgir na poesia de Mário e

no mosaico futurista de Oswald de Andrade” (1988b, p. 116). Com esse espírito de

progresso, Oswald de Andrade, no artigo “O Modernismo”, buscou explicar as

razões que levaram o movimento de 1922 a eclodir em São Paulo:

Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria, com sua ansiedade do novo, sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. (2011, p. 196)

É certo que São Paulo tinha outros ares em relação ao restante do país, que

vivia ainda no compasso do passado arcaico, agrário, estagnado. Mas é possível

perceber certa euforia nas palavras de Oswald diante de nosso ainda incipiente

progresso tecnológico e científico. Pascoal Farinaccio observa que os modernistas

brasileiros superdimensionaram tal progresso. Vinculado ao capital da economia

cafeeira, este era um progresso cujo modo de produção era atrasado, mas que a

falta de um olhar crítico deu-lhe forma mais evoluída do que de fato era, e também

menos opressor, pois ao se omitir a exploração brutal do trabalho – estafante, com

agressões físicas aos empregados como resquícios explícitos da escravatura, a

exploração sistemática e irrestrita do trabalho infantil, a opressão policial nos bairros

operários (SEVCENKO, 1992) –, criou-se uma imagem menos violenta do conflito

entre as classes sociais. Assim pode-se compreender a euforia em relação à

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modernização paulista como a “expressão de um desejo de ser”11 que não coincidia

com a realidade de fato. Para Farinaccio (2001), a afirmação nacionalista, nessa

perspectiva, gerou uma percepção falsa, produzindo uma identidade brasileira um

tanto abstrata ao colocar um véu sobre particularidades do sistema, ocultando os

procedimentos de exclusão social.

No campo da crítica literária, o critério nacionalista limitou, por exemplo,

conforme observa ainda Pascoal Farinaccio, a análise das Memórias sentimentais

de João Miramar feita por Mário de Andrade, em dois textos escritos após o

lançamento do romance: “Oswald de Andrade”, publicado na Revista do Brasil em

setembro de 1924, e “Oswald de Andrade: Pau-Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925”, na

época “inédito, provavelmente”12 (BATISTA, 1972, p. 225). No segundo, apesar de

dedicado ao livro de poemas Pau-Brasil, Mário de Andrade fez uma

complementação ao estudo feito no primeiro texto, dedicado às Memórias

sentimentais, em relação à construção das personagens. Nesses ensaios, Mário

sinalizou a modernidade do Miramar em comparação a Os condenados, que

descreveu como “uma contemporização”, “no fundo obra realista”, em que “o

discurso corria lento” (1972a, p. 220). Observou que o prefaciador das Memórias

sentimentais expôs algumas intenções de Oswald, “francamente construtivas”, e

arrematou afirmando que o livro de Oswald “saiu a mais alegre das destruições”

(1972a, p. 220). Frisou ainda a “volta ao material”, “ou pelo menos a apresentação

do material literário puro, em toda a sua infante virgindade” (1972a, p. 220), citando

procedimentos semelhantes, porém mais radicais de Aragon e Maiakowsky, que

combinaram letras do alfabeto, enquanto Oswald “utilizou-se de palavras”. No

ensaio, Mário de Andrade vem descrevendo as Memórias sentimentais até chegar

ao seu ponto de maior interesse naquele momento, a afirmação do nacionalismo

literário, pela veleidade da criação de uma língua literária brasileira. Nas palavras do

próprio Mário: “A volta ao material implicava por certo dar toda atenção à língua

brasileira que está se formando” (1972a, p. 221).

Apesar de importantes observações sobre a simultaneidade, a sátira

extraordinária, a deformação “para expressar com maior verdade”, da fixação do

ambiente paulista sem ser regionalista, da ruptura com a “pasmaceira artística” de

então, em sua análise, Mário de Andrade valorizou em especial os aspectos

11

Enunciado de Farinaccio. 12

Opinião dos organizadores.

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nacionalistas, mesmo que abstratos, sem se dar conta de potentes contradições

expostas pelo romance. O então ensaísta fixou-se em dois aspectos: a língua

utilizada por Oswald e a tentativa de identificação de uma psicologia nacional.

Quanto ao primeiro, o interesse maior de Mário de Andrade estava no seu propósito

de formação de uma “língua brasileira”. Entretanto, Oswald não tinha intenção em

formular essa língua, mesmo que sua linguagem fosse desmistificadora em relação

aos aspectos linguísticos. Mas as preocupações nacionalistas de Mário de Andrade

conduziram-no a uma crítica em que se reduz o vigor da linguagem oswaldiana ao

emprego de neologismos que o ensaísta julga impraticáveis, refuta o seu aspecto

destruidor da linguagem cubo-futurista e demonstra a sua insatisfação pela

escassez de elementos marcadamente nacionais, que contribuíssem com uma

diferenciação entre o falar brasileiro e o lusitano. Observa-se também em Sérgio

Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, preocupação semelhante:

Seria um horror se todo mundo daqui em diante se pusesse a “escrever brasileiro” e cada qual a seu modo. A prova é o próprio brasileiro Miramar, tentativa proveitosa apenas enquanto destruição. Acabou com o erro de português. Mas criou o erro de brasileiro, de que está cheio o livro. Ninguém fala o brasileiro de Miramar. Sua construção, de um raro poder expressivo, é personalíssima. De artista. Portanto, de exceção. Ora, nossa língua em formação tem de obedecer a leis determinadas, as leis gerais da evolução linguística. É nos submetendo às suas tendências que a criaremos e não lhe dando a feição inconfundível da frase de Miramar. (1974, p. 221).

Também a consciência nacional deveria ser fixada pelos modernistas. Para

Mário de Andrade havia consciências parciais, isto é, em certas circunstâncias

históricas assimilavam-se as noções nacionais, mas que não se estendiam a outros

espaços e tempos. De tal forma que não havia uma consciência nacional unânime e

popular. Em sua busca por elementos nacionais, Mário de Andrade detectou no

Miramar o que considerou da maior importância e que depois aplicaria em

Macunaíma: o tratamento analítico dos caracteres, o que possibilitou a criação de

personagem em contínua evolução. Assim, ao invés de fixar os personagens em

determinadas virtudes ou defeitos enquanto figuras estáticas, o “personagem-em-

-evolução”, conforme denominação sua, propiciaria a apresentação de tendências

psicológicas brasileiras, possibilitando uma síntese geral da psicologia nacional. Os

tipos específicos, sintéticos, constituíam as sínteses individuais, enquanto os tipos

analíticos atuariam na elaboração das sínteses nacionais. Portanto, seria possível

assim se fixar o caráter nacional.

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Esses dois aspectos analisados por Mário de Andrade refletem o que Antonio

Candido chamou de “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, já referida, uma

linha mestra da evolução da vida espiritual brasileira. Essa dialética, segundo

Farinaccio, ganharia “relevância conflitiva na esfera do nacionalismo em sua versão

modernista” (2001, p. 35). O nacionalismo como uma característica do pensamento

crítico modernista, que exigia na arte a expressão do elemento local, de certa forma,

segundo crítico, limitou o desenvolvimento de recursos formais e temáticos. Isso não

significa, entretanto, que grandes obras não tenham sido produzidas, mas o

nacionalismo impôs determinados obstáculos. Limitou também a análise de obras

polissêmicas, como Miramar e Serafim, de Oswald de Andrade, por não oferecer

subsídios analíticos que correspondessem à complexidade dessas obras. Talvez por

isso a crítica dos anos de 1920, que identificou a fragmentação no discurso

miramarino, a simultaneidade, além de outros aspectos, contribuiu pouco para a

compreensão das Memórias sentimentais de João Miramar, na qual o

cosmopolitismo perpassa a obra, num diálogo subliminar, sarcástico, de contrastes

com o localismo. Oswald de Andrade, portanto, não descuida da matéria local, sem

no entanto buscar um ajuste acomodatício, restritivo, entre a linguagem poética e as

características próprias do país. No artigo “Carta a Monteiro Lobato”, o escritor deixa

clara a sua preocupação com a representação da matéria local, além de creditar ao

nacionalismo o rumo da crítica de Lobato contra Anita:

Hoje, passados vinte e cinco anos [dos Urupês], sua atitude aparece sob o ângulo legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria os salões à Semana. E não percebia você que nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra brasileira. (1971b, p. 4).

No processo histórico, os anos de 1930 viram, em relação à “dialética do

localismo e do cosmopolitismo”, o primeiro termo se sobrepor ao segundo de forma

mais evidente, quando as questões sociais brasileiras mais pragmáticas passaram a

determinar os roteiros. De certa forma, já nos últimos anos de 1920, o conflito maior

não era mais entre o localismo e o cosmopolitismo, mas entre matizes do

nacionalismo, o que já indicava uma predominância do local naquela dialética.

Mudou, entretanto, que o “resto” do país, aquele que não era a cidade industrial de

São Paulo ou as tribos indígenas das regiões remotas do país, se mostrou através

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de um realismo, ora ingênuo ora crítico. Se nos anos de 1920, a temática girou em

torno da vida urbana com a conquista das técnicas modernas e os ritos da selva

brasileira – o civilizado e o primitivo, o urbano e o tribal, no rastro do que se passava

na Europa –, representando assim um Brasil mítico cujo caráter nacional era

instável, nos anos de 1930, a representação do mundo sertanejo, com a sua

realidade social sofrida, a sua psicologia brotando das relações sócio-culturais mais

pragmáticas, exigia uma nova linguagem mais sóbria e realista, diferente da

linguagem da década anterior. Então, a prosa experimental dos anos de 1920

passou a ser vista pela crítica dos anos de 1930, em última instância, “como um

esteticismo formal e individualista, totalmente desvinculado das necessidades reais

da massa” (FARINACCIO, 2001, p. 39). Daí a importância, reafirmamos, do ensaio

“Estouro e libertação”, da década de 1940. Além do resgate da prosa de ficção de

Oswald de Andrade, Antonio Candido, ao tratar dos aspectos estético-estilísticos das

obras, ofertou à crítica uma nova perspectiva mais ampla do que a proporcionada

pelo critério do nacionalismo da crítica literária das décadas anteriores. Mais adiante,

os poetas concretos em seus ensaios críticos sobre a obra de Oswald de Andrade

fariam descobertas importantes, aprofundando a análise no campo da linguagem

literária. A potência da obra oswaldiana não se esgotou aí, e novos estudos têm

possibilitado uma melhor compreensão dessa obra, um dos pilares do Modernismo

brasileiro e de nossa literatura.

Retornando ao início de nossa reflexão neste capítulo, sobre a necessidade

de se considerar o nacionalismo no estudo de autores modernistas, de sua

importância no contexto da época, cabe assinalar que hoje não se concebe o

nacionalismo como critério de valoração na análise de uma obra, muito menos como

um procedimento de redução da obra artística a uma representação colada na ideia

de reflexo, em que o texto se iguala à realidade externa da obra, como retratos do

Brasil tirados a partir da matéria nacional, como chegou a ocorrer em dado

momento. Nos estudos literários, hoje, é consenso de que a representação do

mundo numa obra ficcional, mesmo quando mimética, está submetida a uma

seleção, feita pelo artista, dos sistemas sócio-culturais e linguísticos já existentes.

Daí que o mundo representado em uma obra artística é uma realidade transformada

em signo, com novas articulações semânticas, e assim convertido em “objeto de

percepção”. Quanto ao nacionalismo, fazendo uma ponte com o pensamento de

Manoel Bomfim, que veremos a seguir no exame sobre o “radicalismo”, concluímos,

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registrando uma concepção que nos parece mais apropriada, com Alfredo Bosi

referindo-se à interpretação de Caio Prado Jr.:

[...] que vê na exploração mercantil europeia o sentido de nossa colonização e a matriz de uma funda divisão de classes, não abolida mas complicada no período que se segue à independência política. Aí estaria o caminho racional para entender as contradições do povo brasileiro que não se pode reduzir a qualquer postulado genérico de um caráter nacional. (BOSI, 1988a, p. 166)

3.2 O DISCURSO RADICAL E O PENSAMENTO CONSERVADOR

O segundo termo que ficamos de analisar é “radicalismo”. Para isso, nos

apoiaremos em outro ensaio de Antonio Candido, escrito em 1988, intitulado

“Radicalismos”. Nesse texto, o crítico tem o propósito de refletir sobre algumas

manifestações de cunho radical na história do Brasil a fim de alcançar uma melhor

compreensão dos rumos possíveis para as transformações políticas. O período

escolhido pelo ensaísta vai do movimento abolicionista ao golpe de Estado de 1937,

que compreende a crise da Monarquia, a consolidação da República oligárquica e

sua crise. Os pensadores contextualizados foram Joaquim Nabuco, Manoel Bomfim

e Sérgio Buarque de Holanda.

Inicialmente, Antonio Candido estabeleceu uma oposição entre as ideias

radicais e o pensamento conservador, observando que este último, no Brasil, é um

dos traços persistentes da mentalidade e do comportamento político, quase

intransponível. O radicalismo seria o conjunto de ideias e atitudes surgidas como

oposição ao conservadorismo. Isso porque o radicalismo é uma ação progressista

diante dos problemas sociais prementes, em contraposição ao modo conservador de

agir. Entretanto, esse conjunto de ideias e atitudes nunca funcionou como um

sistema no Brasil, como pode ser visto em outros países sul-americanos, mas como

decorrência da ação isolada de alguns autores, políticos ou intelectuais. Embora

contenha elementos transformadores, o radicalismo não constitui um pensamento

revolucionário, pois, oriundo da classe média e, circunstancialmente, de setores

inconformados da classe dominante, não se identifica plenamente com os interesses

da classe trabalhadora, que teria o papel histórico de fazer a ruptura revolucionária.

Portanto, a oposição do radical aos interesses de sua classe social vai até certo

ponto, nunca chegando à tal ruptura. O radical pensa os problemas e as soluções na

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esfera da nação, como um todo, neutralizando o antagonismo entre as classes. Por

isso, a tendência desse processo é a harmonização e a conciliação, e não a

superação revolucionária. Apesar de o radicalismo no Brasil, em certas

circunstâncias, provir até mesmo das oligarquias tradicionais, como desvios

ocasionais de parcela insatisfeita dessa classe, Candido conclui ser este um

movimento por excelência da classe média, provavelmente por ser “a única atitude

transformadora possível dentro do seu destino, da sua posição na estrutura da

sociedade e da função histórica dos seus setores esclarecidos” (2004a, p. 197).

Posto isso, vejamos como Antonio Candido trata do pensamento de Joaquim

Nabuco e de Manoel Bomfim. Nabuco era um aristocrata levado pelo movimento

abolicionista a se afastar, por cerca de dez anos (1879 a 1888), de interesses

vinculados à sua classe. Nessa condição, ele percebeu ser o escravo um

trabalhador espoliado ao máximo grau, e também de que “os interesses da

oligarquia levavam não apenas a querer manter o regime escravista, mas a

transformá-lo numa espécie de modelo permanente do trabalho” (CANDIDO, 2004a,

p. 198). Essa clarividência de Nabuco conduziu-o à compreensão de que os projetos

de imigração que se iniciavam, e mesmo a contratação do homem livre para

trabalhar no campo por tempo determinado, eram concebidos pela mentalidade

escravista que procurava estender as características desse sistema a todo

trabalhador, subjugado ao senhor ou ao patrão. Na luta abolicionista, substituiu os

argumentos humanitários, habitualmente usados, pelos aspectos econômicos e

sociais. A escravidão, nessa perspectiva, era desfavorável à produção e

extremamente concentradora de riqueza, além de comprometer a ética do trabalho.

Assumiu a posição em defesa da abolição imediata e sem indenização. Nessa

mesma linha, Nabuco radicalizava contra a mentalidade dominante, vendo o

trabalhador escravo como a parcela mais numerosa do povo, devendo, portanto, ter

direitos de atuação na vida política. Entretanto havia freios no seu radicalismo.

Apesar de ver a oligarquia, da qual se originara, como uma classe exploradora e os

escravos como explorados, nunca pensou essa relação como luta de classes. Para

ele, a abolição seria o primeiro passo para uma reforma social que integrasse o ex-

-escravo numa sociedade plurirracial, conforme o seu conceito de povo, constituído

pela totalidade da população. No entanto, pelas limitações do radicalismo, Nabuco

via todo esse processo regido pela harmonia, pela reconciliação. O resultado, após a

abolição da escravatura, foi o ex-escravo marginalizado na sociedade.

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Após o período da campanha abolicionista, com a proclamação da República,

Joaquim Nabuco ficou afastado politicamente, tachado como monarquista,

retomando as atividades políticas após 1899, quando entrou para a diplomacia.

Antonio Candido caracteriza Nabuco como um radical temporário, que atuou por dez

anos pela abolição da escravatura.

Manoel Bomfim é considerado por Antonio Candido um radical permanente,

isto é, manteve o seu radicalismo ao longo da vida. De sua produção intelectual,

Candido dá ênfase ao livro A América Latina, publicado em 1905. Nessa época, no

Brasil, no terreno filosófico, predominava o evolucionismo, com a aplicação de

concepções biológicas nos estudos sociais e a convicção da existência de raças

superiores e inferiores. No campo ideológico, ocorriam os primeiros contatos de

brasileiros, ainda insipientes, com o anarquismo e o socialismo. Na política

internacional, o imperialismo norte-americano começava a intensificar o seu

movimento na América Latina, buscando se fortalecer. Nesse contexto, Bomfim iria

desenvolver um pensamento que discrepava das ideias dominantes. Sua referência

central era o que chamou de “parasitismo”, que vinha desde a época da colônia,

pela forma como Portugal e Espanha exploraram a América. A desqualificação do

trabalho, imposto ao escravo, e portanto indigno ao homem livre, foi um dos grandes

males dessa herança. Assim, a acumulação de riquezas se deu de forma parasitária,

com a exploração do trabalho alheio. Esse sistema, segundo Bomfim, tem duas

facetas dramáticas: a exploração econômica brutal pode levar à destruição do

explorado, sendo necessária a substituição do escravo; e o fato de que o explorado,

além de produzir a riqueza do explorador, deve defendê-lo e apoiá-lo, “como

capanga, soldado ou eleitor, quando liberto”. Foi o que aconteceu na Guerra do

Paraguai. Daí conclui-se, seguindo as ideias de Bomfim, que a base de nossa

sociedade “é a exploração econômica de tipo ferozmente parasitária, e seus efeitos

atuam sobre toda a vida social” (CANDIDO, 2004a, p. 206), configurada pela

oposição nítida da classe privilegiada, de origem europeia, e a população

predominantemente mestiça e miserável, sendo o trabalho rejeitado, como algo de

escravo.

Essa situação perdura como uma tradição, uma herança que implanta

automatismos que nos fazem agir sem a devida consciência. O traço mais danoso

dessa herança colonial é “um conservantismo, [...] em grande parte inconsciente, [...]

mais afetivo que intelectual” (BOMFIM apud CANDIDO, 2004a, p. 207). Antonio

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Candido vê essa como uma das ideias fundamentais de Manoel Bomfim para uma

análise da sociedade tradicional, e de sua sobrevivência e presença determinante

até os dias atuais. Assim Candido sintetiza as ideias de Bomfim:

O brasileiro seria um homem tornado conservador pela herança social e cultural derivada da mentalidade espoliadora da Colônia, baseada no trabalho escravo, pois esta mentalidade pressupunha a continuação indefinida de um status quo favorável à oligarquia, já que qualquer alteração poderia comprometer a sua capacidade espoliadora. (2004a, p.207)

Como a intenção de fundo é manter as condições de exploração, Manoel

Bomfim detecta que as classes dirigentes concordam com a ideia de progresso, mas

só em sentido retórico. As Constituições liberais do Brasil, por exemplo, foram

respostas retóricas circunstanciais para que a situação social continuasse inalterada.

Na América Latina, os conservadores sempre impuseram a sua vitória sobre os

radicais, criando obstáculos ao progresso. Para Bomfim, o conservadorismo é

estrutural na sociedade escravista e se contrapõe à lógica da evolução das

sociedades modernas. Aproxima-se da ideia de Joaquim Nabuco ao dizer que a

prática da classe dominante é transmitir aos seus sucessores a herança do regime

escravista, mesmo que a abolição já tivesse sido decretada. Foi dessa forma que

Bomfim compreendeu o processo de formação de nossa sociedade moderna,

marcado pela opressão e pelo atraso, em benefício da oligarquia conservadora.

Entretanto, apesar de demonstrar lucidez em suas análises, Manoel Bomfim

confirma as limitações do radicalismo, refreando as perspectivas revolucionárias,

substituídas pela tese conciliadora de que a instrução do povo seria suficiente para

resgatá-lo. Só mais tarde, com o livro O Brasil nação, de 1931, assinala Antonio

Candido, Bomfim defenderia a transformação revolucionária como solução contra a

marginalização histórica do povo brasileiro.

Voltemos então ao nosso objeto de estudo, as Memórias sentimentais de

João Miramar. Conforme já vimos, embora haja nesse romance uma relativa

independência entre a estrutura discursiva e os eventos da realidade extraliterária, o

texto guarda relações com essa realidade, até mesmo pelo sentido da sátira. Sem

ser uma representação mimética, ou como diz Lucia Helena uma “mimética de

representação”, aquela que se amolda a uma realidade previamente existente, as

Memórias sentimentais articulam uma relação crítica com a realidade que lhe serve

de referência. Daí pode-se observar, a partir da leitura do texto, que essa crítica

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parece ter como alvo os costumes da elite paulista. Nesse romance, não ocorrerem

denúncias de caráter social envolvendo as classes subalternas, da forma como as

fazem Nabuco e Bomfim. Dos setenta e um personagens, concebidos

essencialmente como tipos, inclusive Miramar (JACKSON, 1978, p. 33), todos ou

são ricos, ou circulam em torno dessa elite. Por não ser mimético, a ligação do

romance com o horizonte das ideias desse contexto é mais frouxa. Daí que o

discurso miramarino possibilita ao leitor ampliar a percepção dessa realidade pelas

brechas do não dito, conjugando montagem e interpretação. Ou seja, o que não está

explicitado, mas sugerido, pode ser completado pela recepção. Esse é o princípio do

jogo literário que Oswald de Andrade faz com o leitor.

Vejamos, por exemplo, o capítulo “89. LITERATURA” (1971a, p. 54-55), em

que João Miramar viaja para Aradópolis, “junto à fazenda Nova-Lombardia”,

propriedade da família da esposa de Miramar, em companhia do Dr. Pilatos, do

poeta Fíleas e de Machado Penumbra, que a convite do Grêmio Bandeirantes

pronunciaria uma conferência em memória do conselheiro Zé Alves. O ambiente do

evento é um “auditório de fascistas sicilianos com professorado cow-boy”. Após o

evento, na estação de trem, de lambuja Penumbra proferiu um discurso

grandiloquente sobre “a plenitude cafeeira e pastoril” do estado de São Paulo que se

distendeu sobre a fuga “de índios e de feras”, cabendo aos “novos bandeirantes

[que] são a reencarnação estupenda da luta, a magnífica, a eterna ressurreição

simbólica da Força!”. Então, Minão da Silva, agregado da fazenda Nova-Lombardia,

“jovem orgulho mulatal do grêmio”, tomou “a palavra pela ordem” em comemoração

ao conselheiro Zé Alves, fazendo uma saudação em nome do Grêmio Bandeirantes.

Minão inicia o seu discurso anunciando não ter frequentado “as bancadas das

escolas” e termina pedindo desculpas pelos erros de português que cometeu. Se o

discurso do agregado se contrapõe ao discurso digressivo e nada prático de

Machado Penumbra, recompondo a pauta do evento, também revela a pouca

intimidade de Minão com as palavras, ora produzindo uma hipercorreção, ora

empregando um vocábulo que não contém o significado pretendido, ora usando uma

variável popular da língua, apesar de a intenção ser o emprego formal, na tentativa

global de proferir um discurso douto semelhante ao da elite intelectual. A forma

como os discursos dos personagens são explorados por Oswald de Andrade

possibilita a crítica humorística no texto e fornece ao leitor elementos para a

caracterização dos personagens do romance. Afinal, quais seriam as pretensões de

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Minão da Silva como membro do Grêmio Bandeirantes, se ele tem tantas

dificuldades com as palavras? Como já dissemos, a estrutura do texto permite à

recepção o preenchimento das lacunas do discurso sincopado das Memórias

sentimentais. Nesse exemplo, podemos fazer pelo menos dois preenchimentos, isto

é, interpretações: a) os grêmios literários eram instituições da elite sobretudo para o

relacionamento social, ficando a literatura em plano inferior, haja vista o caráter tanto

do discurso de Machado Penumbra, como o do agregado da fazenda Nova-

-Lombardia; b) a estratégia de Minão da Silva ao frequentar o Grêmio Bandeirantes

seria buscar o reconhecimento social junto à elite. Portanto, nesse episódio, há uma

crítica ao modo de ser provinciano da elite paulista e também ao sujeito de origem

humilde que tem por referência essa elite. Talvez aí esteja uma das razões, mesmo

que subliminar, da composição do mulato pernóstico de “pronominais”, na poesia

pau-brasil. É certo, entretanto, que ao tratar o mulato como arquétipo, se expressa aí

um preconceito.

