memorial do convento_ josé saramago

41
Oito obras para conhecer José Saramago In Público, 20/06/10 Levantado do Chão (1980) É considerado um dos romances fundamentais de Saramago. “A epopeia dos trabalhadores alentejanos, a elucidação da reforma agrária, a narrativa dos casos, conhecidos ou não, que fizeram do Alentejo um mar seco de carências, privações, torturas, sangue e uma impossibilidade de viver”, escreveu Alzira Seixo em O Essencial sobre Saramago.

Upload: celestecustodio

Post on 15-Dec-2014

463 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Memorial  do Convento_ José Saramago

Oito obras para

conhecer

José SaramagoIn Público, 20/06/10

Levantado do Chão (1980)

É considerado um dos romances fundamentais de Saramago. “A epopeia dos trabalhadores alentejanos, a elucidação da reforma agrária, a narrativa dos casos, conhecidos ou não, que fizeram do Alentejo um mar seco de carências, privações, torturas, sangue e uma impossibilidade de viver”, escreveu Alzira Seixo em O Essencial sobre Saramago.

Memorial do Convento (1982)

“Certamente o mais celebrado, estudado e discutido dos romances de Saramago”, diz Carlos Reis. “Um romance histórico inovador no contexto da literatura mundial”, escreveu José Luís Peixoto no “JL”. A ópera Blimunda com música do italiano Azio Corghi tem por base este romance.

Page 2: Memorial  do Convento_ José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

“Cada vez mais o meu romance preferido, do conjunto da obra saramaguiana”, diz Carlos Reis. “Um labirinto construído sobre outro labirinto, a forma brilhante, brilhante como a ficção se aproxima de um tempo real”, escreveu José Luís Peixoto no “JL”. Um romance onde Saramago “elabora conjeturas fecundas para a compreensão de uma época ou de uma figura”, afirma Alzira Seixo.

História do Cerco de Lisboa

(1989)

“Um dos enredos mais bem imaginados da literatura portuguesa”, escreveu José Luís Peixoto no “JL”.

O Evangelho segundo Jesus Cristo

(1991)

“O Evangelho segundo Jesus Cristo contém uma história que todos conhecemos. E contém cenas e afirmações que há alguns anos atrás teriam lançado o autor na fogueira, sem direito a sepulcro. O escritor toma para si liberdades que são a substância da criação, e comporta-se, na invenção do seu mundo, como Deus. Este é o evangelho segundo Saramago...” escreveu, à época, Clara Ferreira Alves, no “Expresso”. O romance foi cortado da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, pelo então Subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara.

Page 3: Memorial  do Convento_ José Saramago

Ensaio sobre A Cegueira (1995)

“Quase em ritmo e registo de ficção científica, Ensaio sobre a Cegueira mantém, na escrita de José Saramago e na sua aventura romanesca, uma dimensão rara e singular na atual literatura portuguesa: a constante demanda de um laço que prenda o romance à arte de questionar e que, daí, exija o lugar de uma ética mais profunda que a própria arte de pensar. Como se o romance fosse, e nunca tivesse deixado de ser, uma interrogação sobre o mundo como ele é e como ele devia ser.”, escreveu na altura Francisco José Viegas na “Visão”. “Ensaio sobre a Cegueira, de alguma forma representou o início de uma nova fase na obra de Saramago. E, decerto não por acaso, foi depois dele que se passou a falar ainda mais da grande possibilidade de, com inteira justiça, lhe ser atribuído o Nobel”, escreveu no “JL” José Carlos de Vasconcelos. Foi adaptado ao cinema por Fernando Meireles.

As Intermitências da Morte

(2005)

“São livros como este que nos tocam fundo, nos desarmam e nos deixam sem resposta. Apenas sabemos que na morte e no seu compromisso para com a humanidade reside o medo atávico do desconhecido, do vazio, algures numa hora e num lugar dentro de nós.”, escreveu Luísa Mellid-Franco no Expresso.

Page 4: Memorial  do Convento_ José Saramago

Poesia Completa (2005)

Uma edição bilingue saída em Espanha essencial na sua obra para José Manuel Mendes, da Associação Portuguesa de Escritores. “Quem a ler perceberá porquê”, diz.