João Miramar também motivado pelos relacionamentos sociais, a pedido de

sua esposa, passou a frequentar, em seu caso, o Instituto Histórico e Geográfico,

com o qual Célia mantinha vínculos por intermédio do primo distante Pôncio Pilatos

da Glória. Nesse Instituto, Miramar conheceu o “orador ilustre escritor Machado

Penumbra” e “o fino poeta Sr. Fíleas” – capítulos “69. ETNOLOGIA” (1971a, p. 43-

44) e “70. RODINHA” (1971a, p. 44). Há algo de análogo entre Minão da Silva e

João Miramar no que diz respeito ao sentimento de se compreender como

pertencente a um grupo. Entretanto existem diferenças em relação à força que move

os personagens em direção às respectivas instituições. Minão vai por desejo próprio,

por ambições de ascenso social; Miramar, por desejo de Célia, uma consolidação de

sua condição social. Também pelo discurso, agora do narrador, o leitor pode efetuar

a leitura na perspectiva de que João Miramar parece crítico em relação a esse tipo

de ambiente literário, dedução possível pelo jogo da ironia no discurso miramarino,

em que as pessoas presentes ao evento aparentemente são como que “apagadas”

da cena na qual o narrador relata as suas primeiras impressões a respeito do

Instituto Histórico e Geográfico: “Mas naquela noite fui introduzido no enceramento

abobadal e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga onde meridianos

comemoravam fastos fictícios” (capítulo 69). Tudo demonstra que Miramar tem

consciência da mediocridade humana ali instalada, mas não tem intenção de se

rebelar contra os seus iguais na sociedade de classes. Analisando

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comparativamente Memórias sentimentais de João Miramar e Memórias póstumas

de Brás Cuba, Samira Nahid Mesquita escreve:

Nada de juízos expressos sobre os comportamentos alheios... Apenas pelo humor, pela sátira, deixam subtender que há uma forte crítica à sociedade, eles incluídos [João Miramar e Brás Cuba]. Mas não são eles que se propõem a corrigir o mundo, como, por exemplo, o herói romântico. (1995, p. 155)

Se Miramar não se rebela pela ação prática, rebela-se pela linguagem, mas

até certo ponto. Daí que Oswald de Andrade coloca o leitor diante de uma questão

complexa no último episódio, o desfecho da história. Como preencher as lacunas

que o autor ficcional deixou em aberto ao explicar as razões da interrupção da

escrita de suas memórias? Nossa hipótese é de que João Miramar, no campo da

linguagem, exerce um radicalismo que tem procedimentos semelhantes ao

analisado por Antonio Candido. Assim, Miramar produz uma linguagem literária de

ruptura com a literatura estabelecida, mas enquanto sujeito o confronto vai até

determinado ponto, em que ele evita a ruptura profunda com a sua própria classe

social. Essa seria uma questão de fundo, que em nosso entendimento potencializa

outras interpretações das Memórias sentimentais de João Miramar.

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4 TÉCNICAS DO ESCRITOR JOÃO MIRAMAR

4.1 O PREFÁCIO E A PRIMEIRA INFÂNCIA

A apresentação aos leitores do livro Memórias sentimentais de João Miramar

é feita no prefácio escrito por Machado Penumbra, um personagem do romance.

Mais estritamente, Penumbra é um escritor e orador que, de certa forma, pontua a

trajetória da convivência de João Miramar no grêmio literário, desde seu primeiro

contato com o Instituto Histórico e Geográfico, quando o prefaciador fora o orador

daquela sessão, passando por uma viagem ao interior paulista, na qual Penumbra

discursou a convite do Grêmio Bandeirantes, até a publicação do livro de memórias

de Miramar, cuja autoria do prefácio coube ao amigo das letras. Portanto, Machado

Penumbra e João Miramar, em relação às realidades literária e extraliterária, estão

no mesmo nível, ambos são personagens do romance de Oswald de Andrade.

Como o prefácio das Memórias sentimentais foi escrito ficticiamente por um

personagem, para apresentar a obra supostamente escrita por outro personagem, o

autor ficcional, adquire uma função distinta da tradicional, pois não faz a

apresentação do romance do escritor Oswald de Andrade. Além do prefácio, o título

do romance indica que as memórias ali registradas são de João Miramar, que

assume ao mesmo tempo as funções de narrador, personagem e autor do romance,

registrando suas lembranças passadas. Resumindo, o prefácio não se dirige a

Oswald de Andrade, mas a João Miramar. Dessa forma, a relação tradicional dos

papéis que cabem aos agentes da realidade extraliterária e aos agentes ficcionais é

embaralhada, e portanto questionada. Afinal, quem seria o autor das Memórias

sentimentais, Oswald ou João Miramar? Na primeira frase do prefácio, Machado

Penumbra confirma a ficcionalidade, ao tratá-la como uma notícia: “João Miramar

abandona momentaneamente o periodismo para fazer a sua entrada de homem

moderno na espinhosa carreira das letras”13 (ANDRADE, 1971a, p.9). Portanto, o

prefácio faz parte do jogo ficcional que Penumbra anuncia, ou seja, ele se integra à

obra de ficção escrita por Oswald enquanto texto inicial. Por isso, mesmo

entendendo que o autor efetivo das Memórias sentimentais seja Oswald de Andrade,

haja vista não haver um texto miramarino e outro, diferente, oswaldiano, isto é, o

13

Os trechos de Machado Penumbra transcritos aqui estão em “À guisa do prefácio”, p. 9-11.

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texto miramarino é prosa oswaldiana, tentaremos aqui extrair do prefácio e da

primeira infância um perfil do autor ficcional e de algumas de suas técnicas enquanto

escritor, visando compreender melhor a prosa oswaldiana.

Machado Penumbra buscou justificar aquela escrita moderna de João

Miramar como “o produto improvisado e portanto imprevisto e quiçá chocante para

muitos, de uma época insofismável de transição”. Essa época seria o período

forjado a partir da Primeira Grande Guerra Mundial, que acarretou mudanças

profundas na vida cotidiana. O estilo e a personalidade de Miramar, segundo

Penumbra, são frutos dessa época, “nasceram das clarinadas caóticas da guerra”.

Como decorrência da “embaralhada de inéditos valores”, o prefaciador chama de

guerra todo o período que se seguiu aos primeiros bombardeios, mesmo o pós-

-guerra, devido às mudanças políticas, econômicas, técnicas e comportamentais que

afetaram a sociedade. Inclusive a sociedade brasileira que, apesar de um tanto

distanciada da conflagração europeia, sofrera os seus reflexos, com o impulso à

industrialização, a maciça imigração de trabalhadores europeus e o progresso

tecnológico dos transportes e comunicação.

A cidade de São Paulo, portanto, crescia e se transfigurava num mundo onde

as coisas não tinham mais definição. As “ideias novas” e as “práticas novas” que

valorizavam a ação, em detrimento ao tradicional repouso dos finais de semana, se

inseriam com intensidade na vida da cidade no pós-guerra. Havia um frenesi pelos

esportes, danças, bebedeiras, tóxicos, competições, cinemas, passeios, viagens,

treinamentos, corridas, parques de diversões etc. (SEVCENKO, 1992, p. 33). A ação

irradiava novas significações na nova sociedade, e a herança cultural mantida no

mesmo formato do passado tornara-se obsoleta. Os novos valores estavam ligados

sobretudo à mobilidade e à ação. Nicolau Sevcenko escreve: “Nesse desempenho

físico, em que o corpo é a peça central, os agentes da „ideia nova‟ se expõem a um

intenso bombardeio sensorial e emocional, que se torna a substância energética em

si mesma da ação” (1992, p. 32). Essa exposição era uma característica dos novos

tempos, da nova civilização, daí que as investigações psicológicas, fundindo as

noções de interior e exterior do indivíduo, impulsionadas pelo trabalho de Freud, se

desenvolvem na literatura do século XX, como em Proust, Virginia Woolf, entre

outros.

A guerra deixara também um quadro político instável, um conflito social em

efervescência, com greves e agitações operárias crescentes. Talvez por isso

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Machado Penumbra escreveu que o tratado de Versalhes “não foi senão um minuto

de trégua numa hora de sangue. Depois dele, assistimos ao derramamento orgânico

de todas as convulsões sociais”. A guerra foi transformadora da sociedade. Após o

seu fim, não houve um retorno ao estado anterior. Nas palavras de Sevcenko:

Mas foi a escala sem precedentes da destruição maciça desencadeada pela primeira guerra tecnológica que eliminou fisicamente das posições decisivas os homens ligados ao lastro cultural dos séculos anteriores. Após a Guerra, seja pela morte, afastamento ou desmoralização dos antigos líderes, uma nova geração emergiu: jovens portadores da “ideia nova”, gente vinda do seio do caos metropolitano e formada nele. (1992, p. 32-33).

As mudanças não dizem respeito só às instâncias de poder, como já dissemos, mas

também à sensibilidade. Sérgio Milliet escreveu em 1925:

A guerra fora um inferno de cinco anos que arruinou o mais enraigado sentimentalismo. Um Cendrars de após guerra, sem braço, de rosto recortado, não pode mais se comover com galanteios fáceis enxertados na sabença dos sonetos de colarinho engomado

14. (1972, p. 240)

As investigações psicológicas, portanto, são um aspecto da época. Segundo

Machado Penumbra, o modo de ser e de escrever de João Miramar parecem um

produto daquele período, que a conflagração europeia legou ao mundo moderno. E

com ironia afirma tornar-se “lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução

emocional dos surtos humanos”. Assim, o texto de João Miramar e a sua

subjetividade contêm as marcas de um tempo de transição.

Entretanto, apesar de Penumbra inscrever Miramar em seu tempo, buscou

mostrar a recusa por parte do autor ficcional da investigação psicológica, substituída

por painéis de eventos cuja análise em profundidade ocorre em relação à

engrenagem da sociedade, conforme registra o prefaciador: “Memórias sentimentais

– por que negá-lo? – é o quadro vivo de nossa máquina social que um novel

romancista tenta escalpelar com a arrojada segurança dum profissional do

subconsciente das camadas humanas”. De fato, no texto miramarino não há um

processo meditativo, de interiorização, de autorreflexão do narrador ou de qualquer

personagem, mas pode-se observar que a exterioridade da personalidade de

Miramar se aproxima de sua interioridade no processo da escrita das memórias,

conforme ele adquire consciência. A palavra “subconsciente” na frase destacada não

14

Artigo intitulado “Tendências”.

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diz respeito ao indivíduo, isoladamente, e pode ser vista como remissiva à

organização do enredo que se estabelece de forma subterrânea, aparentemente

não-lógica, através de um discurso não-linear, que produz uma crítica ao contexto

social em que João Miramar está situado. Já vimos anteriormente que Haroldo de

Campos observou o jogo dual contido no prefácio de Machado Penumbra em que há

“um antimanifesto na paródia linguística e um manifesto verdadeiro nas definições

de técnica de composição que nele estão insertas” (1971a, p. xviii).

Nos quatro primeiros capítulos, que em conjunto formam uma “estrutura

significativa” na qual João Miramar recorda a primeira infância, os painéis foram

constituídos por lembranças afetivas. Portanto o interior de Miramar se revela no

exercício da escrita, contudo sem a conotação de um romance psicológico. Nesse

sentido, uma análise desses quatro capítulos possibilita um melhor reconhecimento

de aspectos do estilo miramarino que Machado Penumbra busca apresentar ao leitor

no prefácio. Em todos eles há um tédio que se situa nos objetos da realidade

exterior relembrados, percebidos contemplativamente por Miramar, sem que esse

fastio seja evocado por um processo de mergulho interior. Entretanto, a identificação

do enfado revela uma percepção do narrador em relação à realidade em que estava

inserido. Vejamos, por exemplo, no capítulo “1. O PENSIEROSO” (1971a, p.13),

como o desencanto de João Miramar se relaciona com o seu olhar sobre o mundo:

uma cidade sem alegrias, um circo sem mistérios, a monotonia no interior de sua

casa. O tédio está no mundo das coisas, que por sua vez encontra-se destituído de

qualquer significação transcendental, apesar de marcado pela religiosidade. Esse é

também o mundo de um passado longínquo, cronologicamente falando em relação

ao tempo da escrita das Memórias, mas próximo do ponto de vista afetivo.

1. O PENSIEROSO

Jardim desencanto O dever e procissões com pálios E cônegos Lá fora E um circo vago e sem mistério Urbanos apitando nas noites cheias Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos

grudadas. [...] Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim

esquecido vermelhava.

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Esse passado longínquo relembrado, o mundo antigo, o mundo da infância,

fora fixado na memória do autor pela monotonia das ações previsíveis e dos objetos

vagos: a obrigação religiosa com ritos repetitivos e monótonos, esvaziados de

significado; a mãe que também repetia as mesmas ações sem atrativos; o espaço

da casa e o espaço da rua assemelhavam-se pelo tédio. O mundo exterior não

continha outras opções, e marcaria João Miramar pelo viés do desencanto com que

encerra as Memórias. A digressão era uma tentativa de o menino lidar com aquele

mundo, escapulindo para a imaginação: “– Senhor convosco, bendita sois entre as

mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até

embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém”.

Embora as Memórias sentimentais de João Miramar abordem o cotidiano

comum de seu autor ficcional, não se constituem como uma escrita trivial de

exposição de traços de uma época. Miramar enquanto narrador busca se aproximar

dos objetos com os quais estabeleceu uma relação afetiva, traçando o seu itinerário

como painéis montados pela recordação de suas impressões, se negando a uma

estratégia meditativa, introspectiva. Evita repetir fórmulas do passado, tais como as

românticas em relação ao fastio do mundo, e, como contrapeso, o escritor se vale da

ironia, do sarcasmo e do humor para tratar de uma realidade enfadonha, e faz isso

exatamente no instante da digressão, em que o menino, pelo discurso, torna-se

dono da ação. Miramar não busca resgatar uma origem ao escrever suas memórias,

ao contrário, escreve para desarticular o passado estabelecido, desencantado, e faz

isso desarticulando o discurso pelo viés humorístico. Esse seria o método do escritor

Oswald de Andrade que forjou, conforme vimos com Antonio Candido, o “par ímpar”.

No Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade foi explícito ao usar a alegria como

oposto ao conservadorismo, este representado pelo “estado tedioso”. Escreveu

Oswald: “A alegria é a prova dos nove” (1978a, p. 18). Ramon Domingues Maia, em

sua dissertação de mestrado, analisando os capítulos iniciais das Memórias

sentimentais, afirmou sobre a origem do estilo sarcástico de Miramar:

Talvez possamos dizer que esse relato inicial de João Miramar dará forma e será parte da chave explicativa ao seu estilo sardônico, uma vez que sua ironia se processa em grande parte como desencantamento do mundo que se abre e que mais tarde ganhará contornos mais precisos de alguma aversão aos costumes da elite ascendente. (2007, f. 57)

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Os títulos dos capítulos das Memórias sentimentais de João Miramar,

poderíamos ampliar e dizer da obra oswaldiana, em geral têm função que extrapola

a finalidade ilustrativa ou atrativa. Quase sempre integram o conteúdo do texto,

orientando ou completando a sua significação. O capítulo “2. ÉDEN” (1971a, p. 14)

faz a demarcação espacial do enredo. Mesmo que a narrativa percorra outros

espaços, a cidade de São Paulo será o referencial. O título desse capítulo é irônico,

pois São Paulo não é o Éden, o lugar de delícias, o paraíso tropical que muitos

europeus imaginaram ter descoberto com a chegada das caravelas à América. São

Paulo é uma cidade da América do Sul, na qual, para João Miramar, não há o

exotismo imaginado por muitos europeus que buscaram o primitivismo nos

continentes periféricos.

Esse capítulo é constituído por apenas duas frases que, justaposta, articulam

imagens e ideias: na primeira, o narrador contesta a imagem exótica do olhar

europeu sobre uma cidade sul-americana – “A cidade de São Paulo na América do

Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história” –; na

segunda, ele fixa uma imagem que busca representar aspectos da nossa realidade

com suas contradições, a partir da cidade de São Paulo de quando Miramar era

ainda criança – “Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo

aviatório com os berros do invencível São Bento as baratas torvas da sala de jantar”.

Portanto, na cidade de São Paulo, “cara de bichos esquisitos” só aparecia “nas

noites dos verões”, com os insetos. “As baratas torvas” voavam pela sala de jantar

acompanhadas dos “berros do invencível São Bento”. Por essas lembranças serem

da infância de João Miramar, o tempo histórico talvez seja por volta do final do

século XIX, início do XX. Isso não é demarcado com precisão, nem importa muito.

Vale, entretanto, o registro de que a cidade ainda não apresentava grandes

evoluções da tecnologia, se comparadas com as que surgiriam por decorrência da

Primeira Grande Guerra. João Miramar escreve no pós-guerra, relembrando aqui

fatos provavelmente da passagem do século.

A Associação Atlética São Bento foi um time de futebol fundado em 1914,

campeão paulista desse mesmo ano com um time fortíssimo formado por jogadores

que haviam estudado no Ginásio São Bento, uma verdadeira seleção. Desse

“invencível São Bento”, Miramar/Oswald extraiu os berros, provavelmente da torcida,

e que portanto não são de pavor mas de diversão, mesmo que haja momentos de

tensão em uma partida de futebol. Esses berros de tensão e diversão são

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justapostos aos voos das “baratas torvas”, forjando uma imagem imprevista. Parece-

-nos ainda que a expressão “invencível São Bento” guarda uma referência também à

presença do imigrante na cidade de São Paulo. O futebol, esporte inicialmente

praticado por clubes de imigrantes, introduzido no Brasil na última década do século

XIX, se desenvolveu no início do século XX. O primeiro Campeonato Paulista de

Futebol foi disputado em 1902 por cinco clubes: São Paulo Athletic Club; Associação

Atlética Mackenzie College; Sport Club Internacional; Sport Club Germânia e Club

Athlético Paulistano. Em sua autobiografia, Oswald se declara mackenzista, apesar

de o “xodó da cidade” ser o Paulistano (2011a, p. 57). Em outro trecho do mesmo

livro, o som gerado pela torcida de futebol parece ter desde sempre despertado a

atenção do autor:

Da janela lateral de nossa sala de jantar eu avistava as copadas árvores da chácara do Conselheiro Ramalho, na Consolação, que desciam até a atual Avenida 9 de Julho. Detrás, vinha um clamor que se elevava de quando em quando na tarde quieta. Era o futebol que nascia. (2011a, p. 56)

Instalados na cidade sul-americana, esses europeus imigrantes não têm aquela

visão de “Éden” criada pelos europeus de além Atlântico. Assim, a partir das duas

frases justapostas, o corpo do texto desse capítulo acaba por se constituir em um

painel antiéden e estabelece uma relação antitética com o título.

Se a busca do artista vanguardista europeu pelo primitivismo desembocou

muitas vezes no exotismo, em Oswald de Andrade, como em outros modernistas

brasileiros, o primitivo não parece uma aberração, afinal esse é um elemento

sempre próximo em nossa cultura, jamais distanciado conforme se dava na cultura

europeia. Por isso Antonio Candido formulou que “as terríveis ousadias de um

Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais

coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles” (2010a, p. 128). Assim

a imagem de São Paulo do tempo da infância do autor ficcional, quando a cidade

ainda não apresentava grandes evoluções tecnológicas, recebeu dois elementos da

modernidade tratados humoristicamente para o exercício da crítica: mesmo sem

aviões, a cidade tinha “campo aviatório” para insetos; e “os berros do invencível São

Bento” podem representar também o frenesi dos esportes alcançado no pós-guerra.

Esses dois elementos da modernidade justapostos a elementos primitivos formam

em seu conjunto uma imagem que busca representar uma parte da realidade

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brasileira vista por dentro, na qual são encontradas as contradições do moderno e

do arcaico, ao invés de mostrar dela apenas o invólucro conforme as imagens

registradas por uma “Kodak excursionista”, que se limita a expor a casca, o

paisagístico, a cor local, o que resulta no exotismo pela falta do olhar crítico

(CAMPOS, 1972).

Portanto, no método de João Miramar, encontramos as primeiras matrizes da

poesia pau-brasil. Conforme Roberto Schwarz observou no ensaio “A carroça, o

bonde e o poeta modernista”, dedicado à poesia pau-brasil, no contexto histórico da

produção oswaldiana, e mesmo antes, a realidade da sociedade brasileira

costumava compor o cenário com os traços burguês e pré-burguês postos lado a

lado, de maneiras diversas, e até hoje presentes. Esse mecanismo dual atuou sobre

a “inteligência brasileira” e provavelmente, segundo o crítico, tenha animado a

parcela fundamental de nossa tradição literária, sendo que o enfoque da temática

brasileira costumava vir “associado a atraso e desgraça nacionais” (SCHWARZ,

2006, p. 13). Em Oswald de Andrade, no entanto, esse mesmo tema ganha um traço

de otimismo, em que o Brasil pré-burguês, inocente, inaugural, “assimila de forma

sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-

-burguesa, desrecalcada e fraterna” (SCHWARZ, 2006, p. 13, grifo do autor). Para

isso, o ensaísta identifica a matéria-prima do poema pau-brasil obtida por meio de

duas operações: “a justaposição de elementos próprios ao Brasil-Colônia e ao Brasil

burguês, e a elevação do produto – desconjuntado por definição – à dignidade de

alegoria do país. Esta a célula básica sobre a qual o poeta vai trabalhar” (2006, p.

12, grifo do autor). Uma fórmula bastante simples e eficaz, em que os elementos da

justaposição, observados no dia-a-dia do país, conferem ao resultado final – uma

alegoria do Brasil – certo fundamento realista. Daí a força da fórmula oswaldiana.

Aprofundando o seu estudo, Schwarz percebe esse “produto desconjuntado”

da primeira operação como decorrência de uma acomodação dos elementos

históricos antagônicos, pois se constitui como que pacificado, mesmo que a

operação seja processada em sintonia com a vanguarda estética europeia. Para o

ensaísta, é na exposição estrutural do descompasso histórico que está o ponto focal

da poesia pau-brasil. Por isso a importância da primeira operação dessa poesia, em

que os elementos burguês e pré-burguês são justapostos, e que desemboca na

segunda operação, a síntese final. Todo esse processo utiliza variados meios

formais, combinados com a familiaridade dos elementos usados e pela brevidade. O

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resultado do poema busca uma síntese que passa pela acomodação de soluções

antitradicionais e matéria tradicional. Assim, essa combinação própria do moderno

com o arcaico produzia uma alegoria que obtinha o “estatuto de emblema pátrio não-

-oficial” (SCHWARZ, 2006, p. 13). O trabalho formal da poesia pau-brasil foi

principalmente analisado aproximando-se as soluções oswaldianas das soluções

artísticas da vanguarda europeia, contudo, para Roberto Schwarz, pode-se analisar

também em função da matéria, o que exige pensar historicamente essa poesia.

Então o crítico aponta certas limitações de cunho ideológico da poesia pau-brasil na

“supressão do antagonismo” dos elementos justapostos. Ao apaziguar os contrastes,

ocorreria uma “correspondência entre esta estética e o progressismo conservador da

burguesia cosmopolita do café” (SCHWARZ, 2006, p. 27), ou seja, um progresso

cuja mentalidade e prática são atrasadas.

O título do terceiro capítulo, “GARE DO INFINITO” (1971a, p. 14), é uma

metáfora do falecimento do pai de João Miramar. O painel, neste episódio, é

constituído de índices que se somam até a configuração da morte. Escrito em

primeira pessoa e com o tempo verbal no pretérito, o narrador, inicialmente, anuncia

que o seu pai estava doente. E prossegue com o relato de movimentações que

giram em torno dessa situação, sugerindo ao leitor o agravamento do estado de

saúde do pai. O menino observa os acontecimentos a certa distância e sofre

mudanças em sua rotina que independem de sua vontade. Uma característica da

narrativa em primeira pessoa no texto memorialista é o estabelecimento da

dualidade em relação ao tempo, no caso, de João Miramar enquanto narrador e

como personagem que viveu o que ele próprio está narrando. A identidade desses

sujeitos não é exatamente a mesma, devido ao tempo transcorrido. Nessa

perspectiva, o escritor João Miramar explora outros níveis da temporalidade. O

narrador memorialista coloca os eventos no passado, estabelecendo uma relação de

ulterioridade com eles, por isso o tempo verbal da narrativa está no pretérito. No

entanto, nesse episódio, o narrador busca se aproximar do momento presente dos

acontecimentos narrados.

A técnica do escritor para alcançar este efeito está na elaboração “da sintaxe

do texto do capítulo, imitativa da sintaxe infantil, do tempo da matéria narrada”

(MESQUITA, 1995, p.153). Dessa forma, o menino assume o discurso narrativo,

revivendo os acontecimentos como se estivessem ocorrendo no presente da

narrativa. Na primeira frase do capítulo, por exemplo, os elementos são

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coordenados por uma conjunção aditiva que se repete, tal qual a sintaxe infantil:

“Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava

esperando no jardim”. A estrutura sintática infantil prevalece nas outras frases do

capítulo. Observa-se também que a representação, por exemplo, da casa para onde

o menino foi levado, na segunda frase, se estabelece a partir da seleção feita pelo

menino das coisas que mais lhe chamam a atenção, numa perspectiva também

infantil de livre associação de ideias e de imagens: “uma casa velha que fazia

doces”; “a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela”. Ainda mais: a

linguagem infantil, além do predomínio da coordenação na sentença e da seleção de

ideias e imagens feita pela criança, instaura a inocência e a pureza diante do fato

trágico: “[...] a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que

carregou meu pai”.