Memorial do Convento

“Para mim o mundo é uma espécie de enigma constantemente renovado. Cada vez que o olho estou sempre a ver as coisas pela primeira vez. O mundo tem muito mais para me dizer do que aquilo que sou capaz de entender. Daí que me tenha de abrir a um entendimento sem baías, de forma a que tudo caiba nele.”

José Saramago, O Jornal, Janeiro de 1983

"Era uma vez um Rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra.”O rei D. João V, preocupado com a falta de descendentes, prometeu construir um convento em

Page 5: Memorial  do Convento_ José Saramago

Mafra, se a rainha lhe desse um filho para lhe suceder no trono. Em cumprimento da promessa, a construção inicia-se após o nascimento da princesa Maria Bárbara.

"Era uma vez a gente que construiu esse

convento.” A «gente que construiu esse convento» é constituída pelo povo anónimo que trabalha e sofre sob as ordens do rei megalómano, para cumprir a sua promessa e satisfazer a sua vaidade. Como personagem coletiva, sobressaem os seus sacrifícios e a sua miséria física e moral. Este povo humilde e trabalhador sai do anonimato através da individualização de certas personagens destacadas, e, simbolicamente, pela atribuição de um nome segundo cada letra do alfabeto (Cap. XIX, p. 242). Salientam-se as personagens Baltasar, Blimunda, Francisco Marques e Manuel Milho, entre outras. O sofrimento dos homens relatado na Epopeia da Pedra que foi transportada de Pêro Pinheiro para Mafra (num percurso de 15km, que demorou 8 dias) – a pedra pesava mais de trinta toneladas e tinha sete metros de comprimento por três de largura e sessenta e quatro centímetros de espessura.

"Era uma vez um soldado maneta e

uma mulher que tinha poderes.”Baltasar Mateus é um mutilado de guerra – foi soldado na Guerra da Sucessão espanhola, tendo sido expulso por ter perdido a mão esquerda. De regresso a Portugal, conhece Blimunda, num auto-de-fé em Lisboa, no Rossio.Nesse auto-de-fé está a mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo para Angola. Baltasar e Blimunda vivem uma história de amor e paixão, desde que se conheceram. Além de ser operário na construção do Convento, Baltasar também participa na construção da Passarola. Blimunda é vidente, pois, em jejum, consegue ver por dentro das pessoas e das coisas. Ela colabora na construção da Passarola – recolhendo as “vontades”, com os seus poderes mágicos – e partilha com Baltasar as alegrias e preocupações da vida, mas, sobretudo, um amor límpido e verdadeiro.

Page 6: Memorial  do Convento_ José Saramago

"Era uma vez um padre que queria voar e

morreu doido.” O padre Bartolomeu de Gusmão – o Voador – acalentava o sonho de voar, pelo que construiu a Passarola, com a ajuda de Baltasar, de Blimunda e do músico italiano Scarlatti. Embora beneficiando da proteção e amizade de D. João V, dificilmente consegue livrar-se da perseguição do Santo Ofício – acabando por morrer, louco, em Toledo (Espanha), onde se tinha refugiado.A obra Memorial do Convento abrange ações decorridas entre 1711 (data da promessa do Rei) e 1739 (data do último auto-de-fé, onde foi queimado Baltasar).

Alzira Falcão, “Como abordar... Memorial do Convento” – 2002, Areal Editores (adaptado)