Oswald de Andrade, em outras obras, também faria uso dessa linguagem e

desenvolveria esse estilo infantil. Mais do que apenas um aspecto da sua linguagem

literária, o “estado de infância” caracteriza em Oswald uma visão de mundo, da vida

e da arte: “Neles [os artistas] bate a pulsação da desgraça alheia. E por isso tiram do

seu manto mágico as altas surpresas da poesia e da arte. É um estado de infância

esse que acompanha o artista em toda a sua vida”15 (ANDRADE, 2011c, p. 456).

Apesar de já ter sido reduzido a um entendimento superficial pela crítica com o

propósito depreciativo, o “estado de infância” no autor vem sempre vinculado às

experiências lúdicas da humanidade, que se confrontam com as pressões

racionalistas. Para a realização dessas experiências, necessita-se de garantias que

se estabelecem, conforme palavras de Oswald de Andrade, a partir de “um

sentimento que acompanha o homem em todas as suas idades e que chamamos de

constante lúdica” (1978a, p. 126)16, compreendida, assim como a religiosidade17,

enquanto uma dimensão do ser humano que o acompanha desde a origem, em

todos os tempos e espaços. É nessa “constante lúdica” que se deposita a

possibilidade de uma “arte livre”, autêntica, original. Nesse sentido é que está a

marca da infância em Oswald de Andrade, como a alegria das crianças em sempre

se depararem com um novo achado, a cada instante. Dessa forma, a vida é sempre

o momento presente, sem projeções, preocupações ou justificativas com um futuro

15

Artigo intitulado “Do órfico e mais cogitações”, escrito em 1954. 16

Tese “A crise da filosofia messiânica”, escrita de 1950. 17

Oswald compreendia o sentimento religioso como sentimento órfico.

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por vir, ou com um passado que já não é mais. O presente é o próprio momento da

criança, no qual está contida a sua potência total. Por isso, na poesia pau-brasil, o

elogio ao lúdico humano, que prevalece na criança:

3 de maio Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi (1972, p. 42)

Com esse espírito infantil, o artista se coloca diante da vida e da obra. Ele

situa-se, portanto, no “estado de infância” próprio ao artista e que o acompanha por

toda a vida, repetimos. Mas isso tem como consequência o seu desajuste na

sociedade, por não conseguir se adaptar aos padrões estabelecidos na engrenagem

social. O artista é incapaz de seguir o modelo de adulto ideal civilizado, por isso traz

consigo o estigma dos marginalizados, segundo Oswald, “do primitivo, do louco e da

criança” (2011c, p. 456). Walter Benjamin, em seus belíssimos estudos sobre a

infância, observou ser comum as crianças inventarem seus brinquedos com os

resíduos desprezados pelos adultos, pois têm um outro sentido que os adultos não

alcançam. Transcrevemos a seguir um longo trecho do próprio Benjamin sobre a

produção de brinquedos destinada às crianças, feita pelos adultos:

Desde o Iluminismo é esta uma das mais rançosas especulações do pedagogo. Em sua unilateralidade, ele não vê que a Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. (2004, p. 57-58)

Portanto, o interesse das crianças costuma estar no que não teria utilidade na

perspectiva do adulto. As crianças criam os seus brinquedos a partir desses “restos”

e de sua imaginação. Com esse procedimento as crianças se aproximam dos

“inúteis”, ou seja, das pessoas que estão à margem da engrenagem social, que

desempenham papéis sociais imprevistos na civilização. Nessa perspectiva

podemos analisar o quarto e último capítulo deste bloco que montamos e estamos

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investigando, “4. GATUNOS DE CRIANÇAS” (1971a, p. 14-15). O estilo infantil é o

mesmo com que se forjou o terceiro capítulo: narrativa em primeira pessoa, sintaxe

infantil e seleção de ideias e imagens sob a perspectiva da criança. Entretanto há

um elemento novo neste episódio: a presença dos marginalizados, representados

pelos ciganos. Há também uma diferença significativa em relação ao circo já citado:

aqui ele é vivo, em oposição ao “circo vago e sem mistério” do primeiro capítulo. E

quem propicia a magia do circo são os ciganos.

O episódio é constituído por três frases. A primeira diz: “O circo era um balão

aceso com música e pastéis na entrada”. Confirmam-se a sintaxe infantil e a livre

associação de ideias e imagens na perspectiva da criança. O mesmo ocorre na

segunda frase, na qual o narrador revela ao leitor que o menino Miramar se sentia

rei, pois toda aquela alegria do espetáculo circense parecia voltada para ele: “E

funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de

pau com gente ao redor”. Daí que o menino sentiu o desejo de viver sempre aquele

momento. Teve então “inveja da vontade de ter sido roubado pelos ciganos”. A

inveja surgiu porque a vontade de ser roubado pelos ciganos era um desejo

proibido, diante do medo que os adultos inculcavam nas crianças quando um povo

cigano chegava a uma localidade, repetindo continuamente que aquele povo

estranho, que vivia de forma diferente, tinha por hábito raptar crianças. Por isso os

pequenos deveriam se precaver. Daí a inveja que o narrador, o menino Miramar,

sentiu daqueles que podiam ter a “vontade de ter sido roubado pelos ciganos”,

aquelas pessoas diferentes que produziam todo aquele encantamento do circo.

Assim, o primitivo, o louco, a criança e o artista se identificam no estigma dos

marginalizados.

Conforme já dissemos, os quatro capítulos analisados constituem a “estrutura

significativa” da primeira infância das Memórias de João Miramar. Na elaboração de

seu romance, Miramar tem como estratégia configurar as personagens diante do

leitor mais pelos seus discursos do que pelas suas ações. Ou seja, mais importante

do que o relato de viagens, de passeios, de uma reunião no grêmio literário, de um

caso amoroso, são as cartas, os discursos, os bilhetes, as falas das personagens,

as notícias, o discurso do narrador. Trata-se de um texto, conforme observou Samira

Nahid Mesquita, mais voltado para “uma trama da linguagem do que de peripécias”

(1995, p. 152). Nessa perspectiva, ou seja, da ênfase na linguagem, supomos que

esse bloco de capítulos correspondente à primeira infância pode nos dizer também

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da origem do estilo miramarino. Por isso a nossa análise sobre a apresentação do

estilo de João Miramar feita no prefácio por Machado Penumbra não se deteve

apenas ao texto inicial do romance. No entanto, voltemos agora ao prefácio.

Machado Penumbra não identifica no texto de João Miramar um embate posto

entre um modernismo e um passadismo. Para ele, o estilo do autor das Memórias é

decorrência da confusão provocada pela guerra. Por isso a sua complacência para

com o colega das letras Miramar e seu estilo, e a ironia de “reconhecer o direito

sagrado das inovações”. De certa forma, tudo parece muito tranquilo, já que no

romance de João Miramar não há, na ótica de Machado Penumbra, ameaças

vigorosas ao status quo. Em seu foro íntimo, Penumbra permanece convicto quanto

a “um velho sentimentalismo racial [que] vibra ainda nas doces cordas alexandrinas

de Bilac e Vicente de Carvalho”. Para o prefaciador, as inovações daquela prosa de

João Miramar ameaçam apenas “o ouro argamassado pela idade parnasiana”. Ou

seja, a oposição que se configura no estilo miramarino seria entre uma suposta

idade de ouro parnasiana, anterior à guerra, em que havia um equilíbrio, segundo o

ponto de vista de Penumbra, e o período da conflagração europeia. Como considera

a guerra um distúrbio momentâneo, o prefaciador propõe que se espere “com calma

os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o estilo

telegráfico e a metáfora lancinante”. No fundo, Penumbra não acredita que aquelas

inovações vinguem em um país como o Brasil, que “desde a idade trevosa das

capitanias, vive em estado de sítio”. E arremata de um ponto de vista histórico:

“Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores”. Temos aí o sarcasmo

oswaldiano altamente corrosivo.

No texto inicial, “À GUISA DO PREFÁCIO”, Oswald de Andrade usa de uma

retórica empolada para fazer a crítica à “inteligência brasileira” da época, como

também de suas deduções intelectuais frágeis, elaboradas a partir de um ponto de

vista conservador. O erro maior de Penumbra foi tentar caracterizar a linguagem de

Miramar como deslocada do contexto brasileiro e circunstanciada pela guerra, numa

perspectiva nacionalista e retrógrada ao frisar que a guerra ocorreu na Europa,

portanto longe do Brasil. Daí a sua compreensão para com a obra de João Miramar,

apesar de não concordar com o seu estilo, fruto dos enganos do autor e das

confusões da guerra. A empreitada literária de Miramar como homem moderno seria

momentânea, não se sustentaria, pois estava dissociada do Brasil. Ou seria para

muito distante do mundo em que viviam: “Será esse o Brasileiro do Século XXI?”.

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Machado Penumbra é um personagem conservador mas ardiloso. Ele encarna a

vocação do intelectual de província, mas ao mesmo tempo detém informações

atualizadas de sua época que extrapolam o provincianismo. Sabe, por exemplo, do

debate crítico de artes plásticas que ocorria naquele momento histórico na Europa:

“Há [...] nesse livro novo, um sério trabalho em torno da „volta ao material‟ –

tendência muito de nossa época como se pode ver no Salão d‟Outono, em Paris”. E

também do debate em torno da formação de uma língua por modernistas: “O fato é

que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida da mistura do

português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós [...], não

deixa de ser interessante e original”. De posse desse discurso, Machado Penumbra

finaliza o prefácio das Memórias sentimentais de João Miramar atacando a crítica

desprovida de habilidades intelectuais: “Pena é que os espíritos curtos e

provincianos se vejam embaraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão

atilado quão mordaz ensaio satírico”. Talvez em Machado Penumbra esteja uma

pista para se entender como João Miramar, o herói que viveu a vida burguesa sem

se recriminar, aceitando as regras do jogo, sem qualquer propósito de atuar sobre a

realidade no sentido de modificá-la, escreveu uma obra tão moderna, na qual, pela

sátira, se subtende uma crítica mordaz à sociedade, ele incluído. O estilo de João

Miramar se constrói como avesso de Machado Penumbra: enquanto este emprega

um linguajar empolado, aquele é telegráfico. Mas no campo ideológico, ambos

pertencem a mesma classe social, e tudo indica que a unidade de classe prevalece

no final.

4.2 O COMPILADOR E EDITOR DE CARTAS PESSOAIS

Já foi dito por muitos críticos, e já registrado em nosso trabalho, que o

romance Memórias sentimentais de João Miramar congrega vários gêneros textuais,

constituindo-se assim, segundo as próprias palavras de Oswald de Andrade, no

“primeiro cadinho de nossa prosa nova”18 (1971b, p. 45). Essa técnica de articular

diversos gêneros textuais seria aprofundada em Serafim Ponte Grande, conforme

vimos anteriormente. Como temos por objetivo neste capítulo de nosso estudo

investigar algumas técnicas que o autor ficcional João Miramar lança mão na

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Artigo intitulado “Antes do Marco Zero”.

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elaboração de suas Memórias, para assim tentarmos alcançar uma melhor

compreensão da prosa oswaldiana, nos dedicaremos agora à análise do processo

de incorporação de cartas pessoais ao seu romance. Esse gênero textual permite

uma abordagem de aspectos mais íntimos das personagens, apresentados em seus

próprios discursos, sem que o narrador tenha de relatá-los ou de emitir opiniões.

Conjugada a essa análise que elege um gênero textual como referência norteadora

de nossa investigação, nos apoiaremos na montagem de “estruturas significativas”,

formando assim blocos, que não sejam constituídos necessariamente só por cartas,

ampliando a nossa possibilidade de análise. Já vimos anteriormente que o princípio

articulador da matéria narrada nas Memórias sentimentais de João Miramar não é a

lei da causalidade que estabelece uma determinada ordenação sequencial dos

episódios de um romance. Como exercício crítico, pode-se buscar a formação de

blocos a partir da articulação de segmentos da narrativa sob determinado aspecto

linguístico ou temático, ou mesmo sob a lógica da montagem com a junção de

imagens heterogêneas constituindo um todo, para assim se tentar interpretar o

conjunto da obra. Isso faz com que a organização estrutural do romance se dê como

uma rede, ao invés de uma sequência linear conforme a tradição romanesca, e cabe

à recepção tecer essa rede.

As cartas que analisaremos foram escritas por parentes de João Miramar e

pelo agregado da fazenda Nova-Lombardia, em momentos variados da trajetória do

autor ficcional, tendo por destinatários majoritariamente o próprio Miramar, ora

individualmente, ora enquanto casal Miramar e Célia. Mas há algumas cartas

enviadas a outros personagens que foram apropriadas por João Miramar: uma

destinada ao primo Pantico e duas à sua mulher Célia. Sistematizando esses dados,

são ao todo quatorze cartas escritas pelos seguintes personagens: quatro pela prima

Nair – destinadas a Pantico, Célia e duas ao casal Miramar e Célia –; três pelo primo

Pantico – duas remetidas a Miramar e uma a Célia –; duas pela prima e mulher Célia

– encaminhadas a Miramar –; uma pela tia e sogra Gabriela – para o casal Miramar

e Célia –; uma pelo primo longínquo Dr. Pilatos – escrita para Miramar – e três pelo

agregado Minão da Silva – postadas para Miramar. Nesse aspecto, João Miramar

assume uma função a mais no processo de elaboração de seu livro: além de autor,

narrador e personagem, passa a ser também compilador e editor de cartas pessoais.

Essa nova função traz para o autor ficcional um risco ético, já que esse gênero

textual tem por característica a escrita no âmbito da privacidade, portanto, sem a

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intenção de se tornar pública. Em contrapartida, ao serem editadas no romance,

esse caráter de privacidade das cartas possibilita ao leitor um outro olhar para os

personagens e o contexto. Assim, a incursão pelo mundo do gênero carta pessoal

coloca o leitor diante de um cotidiano íntimo e privado, no qual se podem entrever

novos elementos por trás dos que se mostram num plano mais evidente. No entanto,

antes de entrarmos propriamente na análise que propomos, faremos um preâmbulo

sobre esse gênero textual, apoiado no estudo de Jane Quintiliano Guimarães Silva.

A carta pessoal é constituída essencialmente por procedimentos do diálogo

que se refletem no processo de produção da escrita do texto. Dessa forma, esse

gênero textual tem um funcionamento de produção de linguagem socialmente

situada, numa forma de interação particular entre sujeitos, na qual se dá também a

constituição dos próprios sujeitos. Na história das práticas comunicativas mediadas

pela escrita, a carta pessoal viabilizou os relacionamentos humanos à distância, na

esfera privada. Tornou-se uma forma de alguém dar notícias a uma pessoa ausente

do convívio cotidiano, ou mesmo para fortalecer com cordialidade e intimidade um

relacionamento. Há uma cumplicidade entre os interlocutores, o que tende a

conduzir a correspondência a uma informalidade e à superação das diferenças de

lugares sociais, mesmo numa relação marcadamente hierarquizadas. Nesse sentido,

há uma tendência dessa prática comunicativa se ambientar em um mesmo contexto

sócio-cultural, no qual se efetiva a interação entre os interlocutores. Quanto à

temporalidade, trata-se de um procedimento de interação social dissociado do aqui e

agora, em que existe uma diversidade de tempos que se relacionam: há o tempo da

escrita; o tempo da leitura; há outro tempo, o da matéria narrada, que quase sempre

se estabelece a partir do tempo da escrita. As Memórias sentimentais de João

Miramar não são um romance epistolar, mas empregam a montagem de cartas no

corpo da narrativa, e também da sua temporalidade. Por isso os momentos da

escrita das cartas, da leitura e da matéria narrada devem ser considerados em

relação ao percurso das personagens envolvidas e de João Miramar, assim como

em relação ao panorama da época a que se relacionam.

Importa também observar que os papéis dos interlocutores na carta pessoal

não são fixos, e também não se limitam a momentos estanques de atuação. Além da

constante troca de posições dos sujeitos entre remetente e destinatário, que ocorre

no exercício continuado da correspondência, a dinâmica desse processo

comunicativo se caracteriza também pelo fato de que a supremacia do remetente

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sobre o texto produzido torna-se relativa à medida que o destinatário se insere no

texto já no momento da sua produção, como condição necessária para que este seja

elaborado. Assim, o destinatário não desempenha apenas o seu tradicional papel de

dar sentidos ao texto no momento da leitura. O remetente, no tempo da escrita, traz

consigo o destinatário como um co-enunciador, conhecedor de sua vida, confidente.

Portanto, o “movimento dialógico” oferece um novo sentido além da alternância de

papéis comunicativos entre os correspondentes. Os esquemas de participação dos

sujeitos no interior do evento comunicativo retratam, em larga medida, as formas

como as pessoas se organizam e se relacionam no cotidiano da sociedade

(BAKHTIN, 2003). Nessa perspectiva, as práticas comunicativas do gênero carta

pessoal e os textos delas oriundos devem ser considerados numa visão processual,

em que a língua, a linguagem e a realidade social se constituem como algo

dinâmico, construídos e reconstruídos constantemente pelos agentes sociais. Assim,

a incursão pelas cartas compiladas e editadas por João Miramar nos orienta a

investir no exame dos papéis dos participantes do ato comunicativo, das identidades

sociais reveladas nas relações interativas, como também do trabalho de construção

do texto.

A carta pessoal tem algumas etapas e sequências discursivas que organizam

a estrutura textual do gênero, estabilizadas por um trabalho coletivo contínuo e

permanente no âmbito dos eventos de interação, tais como a presença de vocativo,

a saudação, a despedida. A feição que o remetente dá a essas fórmulas pode

expressar um valor social, estético, de caráter, entre outros disseminados pelas

práticas comunicativas das cartas. Em relação ao corpo do texto, identifica-se aí o

uso de estratégias e de outros recursos linguísticos que podem ser de aproximação

dos interlocutores, de condução, conforme a intencionalidade estabelecida. O fato é

que os sujeitos, remetente e destinatário, operam o texto a partir de um

conhecimento convencionado sobre a estrutura textual e os elementos lexicais,

reconhecido socialmente conforme as práticas históricas de interação realizadas por

cartas e as situações comunicativas. Isso não significa que a situação de

comunicação lançada por esse gênero seja constituída apenas de dados

marcadamente objetivos. As fórmulas linguístico-discursivas próprias do gênero,

longe de tornarem a situação de comunicação previsível e objetiva, operam também

com um conjunto de representações interiorizadas pelos interlocutores e suscetível

de ser mobilizado no decorrer do processo interativo, o que produz um dinamismo

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singular. A respeito das etapas e sequências discursivas que organizam a estrutura

textual do gênero carta pessoal em nossa cultura, e funcionam como um guia,

podem ser assim distribuídas: a abertura do evento; o corpo da carta; o

encerramento do evento; e o post scriptum, que é facultativo. Vejamos, a seguir, um

detalhamento dessas etapas.

A “abertura do evento” consiste, por parte do remetente, na instauração do

contato e da interlocução com o destinatário. É constituída pelo cabeçalho e pelo

exórdio. O “cabeçalho” tem a função de contextualizar o evento indicando a origem e

a época da produção do texto. O “exórdio” se divide em dois momentos: saudação e

solicitudes. A “saudação” vem acompanhada do vocativo, e se caracteriza como

estratégia interativa introdutória, indicando a natureza do relacionamento e o nível

de intimidade dos interlocutores. Nas “solicitudes” são expressos os votos de saúde

e paz, o sentimento de saudade, as desculpas em relação à carta anterior, etc. Sua

função é de natureza pragmática e interativa.

O “corpo do texto” é o lugar do desenvolvimento do objeto do discurso, no

qual o remetente apresenta os temas que reportam ao seu cotidiano. Ele escreve

sobre si, incluindo aí assuntos de foro íntimo, sobre outros com quem convive, relata

episódios vivenciados. O detalhe é que esse discurso nunca é centrado de tal forma

no próprio remetente a ponto de se tornar um monólogo. Por meio de estratégias

como perguntas e outros recursos linguísticos, o remetente envolve o destinatário

com o que está sendo enunciado, com o propósito de que este compartilhe com o

que vem ocorrendo em sua vida cotidiana. Sob essa perspectiva, o corpo do texto

deixa entrever o modo como os interlocutores representam e agem sobre uma

realidade ali recortada.

O “encerramento do evento” é a última parte da carta, em que ocorre a

preparação da finalização e o fim do evento comunicativo. Compreende um pré-

-encerramento, a despedida e a assinatura do remetente. No “pré-encerramento”, o

remetente anuncia que o encontro está chegando ao final. Nas cartas, não há um

término abrupto. O remetente vai preparando o destinatário para a separação, e

costuma empregar fórmulas linguísticas que permitem ao destinatário identificar

esse momento. É também nesse trecho da carta que se investe na revitalização do

contrato comunicativo, que dará sequência à troca de correspondência. A

“despedida” formaliza o fecho da interação, geralmente por meio de expressões de

afetividade. Tanto a despedida como a saudação são sequências discursivas que

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permitem a observação da qualidade das relações interpessoais entre os

correspondentes. A “assinatura” é um ato simbólico, em que o remetente afirma a

autoria do texto, validando o que foi enunciado.

Por fim temos o “post scriptum”, que não se constitui como trecho obrigatório

da sequência textual. Sua função, em tese, é a de possibilitar a inclusão de alguma

informação ou detalhe que não constou da carta, e o remetente considera relevante

registrar. Feito esse preâmbulo sobre o gênero carta pessoal, passemos então à

análise de algumas cartas compiladas e editadas por João Miramar em suas

Memórias.

4.2.1 Cartas e sexualidade

Uma das marcas da prosa oswaldiana é a eliminação dos excessos na

linguagem. No prefácio das Memórias sentimentais de João Miramar, Machado

Penumbra chamou essa marca de “estilo telegráfico”. Seu resultado na

caracterização das personagens está na extrema economia tanto de traços físicos

como psicológicos. Ou seja, a brevidade nas definições das personagens acaba por,

aparentemente, simplificá-las. Entretanto, o não dito pelo narrador se potencializa

como possibilidades. Assim, ao não fixar, por exemplo, o retrato de uma

personagem do ponto de vista do memorialista, outros discursos que se inserem na

narrativa ganham densidade. Seria esse o caso das cartas. Escritas e lidas em

dadas situações comunicativas, agora aparecem nas Memórias de João Miramar

como documentos compilados e editados pelo autor ficcional. O ponto de vista das

matérias contidas nas cartas não é o de João Miramar, mas há uma apropriação e

seleção das missivas que passa por uma decisão dele. Nesse sentido, as cartas

pessoais têm uma função dupla, a de expor o discurso de outras personagens e a

de trazer uma lembrança documental que interage com a rememoração do escritor

ficcional João Miramar no processo de articulação da matéria narrada (MAIA, 2007).

Vejamos, por exemplo, a primeira carta editada no romance, que aparece no

capítulo “16. BUTANTÔ (1971a, p. 19). Escrita pela prima Nair, tem por destinatário

o seu irmão, o primo Pantico. Os dois eram ainda bem jovens e estudavam em

internatos, na época em que a carta foi escrita. O editor publicou apenas o corpo da

carta, o que exige do narrador uma apresentação do evento comunicativo. Por isso

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há uma colagem em que se justapõem os discursos do narrador e o da personagem

Nair, sobre os quais o capítulo se estrutura.

No discurso do narrador, aparecem as informações que deveriam constar dos

trechos cortados da carta – a abertura e o encerramento do evento comunicativo –,

tais como a identificação do remetente e do destinatário da correspondência, além

do local de sua produção, neste caso o colégio interno onde Nair estudava com as

suas irmãs Célia e Cotita. A informação dada pelo narrador de que Pantico estudava

em outro colégio interno talvez pudesse constar nas solicitudes, devido à prática da

inserção do destinatário no texto já no momento da produção textual, ou talvez seja

apenas fruto do conhecimento do narrador das questões familiares. Com esses

dados, verifica-se a prática da elite ruralista, no processo de formação educacional

de seus filhos, de enviá-los para os internatos, que proporcionavam boa educação

conforme as convenções sociais. O narrador acrescenta ainda uma informação que

muito provavelmente não estivesse na carta, pois não se constitui como um

elemento da rotina comunicativa do gênero, isto é, a descrição sucinta, em estilo

telegráfico, de um traço físico das irmãs Célia e Cotita: ambas eram “bochechudas”.

Quanto à matéria narrada no corpo da carta publicada por Miramar, trata do

relacionamento entre as meninas do colégio interno onde as irmãs estudavam:

[...] As meninas aqui não são tão maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas... nunca vi que espírito civilizado elas têm. Pois como elas não têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todas têm um namorado como elas dizem e é uma outra menina: uma faz o moço e outra a moça. E quando elas se encontram, se beijam como noivos. [...]