Memorial do Convento «Romance histórico, mas também social e de espaço, este romance articula o plano da História (espaço físico e sociocultural) com o plano da ficção e o plano do fantástico. O título Memorial do Convento sugere memórias de um passado delimitado pela construção do convento de Mafra, com o que de grandioso e de trágico representou como símbolo do país. A verdade histórica do reinado de D. João V (no século XVIII), com a construção do convento de Mafra, a Inquisição e os autos de fé, ou os espaços sociais cortesãos, eclesiásticos e populares, serve de base contextual para a narração ficcional da reinvenção histórica (...).O fio condutor da intriga passa por Blimunda, que imprime à ação uma dinâmica muito própria e lhe confere espiritualidade, ternura e magia. A ação acaba por se centrar na relação entre Baltasar e Blimunda, que transgride todos os códigos em qualquer tempo, nomeadamente da época.As vozes do narrador e das personagens proporcionam, constantemente, uma análise crítica aos tempos representados e da enunciação, mas, sobretudo, um comentário e uma crítica ao presente, por onde passa também a História, permitindo confrontar o ser e o tempo. [...] E mesmo que as regras discursivas sejam aparentemente ignoradas e haja linguagens que abandonam a tradicional hierarquia de correlação, o discurso flui dentro de uma conceção lógica. As intencionais infrações da norma prestam-se a leituras que alternam o discurso escrito com o discurso oral e, sobretudo, com um discurso monologado que resulta da mistura de vozes que se produzem no pensamento das personagens.»

Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Preparação para o Exame Nacional de Português 12º ano – 2006, Porto Editora

Page 7: Memorial  do Convento_ José Saramago

Memorial do Convento – um olhar subversivo sobre o tempo e o ser

Numa entrevista ao jornal O jornal, em Janeiro de 1983, Saramago considera-se um homem "atento ao fluxo histórico e com um certo respeito pelas coisas elementares, que são o tempo, o sol, a terra e as pessoas que andam nela" numa atitude entre a escrita, a história e a filosofia que caracteriza o seu pensamento. Dado que "O mundo tem mais para nos dizer do que aquilo que somos capazes de entender", o autor concebe Blimunda, de Memorial do Convento, como algo inexplicado, mesmo no final, quando o leitor é "posto perante o facto da sua existência e aceita-a ou não., Blimunda representa um elemento mágico não explicado".

A conceção de história para o autor passa pela sua visão do tempo que é comparado a um harmónio: "Eu vejo o tempo como um harmónio. Assim como este pode ser estendido ou encolhido, os tempos podem tornar-se contíguos uns dos outros. É como se 1720 tivesse sido ontem, agora mesmo, ali naquele salão". Este juízo é plenamente percetível ao longo da diegese de Memorial do Convento através do qual o reinado de D. João V é recriado quer no domínio do espaço físico quer no domínio sociocultural.

Através do título do romance, o tempo é balizado pela construção do Convento de Mafra mas, acima de tudo, pelo encontro e desencontro entre Blimunda e Baltasar, pois como diz o autor "Considero difícil escrever um romance sem lhe meter uma história de amor, mesmo que se trate de amores infelizes".

Uma das questões corticais neste romance é a fronteira entre a história e a ficção. Saramago não se vê como um escritor histórico mas antes como um autor de uma história na História. O seu argumento traduz-se numa estratégia narrativa que entrecruza três planos relevando o da ficção da História e o do Fantástico em detrimento do plano da História.

Memorial do Convento consegue articular um plano da História (Portugal no século XVIII, durante o reinado de D. João V, com Autos de Fé, procissão de penitentes, casamento dos infantes...) com um plano da ficção da História (elementos históricos que são moldados pela ficcionalidade transformando, por exemplo, D. João V e a rainha Ana de Áustria em caricaturas e elevando, na edificação de Mafra, um herói coletivo e anónimo - os milhares de trabalhadores) e o plano do Fantástico (construção da Passarola, sonho de Blimunda, Baltasar, personagens ficcionais e Bartolomeu Lourenço, figura histórica do tempo).

Page 8: Memorial  do Convento_ José Saramago

Neste romance, Saramago transforma Mafra num símbolo do país. Ele próprio o revela na entrevista que temos vindo a citar: "Comecei a ver o país todo como um gigantesco convento cujos limites nem sequer eram as fronteiras do que é hoje Portugal, porque se prolongavam por dentro das pessoas". Com este pensamento, é nítida a utilização de um narrador com características peculiares.