Na sequência da carta, Nair registra os reflexos desse comportamento em seu

interior: “Por mais que não se queira ficar como elas, inconscientemente fica-se”. E

conclui o texto afirmando que os tempos são outros, as meninas perdem a inocência

cada vez mais cedo, o que antecipa também a idade com que se compreende a

malícia. A carta, portanto, tem por matéria um cotidiano íntimo das estudantes de um

colégio interno que vivenciavam, a seu modo, um momento do despertar da

sexualidade, tema que sempre foi tratado como tabu em nossa sociedade

conservadora.

Considerando que as primas de João Miramar foram enviadas pela família

para o internato com o propósito de obterem uma boa formação escolar, e que, no

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início do século XX, isso consistia quase sempre na perspectiva de as meninas

virem a ser esposas exemplares, pode-se supor que o ambiente escolar continha

margens em que se poderia escapulir dos rigores do que seria uma boa educação.

Nota-se ainda que a carta ao ser destinada a Pantico extrapola do universo

feminino, tornando o irmão cúmplice daquela realidade mais íntima. Entretanto, ao

afirmar que as meninas da classe amarante não eram tão maliciosas como as de

outro internato pelo qual provavelmente as irmãs passaram, Nair faz uma pausa,

registrada na sequência do texto por uma conjunção adversativa seguida de

reticências, como se ela buscasse as palavras, ou por ter dúvida sobre o que

acabara de afirmar a respeito da falta de malícia daquelas meninas, ou para melhor

definir as suas deduções sobre o fato que relataria a seguir. Então diz que as

meninas da classe amarante têm o “espírito civilizado”. Elas pertenciam a outros

tempos, a outras conjunturas, a outros contextos. Daí a fascinação de Nair, o

deslumbre pela novidade como marca de quem deixou o mundo rural para entrar em

um novo mundo, civilizado. Mais do que transferir segredos do mundo feminino ao

irmão, as descobertas da sexualidade e das novidades civilizadas parecem ser as

razões efetivas para a produção e envio da carta. O deslumbre pelas novidades da

civilização será a marca da família fazendeira em sua viagem ao mundo europeu.

Articulando-se os dois discursos, do narrador e da carta, observa-se que no

primeiro não há um juízo avaliativo da matéria narrada na carta, mas no título do

capítulo talvez haja uma caracterização da personagem Nair. “Butantã” deve se

referir ao instituto inaugurado oficialmente em 1901, na fazenda Butantã, onde

desde o início do século passado se produz, entre outros medicamentos e

pesquisas, os soros antiofídicos. Daí pode-se vincular o título do capítulo com a

expressão popular “língua de cobra” que remete a falas maldizentes, maliciosas,

capciosas. Seria essa uma caracterização da personagem Nair? Ou seria uma

caracterização imposta pela sociedade conservadora a todos aqueles que se

arriscam a tratar de temas tabus?

Feita uma leitura “vertical” do capítulo 16, que por si é uma unidade completa,

podemos enriquecê-la com uma leitura “horizontal”, articulando este com outros

episódios. Nossa proposta aqui seria constituir uma “estrutura significativa” a partir

do critério temático que diz respeito a aspectos afetivos do protagonista, até o

encontro decisivo com Célia, com quem se casa, conjugado à ocorrência de

expressões linguísticas que, de certa forma, orientam na articulação desses

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segmentos narrativos. Como é prerrogativa da recepção montar as “estruturas

significativas”, optamos por formar um bloco com os capítulos 9, 16, 19, 32, 33 e 57.

Ainda na fase infância/adolescência de João Miramar, há uma segunda carta

publicada no romance, no capítulo “19. BICICLETA DE ONÔ (1971a, p. 20-21),

escrita por Pantico para Miramar. Dessa carta também foi publicado apenas o seu

corpo, o que resulta na necessidade de justapor ao discurso de Pantico o discurso

do narrador, que anuncia o remetente e o destinatário, além do local em que fora

escrita, Águas Enxutas, onde moram “tias longes”, e a época, as férias de Pantico. O

remetente encontra-se muito aborrecido, pois não há divertimento onde está. “O rio

é muito perigoso e pequeno. E também não tem meninos. Passo os dias que nem

na fazenda que não tinha nada para fazer senão vícios.” E termina o corpo da carta

com a ameaça de praticar os “vícios” caso sua mãe não lhe envie a bicicleta

solicitada para divertir-se: “Vou fazer como lá se mamãe não quiser mandar a

bicicleta que já estou pedindo”. Os “vícios” praticados na fazenda Nova-Lombardia,

provavelmente, conforme depreendido do título do episódio – “Bicicleta de Onã” –,

sejam os da automasturbação. Onã é um personagem bíblico designado a dar

posteridade a seu irmão, o que evita interrompendo o coito com a cunhada no

instante da ejaculação para evitar a fecundação. Daí o significado da palavra

“onanismo” ser também automasturbação.

O tema da sexualidade tratado nas cartas dos primos se apresenta, de certa

forma, bastante explícito, se cotejado com o que parece ser a primeira experiência

concreta da sexualidade do próprio Miramar relatada nas Memórias. Talvez aí esteja

a importância desses documentos incorporados ao romance, para se obter uma

representação mais direta, produzindo um efeito de objetividade no romance como

contrapeso às formas indiretas de expressão de temas difíceis, quando valores

morais tradicionais vêm à tona. Ainda no bloco infância/adolescência, Miramar se

enamorou por Madô, lembranças abordadas no capítulo “9. BOLACHA MARIA”

(1971a, p. 16-17). O episódio foi relatado com imagens um tanto oníricas, e parecem

corresponder, repetimos, a uma experiência concreta da sexualidade de Miramar.

Tudo indica que o texto nebuloso desse episódio ocorra devido uma filtragem

operada pela consciência do narrador. João Miramar, menino, portanto sem a

segurança que se adquire com as experiências da vida, estava na sala de Monsieur

Violet. Logo após o mestre ter saído do cômodo, surgiu Madô: “Amanhecia na sala

abandonada pelo mestre”. O nome “Madô” vem da redução de “Madalena”, que

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pode ter como significado “mulher fácil” para o evento sexual. “Amanhecia na sala”

porque Madô ali aparecia, iluminando aquele cômodo escuro, cuja janela da rua

nunca era aberta. E a imagem sensual da menina vem a seguir: “Era Madô de meias

baixas saias curtas e pela mão vacilante nos palmitos o último rebento dos Violet”. A

ação do protagonista em direção a Madô também não é relatada de forma objetiva,

acrescentando-se que a narrativa foi posta em terceira pessoa, afastando

nitidamente a matéria narrada do próprio narrador: “O guri despegava a mãozinha

do braço distraído e fazia a volta científica da poltrona e gritava cabelos amostras”. E

mais uma imagem sensual de Madô: “Ela era um jorro das mangas rendadas das

pernas louras abertas”.

Considerando o capítulo “21. CLAQUE” (1971a, p. 21-22) como o primeiro do

bloco da juventude de João Miramar, a partir daí ocorrem algumas experiências

secretas nas ruas e quartos percorridos pelo jovem Miramar, e algumas paixões por

atrizes. Desse período da juventude, elegemos os capítulos 32 e 33, conforme já

anunciamos. No capítulo “33. VELEIRO” (1971a, p. 27), Miramar está atravessando

o Atlântico, rumo à Europa, numa viagem autorizada às pressas por sua mãe, e que

tudo indica ser parte do processo de formação do protagonista. A imagem do colégio

interno inserida nesse capítulo vincula o episódio aqui relatado ao da carta de Nair:

“Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me contar salgada do

banho como estudara num colégio interno”. O título “Veleiro” dá ao navio Marta uma

imagem de pequenez, de isolamento no imenso oceano. Nessa imagem de um

objeto do mundo exterior, o narrador expressa um estado de espírito seu, o mesmo

procedimento técnico do escritor que vimos na análise dos primeiros capítulos do

romance. O episódio transcorre do entardecer ao amanhecer, sem aventuras para o

protagonista, que opta por se isolar diante da cena que sintetiza os eventos sociais

no navio: “Madama Rocambola mulatava um maxixe no dancing do mar”. No

capítulo anterior, “32. ROLAH” (1971a, p. 26-27), cujo título é o nome da futura

amante de João Miramar, a descrição de Madama Rocambola justifica

humoristicamente o afastamento de Miramar das atividades sociais noturnas do

navio: “Uma bola de vidrilhos rodava atrás de uma cabeça loura. A bola dava gritos e

chamava-se Madama Rocambola”. Ainda no capítulo 32, o narrador antecipa um

fato futuro de sua vida, se considerado o tempo cronológico da trajetória de Miramar,

o seu amor extraconjugal com a estrela Rolah e a falência de sua empreitada no

cinema: “E Rolah trazia ao meu céu de cinema um destino invencível de letra de

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câmbio”. Entretanto a antecipação de um evento futuro não nos parece uma chave

para a interpretação do texto. Talvez seja mais fecundo pensar o enredo como um

jogo em que as peças estão posicionadas em todos os instantes, daí, insistimos, o

romance de Miramar ser uma rede a ser tramada pelo leitor.

Voltando ao capítulo 33, ao amanhecer, estando Miramar sozinho no convés,

encontra-se com a estrela diurna, que apesar de não ser nomeada pelo narrador, se

deduz ser Rolah: “Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me

contar salgada do banho como estudara num colégio interno. Recordava-me dos

noivados dormitórios das primas.” A imagem que o discurso produz ainda é um tanto

onírica, mas não como no capítulo “9. BOLACHA MARIA”, nem tão ardiloso por parte

do narrador a ponto de mudar o foco narrativo. O protagonista já está mais

maduro.19 Podemos ver aqui mais uma função da carta da prima Nair, como

contraponto que, de certa forma, contribuiu para Miramar estabilizar as suas

emoções. E o narrador encerra o capítulo deixando o leitor entrever que o desejo de

Miramar por Rolah não é momentâneo: “Uma tarde beijei-a na língua”. A partir

desses dois capítulos, 32 e 33, vários outros blocos podem ser formados vinculando-

-os com o futuro de João Miramar. Talvez esse seja o grande desafio para a

recepção dessa obra, que não se submete a um roteiro de leitura. Em nosso

entendimento, a leitura dessa obra é construção necessariamente coletiva e

acumulativa, diante da quase infindável possibilidade de articulações que o texto

propicia. No entanto, vamos nos deter ao nosso propósito inicial. O último capítulo a

que recorremos para a constituição do bloco com o qual estamos trabalhando é o

“57. HINTERLAND” (1971a, p. 38).

Após retornar da Europa e se deparar com o falecimento de sua mãe, João

Miramar foi passar um período na fazenda Nova-Lombardia, onde encontrou Célia já

moça e se apaixonou. A descrição física de Célia nesse episódio o vincula também

ao capítulo “16. BUTANTÔ: “A laparotomia da adolescência cortara-lhe rentes

bochechas com próteses minúsculas de seios e maneiras de caça presa em

cachos”. Se buscarmos a caracterização física de Célia até o capítulo 57,

verificamos que apenas em três capítulos os traços da personagem são registrados:

em conjunto com suas irmãs, como “primas jambos”, indicando a tez morena, no

capítulo “13. MUDANÇAS” (1971a, p. 18); como “as irmãs bochechudas Célia e

19

Essa ideia de amadurecimento, de ganho de consciência de Miramar ao longo de sua trajetória, foi

desenvolvida por Kenneth Jackson (1978).

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Cotita”; e como “as três moças primas de óculos bem falados”, no capítulo “27.

FÉRIAS” (1971a, p. 24). Apenas no capítulo 57, o narrador volta a descrever

fisicamente a personagem Célia, agora já moça constituída. Observa-se, então, que

a inserção de uma característica física pelo narrador no capítulo 16 é uma operação

milimétrica, já que aparentemente desnecessária, e tem por função mais estabelecer

vínculos narrativos do que descrever a personagem. Célia estudara com as irmãs

em colégio interno, assim como Rolah. E o discurso do narrador nesse episódio,

seguindo a linha do amadurecimento do protagonista, já não tem os volteios das

fases etárias anteriores, é direto para expressar a sua paixão: “E meus olhos

morenos procuraram almoçar os olhos de prima Célia”. A partir do capítulo 57, ele

incluído, até o capítulo o “62. COMPROMETIMENTO”, pode-se formar um outro

bloco, no qual o narrador descreve a vida no interior paulista e a paixão, o namoro e

o casamento do protagonista com a prima. Portanto, as cartas escritas na

adolescência por seus primos e editadas em suas Memórias sentimentais,

entendemos, correspondem a um artifício técnico do escritor para dar conta do

processo de amadurecimento do protagonista do romance.

4.2.2 Cartas e papéis sociais

No final capítulo 3 deste nosso estudo, “NACIONALISMO E RADICALISMO”,

já nos referimos a Minão da Silva e suas ambições sociais ao se filiar ao Grêmio

Bandeirantes. A nossa análise foi no sentido de que aos membros dos grêmios

literários importavam mais as relações sociais do que a literatura. Portanto, nessa

perspectiva, deduzimos que o mulato Minão da Silva buscava reconhecimento social

junto à elite, o que nos levou a reconhecer que talvez aí esteja uma das razões da

composição do mulato pernóstico em “pronominais”, na poesia pau-brasil, ou seja, o

sujeito de origem humilde que tem por referência a elite provinciana e seus valores

conservadores. Mantendo a mesma tese, analisaremos agora as três cartas escritas

por Minão da Silva, destinadas a João Miramar.

Cada uma das cartas foi editada no romance imediatamente a seguir de um

capítulo que narra algum evento da vida de Miramar, com o qual a carta pode

estabelecer um diálogo tácito. Sendo assim, enquanto recepção, podemos constituir

uma “estrutura significativa” com seis capítulos, organizados em pares: 75 e 76; 129

e 130; 146 e 147. Essa montagem, considerando a publicação das cartas no

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romance sempre em par com um episódio relembrado da vida do autor ficcional das

Memórias sentimentais, permite forjar uma ordenação das correspondências de

acordo com uma sequência cronológica facilmente identificada no transcorrer da

vida de Miramar, com o nascimento de sua filha, a crise no casamento e a sua

falência. O tempo cronológico nessa “estrutura significativa” tem uma função

estratégica, pois o movimento de ascensão social de Minão da Silva é combinado

com o movimento de decadência econômica de João Miramar, consolidado no título

do capítulo da terceira carta: “O Antípoda”. Esses movimentos de ascenso e

descenso têm por parâmetros os valores dominantes na sociedade capitalista.

Como documentos, as três cartas escritas por Minão da Silva foram

publicadas no romance praticamente na íntegra, faltando apenas algumas poucas

sequências discursivas da rotina desse tipo de gênero textual, como a data, a

despedida e a assinatura na primeira carta e a data na terceira. Por isso não há

necessidade do discurso do narrador nos respectivos capítulos, para complementar

as informações sobre o evento comunicativo. Como consequência, o discurso do

personagem Minão da Silva ocupa integralmente esses capítulos destinados à

reprodução epistolar, excetuando-se os títulos que, como já vimos, são dotados de

significados diretamente relacionados com o texto. Embora cada episódio do

romance permita uma leitura vertical, por constituir uma totalidade, a articulação

desses capítulos, numa leitura horizontal, amplia o alcance da análise literária.

Comecemos observando alguns aspectos das missivas de Minão da Silva.

O corpo da carta, lugar do desenvolvimento do objeto do discurso, no qual o

remetente apresenta os temas que reportam ao seu cotidiano, pode estabelecer

uma relação com o discurso do narrador do capítulo anterior, que mais à frente

analisaremos. Por ora, observemos a abertura e o encerramento das cartas que

articulam um discurso com os movimentos de ascensão de Minão da Silva e de

decadência de João Miramar. Segundo as características desses segmentos, a

“saudação” e a “despedida” são sequências discursivas que permitem a observação

da qualidade das relações interpessoais entre os correspondentes. Quanto à

“saudação”, temos os seguintes discursos: na primeira carta, capítulo “76. CARTA

ADMINISTRADORA” (1971a, p. 48), – “Ilmo. Sr. Dr. / Cordeais saudações”; na

segunda, capítulo “130. RESERVA” (1971a, p. 74), – “21 de abril / Seu Dr.”; e na

terceira, capítulo “147. O ANTÍPODA” (1971a, p. 83), – “Sr. Dr. Joãozinho”. Já nas

“despedidas”, registra-se: não ocorre na primeira carta; na segunda carta temos:

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“Seu criado às ordens”; e na terceira: “Amigo que lhe estima”. É nítida a evolução da

saudação de um tom bastante cerimonioso para uma linguagem que busca

intimidade, num processo de quebra da hierarquização do relacionamento. Mesmo

que seja uma tendência desse gênero textual o apagamento das marcas da

hierarquia social, o processo transcorre de forma muito abrupta nesse caso, ou seja,

da formalidade extrema da primeira carta, chega a um tratamento na terceira carta

em que o remetente parece querer se inserir na intimidade familiar de Miramar.

Dizemos isso porque a única personagem que trata João Miramar por “Joãozinho” é

a sua mulher Célia. Portanto, “Sr. Dr. Joãozinho”, no diminutivo, mesmo que

combinado com um tratamento respeitoso, pode ser visto como uma escolha que

denota certa intimidade e afeto do remetente para com o destinatário.

No entanto, observado todo o contexto, a demonstração dessa intimidade não

condiz com a situação em que se encontram os personagens. Não há tanta

intimidade entre eles. Talvez possamos ver nisso mais uma revelação da inabilidade

de Minão da Silva com a linguagem, que não se manifesta apenas em relação aos

aspectos gramaticais da língua, mas também em relação ao seu desempenho no

uso dos gêneros discursivos em desacordo com as situações comunicativas postas

em prática. Contudo, outra perspectiva a ser considerada seria haver um tom

exagerado na expressão de Minão da Silva para demarcar a sua ascensão social, já

que se tornará em breve um citadino. Em certo sentido, nos parece haver uma ironia

nesse discurso, que também podemos vislumbrar no emprego do diminutivo por

Célia, conforme o seu casamento com Miramar vai desandando. Portanto, o

tratamento pelo diminutivo nos parece conter uma ambiguidade, entre indicar uma

afetuosidade ou um sentido pejorativo, conforme a situação das personagens.

Quanto às despedidas, nota-se a mudança de um comportamento

inicialmente subalterno para um igualitário, ou seja, de “criado às ordens” do

destinatário a “amigo que estima” o seu interlocutor. Essas sequências discursivas

representam o processo de quebra da hierarquia no relacionamento entre os dois

personagens em decorrência da aproximação das condições sociais, segundo o

ponto de vista do remetente. Temos, portanto, mais uma representação mordaz de

Oswald de Andrade, pois a ascensão social de Minão da Silva se caracteriza pela

aquisição de “um lote de terra de Sociedade” (capítulo 147) junto à Estação da

cidade, onde irá morar. O escritor já vislumbrava o processo de migração da

população rural pobre para as periferias das cidades, que depois viria a se tornar um

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movimento massivo. Não há resposta de Miramar às posições de Minão da Silva

expressas nas cartas, a não ser os títulos dos capítulos.

Como já dissemos, a nossa proposta para a análise do corpo das cartas é

realizar o estudo em par, ou seja, cada carta juntamente com o capítulo precedente.

O capítulo “75. NATAL” (1971a, p. 48) anuncia o nascimento da filha de Miramar,

Celiazinha, cujo título supre a ausência da data na primeira carta de Minão da Silva,

publicada na logo a seguir. Trata-se do capítulo mais econômico do romance, com

apenas quatro palavras: “Minha sogra ficou avó”. No capítulo “76. CARTA

ADMINISTRADORA” (1971a, p. 48), Minão da Silva tem por objetivo informar ao

patrão a rotina de trabalho da fazenda, ao modo de uma carta comercial, com uma

dinâmica interlocutiva cujo fluxo tende à mão única, ou seja, não se estabelece um

procedimento dialógico entre remetente e destinatário. Só ao final da carta, no

trecho do pré-encerramento, Minão anuncia que todos na fazenda estão bem e

deseja que “D. Célia fique restabelecida da convalescença”. Não há felicitação pelo

nascimento da filha de João Miramar ou qualquer outro índice que pudesse denotar

alguma intimidade entre os interlocutores. Percebe-se que a carta é burocrática, tal

como anuncia o título do capítulo. Podemos então inferir que o diminuto capítulo

anterior, bem ao estilo miramarino, é um discurso oposto ao da carta, longo apesar

de seu restrito conteúdo sobre a rotina da fazenda. Quanto a Miramar, sua vida

familiar e financeira transcorria bem, com o nascimento da filha e a rotina produtiva

das propriedades em ordem.

No segundo par, o capítulo “129. ATO III. CENA I” (1971a, p. 73-74) se

constitui por um jogo dramático com o qual Célia insinua saber do caso

extraconjugal do marido. Portanto a vida familiar de Miramar começa a sofrer abalos,

e por conseguinte a sua vida econômica. Temos no capítulo, inicialmente, o discurso

do narrador que vem seguido por um diálogo cujos interlocutores são Célia e

Miramar. O narrador expressa o momento de profunda tristeza de Célia com uma

imagem belíssima dimensionada pelo sentimento sul-americano, no qual o brasileiro

se insere: “Na preguiça solar da mesma sala grande onde fôramos felizes casais,

Célia e a cadeira de balanço choravam como um tango”. Segue-se o diálogo no qual

Miramar fala uma única vez e uma única palavra, “Já”, respondendo a uma

indagação da esposa sobre o relacionamento do protagonista com a filha. Célia é

uma personagem inteligente e astuta. Inicialmente demarca a falta de atenção do pai

em relação à Celiazinha, para então dizer da carta anônima que recebera, “contando

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tudo”. E como estratégia discursiva, intensifica o drama na sequência ao dizer: “Não

há nada mais triste do que ser enganada”. O silêncio de Miramar, a falta de palavras

é a resposta que eleva ainda mais a cena dramática. Daí o título do capítulo. Mas

como dissemos, Célia é inteligente, e imprime uma nova sequência discursiva com o

objetivo de não enveredar por um discurso de ruptura, que naquele momento parece

não lhe ser conveniente: “Você está apaixonado por essa atriz, Joãozinho! Conte

tudo”. Na sequência do diálogo em que apenas a esposa fala, ela devolve a Miramar

as responsabilidades pela situação do seu casamento, num tom irônico de

humilhação e achincalhamento: “Acho você envelhecido, preocupado, com cara de

viciado, Joãozinho!”.

A segunda carta de Minão da Silva publicada no capítulo seguinte, “130.

RESERVA” (1971a, p. 74), tem em sua abertura a data “21 de Abril”, em referência a

Tiradentes. Constam da sequência discursiva das solicitudes justificativas patrióticas

para a escrita da carta destina a Miramar. O remetente dá notícias das pessoas de

seu convívio cotidiano e, então, entra no corpo da carta, em que informa da

oportunidade de servir em um regimento militar e faz o pedido a João Miramar: “Só

eu saí sorteado para o Regimento Suprimentar de Paracatu no Goiás e queria que

V.S. desse as providências para mim ficar em Caçapava no Regemento de

Infantaria Montada”. Como argumento para convencer Miramar a atuar em seu

favor, Minão aponta que ficando mais próximo à sua moradia, poderia estudar para,

segundo suas palavras, “ser a Luz de minha família”. Portanto, em movimento

oposto ao de Miramar, cuja família começava a desmoronar.

Em discurso confuso, Minão da Silva busca explicar a sua futura atuação no

regimento militar com o talento de seu falecido avô, “Capitão Benedito da Força

Pública”, assim como o talento de heróis da história nacional como “o grande Rio

Branco o Ouro Preto, O Padre feijó, José Bonifácio, Rui Barbosa e outros que nem

se sabe”, citados aleatoriamente na carta. Mesmo Tiradentes, cuja data

comemorativa associa-se ao motivo para a escrita da carta, parece ter o seu

significado esvaziado pela descontextualização. O conteúdo patriótico militar

registrado ao longo da carta acaba por constituir uma sátira ao patriotismo ufanista,

acrítico, sempre deslocado do contexto social e histórico. O encerramento da carta é

abrupto, indo o remetente direto à despedida e assinatura: “Seu criado às ordens /

Minão da Silva”. Talvez possamos ver nesse procedimento uma perda dos

referenciais, sem que sejam consideradas as convenções do gênero carta pessoal,

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em que cabe ao remetente preparar a despedida ao final do texto. Se articularmos

esse capítulo com o anterior, o patriotismo ufanista, ornamental, fica reforçado com

o seu deslocamento em relação à realidade de João Miramar, pois Minão da Silva

faz um pedido com argumentações que estão completamente distanciadas do drama

familiar que vive o protagonista.

No capítulo “146. VERBO CRACKAR” (1971a, p. 83), do terceiro par, é

anunciada a falência de João Miramar. Em discurso que se apropria do exercício

escolar de conjugação verbal, o narrador João Miramar relata a sua quebra

financeira, como elemento do jogo capitalista. Enquanto um perde, no caso ele,

outro enriquece, e um terceiro foge. Nesse procedimento, o verbo “crackar” foi

conjugado nas três pessoas do singular e do plural, como um exercício de

aprendizagem para Miramar. Esse jogo não tem regras, há espertos e trouxas. E o

narrador termina o capítulo expressando que assimilara a lição: “Oxalá que eu

tivesse sabido que esse verbo era irregular”. Obviamente que a palavra “irregular”

tem um duplo sentido: o que denota o aspecto verbal e, o mais expressivo, o

significado “fora da lei”, numa crítica contumaz à ética, ou falta de ética, do sistema

capitalista. A terceira carta de Minão da Silva vem logo a seguir, no capítulo “147. O

ANTÍPODA” (1971a, p. 83). O título remete à oposição entre as situações de falência

de Miramar e de ascensão social de Minão. Nas solicitudes, o remetente nos parece

apenas educado ao dizer estarem todos de sua família satisfeitos por saberem que a

família de Miramar vai bem, o que reforça a tese da pouca intimidade entre os

interlocutores, já que a família do protagonista encontrava-se desmoronando. Como

um antípoda, Minão anuncia na carta: “nós aqui vamos indo Regular o Dito da

Belmira está muito crescido e experto, moram agora na cedade”, denotando a

passagem do tempo e as mudanças da vida moderna, cuja tendência seria as

pessoas do campo rumarem para as cidades que se desenvolvem e abrem vagas

para o trabalho nas fábricas. Daí também “o antípoda”, em que a vida moderna se

impõe sobre o estilo de vida passada.

4.2.3 Cartas e localismo

Pantico, único filho homem de tia Gabriela, completou os seus estudos no

exterior. Primeiramente, foi para os Estados Unidos e depois para a Europa. Em

certo momento, tia Gabriela e duas filhas, as irmãs Cotita e Nair, viajaram para o

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velho continente a fim de se encontrarem com Pantico. Essa viagem acabou por se

transformar em uma viagem turística. Na Europa, a família escreveu algumas cartas

das quais João Miramar publica em seu romance o total de cinco: duas escritas por

Pantico, uma por tia Gabriela e duas pela prima Nair. Há ainda a reprodução do

texto de um cartão postal enviado por esta última. Cada uma dessas cartas foi

reproduzida nas Memórias sentimentais quase que na íntegra em capítulos próprios,

sem inserções do narrador, excetuando-se os títulos dos capítulos. Portanto, a

recepção do romance pode constituir desse conjunto uma “estrutura significativa”.

Como o nosso propósito em relação a essas cartas é investigar o que podemos

chamar de “cosmopolitismo de fachada” da família fazendeira de João Miramar, ou

seja, supomos que na “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, concebida por

Antonio Candido como uma possível “lei de evolução de nossa vida espiritual”,

prevalece na perspectiva da família de forma conservadora o localismo, apesar do

deslumbramento das personagens diante das novidades do mundo civilizado,

cosmopolita. Como esse aspecto está presente na matéria de todas essas cartas,

trabalharemos com um bloco formado, para a nossa análise, com apenas as cartas

dos capítulos 71, 78 e 109. Acrescentaremos alguns trechos de outros capítulos, a

título de complementação. A matéria das missivas se apresenta como painéis

noticiosos dos eventos da família na Europa, tratada por uma escrita da intimidade

característica do gênero carta pessoal. Dessa forma, apesar de não haver uma

introspecção, é possível ver nas cartas a forma como a família se coloca diante das

novidades que o mundo lhe apresenta.

Vejamos, inicialmente, o capítulo “71. FAUSTA” (1971a, p. 44-45), no qual há

a reprodução da carta escrita por tia Gabriela. O editor excluiu o cabeçalho, com as

informações sobre local e data da redação do texto, que podem ser deduzidas no

corpo da carta, e o encerramento do evento comunicativo. Entretanto há um “post

scriptum”, que faz as vezes de encerramento do evento comunicativo. Na

“saudação”, tia Gabriela escreve: “Meus amados filhos / Afetuosas saudações”.

Como seus três filhos estão na Europa, com exceção de Célia, infere-se que a carta

é dirigida ao casal Célia e Miramar, sendo o genro tratado também por filho. Nas

“solicitudes”, tia Gabriela escreve: “Agradeço a confirmação da boa notícia sobre a

alta”. Trata-se da alta do café que Seu Toniquinho do Trancoso Carvalho já lhe havia

comunicada, diretamente de Santos. Por isso o emprego da palavra “confirmação”,

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provavelmente em resposta a uma carta enviada pela filha ou pelo genro. Portanto,

tia Gabriela demonstra ter acesso às informações sobre a produção das fazendas.

No corpo da carta, a remetente relata os fatos mais atuais da sua vida e da

dos filhos no continente europeu. São essas informações que revelam o predomínio

do localismo em relação ao cosmopolitismo, apesar da aparente valoração da

família fazendeira em relação às novidades da civilização. De fato, percebe-se uma

dificuldade em a família lidar com o mundo europeu, um outro mundo, mais amplo,

estrangeiro, com muitas novidades que não são plenamente assimiladas e

incorporadas à sua cultura fazendeira arraigada. Daí o conservadorismo prevalecer

nessa família de cafeicultores. Já no início do relato sobre as vivências francesas,

nos deparamos com uma primeira crítica de tia Gabriela dirigida aos restaurantes de

Paris que, conforme suas palavras, “não prestam e têm galinha com pena”. Isso

porque suas referências certamente são as mesas fartas das fazendas caipiras do

interior paulista, e onde não há pratos enfeitados ao estilo francês. Se tia Gabriela

escreve afirmando não apreciar a culinária parisiense, no mesmo parágrafo,

entretanto, revela encantamento com a “ópera do Fausto”, que julga uma “beleza!”.

A justaposição das duas informações no mesmo parágrafo conduz o leitor a se

perguntar sobre os critérios judicativos de tia Gabriela, e a desconfiar de seus

conhecimentos sobre culinária francesa e ópera, e consequentemente de suas

avaliações. No conjunto das cartas escritas na Europa, observa-se que tia Gabriela

não detém os conhecimentos enfatizados pela educação destinada às mulheres

pertencentes a um estrato social elevado, que desde o século XIX aprendiam:

prendas domésticas, bordado, piano, a língua nacional e o latim, necessário para a prática religiosa, além de línguas estrangeiras, principalmente o francês, o que as qualificam não só para a convivência dos salões, como para os concertos de ópera e a leitura de obras universais. (BOECHAT, 2002, p. 269)

Dando sequência à leitura do corpo da carta, a remetente comunica aos

destinatários que tem recebido visitas do “Sr. Chelinini que disse que conhece meu

genro do colégio”. Tia Gabriela se casará com esse personagem, colega de turma

de João Miramar, que se torna para ela uma referência do Brasil na Europa. Além

disso, o Sr. José Chelinini conquistou a tia Gabriela se colocando como uma espécie

de intermediário do mundo rural brasileiro e das novas técnicas do mundo civilizado.

Foi por suas mãos que tia Gabriela, Cotita e Nair chegaram a um retratista. Também

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seria o Sr. Chelinini, relatado em outra carta, o responsável pela efetuação da

compra de um automóvel por tia Gabriela. Além dessas experiências com as novas

tecnologias, coube a ele o apoio necessário à realização de passeios por paisagens

europeias. O anúncio do casamento do “Conde José Chelinini Della Robbia Grecca

e D. Gabriela Miguela da Cunha” consta do capítulo “90. PARTICIPAÇÃO” (1971a,

p. 55). Entretanto, Chelinini é visto pelos amigos da família, e pelo mundo, como um

oportunista. No capítulo “91. FALA DO MUNDO” (1971a, p. 55-56), o Dr. Pepe

Esborracha responsabiliza Pantico pela realização do casamento de Gabriela com

“esse tal Chelinini, [...] um piratão”, isso porque, segundo o doutor, o filho não tomou

uma atitude de proteção da mãe. E parodiando um “dramalhão” popular, o narrador

reproduz o discurso do Dr. Esborracha: “Era acobertar a mãe pois sabemos quanto

a mulher é frágil! Ele devia chegar e dizer: estou aqui, minha progenitora adorada,

sou eu! E com o revólver na outra mão afastar o miserável!”.

Voltando à carta do capítulo 71, a remetente relata ainda que as filhas Cotita

e Nair “estão estudando piano na aula do Seu Philippe não sei de quê, que é uma

celebridade”. Vemos aí a dificuldade de tia Gabriela em fixar o sobrenome do

professor de piano, apesar de ele ser uma celebridade. Essa dificuldade com as

palavras estrangeira é representada tanto pela incapacidade de lembrá-las como

também pela dificuldade com a pronúncia e com a grafia, marcada de forma

equivocada nas cartas. Portanto, temos aí mais um elemento que demonstra a

forma provinciana como a família lida com o cosmopolitismo, como se rejeitasse

assimilar outras culturas. Tia Gabriela conta ainda em sua carta que foram passar

“uma semana em Fontanablêao”, tecendo o seguinte comentário: “É um segundo

Brasil em beleza de natureza”. Neste caso, o localismo ganha contornos de um

nacionalismo ufanista ingênuo. No capítulo “73. GARAGE E ESCRITÓRIO” (1971a,

p. 46), João Miramar enquanto narrador ironiza essa passagem da carta de tia

Gabriela ao descrever a casa onde fora morar com Célia: “A casa de Higienópolis

sossegava preguiças tropicais por entre a basta erva do jardim aquintalado até outra

rua com árvores e sol lembrando a longe Fontainebleau de minha sogra”. No “post

scritum” da carta de tia Gabriela, duas informações encerram o texto: a remetente

anuncia ter visto “a Vênus de Milo”, obra da Antiguidade que adquiriu status de ícone

popular, e de ter tirado “o Pantico do colégio porque um padre deu um tapa nele”.

Por fim, interpretamos o título deste capítulo como uma ironia referente à tia

Gabriela e à família fazendeira: “Fausta”. Isto porque, como já vimos na crítica de

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Antonio Candido ao se referir à sátira social das Memórias sentimentais, nas viagens

turísticas, a “burguesia endinheirada roda pelo mundo o seu vazio, as suas

convenções, numa esterilidade apavorante” (CANDIDO, 1971a, p. 43).

A segunda carta desse bloco, reproduzida no capítulo “78. A SABIDA” (1971a,

p. 49-50), foi escrita por Nair, destinada a Célia, e encontra-se no romance de

Miramar quase na íntegra, faltando apenas o local e a data da elaboração do texto,

que o leitor identifica no corpo da carta ser do período em que a família estava na

França. Na “saudação”, a remetente diz estar “com muitas saudades de vocês e da

pátria”. Ao final da carta, Nair reforça esse sentimento: “Com o coração naufragado

num lago Lemano de saudades um abraço muito apertado da irmã que muito lhe

estima”. A saudade da pátria e da parte da família que está no Brasil demonstra,

também, a força que o local exerce na “dialética do localismo e cosmopolitismo”,

mesmo na jovem Nair, que nos tempos da adolescência, quando escreveu a

primeira carta publicada no romance de João Miramar, externou seu

deslumbramento pelas novidades.

No corpo da carta, a remetente discorre sobre o atrevimento da irmã: “A

sapeca da Cotita, depois que nós tiramos cada uma uma fotografia com a mão

apoiada numa coluna e a perna cruzada, mandou uma fotografia ao „tal‟ Sr. José

Chelinini, escrevendo por detrás: Se não for sua, serei de Deus!”. Isso lhe custou

“uns cocres” aplicados pela mãe, para quem Chelinini mostrou “a fotografia com a

dedicatória”. Nair credita essa atitude da irmã ao cinema, novidade que mudava o

comportamento da juventude. Por isso Cotita “usa a boca da Mae Murray e o

cabelinho da Bebé Daniels”. Em situação oposta à irmã, Nair encontra-se entediada:

não frequenta bailes e tudo lhe parece chato, sobretudo após a chegada de Pantico,

que se tornou, na expressão de Nair, “um besta quadrado” depois de passar pelos

Estados Unidos e pelos internatos europeus. Portanto, as inovações da civilização já

não mais a impressionam. A remetente informa ainda sobre o pedido de sua mãe,

Gabriela, ao “„tal‟ Sr. José Chelinini para comprar um automóvel para ela”, e encerra

o corpo da carta anunciando algumas expressões em francês, corriqueiras, que sua

mãe já fala: “quelque chose, eau chaude e beaucoup d’argent”. Vê-se, portanto,

mais um reforço sobre a dificuldade de tia Gabriela em lidar com o estrangeiro, pois,

apesar de certo encantamento diante da civilização, a personagem é de algum modo

arraigada à sua cultura local. Observa-se que da família a única que mantém uma

euforia mais vibrante em relação às novidades da civilização é Cotita, devido

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principalmente à influência do cinema. No entanto, no título do capítulo, “A SABIDA”,

que nos parece referir-se a uma postura soberba de Nair, também podemos

vislumbrar uma ironia do narrador quanto ao deslumbramento de Cotita, pois as

ações da jovem não têm qualquer consequência substanciosa, já que ela lida com

as novidades de forma superficial, como se a vida fosse um parque de diversão, ou

seja, sem que em suas atitudes haja a força de uma nova ética. Por isso, quando

ousou ser mais atrevida insinuando-se para Chelinini, levou “uns cocres” da mãe e

recuou.

A família deixa então a França e faz um tour pela Europa. O cartão postal

enviado de “Porto-Fino na Itália”, cujo texto foi publicado no capítulo “104. CARTÃO

POSTAL” (1971a, p. 62), orienta o leitor da movimentação da família. A terceira

carta de nossa análise, também escrita por Nair e publicada no capítulo “109. A

FARRA” (1971a, p. 64-65), parece destinada ao casal Célia e Miramar, tratados

afetuosamente: “Meus queridos irmãos”. A missiva traz um relato da passagem da

família por Veneza. No momento de sua elaboração, tia Gabriela e Chelinini já estão

casados. Escreveu Nair no corpo da carta: “Estivemos agora em Veneza, onde é

muito bonito e célebre”. E revela o jeito caipira da família por sentirem medo das

ruas de água e acharem que não poderiam sair do hotel. Mas uma criada do

estabelecimento ensinou-lhes “que tem ruas por detrás”.

Superado o medo inicial, a remetente narra: “Passeamos muito nas barcas

chamadas gôndolas e vimos homens andando sem chapéu até de casaca”. Mesmo

Cotita, que se mostrava avançada sob a influência do cinema, achou aquilo “um

escândalo”. Mas Chelinini pensou em levar o novo hábito para São Paulo: “Meu

padrasto disse que ia andar em São Paulo para pegar a moda”. Vemos, portanto,

que as referências culturais estão em São Paulo, tanto na rejeição de um novo

hábito, como no propósito de copiá-lo para apresentar a novidade à cidade sul-

-americana. Por fim, Nair critica o comportamento da irmã Cotita, que “aprendeu um

fox-trot ranzinza chamado We Have no Bananas”, e afirmou ainda sobre a irmã que

“fisicamente ela vai muito bem, mas moralmente, faça-me o favor!”. Diante desses

novos costumes em choque com seus valores morais conservadores, Nair afirma: “O

meu fim vai ser entrar para um convento!”. No encerramento da carta, escreve a

remetente que a família não vai “embora para o Brasil porque mamãe tem medo dos

sobremarinos”, ou seja, a inovação tecnológica dos submarinos da Primeira Guerra

Mundial submete a família a ficar na Europa. Há ainda um “post scriptum” que

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confirma a perspectiva romântica das personagens, e o emprego da técnica

moderna em função desse romantismo: “Vimos a Ponte dos Suspiros onde morreu

Romeu e Julieta e tiramos um retrato pegando nas pombas”.

As cartas escritas na Europa e publicadas nas Memórias sentimentais

evidenciam, portanto, o conservadorismo da família fazendeira de João Miramar.

Mesmo Cotita que parece mais despojada diante das novidades não avança no

sentido de provocar uma ruptura efetiva com os costumes tradicionais e incorporar

outras culturas que lhe deem um sentido cosmopolita. Sendo assim, sua postura

acaba por reforçar os valores da tradição local dos cafeicultores, mesmo quando

estes buscam interagir com o mundo. Se no romance João Miramar cede a palavra

a outros personagens ao reproduzir, por exemplo, as cartas, o seu trabalho como

autor ficcional das Memórias está também na escolha das missivas a serem

editadas, o que remete a uma posição crítica diante da matéria ali tratada, o

cosmopolitismo de fachada de uma elite cafeeira. Com efeito, a crítica efetuada

parece ser dirigida à opulência, à ostentação, aos modos, aos costumes e à

moralidade dessa elite que guarda algumas correspondências com o curso da

história nas primeiras décadas do século XX. Não podemos perder de vista, no

entanto, que João Miramar é um personagem do romance de Oswald de Andrade.

Este sim é o autor efetivo, responsável por todo o texto, o criador das personagens

e, consequentemente, do discurso do narrador, assim como das cartas e da sátira aí

presente. Portanto, as técnicas postas em prática pelo autor ficcional são de fato

técnicas do autor efetivo e que caracterizam a prosa oswaldiana.

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5 A MORAL CONSERVADORA E O ESTILO VANGUARDISTA

5.1 PROPRIEDADE E FAMÍLIA

Após o retorno ao Brasil da viagem à Europa, a tempo de estar presente no

enterro de sua mãe, João Miramar foi passar uma temporada no interior paulista, em

Aradópolis, na fazenda Nova-Lombardia, de propriedade da família. Nessas terras o

seu pai nasceu e foi criado, antes de ir para a capital. Diante desse fato, o narrador

se emocionou: “Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira nascer meu

pai”. Miramar registrou essas lembranças no capítulo “58. NOVA-LOMBARDIA”

(1971a, p. 38), em que descreveu também a imensidão daquelas terras, com seus

cafezais e estrelas se fundindo no infinito do espaço. A narrativa do percurso feito

desde a estação de Aradópolis até a sede da fazenda, na qual chegaram já noite de

céu estrelado, reforça a imagem da vastidão do território em estilo sintético: “Fordes

quilometraram açafrões de ocaso. / E a noite pichada empinou terreiros brasílicos

por entre cafezais e papagaios de estrelas”. No entanto, Miramar não é saudosista,

reafirmamos, não está em busca de resgatar suas origens após ficar órfão – o pai

falecera quando ainda era criança e a mãe recentemente. Seu olhar é direcionado

para frente, e traz a questão de como se reintegrar na sociedade paulista após o

retorno da Europa, já adulto.

A fazenda Nova-Lombardia ficara para a tia Gabriela, mãe de sua prima Célia,

por quem se apaixona ao revê-la moça feita naquelas terras do interior paulista, e

que viria a ser a sua esposa. Na sequência dos capítulos 60, 61 e 62, o narrador

rememora esse momento de sua vida, quando da paixão sucederam o namoro e o

casamento, e também as noites tristes da fazenda, eterna monotonia descrita nos

versos do capítulo “61. CASA DA PATARROXA” (1971a, p. 40): “A noite / O sapo o

cachorro o galo e o grilo / Triste tris-tris-tris-te”. Samira Nahid Mesquita (1995), em

ensaio comparativo das Memórias sentimentais de João Miramar e Memórias

póstumas de Brás Cubas, observa que ambos os protagonistas desses romances

passaram por experiências coincidentes. E ao se afastarem da cidade, Brás Cubas

indo para o Alto da Tijuca e Miramar para a fazenda Nova-Lombardia, encontraram

uma namorada. Brás Cubas vai namorar Eulália, bela e coxa; Miramar, Célia,

apelidada pelo narrador de Patarroxa. Daí o título do capítulo, e a observação de

Samira sobre a coincidência sonora: Patarroxa / coxa. No capítulo seguinte, “62.

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COMPROMETIMENTO” (1971a, p. 40), João Miramar relembra o seu casamento,

com uma boa festa, porém, sobre a união oficializada em cartório escreve: “tendo

havido entre nós apenas uma separação precavida de bens”. Afinal, ela era rica, ele

não.

A riqueza de Célia vem da terra, das grandes propriedades produtoras de

café. São enormes fazendas que pertencem à sua família. A posse dessas terras

coube aos ascendentes, e há indicação no texto de que possa ter se dado pela

grilagem. Afinal, assim se constituíram muitos dos grandes latifúndios no Brasil.

Essa informação sobre a grilagem é possível averiguar no capítulo “59. FAR-WEST”

(1971a, p. 39), cujo título remete a filmes norte-americanos que abordam as

aventuras no oeste daquele país e o apropriar-se das terras, enfatizando o heroísmo

de personagens mocinhos – o que caracteriza a conquista daquele território como

justa, mesmo que tenha sido violenta e injusta. A força do cinema em influenciar o

comportamento das novas gerações, afirmando novos costumes, serviu também

para levar a uma plateia pacata do interior paulista a cultura cowboy de heróis que

com seus revólveres fazem valer a sua vontade à bala, como um ato natural

introjetado. Nesse sentido, o cinema norte-americano tende a legitimar também os

assassinatos e as grilagens praticados no Brasil pelas classes dominantes. Daí a

justaposição das duas imagens que constituem esse capítulo: uma que diz da

influência do cinema norte-americano sobre as culturas locais dos rincões do mundo

– “Chapelões e revolvers de último modelo saíam mecanicamente das telas

bulhentas e passeavam calmos nas ruas irrigadas do pó vermelho” –; e outra que

trata da geração ilegal de documentos nos cartórios, apoiada por assassinatos

praticados por membros da força de segurança do Estado, representados pela

imagem do uniforme cáqui, proporcionando assim a riqueza do sertão para os

proprietários das vastas terras:

Tabeliães transmissões de papel tostado e selo do império com grilos milionários a saibam quantos.

[...] Caboclos bailes retretas filas pokers com assassinatos de calça

cáqui para records de pontaria humana na estrada. E o sertão para lá eldorava sempres e liberdades.

Com tanta terra, os cafeicultores praticam uma agricultura baseada na grande

propriedade, uma tradição do Brasil desde as Capitanias Hereditárias. Com o

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propósito de verificar como essas propriedades foram caracterizadas nas Memórias

sentimentais, faremos uma leitura “horizontal” constituindo uma “estrutura

significativa” juntando, aos capítulos 58 e 59, os capítulos “64. MELOSOS

LUNÁTICOS” (1971a, p. 41) e “86. CAMPOS DE BATALHA” (1971a, p. 53), nos

quais há uma descrição feita pelo narrador das vastas fazendas pertencentes à

família de sua mulher, no caso a Nova-Lombardia e a dos Bambus,

respectivamente. Na primeira, de tantas terras se vê do terraço da fazenda “pastos

cercados com estrelas”, como se não houvesse limites e as terras se estendessem

para o céu. Na segunda, também a infinidade da propriedade é descrita, tendo a

linha do horizonte, o limite mais distante do planeta que a nossa vista alcança, como

referência da vastidão da propriedade: “fora e longe do terraço noturno dos Bambus

ia o recorte negro no horizonte na luz amarela do fim do céu”.

João Miramar, ao se casar com Célia, assumiu a administração das fazendas.

Diríamos que o casamento foi um bom empreendimento para ambos, pois Miramar

viria a se inserir na sociedade paulista e a família ganhou alguém que administrasse

a produção de suas propriedades. No capítulo “103. FINANÇAS MATRIMONIAIS”

(1971a, p. 61-62), constituído por um diálogo cujos interlocutores são Célia e

Miramar discutindo as finanças familiares, o protagonista, após se sentir insultado

por ouvir que estava botando “por água abaixo” a fortuna que o pai de Célia

construíra, disse: “Fique sabendo, se não sabe, que duas fazendas estavam

hipotecadas antes do nosso casamento. E sua mãe é que já sacou centenas de

contos de réis nessa viagem de núpcias”. Miramar estava sempre “em Santos

acompanhando as operações da praça, no escritório do Trancoso”, portanto

administrando os negócios de café da família. Ele tinha até certa autonomia como

administrador, a ponto de entrar num empreendimento de produção de filmes sem

nada comunicar à mulher, conforme se observa ainda no capítulo 103 quando esta

diz: “Só acho que é uma asneira esse negócio de cinema, em que você se meteu

sem me falar”. Se a perspectiva de Miramar é se aventurar em um novo negócio,

com o intuito de se tornar também rico, a postura de Célia é cautelosa, mantendo-se

nos negócios já tradicionais do café, que lhe davam fortuna. Temos aí um aspecto

importante, que aparece de outras formas no romance, ou seja, há certa

disponibilidade de Miramar diante da novidade, mas que parece mitigada pela visão

mais conservadora de Célia, que detém a riqueza do casal.

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Família e propriedade, historicamente, estão vinculadas. Nas Memórias

sentimentais de João Miramar é possível à recepção buscar constituir um painel a

partir de capítulos escolhidos, a fim de que as relações existentes entre as

condições financeiras e a solidez da família sejam verificadas. Observa-se no

romance que enquanto há prosperidade, a família do protagonista se mantém

estruturada, mesmo que haja diferentes interesses e perspectivas de seus membros,

mas quando a falência se torna irremediável, casamentos se desfazem e indivíduos

se degradam moralmente e são execrados. Portanto, numa perspectiva

conservadora, observa-se que a moral se submete à economia, ou seja, diante da

prosperidade econômica, a moral burguesa é preservada, não sendo expostas

frontalmente as mazelas, por isso suas normas são violadas de maneira

dissimulada; entretanto, quando a economia se deteriora, as razões para essa

preservação deixam de existir. Nosso propósito é verificar como isso ocorre nas

Memórias sentimentais de João Miramar, a partir de uma “estrutura significativa”

formada pelos capítulos 65, 67, 69, 70, 73, 100, 118, 119, 128, 134, 135, 138, 139,

141 e 142.