O narrador apresenta uma natureza multímoda. As suas vozes múltiplas e a dificuldade de distinção entre a sua voz e a das personagens são ainda fatores ancilares se prestarmos atenção ao distanciamento/aproximação em relação aos acontecimentos narrados com ironia e humor. O narrador assume o papel de comentador e de crítico não se furtando a uma relação de cumplicidade com o narratário, utilizando a primeira pessoa do plural propiciando a este uma atitude de análise e de crítica relativamente ao tempo representado e o seu próprio tempo de enunciação.

O autor, na linha da inovação e no caminho da subversão, consegue criar um ritmo de escrita que lembra a poesia, conjugando enumeração, comparação e metáfora, introduzindo aforismos, provérbios e ditados, recriando o uso da pontuação, usando marcas do discurso oral, construindo efeitos irónicos e humorísticos e entrelaçando o seu discurso com outros discursos literários (como o de Camões) e jogos de conceitos típicos do Barroco.

A escrita de Saramago integra-se nos novos caminhos do romance em Portugal nos últimos anos tendo sabido recriar os caminhos do Fantástico. Em Memorial do Convento, a vertente fantástica, não sendo instituída como referência isotópica primordial, funciona pela oposição ao mundo retratado, como elemento fundamental. Tal como já referimos, no romance, a realidade histórica encontra-se enleada nas teias da ficção e mais concretamente no fantástico quando factos conhecidos pelo leitor são cruzados com elementos meta-empíricos, como o ânimo que dá ao homem a possibilidade de voar e o jejum que comunica à filha da feiticeira a capacidade de vislumbrar o interior dos humanos. O fantástico torna-se em Saramago "um modo de exacerbar a atenção sobre a terra portuguesa, sobre as suas demasias e os seus golpes", na opinião de Maria Alzira Seixo.

Saramago tem em mente colocar em contacto e em confronto o ser e o tempo não se furtando a que os seus livros tenham sido vistos como romances históricos, apesar de o não serem de facto numa perspetiva exclusivamente literária. Na verdade, o autor realiza um movimento inverso àquele que é típico do romance histórico: em vez de levar o presente até ao passado reconstituindo-o fielmente, invoca o passado com estratégias discursivas peculiares suportadas frequentemente pela ironia de modo a conseguir atingir a memória com um olhar do presente. Como nos diz Maria Alzira Seixo em A Palavra do Romance "...o que de menos se pode acusar a obra de José Saramago é de que ela seja «passadista», pois nela justamente tem o passado uma função, diríamos «brechtiana», de crítica ao presente e, por isso, é formada de romances donde a contemporaneidade como preocupação e como temática nunca anda ausente. Aliás ele consegue, de modo ímpar na nossa atual ficção, que o seu discurso romanesco seja atravessado pela História, produzindo um tipo de linguagem onde o passado objetual se contamina pelo presente crítico e perspetivante, utilizando já deste modo um processo de autonímia pela sinalização textual que pratica no discurso romanesco..." .

Saramago estabelece uma curiosa relação entre o passado e o presente constituindo um exemplo de metaficção historiográfica, num exercício inovador de escrita do "romance histórico".

Page 9: Memorial  do Convento_ José Saramago

A subversão na escrita deste novo romance histórico não parece muito visível na elaborada reconstituição que o autor institui nas páginas de Memorial do Convento. À vista desarmada, o escritor embrenha-se com perfeição e minúcia na recuperação fidedigna de quadros sociais, rica em detalhe e visivelmente natural, à qual não é estranha a atitude barroca na linguagem, utilizada como ponte imagética.

A diferenciação relativamente à tradição do romance histórico é mais nítida no estatuto do narrador e nas funções das personagens. Quanto ao primeiro aspeto, notamos a existência de um narrador que acompanha a ação, comenta e critica, em omnisciência, que usa o aforismo ou a profecia levando o leitor a incorporar-se no texto numa dialética ativa entre passado, presente e futuro, na qual ele é guia e consciência.

As personagens são alvo da análise objetiva até à exposição do estatuto fictício e de inverosimilhança numa mistura de realista e ficcional, que é apresentada ao leitor revelando a metaficção histórica.