No capítulo “65. O FORA” (1971a, p. 41-42), a família embarca em Santos no

“Almanzorra da Royal Mail”, que deixaria o casal Célia e Miramar no Rio de Janeiro

e seguiria viagem para a Europa, levando tia Gabriela e suas filhas Nair e Cotita ao

encontro de Pantico. Nesse capítulo, observa-se, quando da despedida na Estação

da Luz, a presença do “soturno médico de Pindobaville Dr. Pepe Esborracha e

primos longínquos do Instituto Histórico entre os Pilatos da Glória”, personagens

vinculados à Célia. Com o casal instalado no Rio de Janeiro, o leitor depara-se com

o capítulo “67. INSTITUTO DE DAMASCO” (1971a, p. 42-43), no qual está expresso

o desejo de Célia de que seu marido tivesse “uma vocação nobilitante”. O caminho

para o enobrecimento, entretanto, parece divergente nas perspectivas de Célia e

Miramar. Enquanto a esposa projetava nas atividades intelectuais e literárias a

maneira de o marido desenvolver a sua “vocação nobilitante”, João Miramar, que

não se via como um intelectual, desconfiava que talvez essa vocação pudesse estar

vinculada à sua constituição física, por isso, enquanto narrador, escreve nesse

capítulo: “Pensava vagamente em entrar para um club de box depois de ter sido

minha compleição elogiada por um entraîneur da Rua do Catete”. Tudo indica que

Miramar estivesse mais propenso aos novos costumes surgidos com a Primeira

Grande Guerra, em que a ação física, a desenvoltura do corpo humano, os esportes

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ganharam grande relevância, em contraposição à mentalidade que prevalecia em

tempos anteriores – “Luís Edmundo Costa lembra que os brasileiros que viram

nascer a República eram „uma geração de fracos e enfezados, de lânguidos e

raquíticos [...] Condenava-se sumariamente a ginástica‟” (1998, MALUF; MOTT, p.

371). Essa diferença de perspectivas dos personagens é ironizada no título do

capítulo, pois o “Instituto de Damasco” é um local para treino de boxe, que também

adota a palavra “instituto” utilizada para designar os locais de encontros intelectuais.

Célia, no entanto, mantendo as suas convicções, articularia com seus amigos

“expoentes” da sociedade paulista a ida do marido para um instituto que se

dedicasse às causas intelectuais e literárias, consideradas nobres por ela e pelos

tradicionalistas, pois, conforme relata o narrador nesse mesmo capítulo, “Célia não

se sensibilizava ante meus racontares de possibilidades hercúleas entre pesos

trampolins argolas. Retorquia mesmo que não achava isso digno de um fazendeiro”.

Mas Miramar, que já adquirira certa consciência, conforme a tese de Kenneth

Jackson em relação ao processo de amadurecimento do protagonista ao longo da

narrativa, a que já nos referimos anteriormente em nosso estudo, sabia que ele “era

apenas um fazendeiro matrimonial”. Apesar disso, João Miramar não se opõe à

mulher e se torna membro do Instituto Histórico e Geográfico.

Ainda no capítulo 67, Célia recebe a visita do Dr. Pôncio Pilatos da Glória,

personagem caracterizado pela frivolidade dos “ohs e ahs” que emitia

constantemente em seu discurso. Era primo longínquo de Célia e seu “colega de

team”, expressão do narrador para referir-se aos colegas da esposa “expoentes” da

sociedade paulista. Vindo de São Paulo, Dr. Pilatos trazia de volta para o casal a

capital de seu estado, e propunha aos dois que deixassem “o Rio aborrecido e

paisajal”. Membro do Instituto Histórico e Geográfico, Dr. Pilatos vê em Miramar um

talento para a vida intelectual e lamenta: “Pena que seu marido, tão talentoso e

jovem, não seja dos nossos, oh! ah!”.

No final do capítulo 3 de nosso estudo, já apontamos para a possibilidade de

a recepção efetuar a leitura do capítulo “69. ETNOLOGIA” (1971a, p. 43-44) na

perspectiva de que João Miramar parece crítico em relação ao ambiente dos

institutos literários, dedução possível pelo jogo da ironia no discurso miramarino, em

que as pessoas presentes ao evento aparentemente são como que “apagadas” da

cena em que o narrador relata as suas primeiras impressões a respeito do Instituto

Histórico e Geográfico: “Mas naquela noite fui introduzido no enceramento abobadal

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e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga onde meridianos

comemoravam fastos fictícios”. Tudo demonstra, como escrevemos, que Miramar

tem consciência da mediocridade humana ali instalada, mas não tem intenção de se

rebelar contra os seus iguais na sociedade de classes, contra a sua inserção na

sociedade paulista pelas mãos de Célia. Também no início do capítulo 69 do

romance, contradizendo o Dr. Pilatos que via um talento em Miramar para a vida

intelectual, este reconhece: “eu pendia mais para bilhares centrais que para

pesquisas científicas”. O narrador escreve ainda que, nessa época, levava uma vida

tranquila, pois “era dono de casa com safras longínquas livros quadros criados e a

senhora grávida”.

No Instituto Histórico e Geográfico, João Miramar entra num círculo de

amizade com Machado Penumbra, o poeta Fíleas, Dr. Pilatos da Glória, todos

colegas de Célia. No capítulo “70. RODINHA” (1971a, p. 44), Miramar nota que o

Ilustre orador da noite de sua primeira participação no Instituto “foi muitíssimo

cumprimentado” e reconhece no Sr. Fíleas um poeta “de muita cultura”, por isso

convida-os para sua casa, com a seguinte justificativa: “porque tinham talento”. Para

fortalecer os laços sociais, Célia proporcionaria outros encontros em casa, ocasiões

em que “expressionava a Prière d’une vierge e o fox-trot Salomé ao piano e servia

bananinhas com café com leite”, imagem síntese que remete ao acordo feito pelas

elites paulista e mineira para o controle da República brasileira, vista como uma

república das bananas, termo depreciativo para países latino-americanos

politicamente instáveis e submissos a um país rico. Assim, com apenas quatro

elementos o discurso miramarino satiriza o comando do país e a maneira como a

elite faz política: “bananinhas”, “café”, “leite” e “músicas estrangeiras”. No final deste

capítulo, o narrador registra a presença nesses eventos sociais em sua casa do

médico Dr. Pepe Esborracha: “vinha também lento mazorro silencioso como se

cavasse uma mina futuro adentro o Dr. Pepe Esborracha”.

Chamamos agora a atenção para os registros feitos pelo narrador, em alguns

capítulos, quase que despretensiosamente, da presença do Dr. Pepe Esborracha

próximo à Célia. No capítulo “73. GARAGE E ESCRITÓRIO” (1971a, p. 46), o

narrador retorna ao assunto: “O Dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e

gulosos como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia

imprudentíssima”. João Miramar parece expressar uma insatisfação com a

aproximação do doutor de sua mulher. Para refletirmos sobre essa situação,

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tentaremos uma caracterização mais delineada de Célia, a partir de seu próprio

discurso, as cartas por ela escritas, endereçadas a João Miramar e publicadas nos

capítulos 100 e 138. O título do capítulo “100. RABO-LEVAS” (1971a, p. 59-60)

significa uma brincadeira de criança, em que se faz uma chacota com alguém que

carrega na parte de trás do corpo, sem saber, um rabo. Portanto, pelo título do

capítulo parece que alguém está sendo ludibriado. No momento da redação da

carta, Célia está instalada com a filha na fazenda dos Bambus, onde recebe visitas

constantes do Dr. Pepe Esborracha, que reside em uma cidade próxima,

Pindobaville. Enquanto isso, Miramar administra os negócios da família em São

Paulo e Santos, e vive um caso extraconjugal com Rolah. Solitária na fazenda, Célia

dedica o seu tempo ocioso à leitura de romances. Na missiva, a esposa pede ao

marido que lhe traga novos livros, pois, conforme suas palavras, “já acabei de ler o

Primo Basílio que muito me fez chorar”. Informa ainda: “O Dr. Pepe Esborracha

emprestou-me Les civilisés e prometeu trazer outros livros quando ele vier”.

Complementa os seus pedidos, solicitando a Miramar: “Veja se achas na livraria

Garraux a Arte de Bem Escrever do Padre Albalat e La garçonne que dizem que é

muito bonito e são as últimas novidades de Paris”.

Pelas leituras empreendidas por Célia, podemos traçar um perfil da

personagem. Se pensarmos no programa de ensino direcionado às mulheres

pertencentes a uma faixa social elevada, delineado desde o século XIX, a que já nos

referimos no capítulo anterior de nosso estudo, quando observamos que tia

Gabriela, pelas lacunas culturais apresentadas, não desfrutou desse programa,

podemos verificar que a recente fortuna feita pelo pai de Célia com o café

proporcionou à filha uma melhor formação educacional. No programa de ensino a

que nos referimos incluíam-se matérias, entre as quais piano, língua nacional e

línguas estrangeiras, principalmente o francês, qualificando assim as mulheres,

dentre outras habilidades, para “a leitura de obras universais” (BOECHAT, 2002, p.

269). Vê-se que Célia parecia dominar o piano, pois costumava tocá-lo nas

recepções que oferecia em sua casa. Percebe-se também que ela domina a língua

francesa, pois lê o livro Le civilisés, de Claude Farrère, emprestado pelo Dr. Pepe

Esborracha, além de pedir a Miramar que lhe traga o livro La garçonne, de Victor

Margueritte. Portanto, os títulos lidos por Célia podem nos fornecer chaves para

delinearmos um perfil da personagem como também para uma possível análise do

relacionamento do casal.

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Nessa carta, como vimos, a esposa pede ao marido novos romances, pois já

acabara de ler O primo Basílio, que a fez chorar muito. O choro provocado pelo

romance de Eça de Queirós talvez possa ser interpretado como decorrência do

espírito emotivo característico das leitoras do século XIX, que faziam do ato de ler

apenas um passatempo para o preenchimento da ociosidade, da mesma forma

como Célia poderia estar preenchendo o tempo sem afazeres da vida monótona da

fazenda, o que conduz à hipótese de haver na personalidade da mulher de Miramar

um aspecto passadista. Neste caso, percebe-se uma crítica oswaldiana em relação

à literatura açucarada do passado. Mas também pode ser visto no choro da

personagem uma pista de um drama, o possível flerte de Célia com o Dr. Pepe

Esborracha, enquanto o marido encontra-se ausente por motivos de trabalho (MAIA,

2007). Essa é uma hipótese muito forte, já que identificamos no próprio discurso do

narrador, que escreve suas Memórias em um período ulterior aos fatos, um

incômodo com a presença constante do doutor como se cortejasse a sua mulher.

Até então parece que o movimento de aproximação seria iniciativa do Dr.

Esborracha. No entanto, o choro de Célia provocado pela leitura de O primo Basílio

sugere que o conteúdo do livro a tenha sensibilizado. A identificação da mulher de

Miramar com a personagem de Eça de Queirós parece ser uma pista bem

pertinente. Afinal, Luísa era também uma voraz leitora de romances, e a ausência de

seu marido Jorge, que viajara para o Alentejo a trabalho, propiciou o encontro dela a

sós com o primo e amigo de infância Basílio. Seduzida, Luísa acabou por cometer o

adultério. No entanto, em decorrência disso, começa a sofrer chantagem e

humilhações provenientes da criada Juliana, que obteve uma prova do

comportamento infiel da esposa. Após passar por uma tortura moral, Luísa veio por

fim a falecer. O tema do adultério, portanto, parece sensibilizar Célia, mesmo que a

ótica do romance seja a moralização dos costumes da burguesia média de Lisboa.

Até então temos um perfil de Célia que, em certo sentido, teria por referência

expectativas do século XIX. Entretanto, há o pedido a Miramar para que lhe traga o

livro La garçonne, pois, conforme escreve, “dizem que é muito bonito e são as

últimas novidades de Paris”. As palavras de Célia aparentam ingenuidade, mas se

considerarmos que o estilo literário de Oswald de Andrade acentua o não-dito ou o

não revelado, podemos ver aqui também uma sagacidade da personagem, que

parece ter informações sobre as novidades de Paris, apesar de não revelá-las

objetivamente. Já vimos anteriormente em nosso estudo, quando analisamos o

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prefácio de Machado Penumbra, que este personagem demonstra estar atualizado

com as novidades europeias, ao ponderar sobre tendências do Salão de Outubro,

realizado em Paris. Quanto ao romance de Victor Margueritte, este foi publicado em

1922. Seu enredo aborda novos comportamentos surgidos na sociedade após a

Primeira Grande Guerra, o que provocou muita polêmica. A personagem principal, a

jovem Monique Lerbier, ao descobrir que seu noivo a traía, decide se libertar e viver

a vida do seu jeito. Afasta-se de sua abastada família, que não lhe dera apoio, e

com esforço próprio alcança a sonhada independência financeira, tornando-se uma

mulher livre. Dona do seu destino, ela passa a ter uma vida sexual liberta, e se

coloca diante da sociedade pelo viés transgressor, chocando os padrões então

vigentes. Portanto, talvez haja na leitura desse romance um desejo de contrapartida

às aventuras de João Miramar, mesmo que estas ainda fossem apenas suposições

de Célia por falta de provas confirmatórias.

Essas duas tendências parecem contraditórias quando nosso propósito é

delinear um perfil da personagem Célia, mas não o são. Além de ambas terem o

adultério como uma linha de força, apresentam-se como tendências

complementares, pois podem representar aspectos da classe cafeeira paulista do

início do século XX. Dito de outra forma, mesmo que a mentalidade ruralista fosse

conservadora, a necessidade de colocar o café no mercado internacional obrigou os

cafeicultores a conhecerem as novidades do mundo civilizado. No entanto, essa

relação se estabelece por um tipo de admiração em que se dá importância ao

estrangeiro sem que isso abale os valores tradicionais arraigados. Nesse sentido,

esse perfil da personagem Célia, longe de ser paradoxal, se conforma como uma

representação dessa classe. O outro livro solicitado pela esposa ao marido, A arte

de bem escrever, talvez esteja relacionado ao seu universo de convívio na

sociedade paulista, seus “colegas de team” que integravam o Instituto Histórico e

Geográfico.

Vejamos agora a outra carta escrita por Célia, destinada também ao marido,

como já dissemos, e publicada no capítulo “138. MEMENTO HOMO” (1971a, p. 78).

Nela a esposa relata alguns fatos do último dia de carnaval que passara em

Pindobaville, passeio que fizera influenciada pelo Dr. Pepe Esborracha, “o

organizador das festas do Clube”. Mãe e sua filha se hospedaram “em casa de D.

Teresinha”. A missivista conta que naquela tarde Celiazinha, fantasiada de “Fada do

Bem”, e outras meninas divertiram-se “na calçada jogando confetti e lança-perfume”.

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E complementa: “O maior sucesso do dia foi um grupo de cinco estudantes que

passou pelas ruas bebendo cerveja em ourinóis e comendo linguiça que molhavam

na cerveja”. Mais tarde Célia soube que “foi o Dr. Pepe Esborracha que teve essa

ideia tão engraçada!”, e quase morreu de tanto rir. Parece-nos haver na carta um

certo encantamento de Célia em relação ao doutor. Além disso, nesse capítulo vê-se

a interiorização do carnaval inspirada nos bailes de clubes e nos festejos de rua da

elite paulistana, sem a suntuosidade do corso e das indumentárias.

Nicolau Sevcenko, ao estudar a sociedade e cultura paulista dos anos de

1920, observa que os novos tempos também metamorfosearam o carnaval,

ganhando importância os festejos mais populares, cuja alegria, descontração,

intensidade, favorecendo um “transe eufórico”, se sobrepõem à forma mais contida

da elite paulistana de festejar. Segundo o autor, nos anos anteriores a 1921, os

principais locais do festejo eram “o Triângulo central e a Avenida Paulista” (1992, p.

104), mas a partir dessa data, outros espaços, como o Brás, adquiriram “uma

visibilidade emocional repentina, que transformou a periferia em centro e o centro

em periferia” (1992, p. 106). Vejamos como Sevcenko descreve os festejos no

Triângulo e na Avenida Paulista antes de 1921:

No Triângulo os desfiles dos clubes carnavalescos em carros alegóricos eram o centro da pândega, enquanto na avenida o povo era mantido nas calçadas para assistir, como plateia, às batalhas de serpentina, confete e lança-perfume, no corso de carros refinados que rolavam pelo asfalto em fila quádrupla. (1992, p. 104)

O autor dá muita ênfase ao estilo moderado de festejar o carnaval nesses espaços

ocupados pelas classes tradicionais, com fantasias solenes que limitavam os gestos

e o luxo dos carros, uma transposição do carnaval europeu, especialmente o da

cidade de Veneza. Em outro trecho, Sevcenko afirma:

Enfim, o Carnaval recebido pela tradição burguesa, que misturava personagens estereotipados da commedia dell’arte com mesuras, rapapés e salamaleques de um pretenso repertório de diversões cortesãs, podia ser entusiástico, podia comportar expressões de alegria e paroxismos de exaltação – mas trazia consigo um claro limite de forma [...]. Era um Carnaval com receituário prescrito [...].” (1992, p. 104-105)

Observa-se na carta publicada no capítulo 138, que as pessoas em

Pindobaville, ao ficarem na calçada como plateia jogando confete e lança-perfume e

se divertirem com um grupo de estudantes “bebendo cerveja em ourinóis e comendo

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linguiça que molhavam na cerveja”, parecem se comportar de forma contida tal qual

a elite paulistana ao festejar o carnaval. Quanto às fantasias inspiradas em

personagens da commedia dell’arte, com suas Colombinas e Arlequins, podemos

ver as dos rapazes influenciados pelo Dr. Pepe Esborracha como personagens de

hábitos grosseiros também saídos da commedia dell’arte, não havendo portanto um

antagonismo entre os carnavais do interior e o da Avenida Paulista, no sentido de

um ser grotesco e o outro sublime. Na carta, Célia narra ainda outros fatos do último

dia de carnaval em Pindobaville, mostrando que a rotina da festa não sofreu

qualquer extravagância que desafiasse as convenções. No entanto, a ausência de

Miramar junto à esposa e filha no carnaval remete a nossa leitura aos capítulos “134.

CORSO” (1971a, p. 76) e “135. PASSA O AMOR” (1971a, p. 76-77), em que o

narrador relembra a festa carnavalesca na capital paulista, quando se divertia com a

amante Rolah e amigos. Descrições sintéticas como instantâneos forjam imagens

cubistas desse carnaval da elite paulistana, tais como: “o Carnaval acendeu o

charuto roliço do Britinho, vaqueiro de automóvel”; “baixo do toldo de veludo verde, a

bola de Madama Rocambola era um saco de confetti na direção da Avenida”;

“serpentinas explodiam ao nosso lado na extensão toldada de bandeiras e asfalto”;

“famílias iam por quatro filas de máscaras carruagens”; “Rolah ria como um animal

espancado e fazíamos regressar as serpentinas vindo voando”. Nota-se ainda a

influência e os interesses de Chelinini ao se apoderar da “William Six”, automóvel da

família, que Miramar precavidamente evitou disputar.

Se compararmos as duas cartas escritas por Célia, especialmente as

sequências discursivas da “despedida”, que permitem a observação da qualidade

das relações interpessoais entre os correspondentes, nota-se que a publicada no

capítulo 100 registra muita afetividade da remetente: “Abraça-te e beija-te. / tua

Célia”. Já na carta publicada no capítulo 138, Célia parece mais distanciada: “Um

abraço da tua / Célia”. O motivo pode ser o fato de a personagem, encontrando-se

só na fazenda dos Bambus, apenas com sua filha, ter decidido passar o último dia

de carnaval na pequena cidade do Dr. Pepe Esborracha. Portanto, foi Célia que se

deslocou para o espaço do outro. Nessa perspectiva, o título do capítulo parece um

alerta: a expressão latina “memento homo” pode ser traduzida por “lembra-te

homem”, talvez uma alusão ao próprio narrador. Dizemos isso porque, sendo o

conteúdo mais visível do capítulo o carnaval relatado por Célia, não há qualquer

condenação da folia por parte do autor ficcional do romance, até porque ele também

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participa da festividade na cidade de São Paulo. Porém a presença do Dr. Pepe

Esborracha ao lado de Célia representa mais um momento melindroso para João

Miramar. No capítulo “128. CHIFRES” (1971a, p. 73), a ofensiva do doutor sobre a

esposa de Miramar parece ter se intensificado: “A chifrada do boi preto na perna

branca de minha mulher estava entregue aos cuidados solicitosos e solicitados do

invencível Dr. Pepe Esborracha ocorrido numa corrida de Pindobaville”. O

“invencível” doutor não recua em suas investidas sorrateiras, “solicitosas” e

solicitadas, consolidada na última imagem deste capítulo: “Quarto escuro no quarto

dia e ele na sombra”. Vale a pena resgatarmos uma imagem do capítulo “70.

RODINHA” (1971a, p. 44), em que João Miramar indicou as intenções do rival,

sempre presente e silencioso, em relação à sua mulher, “como se cavasse uma

mina futuro adentro”. Mais do que um possível enlace extraconjugal de Célia com o

Dr. Pepe Esborracha, tudo indica que a preocupação maior de Miramar seria uma

intriga que pusesse fim ao seu casamento, ou seja, à sua “mina”. Para João

Miramar, o casamento lhe trouxe boas condições financeiras, que seriam perdidas

com uma possível separação. Daí a expressão latina do título do capítulo 138:

“Memento homo”.

O temor de João Miramar se concretiza no capítulo “139. A DENÚNCIA”

(1971a, p. 78-79), no qual ele recebe um telegrama de Célia que exige a sua

presença na fazenda dos Bambus – “Célia sabia tudo laconicamente”.

Provavelmente sempre soube, pois não é inocente, como pode às vezes aparentar.

Célia desempenha o seu papel social de mulher em uma sociedade patriarcal,

criando condições para a ascensão econômica e social do marido. Mas vinha

reunindo provas contra Miramar, que em sua percepção dilapidava a fortuna da

família com o negócio de cinema. O capítulo “141. O GRANDE DIVORCIADOR”

(1971a, p. 80) constitui-se por vários instantâneos que formam um painel de clientes

do advogado contratado por Célia, exposição de mazelas da sociedade paulista,

observados por Miramar na sala de espera do escritório enquanto aguarda ser

recebido. O título do capítulo diz respeito à situação do narrador, em que será

atacado pelo viés da moral burguesa, como ironicamente está anunciado na última

imagem do capítulo em que o narrador tem por recurso humorístico e crítico igualar

a fala do advogado à literatura naturalista: “E foi a minha vez de ouvir num romance

naturalista o dossier dactilado de meus detalhados desvios”.

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O capítulo seguinte, “142. LENGA-LENGA” (1971a, p. 81), apresenta um

recorte da conversa do advogado com Miramar em quatro parágrafos. No primeiro, o

“homem célebre” se apresenta como um antigo advogado da família, que conheceu

tios e avós, o que lhe dava condições especiais de ser mais um conselheiro do que

um advogado. Feita a apresentação maviosa, vem o segundo parágrafo no qual o

“grande divorciador” afirma ser insustentável o casamento, pois, segundo suas

palavras dirigidas a Miramar, “sua senhora, coitada, reuniu provas esmagadoras

contra o seu leviano proceder”. A moral burguesa aparece como justificativa para o

divórcio, e seria também um instrumento de desmoralização. No entanto o motivo de

fundo que levou Célia a recorrer ao campo jurídico estava na iminente falência de

João Miramar, que como administrador dos negócios de café vinha comprometendo

as finanças da família. Verifica-se isso ainda no segundo parágrafo do capítulo,

quando sequencialmente o advogado diz:

À margem disso [os amores extraconjugais] o caso financeiro negreja no horizonte. O Sr. adquiriu rapidamente uma reputação de dilapidador. O seu nome já figura no Boletim das Falências e Protestos, no pasquim secreto e implacável, a destilar condenação, a destilar desonra!

Pressionado, Miramar se coloca no mesmo patamar do conde Chelinini,

marido de tia Gabriela, ao que o advogado retruca, no último parágrafo do capítulo:

“Mas o conde acusa-o de se ter locupletado. Perfeitamente, o conde acusa-o”.

Parece que João Miramar havia sido traído pelo conde Chelinini com quem fizera

negócios escusos, prejudicando a família. Pode-se confirmar a existência dessa

prática acordada entre os dois personagens, por exemplo, no capítulo “118.

CONFERÊNCIA” (1971a, p. 69), no qual o narrador relembra que o conde o

chamara “para o escritório do Tico-Tico Bezerra”, pois havia descoberto uma “mina”,

a “Empresa Carioca de Caibros e Sementeiras”, na qual pretendia empregar muitos

recursos. Chelinini “entendera-se já com a Trancoso Carvalho & Comp.”, de quem a

família era cliente nos negócios de café, mas dependia de um endosso. Neste ponto

do capítulo, o discurso do narrador nos parece bastante revelador: “Precisava [o

conde] de um endosso que não fosse da família, tendo sido esgotado em descontos

meu imprevidente nome ofertado. Propus-lhe Britinho calmíssimo no uso de

colaterais situações sacadoras”. Logo, tudo indica que Miramar e Chelinini agiam em

comum acordo em negócios escusos, que decerto geravam lucros para ambos. Mas

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como Britinho desaparecera e a “Trancoso Carvalho & Comp.” mostrou-se

desconfiada de seus velhos clientes, a transação acabou sendo feita com a

“Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis”, fato relatado no capítulo

seguinte, “119. TRANSAÇÕES” (1971a, p. 69). O próprio nome da firma a

caracteriza como trapaceira: “Imóveis Móveis”. E também o nome do advogado

responsável pelo parecer, que “aceitara o negócio depois do vesgo exame”, cuja

sonoridade gera uma cacofonia sugerindo as segundas intenções do assistente

jurídico: o “grande advogado Bica-Bam-Buda”.