Outra subversão na escrita prende-se com a utilização do anacronismo que Georg Lukács considera necessário na objetividade do romance histórico, em aproximação do passado com o presente do leitor. Em Memorial do Convento, o narrador utiliza o anacronismo em comentários e críticas estabelecendo um paralelo entre o passado e o presente, levando a que elementos atuais se incorporem no passado como acontece com o comentário "diríamos hoje de gala" quando se refere a um uniforme.

A reconstrução do romance histórico em Saramago tem na personagem, como já indiciámos, outro exemplo de subversão. Na tradicional ordenação das personagens do romance histórico, podíamos encontrar o protagonista-tipo, representante das evoluções do momento histórico-social e as figuras históricas típicas. Estes elementos são a antítese em Saramago. A personagem neste autor é excêntrica e singular. Destaca-se pelo insólito e pela diferença, como Baltasar e os seus poderes sobrenaturais ou Blimunda. Por outro lado, o coletivo dos trabalhadores de Mafra, porventura esquecidos num romance histórico tradicional, é elevado pela diferença ao centro das atenções na narrativa, numa nítida intenção de valorização.

Blimunda é uma personagem que se destaca pela dinâmica que imprime à ação e pelas suas facetas peculiares: em jejum, consegue ver "por dentro" pessoas e objetos, numa combinação do popular, do fantástico e do fictício.

O padre Bartolomeu Lourenço é o oposto do clero da época: académico e intelectual que tem dúvidas, é um inventor que sonha com uma máquina fantástica. A subversão conhece o seu grau mais elevado no tratamento das grandes figuras históricas. Ao contrário do que acontece no romance histórico de Scott e Tolstoi onde Maria Stuart, Luís XI ou Kutusov são figuras inesquecíveis de recorte epocal, pessoal e

humano, em Saramago as figuras históricas perdem a sua grandeza histórica e são pintadas com as cores da caricatura. São exemplos máximos, o rei e a rainha, meros instrumentos da necessidade nacional em produzir um herdeiro.

A subversão é ainda transgressão na forma de tratamento das personagens Baltasar e Blimunda que assumem, no fundo, o centro do romance ao contrário do que o leitor poderia esperar a partir das páginas iniciais, nas quais Mafra e o casal real se perfilam como núcleo da narrativa.

Page 10: Memorial  do Convento_ José Saramago

A relação entre Baltasar e Blimunda está fora de todos os códigos, nomeadamente os sociais da época tornando-se este par um símbolo da transgressão e de mensagem para fora do seu tempo e para todos os tempos. O casal é instituído em comunhão com o universo numa ligação amorosa ilícita e desviante, sem cânone ou regra de época, alcançando num espaço sem igual uma perfeição que não é deste mundo. Como nos diz Teresa Cristina Cerdeira da Silva em José Saramago: Entre a História e a Ficção - Uma Saga de Portugueses: "Em ambos há como a experiência mágica do conhecer, suprema transgressão dos códigos habituais de acesso ao outro e ao mundo que consiste, como Blanchot caracteriza a aspiração do poeta, numa busca de uma «linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do incessante e do interminável ao qual é preciso impor silêncio, se se quer, finalmente, ser compreendido». Integração no silêncio e continuidade cósmica, pois Baltasar e Blimunda, se casados não foram, batizados o são com «batismo de padre» que, embora não seguisse o rito canónico, atribuiu-lhes novo nome, identidade cósmica, projeção no universo, cujas leis também confundem, transgridem, para recriá-las novas, onde luas e sóis convivem em harmónica união."

Este magnífico romance é mais uma prova do exercício literário de subversão da escrita transformada em escrita de subversão. A inovação e a transfiguração dos processos narratológicos abrem-nos os sentidos para uma consciência nova em níveis existenciais e literários. A subversão em Saramago é um processo de renovação traduzido no Memorial do Convento num conjunto de transformações estruturais e estilísticas que Maria Alzira Seixo sintetiza com perfeição nas linhas que se seguem e que merecem pelo conteúdo o nosso pecadilho da extensão: "Memorial do Convento é a objetualização verbal orgânica de (...) vetores éticos e estéticos, e nele teremos de salientar como pistas de estudo mais importantes: a construção narrativa, dupla e

alegórica; os ambientes sociais particularizados; a admirável capacidade descritiva; a evocação fiel e impressiva do Portugal setecentista; o conhecimento do meio cortesão, eclesiástico e popular; a emergência de um narrador que hesita entre as capacidades totais de demiurgo e a cumplicidade reduzida com o leitor; a intencionalidade poética; a tendência moralizante e justiceira, conjugada com a frequência do aforismo popular; a temática da construção, da obra, da ascensão, do sonho, do poder e do desejo."