Portanto, o casamento de João Miramar era insustentável, sobretudo pelas

razões financeiras. Associados ao processo de divórcio, ocorreriam um processo

cível e uma campanha de desmoralização de João Miramar. Constituiremos, então,

uma “estrutura significativa” com os capítulos 143, 145, 148 e 152, a fim de analisar

essas tramas. No capítulo “143. MOBILIZAÇÃO” (1971a, p. 81), cujo título remete a

uma ação política, a falência de Miramar e a sua desonra foram “cornetadas” em

Higienópolis, bairro paulista onde morava o protagonista e a família. Duas frases

desse capítulo nos parecem bastantes significativas. A primeira foi assim escrita pelo

narrador: “Meu folhetim foi distribuído grátis a amigos e criados”. A palavra “grátis”

sugere tratar-se de uma campanha ideológica que visava desmoralizar João

Miramar junto aos amigos e também aos criados, buscando isolá-lo completamente,

com o propósito de retirá-lo do convívio social a que fora alçado após o casamento.

A outra frase, pela sonoridade gutural das palavras, gera para o leitor uma imagem

que exprime o grande ódio que o procedimento de Miramar despertou em sua sogra:

“E tia Gabriela sogra granadeira grasnou graves grosas de infâmia”. A combinação

dessas duas sentenças justapostas fornece à recepção a dimensão emocional da

situação e a estratégia severa de difamação imposta contra o protagonista para

salvaguardar a família.

O capítulo “145. CRIAÇÃO DE PAPAGAIOS” (1971a, p. 82-83), gíria que

significa “acumulação de dívidas”, apresenta Miramar, Chelinini e Britinho como os

mais citados no “Forum Cível Paulista”. A rotina de João Miramar era de “saques e

protestos e intimações e juízos e termos e advogados e prazos e ofícios e praças e

petições no contemporâneo Forum de N. S. Jesus Cristo”. A repetição contínua da

conjunção aditiva expressa a infinidade de obrigações a que Miramar encontrava-se

submetido, intensificada pelo nome do Forum, ou seja, a referência religiosidade

como expressão das causas impossíveis. Seus “bens legados por inventário” de sua

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mãe foram destinados a credores. Vários instantâneos sobre a peregrinação do

protagonista intercalada com situações de personagens típicos da justiça oficial

constituem um painel nesse capítulo. Ressaltamos os pedidos de Machado

Penumbra, amigo, na tentativa de resguardar os nomes da família: “Noites vexames

de redações pedidas com prestígio prestado de Machado Penumbra para discrições

dos nomes da família conspurcada vindos em bonde dos tabeliães protestantes”.

A expressão “corrida de ganso”, que dá título ao capítulo 148 (1971a, p. 84),

significa algo que não vale a pena fazer, pelo qual se esforça muito mas o resultado

é desastroso. Portanto, pelo título que o narrador deu ao capítulo, tudo indica que

Miramar tem uma avaliação das consequências de suas atitudes. E talvez, em certo

sentido, haja um arrependimento. O texto do capítulo apresenta um painel que gira

em torno de desdobramentos de teor negativo das ações que praticara. Na parte

inicial do texto, interpelado e pressionado por um banqueiro, João Miramar se

defende responsabilizando o outro parceiro, fazendo aquele “ver o Conde Chelinini

ter rebentado como qualquer mortal que exagera as próprias forças no Automóvel

Club”. Esta imagem foi forjada a partir do Automóvel Club, reduto da elite paulistana,

conforme caracterizado por Nicolau Sevcenko, “o clube mais reservado e importante

da cidade, marco referencial da área nobre do centro e ponto de encontro da elite

que decidia os destinos da República” (1992, p. 74). O automóvel era a mais alta

ostentação da elite. Sendo assim, infere-se que as dívidas eram pesadas. Mas

Miramar tenta, com ajuda do Britinho, um acordo, porém recebe a resposta: “Aqui

nong teng agordo. Teng pagamento!”. Em outro evento, João Miramar encontra-se

com o Dr. Pilatos “recém-vindo do Guarujá”, com a resposta negativa da “Trancoso

Carvalho & Comp.”, que em relação às dívidas “não cediam, não reformavam, não

esperavam”. A situação parecia impossível de ser resolvida. Dr. Pilatos trazia

também notícias sobre a fuga do conde, que insultou a família chamando a “prima

Gabrielinha [...] de velha gaiteira”. Também ele, Pôncio Pilatos da Glória, fora

destratado, chamado de “coco da Bahia” e ameaçado de ser atingido por um “mata-

-borrão na cara” que Chelinini tinha em mãos. Diante dos insultos e ameaças, Dr.

Pilatos saiu do local, justificando para Miramar: “Eu saí para evitar uma cena de

sangue! Oh! Ah!”.

E o conde desapareceu, conforme registrado no primeiro parágrafo do

capítulo “152. LOOPINGS” (1971a, p. 86). Já analisamos anteriormente o capítulo

“146. VERBO CRACKAR” (1971a, p. 83), e resgataremos aqui a conjugação verbal

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das três pessoas do discurso que expressam o aprendizado de Miramar em relação

ao sistema capitalista: “Eu empobreço [...] / Tu enriqueces [...] / Ele azula [...] / Nós

entramos em concordata / Vós protestais [...] / Eles escafedem [...]”. João Miramar

ficou em São Paulo, empobrecido, difamado e submetido à Justiça, enquanto o

conde Chelinini sumiu no mundo. Como no poder não há vácuo, no segundo

parágrafo do capítulo 152, após o desaparecimento do conde, Nair “apareceu

fulminante esposa do filho matadoural do gigante Bretas do Rio”. O rico empresário,

com quem Nair se casara e vivia no Rio de Janeiro, salvou as fazendas com a

renovação dos direitos hipotecários. Enquanto a família se reestruturava, o “divórcio

recrudesceu”. No último parágrafo desse capítulo, o narrador diz da sentença que

homologou a sua filha Celiazinha junto à mãe e definiu outras perdas de seu “pátrio

poder”.

Como dissemos no início desse capítulo de nosso estudo, família e

propriedade, historicamente, estão vinculadas. As fazendas salvas voltariam a ser

produtivas. O falecimento de tia Gabriela reordenaria os poderes familiares sobre a

herança. E mais à frente, quando do óbito de Célia, no capítulo “156. BATEM SINOS

POR D. CÉLIA” (1971a, p. 88-89), a notícia publicada na imprensa apresenta a

família já reconfigurada, sem qualquer vestígio de João Miramar. Célia retomou o

nome de solteira e mesmo a filha Celiazinha não fora mencionada.

“Faleceu anteonte, na fazenda dos Bambus, [...] a Exma. Sra. D. Célia Cornélia da Cunha. A extinta que era filha do saudoso paulista Coronel Belarmino Elesbão Arruda da Cunha e da falecida Sra. Condessa Gabriela Chelinini, foi sempre figura de relevo na nossa sociedade [...]. Era cunhada do distinto capitalista carioca Sr. Carlos Bretas, irmã do Sr. José Elesbão da Cunha, comerciante em Antuérpia, das Sras. D. Nair da Cunha Bretas e D. Maria dos Anjos da Cunha Meireles e prima do nosso eloquente confrade e ilustre geógrafo, Dr. Pôncio Pilatos da Glória. [...] Pêsames à distinta família enlutada.”

5.2 O HUMOR E A RIGIDEZ DO CARÁTER, DO ESPÍRITO E DO CORPO

Machado Penumbra, ao ocupar a função de diretor em um jornal, contratou

João Miramar como assistente e redator. A lembrança deste momento foi registrada

no primeiro parágrafo do capítulo “153. NEGROLOGIA” (1971a, p. 86): “Quando

Machado Penumbra tomara-me a seu valente lado no jornal mundano e moderno

que o chamara para repentino diretor como orientador e grande prosador”. É certo

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que o trabalho no jornal veio após a falência do protagonista, pois antes Miramar

fora administrador das fazendas de café da família e sócio de empresa produtora de

filmes. Mas também sintaticamente pode-se chegar à mesma conclusão, pois o

advérbio “quando” na primeira frase do capítulo, destacada acima, estabelece uma

relação de tempo também com a frase seguinte, pertencente ao segundo parágrafo,

já que esta fora iniciada com a conjunção “e”, coordenando assim as duas frases.

Como a segunda contém a notícia do falecimento de tia Gabriela, compreende-se

que Miramar fora trabalhar no periódico em um momento posterior à sua derrocada.

Diante de tudo que vivenciara nos últimos tempos – as dívidas, a Justiça, a

campanha de difamação, o divórcio –, Miramar reconhece a valentia de Penumbra

ao lhe oferecer o emprego e a possibilidade de escrever em um jornal. Seria esse o

trabalho que, de certa forma, o resgataria diante da sociedade, entretanto como um

homem já amadurecido, sofrido, sem ilusões e sonhos diante do convívio social. Na

primeira frase do prefácio das Memórias sentimentais, Machado Penumbra refere-se

ao autor ficcional do livro como um profissional da imprensa que então se

apresentava para o público leitor como um escritor literário: “João Miramar abandona

momentaneamente o periodismo para fazer a sua entrada de homem moderno na

espinhosa carreira das letras” (1971a, p. 9). A amizade com Machado Penumbra e

Dr. Pôncio Pilatos da Glória se fortaleceu em decorrência da atitude amiga de

ambos, principalmente nos momentos difíceis enfrentados por Miramar.

Foi, portanto, na redação do jornal em que trabalhava que “aportou a notícia”

do falecimento de tia Gabriela, levada pelo Dr. Pilatos. O narrador discorre sobre

esse fato nos dois últimos parágrafos do capítulo 153, cujo título é um neologismo

que aglutina as palavras “necrologia” e “negror”, que pode ser entendido como a

intensificação do luto da seção do obituário do jornal por se tratar da morte de uma

pessoa muito próxima ao narrador, apesar das desavenças. Fraterno, o amigo de

Miramar e também primo da falecida, que levara a notícia, pretendera indicar a visita

à casa da família ao narrador, que assim escreve: “E porque tia fosse tia exigia com

abraços minha inoportuna presença em Higienópolis de janelas cerradas e acessos

silenciosos”. Miramar sabia que a sua presença naquela casa seria desconfortável,

por isso não fez a visita. Mas reviu a casa silenciada pelo funeral, e expôs no final do

capítulo a sempre incômoda presença de seu rival – “onde mudo, pomposo e lívido,

o Dr. Pepe Esborracha atenderia flor de laranjeiras crises de cá pra lá” –, como se

essa fosse o selo de sua derrocada, registrada em vários episódios do romance.

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Deduz-se, consequentemente, que Machado Penumbra e Dr. Pôncio Pilatos

da Glória, membros do Instituto Histórico e Geográfico e integrantes do círculo de

amizade de João Miramar, tornaram-se pessoas ainda mais próximas do

protagonista após a sua ruína. Tinham concepções literárias diferentes. A escrita

moderna de Miramar, por exemplo, se opõe à visão tradicional dos amigos, que se

afinava com a dos gramáticos que proliferaram no início do século passado, e

orientou a produção pseudo-artística feita nos grêmios literários, tanto pela devoção

ao “bem escrever” como pela importância dada a um certo humanismo cuja

referência é a Antiguidade Clássica. Esse humanismo não continha, entretanto, a

substância necessária que lhe desse um significado consistente, por isso

manifestava-se apenas como um conhecimento enciclopédico com efeito retórico,

um ornamento, algo decorativo e distanciado da vida, e das perspectivas dos novos

tempos e dos novos valores. O passado longínquo para esses intelectuais

funcionava como a reafirmação de valores que se desejam eternos e universais e

que, assim, não se perturbariam, por exemplo, com a volubilidade moral acelerada a

partir da Primeira Grande Guerra Mundial.

Conforme já afirmamos anteriormente em nosso estudo, o discurso é a

principal forma de caracterização das personagens. O Dr. Pôncio Pilatos da Glória,

com seus “ohs e ahs”, foi caracterizado também em certos episódios do romance

como um “sábio da Grécia”, um conhecedor da cultura grega clássica. No capítulo

“72. SOSSEGADAS CARAMBOLAS” (1971a, p. 45-46), por exemplo, em um

encontro social na casa do casal Célia e Miramar, Dr. Pilatos volta a emitir sua

opinião a respeito de João Miramar, enquanto desfruta de umas bananinhas com

café com leite oferecidos pela dona da casa, com as seguintes palavras: “Seu

marido, minha senhora, parece Telêmaco segundo o Fénelon na tradução

portuguesa em quem era de admirar tanta facúndia em tão verdes anos”. Mais do

que uma descrição de Miramar, já que o locutor pretende demonstrar uma erudição

entretanto esvaziada de significado pelos volteios ornamentais, temos aí a descrição

do próprio Dr. Pilatos da Glória, feita por seu discurso. Nessa referência greco-

-romana clássica há uma pretensão de universalidade que não se coaduna com a

noção de cosmopolitismo imprimida pela modernidade. O universal, nessa referência

clássica, se refere a palavras, sentenças, juízos de um humanismo idealizado que

não se situa historicamente, pois se concebe com valores pretensamente eternos,

válido para todos os espaços, para todos os tempos e para todo o gênero humano.

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Nesse sentido, a valorização desse humanismo seria um artifício retórico empregado

como estratégia argumentativa, por exemplo, por Machado Penumbra no prefácio

das Memórias sentimentais, para rejeitar a instabilidade da “embaralhada de inéditos

valores” (1971a, p. 9) surgida com a conflagração europeia. Portanto, os amigos de

João Miramar representam o espírito passadista e conservador que seria um dos

alvos principais dos modernistas da Semana de Arte Moderna.

Para melhor delinearmos o círculo de amizade de João Miramar após a sua

falência, estabelecemos uma “estrutura significativa” para uma leitura horizontal com

os capítulos 88, 155, 160 e 162. No capítulo “155. ORDEM E PROGRESSO”

(1971a, p. 87-88), Miramar encontra-se em um jantar de final de ano patrocinado

pela administração do jornal onde trabalha, que reúne funcionários da empresa e

convidados. Ao seu lado senta-se o Dr. Mandarim Pedroso, descrito pelo narrador

como “um paralelepípedo de carne com óculos sem pé”. O Dr. Mandarim é um

personagem que encarna certa discórdia, sobretudo de ordem pessoal, que havia

internamente nas instituições intelectuais, artísticas e recreativas. Por exemplo, no

capítulo “88. JABUTICABAS” (1971a, p. 54), o narrador registra que “o Dr. Pilatos

ficou fulo” porque o Dr. Mandarim em palestra referiu-se a um jovem, genro do

próprio orador, por “esses incógnitos”. Na ótica do Dr. Pilatos, essa seria uma

grande ofensa porque atinge a vaidade de uma pessoa. Na época, dirigindo-se a

Miramar, depois de qualificar o rapaz como uma pessoa correta que estava a galgar

socialmente, pois já tinha “o seu cobrezinho”, Dr. Pilatos discorre dramaticamente

sobre si mesmo, dos tempos em que passou “com um almoço por semana” para

alcançar a posição a que chegou, exprimindo o que considera as suas virtuosas

conquistas: “E já fui citado pelo padre Berlangete da Universidade Católica de

Beirute. Escrevi a biografia do patriarca Basílio 8 que foi torrado numa igreja por

causa de Orígenes. Irei à Ravena estudar de perto o 5º século”. Vê-se, por

conseguinte, que mais valem as citações e a lista de pesquisas e trabalhos

apresentada, que envaidecem os seus realizadores, do que a importância dessa

produção para a humanidade. Ainda nesse capítulo, o narrador relaciona, com

sarcasmo, os importantes cargos de tesoureiro e presidente exercidos pelo Dr.

Mandarim, mas em instituições com nomes que revelam a sua insignificância:

“tesoureiro pé-pé do Banco Nordeste de Engole-Marmanjos e presidente do Recreio

Pingue-Pongue”. Observa-se, também, que a própria maneira de escalada ao cargo

é ridicularizada.

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Voltemos ao capítulo 155, ao jantar de ano novo na empresa jornalística.

Miramar sentado ao lado do Dr. Mandarim Pedroso, que lhe explica o que era o

Recreio Pingue-Pongue: “Uma forja de temperamentos e um ninho de pombas

gárrulas. O Sr. precisa entrar para lá, principalmente depois que o seu nome de

poeta e jornalista começa a raiar nos galarins da fama”. E, confidente, Dr. Mandarim

diz que o presidente da República, o prefeito de São Paulo e o vice-prefeito, assim

como muitos da alta administração saíram das fileiras do Recreio. Por fim aconselha

Miramar, que disse em resposta a uma pergunta ter uma filha de seis anos, a

colocá-la no Recreio Pingue-Pongue, “se quiser salvá-la dos perigos

contemporâneos”, conforme as palavras do doutor. E complementa a sua

argumentação moralista: “Lá não se dança o paso doble, meu caro senhor! O paso

doble! Devia chamar-se a cópula de salão! Olhe, nós vivemos numa civilização de

dancings...”. O discurso do Dr. Mandarim Pedroso, tanto na forma como no

conteúdo, é bastante revelador do conservadorismo que representa. A instituição

que preside, objeto de sua fala, cumpre um papel de reprodução ideológica da

república oligárquica, nepotista e excludente, atuando na formação moral de seus

jovens e na preparação de quadros dirigentes para o poder instituído.

O título do capítulo, “Ordem e Progresso”, expressão positivista impressa na

nova bandeira brasileira quando da substituição do regime monárquico pelo

republicano, estabelece um vínculo do episódio relembrado por Miramar com a

República. A explicação do Dr. Mandarim Pedroso sobre o Recreio Pingue-Pongue

parece, pelo veio humorístico, abranger a República brasileira, cujo significado mais

autêntico deveria ser a promessa de “cidadania”, o interesse comum da população,

já que o poder desse sistema político teoricamente emerge do povo e se volta para o

povo. Entretanto, o que se estabeleceu com o novo regime foi uma cidadania

precária, assentada em uma estrutura social sem qualquer equidade. Um Estado

federativo que não supera as estremas diferenças e distâncias entre as regiões e a

herança do trabalho escravo como uma chaga social, além de se instituir enquanto a

continuidade do poder oligárquico que reduz o Estado ao servilismo político. Entre

os intelectuais do início do século XX, o advento da República proporcionou uma

esperança. Mas, como herdeiros do positivismo e do evolucionismo, em sua ampla

maioria, não foram além de modelos deterministas. A ansiada “modernidade

nacional” dos novos tempos republicanos parecia inviável naquele país que se

apresentava de modo insólito. Elias Thomé Saliba, no ensaio intitulado “A dimensão

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cômica da vida privada na República”, analisando as fronteiras entre o espaço

público e o espaço privado no início do século passado, observa que a “indefinição –

ou existência difusa – da vida pública no país” é um fator de confusão. E, na

sequência do texto, afirma ainda: “a República brasileira assiste à remodelação e à

modernização, quase sempre compulsórias, das cidades e as incentiva, mas não

permite que se formem cidadãos” (1998, p. 329).

Assim, a modernização do país não enfrenta as suas encruzilhadas, e se

espelha num desejo sôfrego de europeização, um cosmopolitismo de fachada, já

que a realidade da rotina brasileira, com seus arcaísmos, seria a negação do

progresso. Daí resulta que a sociedade brasileira convivia com desejos e elementos

antagônicos, como o cosmopolitismo e o provincianismo, a modernidade e o atraso,

o liberal e o oligárquico. No entanto, nos contrastes, nos deslocamentos de

significados, na permeabilidade do formal e informal, do imaginário e do vivido,

estaria a matéria da representação tipicamente cômica da República. Obviamente

que durante o período monárquico já se fazia humor, mas o contexto republicano

ofereceu novas dimensões à representação cômica da vida nacional. Os espaços

públicos e privados ganharam novos matizes com a urbanização de cidades

brasileiras feita de forma intensa e tumultuada, instigando novos desejos e novos

comportamentos sociais configurados em uma estrutura ainda bem arcaica. Cabe

ressaltar também que a vida privada urbana era possível para uma elite brasileira

que se formava nas grandes cidades, e que tratava a coisa pública como se fosse

particular; enquanto que para as classes populares, a privacidade não existia, nem a

coisa pública. Daí haver um embaralhar das esferas pública e privada, que Elias

Thomé Saliba assim registrou:

Os espaços sociais [...] eram, afinal, os espaços da desordem e confusão reinante entre as esferas pública e particular. [...] Sabemos o quanto esse embaralhamento das esferas e essa desordem, necessários ao sistema de poder escravista e à hierarquização social dele decorrente, persistiram tanto nos processos de construção do Estado republicano quanto na intensificação dos conflitos sociais no decorrer de todo o período republicano. (1998, p. 305)

Henri Bergson, em seu famoso estudo publicado em 1900, O riso: ensaio

sobre a significação do cômico, apresenta três observações preliminares, mas

fundamentais, sobre o cômico. Na primeira, Bergson escreve que “não há

comicidade fora do que é propriamente humano” (1980, p. 12, grifo do autor). Ou

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seja, mesmo quando se ri, por exemplo, de um animal, é porque se foi surpreendido

por uma atitude humana. Na segunda observação, o autor afirma que “o maior

inimigo do riso é a emoção”, o que o leva a concluir que o cômico “se destina à

inteligência pura” (1980, p. 12-13). E por fim, observa que “essa inteligência deve

permanecer em contato com outras inteligências” (1980, p. 13), já que há uma

cumplicidade entre as pessoas que intensifica o riso, donde se conclui que “o riso

deve ter uma significação social” (1980, p. 14). Já vimos anteriormente, no segundo

capítulo de nosso estudo, que Oswald de Andrade, na conferência intitulada “A

sátira na literatura brasileira”, cita Bergson ao afirmar “que o riso deve ser uma

espécie de gesto social” (2011, p. 103, grifo nosso). Por conseguinte, para a

realização do cômico necessita-se de um vínculo com a realidade satirizada, situada

no tempo e no espaço do mundo extraliterário.

A teoria do riso e do cômico de Henri Bergson surge, portanto, na passagem

do século, momento em que na Europa a revolução tecnológica se intensificava e

conduzia o ser humano a uma nova maneira de se deparar com o tempo, com a sua

duração, pelo aumento drástico da velocidade e pelas possibilidades da

simultaneidade. Assim, a percepção da duração do tempo vem também demarcada

pela diferença entre o tempo cronológico e o tempo psicológico. Nesse contexto,

Bergson busca compreender a manifestação do cômico, tendo por parâmetro o seu

surgimento em dada situação como a antítese entre “elementos mecânicos” e

“elementos vivos”. Estabelece ainda como uma das condições para o riso a ruptura

com o tempo cronológico, privilegiando o tempo psicológico, na sua duração. Dito de

outra forma, para Bergson, o riso surgia do processo psicológico de inversão e

sobreposição de dimensões espaço-temporais. Em um de seus exemplos, uma

pessoa em uma rotina de ocupações cumpridas dentro de uma “regularidade

matemática” é surpreendida com o embaralhar de seus objetos, o que a faz agir de

forma aparentemente estúpida ao manter a mesma rotina. Assim, ao não deter o

movimento costumeiro ou lhe dar outra direção, gera-se o cômico, pois o risível

nessa situação decorre de “certa rigidez mecânica onde deveria haver maleabilidade

atenta e a flexibilidade viva de uma pessoa” (1980, p. 15, grifo do autor).

No exemplo acima, o efeito cômico foi determinado por um obstáculo exterior,

ou seja, a desorganização dos objetos dentro da rotina de uma pessoa. Mas é

possível interiorizar esse processo, e revelar a rigidez mecânica internalizada pelo

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ser humano. Vê-se assim que o obstáculo vem desse mundo interior. Para esse

outro caso, Bergson apresenta a seguinte situação:

Imaginemos certa fixidez natural dos sentidos e da inteligência, pela qual continuamos a ver o que não mais está à vista, ouvir o que já não soa, dizer o que já não convém, enfim, adaptar-se a certa situação passada e imaginária quando nos deveríamos ajustar à realidade atual. (1980, p. 15)

Quando a rigidez mecânica se sobrepõe à flexibilidade própria da natureza humana,

os “elementos vivos”, o cômico surge enquanto manifestação de inquietação, que

combina o imaginário vivo com aspectos de uma montagem mecânica. Nessa

perspectiva, segundo Bergson, “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do

corpo será, pois, suspeita à sociedade, por constituir indício possível de uma

atividade que adormece, e também de uma atividade que se isola” (1980, p. 19, grifo

do autor). Ou seja, o afastamento do centro comum no qual a sociedade gira conduz

à excentricidade. O riso reage com um gesto simples, um “gesto social”, uma

inspiração que combate as excentricidades, mantendo “constantemente despertas e

em contato mútuo certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de

isolar-se e adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica

na superfície do corpo social” (BERGSON, 1980, p. 19).

A paródia foi a forma cômica mais empregada para representar a realidade

brasileira, desprendendo-se, pela amplitude de seu emprego, de uma prática apenas

textual, isto porque a representação do país passava “pelos caminhos da inversão e

recriação de sentidos, pelo jogo dialógico e tenso entre o real parodiado e a

representação paródica” (SALIBA, 1998, p. 310). Desde o Império, a paródia

compunha uma espécie de “dialética da ordem e da desordem” numa sociedade

extremamente hierarquizada. Mas na República, pelo deslocamento, pela inversão

ou pela transposição, assumiria uma função de ponta-de-lança do cômico, se assim

podemos dizer. Mais do que no Império, os contrastes entre o imaginário e o real

tornaram-se dramáticos na República, provavelmente em decorrência da rigidez e

do formalismo da organização burocrática do Estado brasileiro republicano.

Nesse contexto, a paródia associaria a vida pública com a vida privada para

corroer por dentro, pelo riso, qualquer rigidez do sistema. Um dado novo das

cidades que cresciam e se urbanizavam seria a ocupação das novas avenidas e dos

novos espaços públicos, gerando uma nova sociabilidade que incorporava hábitos

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mundanos. A mobilidade passa a ser essencial para a representação dos novos

tempos. Não só a mobilidade dos novos meios de transporte, mas também a

mobilidade corporal. Daí que o humor da paródia, segundo Elias Thomé Saliba,

apegou-se ao movimento da dança e do jogo, ao movimento dos corpos e ao apelo aos sentidos – que se constituiu numa alternativa anárquica ao registro mais rebarbativo e anódino do grã-finismo e do cosmopolitismo de fachada. Por tudo isso, a única imagem paródica possível para essa representação alternativa da República talvez tenha sido aquela cheia de movimento, de jogo, de volubilidade e, até, de sensualidade, expressa, por exemplo, na dança mais popular do Rio de Janeiro no início do século: o maxixe. (1998, p. 319)

Essa dança, perseguida nas ruas pela polícia, condenada pela elite, era, no entanto,

“dançada no interior das casas brasileiras por sinhazinhas e sinhás” (SALIBA, 1998,

p. 320). De certo modo, era pela dança, pelo movimento e pela animação que se

filtravam os formalismos e a rigidez do Estado republicano brasileiro.

Voltemos às Memórias sentimentais de João Miramar, ao discurso do Dr.

Mandarim Pedroso sobre o Recreio Pingue-Pongue. Se uma das representações

alternativas à rigidez institucional da República no início do século passado estava

na dança, especialmente no maxixe, que com sua sensualidade contagiava a capital

do país, também a São Paulo da segunda década do século vivenciava o que o Dr.

Mandarim chamou, em tom moralista, de uma “civilização de dancings” (capítulo

155). A rigidez do espírito conservador, que fixa os sentidos e a inteligência em

“certa situação passada e imaginária” e impossibilita o ajuste à realidade atual,

revela-se no discurso do presidente do Recreio Pingue-Pongue, por exemplo, ao

rechaçar de seu clube “o paso doble”, uma dança sensual chamada por ele de “a

cópula do salão” (capítulo 155). O cômico aflora desse contraste, como observou

Bergson, da rigidez dos elementos mecânicos e da flexibilidade dos elementos

vivos. E corrói por dentro ao expor a mentalidade medíocre que predominava na

sociedade paulistana.

No capítulo “160. DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ

DURANTE O FOX-TROT PELO DR. MANDARIM PEDROSO” (1971a, p. 91-92),

João Miramar, enquanto autor ficcional, reproduz na íntegra um discurso do Dr.

Mandarim Pedroso proferido aos rapazes e moças do Recreio Pingue-Pongue. Após

a saudação inicial, vê-se que o orador embaralha os espaços público e privado,

prática comum à elite ali representada: “Este clube é um lar!”. E prossegue o

discurso apregoando os nobres propósitos do Recreio que preside:

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Nele, o espírito hospitaleiro é uma prerrogativa ao lado do catecismo moral da juventude! E é devido a isso que o Recreio Pingue-Pongue se tornou célere a mais progressista artéria de nossa vida social, com floridas ramificações pela política e pela literatura!

É interessante observarmos que o discurso do Dr. Mandarim Pedroso busca

assimilar alguns elementos da realidade atual, mesmo que revertidos para o espírito

passista em voga naqueles tempos. No trecho destacado acima, o orador

caracteriza o Recreio Pingue-Pongue como “a mais progressista artéria de nossa

vida social”. A palavra “progressista” vincula-se a um ideal que certamente não

corresponde ao papel político e artístico-cultural exercido por aquela instituição. Nem

mesmo a vida social e a República brasileira eram progressistas. Mas o termo dá um

verniz de atualidade ao discurso do Dr. Mandarim. Em outro trecho, o orador

enaltece as práticas esportivas, uma das principais novidades que eletrizavam as

cidades desde a Primeira Guerra Mundial, conforme já vimos anteriormente em

nosso estudo. No entanto, o Dr. Mandarim, digamos, acalma os nervos e os

músculos de uma percepção que deveria se centrar no corpo ao associar a prática

desportiva do Recreio Pingue-Pongue à Grécia clássica:

Porque aqui, meus senhores e senhoras, revelando uma cultura pouco vulgar, em juventude desta idade, as sócias e sócios não cogitam tão somente dos adornos que eletrizam os do respectivo sexo oposto. Não! Praticam os desportos! Seguindo a lição da Grécia, realizam o eterno anexim Mens sana in corpore sano.

Como se vê, o discurso do Dr. Mandarim Pedroso é “análogo ao apagamento

da luz durante o fox-trot”, conforme diz o título do capítulo, não no sentido literal da

pane elétrica que deixou o salão do clube às escuras na noite anterior, quando os

jovens dançavam “uma valsa lânguida”. As trevas aqui são a resistência aos novos

valores do mundo, à nova arte, à nova literatura. Por isso o Dr. Mandarim Pedroso

prossegue em seu discurso pelo viés do apagamento: “Aqui não se leem romances

de baixa palude literária nem versos futuristas! Só se lê Rui Barbosa”; enaltece a

“frase cinzelada e lapidar” de Bilac: “Astuta e forte, a grande mãe das raças, Eva!”;

desfere um ataque moralista ao que chamou de “feminismo contemporâneo”; e

encerra o discurso em tom ufanista: “Bendita terra que possui tais efebos! Pátria,

latejo em ti!”.

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Se o Dr. Mandarim Pedroso busca incorporar em seu discurso elementos da

atualidade, adequando-os ao seu conservadorismo que desemboca na ufania

patriótica, o Dr. Pôncio Pilatos da Glória fixa-se no passado longínquo e nobre do

Velho Mundo. No último capítulo desse bloco que montamos e estamos analisando,

o “162. NOTICIÁRIO” (1971a, p. 93), o autor ficcional reproduz na íntegra uma carta

escrita na Europa, no “Gênova Hotel”, pelo Dr. Pilatos, endereçada ao próprio

Miramar. Observa-se que o remetente é bastante afetuoso para com o destinatário,

o que confirma o bom relacionamento entre os dois personagens, como se vê nas

sequências discursivas da “saudação” – “Meu querido amigo e confrade” – e da

“despedida” – “Recomendações e abraços sinceros / do amº. crº. venºr e primo /

Pilatos”. No corpo da carta, o Dr. Pôncio Pilatos da Glória enaltece as belezas da

Itália e de Portugal, segundo seus paradigmas. Da “bela Itália”, o remetente escreve

ser aquele o “país da arte, cheio de templos de mármore de Carrara, onde a Fé se

escuda na égide da tradição”. De Portugal, por onde o missivista passara, ele

aprecia a “célebre Torre de Belém, donde partiram as gloriosas caravelas de Cabral,

singrando o Oceano”. A rigidez do pensamento mecanizado desencontrado de uma

viva Europa em efervescência produz o humor do texto. E quando o Dr. Pilatos usa

de um dado da atualidade, o câmbio desfavorável aos portugueses, o faz pelo viés

do passado, valorizando a “epopeia histórica” em detrimento da situação atual de

Portugal. Verifica-se isso no trecho da carta em que o Dr. Pilatos descreve o que

sentiu quando estava diante da Torre de Belém:

Não pude deixar de concentrar-me e transportar o meu espírito àqueles tempos gloriosos. E senti a mais profunda gratidão por esses intimoratos descobridores, reconhecendo que se não houvesse tamanha epopeia histórica, eu hoje não estava aqui e talvez fosse um português que com o lastimável estado do câmbio nem pudesse andar viajando.

Apesar das diferenças que delineamos entre o Dr. Pôncio Pilatos da Glória e

o Dr. Mandarim Pedroso, não se pode perder de vista que ambos se localizam no

mesmo campo ideológico. Também nesse campo encontra-se Machado Penumbra.

O círculo de amizade no qual João Miramar transita é constituído por conservadores.

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6 CONCLUSÃO

Na introdução de nosso estudo, anunciamos o propósito de tentar

compreender o ponto de vista da crítica à sociedade brasileira da época esboçada

nas Memórias sentimentais de João Miramar, considerando o que é externo à obra e

se torna elemento interno em sua composição. Fizemo-nos então uma pergunta

inicial: Como João Miramar, representativo da oligarquia cafeeira paulista, da

mentalidade conservadora dessa classe, escreveu um livro cuja linguagem e projeto

são tão avançados, tão arrojados? Percorrido um roteiro de leitura, que, insistimos,

cabe sempre à recepção definir, podemos agora tentar congregar alguns aspectos

do romance abordados em nosso estudo com o intuito de melhor refletirmos sobre a

questão que nos colocamos. João Miramar, como já constatamos, foi inserido na

sociedade paulista por iniciativa de Célia, e não por uma autodeterminação. Daí que

os laços sociais constituídos dessa operação se assentaram em relações de

conveniência. Mesmo após o divórcio e da execração do protagonista, o resgate

social de João Miramar coube a personagens que lhe foram apresentados por

iniciativa de Célia. Portanto, Miramar mantém-se dentro de um círculo de

relacionamento, ainda que mais restrito, concebido a partir da ex-mulher. Assim,

perduram as relações de conveniência, porém com os laços afetivos para com

Machado Penumbra e Dr. Pilatos mais fortalecidos. Talvez seja essa uma das

possíveis razões da imensa consideração do escritor João Miramar para com esses

colegas, inclusive no terreno literário, cujas concepções são bastante distintas da

dele. A essas possíveis razões juntamos o estudo de Antonio Candido sobre o tema

“radicalismo”, em que o autor busca caracterizar o comportamento de membros da

classe dominante que se voltam politicamente contra a própria classe a que

pertencem, mas que vão até certo ponto, situado antes da ruptura.

O último capítulo das Memórias sentimentais, o capítulo “163. ENTREVISTA

ENTREVISTA” (1971a, p. 94), sugere, nas entrelinhas das respostas apresentadas

por João Miramar a um entrevistador, ter o autor ficcional uma formação teórica

bastante consistente, o que se verifica também pela própria escrita do romance. No

entanto esse conhecimento não vemos ter sido assimilado por mecanismos formais

de um processo educacional, mas adquirido ao longo do percurso biográfico,

relembrado em suas Memórias. Tudo indica que as experiências da vida, a escola, a

boemia, as paixões por atrizes, a viagem à Europa, o casamento, os grêmios

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literários, os colegas “expoentes” da sociedade paulistana, os amores

extraconjugais, a administração dos negócios, enfim, parece que tudo isso, mesmo

que às avessas, serviu para lhe forjar a consciência crítica e estimular a escrita livre.

Daí serem as Memórias sentimentais uma obra crítica ao quadro social e inovadora

em sua linguagem, como forma de João Miramar se rebelar no terreno da literatura,

enquanto que nas ações práticas da vida ele não demonstra qualquer intenção de

transformação da realidade.

A validade das experiências vivenciadas enquanto mecanismo para a

formação de alguém pode ser vistas, por exemplo, no capítulo “157. ERRATA”

(1971a, p. 89). Lá, Miramar reencontra o primo e cunhado José Elesbão da Cunha

que viera ao Brasil. Pantico estava mudado, já não era mais aquele menino “que não

tivera educação desde criança e por isso amava vagamundear” (capítulo 15). A

prática da vida lhe ensinara muito: “Encontrei o novo Pantico magro e oposto a todas

as visões da infância e da adolescência epistolar longínqua. O trabalho raivoso

formara-o homem. Conhecia todos e tudo de nítida e póstuma visão” (capítulo 157).

O título “Errata” refere-se à nova situação de Celiazinha, que foi feita milionária pela

revisão do processo judicial. Mas também pode se referir ao novo Pantico, forjado

na vida. Assim como João Miramar, cuja literatura foi talhada, parece-nos, ao longo

de seu percurso biográfico.

A recepção poderia constituir uma “estrutura significativa” para uma leitura

horizontal que substanciasse essa hipótese. Não faremos isso aqui, pois temos por

objetivo nos ater ao último capítulo das Memórias sentimentais e não abrir uma nova

frente de pesquisa, mas apontamos essa investigação como um possível

desdobramento de nosso trabalho. Quanto a isso, podemos registrar, por exemplo,

que durante a sua viagem à Europa, Miramar assistiu às “paradas” que

congregavam artistas da inventividade de Picasso, Satie e Cocteau (capítulo 51).

Não nos parece possível que algum autor literário que escreve da forma como

Miramar o faz tenha passado incólume por essas experiências. No entanto,

reafirmamos que, em sentido prático, as vivências do protagonista proporcionadas

pela viagem ao continente europeu, viagem essa concebida por sua mãe como mais

uma etapa de sua formação, não transformam o seu mundo, na volta ao Brasil. Há

nessa situação uma incógnita a ser pensada, já que o seu mundo prático não sofre

mudanças, mas há uma universalidade, uma consciência crítica e uma liberdade em

sua escrita.

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O capítulo 163, por ser o último do livro, demarca o final das Memórias

sentimentais de João Miramar. Temos aí a questão da unidade e da completude da

narrativa, que no caso não segue a tradição do romance realista, no qual existe a

confluência do fim da ação imitada e da narrativa propriamente dita. No Miramar,

não há um enredo que se organiza em tal sequência, com início, meio e fim. No

entanto vimos nos estudos de Haroldo de Campos que apesar da pulverização dos

capítulos, existe um camuflado fio condutor cronológico que estrutura o romance em

fases da vida do protagonista, como infância, juventude e maturidade. Vimos

também em Kenneth Jackson uma leitura que assunta o amadurecimento do

narrador-personagem conforme este relembra os eventos de sua vida. Assim,

poderíamos dizer que a infância e a juventude preparam a maturidade. Não no

sentido de uma formação espiritual, de um engrandecimento moral. Não há no

Miramar essa perspectiva. A maturidade vem com o conhecimento da engrenagem

social, o jogo que João Miramar não pretende modificar. Pelas respostas irônicas

dadas na entrevista reproduzida no último capítulo, diríamos que Miramar busca,

sobretudo, se resguardar diante da “máquina social”. Portanto, a maturidade do

protagonista não estabelece o final do enredo, da conclusão das ações. O final do

livro se dá por uma decisão do autor, que põe um ponto final na escrita, sem que as

ações do enredo tenham sido concluídas. Daí a primeira pergunta da entrevista ser

sobre o prosseguimento de “suas interessantíssimas memórias”. O entrevistador,

assim como o “grosso público ledor”, tem por perspectiva a narrativa realista, por

isso percebe o livro como incompleto. João Miramar ao responder sobre “as razões

ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura”, conforme

as palavras do entrevistador, ironicamente dá uma resposta no mesmo nível da

pergunta, tangenciando o absurdo: “Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia”.

Parece-nos que Miramar se diverte com o despreparo da inteligência local para

compreender a sua literatura, ou, numa perspectiva mais ampla, sob a batuta de

Oswald de Andrade, as experimentações modernistas. Afinal, o título do capítulo,

constituído pela repetição da mesma palavra, sugere ao leitor a ocorrência

simultânea de mais de uma entrevista.

Na sequência, para esclarecer o que seriam “razões de estado”, João

Miramar recorre à apologia das virtudes pelo Dr. Mandarim Pedroso. Explica então

que por ser viúvo deve ser circunspecto e por já ter chegado aos trinta e cinco anos,

segundo suas palavras, “nossa atividade sentimental não pode ser escandalosa, no

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risco de vir a servir de exemplo pernicioso às pessoas idosas”. Miramar também

evoca a figura do Dr. Pilatos ao dizer que já possui “o melhor penhor da crítica”,

dando pouca importância à advertência do entrevistador sobre supostas acusações

da crítica e da posteridade devido à interrupção do livro, este “tão rico monumento

da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20”. Reproduzimos

esta fala do entrevistador, que assim caracteriza o livro de Miramar, com o propósito

de observarmos o discurso empolado da intelectualidade provinciana. Afinal, vimos

com Samira Nahid Mesquita que no Miramar há “mais uma trama de linguagem do

que de peripécias. Quase todas as personagens, quando falam ou escrevem, o

fazem para servir de instrumento à sátira, que visa à sociedade da época” (1995, p.

152). Nesse último capítulo, supomos, há uma espécie de desafio ao leitor para a

compreensão de uma história no plano da enunciação, norteada pela ironia como

pistas daquilo que não está escrito. Se a trama principal do Miramar não está na

sucessão de eventos, mas na enunciação narrativa, isso parece se confirmar neste

último capítulo. Dessa forma, a nosso ver, é que se dá a conclusão do livro, cujo

vértice é a apresentação para os leitores de um João Miramar escritor em plena

maturidade, irônico e convidativo a uma leitura na qual o papel crítico-reflexivo de

escritor se sobrepõe à trama do romance. A plena liberdade de um escritor é

representada na decisão que cabe a ele de pôr um ponto final na história.

No entanto, se no terreno da literatura João Miramar é arrojado, na vida

prática ele se acomoda às convenções estabelecidas. Vimos em nosso estudo a

incongruência da crítica do Dr. Pilatos feita ao romance escrito por Miramar, por sua

incapacidade, como intelectual de província que é, de renovar as suas concepções

estéticas, e por isso lê o novo pelo viés de uma tradição secularizada, o que gera

uma crítica anacrônica. Daí a comparação do Miramar a Virgílio: “O meu livro

lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo”. São com essas

palavras que o autor ficcional põe um ponto final no livro. Entretanto, diante dessa

afirmativa, há uma pergunta a ser feita: Por que o escritor João Miramar reconhece

essa crítica como uma garantia que legitima a sua obra? Afinal, o escritor parece já

ter atingido a plena maturidade literária, e portanto deveria ter consciência de como

fora forjada a crítica do Dr. Pôncio Pilatos da Glória. Buscando refletir sobre essa

questão, poderíamos considerar que existe um propósito em João Miramar de

afastar o escritor de sua obra. Dito de outra forma, há um processo de “apagamento”

do autor ficcional em favor da obra. Dessa maneira, na vida prática, Miramar

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mantém-se no campo conservador de seus amigos de classe, deixando no terreno

da literatura a obra que fala por si mesma, como se aguardasse uma futura

recepção capaz de desvendá-la, talvez porque não acredite haver essa possibilidade

naquela realidade provinciana.

Esta seria uma leitura possível, mas não a única. Em nosso estudo vimos que

o discurso miramarino possibilita ao leitor ampliar a percepção da realidade que lhe

serve de referência pelas brechas do não dito. O que não está explicitado, mas

sugerido, pode ser completado pela recepção. Esse é o princípio do jogo literário

que Oswald de Andrade faz com o leitor, um jogo complexo e por isso dificilmente

esgotável. Afinal, não seria esse o valor de uma obra de arte, proporcionar

possibilidades de reflexão? Assim, o que dissemos acima sobre a assimilação do

discurso do Dr. Pilatos por Miramar não esgota o potencial do texto. Diante do

universo provinciano em que estão imersos os personagens, e considerando que

nas Memórias sentimentais os elementos textuais, como a fala de um personagem,

são em geral chaves paródicas, podemos expandir a nossa interpretação pelo viés

da ironia. Ou seja, ao reconhecer a crítica apoiada numa concepção clássica,

Miramar estaria sendo irônico. O alvo, supomos, seria a produção literária

hegemônica da época, que se realiza enquanto seguidora anacrônica dos autores

parnasianos do século anterior.

A linguagem parnasiana, refratária à realidade, muito se parece

ideologicamente com o método crítico do Dr. Pilatos, tanto pela busca de um ideal

descontextualizado, como pela incapacidade de se renovar diante das mudanças da

vida. Por essa estagnação em um passado idealizado, como tentativa de isolar

artificialmente a literatura de outras áreas de conhecimento e expressão cultural, o

estilo parnasiano ainda hegemônico na produção literária no início do século XX

torna-se alvo do combate modernista, pois é um entrave que não serve às intenções

renovadoras dos novos artistas diante da nova realidade. Por enfatizar a forma e

esvaziar o conteúdo, a linguagem parnasiana tende a produzir uma espécie de

naturalização dos signos, amenizando-os, o que numa sociedade de classes realiza-

-se como uma operação ideológica que escamoteia o lugar de onde se fala, no caso,

a faixa elevada da sociedade. O Miramar, conforme vimos em nosso estudo, é

constituído essencialmente por personagens cunhados da elite paulista, mas pela

sátira o discurso é localizado socialmente. Portanto, podemos ver na última frase

das Memórias sentimentais de João Miramar também uma crítica ao discurso

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parnasiano realizado fora de seu tempo, em um mundo em rápida transformação.

Há nessa crítica uma intenção que não se limita a uma substituição de estilo, mas de

forma mais ampla se quer desestabilizar a rede conceitual de sustentação da

maneira como o mundo é apreendido pela parcela hegemônica da elite brasileira.

Daí a proposta de uma nova postura artística dos modernistas para uma sociedade

que se desdobrava em faces, se fragmentava. Portanto, a crítica aos aspectos da

linguagem do Miramar, bastante desenvolvido pela crítica literária, sugere também

uma leitura que se atente aos aspectos ideológicos do texto.

Já dissemos que, em Miramar, Oswald é mais intuitivo, enquanto em Serafim

há mais consciência do processo revolucionário. Não nos referimos a um

engajamento político tradicional, mas há de se ver que Oswald de Andrade propõe

uma leitura crítica de seu tempo, feita através do discurso. Por isso nos parece uma

leitura mais rica da obra oswaldiana quando se considera indissociável a análise

estética da análise ideológica. Com Memórias sentimentais de João Miramar,

Oswald propõe uma nova postura artística para uma nova sociedade fragmentada,

veloz, urbana, multifacetada, enfim, na qual não cabem mais discursos pomposos

que primam pela conservação de uma tradição unissonante estagnada no passado.

O progresso revoluciona a sociedade a cada instante. Não cabem, portanto, mais

discursos como os do Dr. Mandarim Pedroso, do Dr. Pôncio Pilatos da Glória ou de

Machado Penumbra. Oswald escreve pelo avesso, e a crítica deve tentar entendê-lo

também pelo avesso, afinal, todo discurso retórico em Miramar é a própria ironia do

retórico.

Já apontamos neste último capítulo de nosso estudo alguns possíveis

desdobramentos desse trabalho. Podemos citar outros, como a presença do cinema

nas Memórias sentimentais, tanto pelo aspecto técnico da linguagem, como pelo fato

de Miramar ter sido sócio em uma empresa que produzia filmes. Acreditamos que

essa seria uma pesquisa a ser desenvolvida a fim de que se preencha uma lacuna

situada entre as primeiras análises do Miramar, que identificaram técnicas do fazer

cinematográfico no texto de Oswald, até uma compreensão mais complexa que

temos hoje do cinema, que nos sirva de instrumental para relermos a década de

1920 através do Miramar. A indústria cinematográfica, além de um próspero

empreendimento que fez muita fortuna, não é à toa que Miramar imagina ficar rico

ao tornar-se sócio da “Grande Empresa”, teve um papel crucial para o imperialismo

norte-americano. Nesse sentido, talvez, David Wark Griffith seja uma figura central

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dessa análise, tanto pelos aspectos técnicos da linguagem, como pela questão

ideológica. Registra-se também o papel das belas atrizes, símbolo de desejos. E

Miramar sempre se apaixonando pelas atrizes... Outro possível desdobramento, que

nos parece inesgotável, seria uma análise ideológica a partir da linguagem

humorística, definindo eixos e buscando dissecar o texto. Acreditamos que há muito

além do que já se descobriu por esse viés. Enfim, a potencialidade do Miramar nos

propicia uma quase infinidade de desdobramentos.

Por fim, retornamos a uma questão que norteou o nosso estudo, o fato de as

Memórias sentimentais de João Miramar não se submeterem a um roteiro de leitura

definitivo. Talvez esse seja o grande desafio para a recepção dessa obra. Em nosso

entendimento, a sua leitura é construção necessariamente coletiva e acumulativa,

diante das tantas possibilidades de articulações que o texto propicia, como um texto

caleidoscópico. Portanto, o grande desafio que o Miramar propõe, a nosso ver, são

as estratégias de montagem que cabem à recepção definir e que potencializam as

interpretações do texto. Como disse Antonio Candido a respeito da obra de Oswald

de Andrade, a sua escrita fragmentária tende “a certas formas de obra aberta”

(1970a, p. 78).

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