A inovação em Saramago transforma-se mais uma vez em subversão na escrita

quando caracterizamos o seu estilo. O autor cria um ritmo novo, com ousadas supressões de marcas gráficas nos diálogos, substituições de pontos finais por vírgulas num exercício multiplicado, criando uma leitura contínua e sem paragens, em suspensão quase de alma. As pausas são medidas e escolhidas com exatidão semântica contribuindo para a instituição de "uma espécie de olhar ou voz original que de longe (e paradoxalmente do futuro, sabia já de tudo) e comanda o acontecer e o seu sentido, ou o

Page 11: Memorial  do Convento_ José Saramago

vê desenrolar-se sem perplexidades demasiadas, apenas algumas doloridas nostalgias ou breves contentamentos, ou melhor o ouve transcorrer no seu incerto labor de som contínuo que o Tempo acerta nos desajustamentos que motivam as ações, longa e constante viagem essa, a da vida, a nossa, a do texto", como observa Maria Alzira Seixo.

Numa palavra, José Saramago procura no texto uma resposta ao vazio que pode ser a vida se não for iluminada por uma centelha cósmica de verdade e merecimento de felicidade. Como nos revela Saramago em Cadernos de Lanzarote - V, no dia 14 de Outubro, recebera uma chamada de Dario Fo, galardoado com o Prémio Nobel, e que lhe dizia: "Sou um ladrão, roubei-te o prémio. Um dia será a tua vez. Abraço-te". Comentou então com Pilar: "Suponho que uma coisa assim nunca terá acontecido na história deste prémio...". A sua companheira respondeu-lhe: "Não há que perder a confiança na generosidade humana...". Sábias palavras onde ecoam os valores mais nobres que devem sempre ressoar no nosso espírito.

http://www.sitedoescritor.com.br/sitedoescritor_escritores_jsaramago_texto002.html

A crítica«Memorial do Convento apresenta-se desde logo como uma crítica cheia de ironia e sarcasmo à opulência do Rei e de alguns nobres, por oposição à extrema pobreza do povo. “Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro”, “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores”.O adultério e a corrupção dos costumes são fatores de sátira ao longo da obra. Critica a mulher porque “entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem”; critica “uns tantos maridos cucos” e não perdoa os frades que “içam mulheres para dentro das celas e com elas se gozam”; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei... [...]Nas questões religiosas não só usa a ironia como também se mostra frontal nas apreciações à Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S. Domingos e Santo Inácio, considerados “ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio”. Esta acusação resulta de toda a imagem histórica dos tempos inquisitoriais e das práticas então havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimam os condenados.A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do Rei em obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como D. Francisco, que se entretém a “espingardear” os marinheiros ou quer seduzir a rainha, sua cunhada, e tomar o trono.»

Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Preparação para o Exame Nacional de Português 12º ano – 2006, Porto Editora

Page 12: Memorial  do Convento_ José Saramago

José Saramago está entre os escritores portugueses mais polémicos pela visão desassombrada que plasma em muitas das suas obras, pelo modo como interpela cada leitor, pelo olhar subversivo que lança, bem como pelo impulso inovador da sua escrita.

Page 13: Memorial  do Convento_ José Saramago

DESAFIO:

Parte à descoberta das personagens de Memorial do Convento

Na pista de Blimunda…“Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada a seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.”

(Cap.V)

“Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes (…)”.

Page 14: Memorial  do Convento_ José Saramago

(Cap. 11)

“Blimunda estava ali, com um cesto cheio de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes, se for preciso.”

(Cap.14)

Na pista de Baltasar…“A Baltasar convencia-o o desenho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê, por ter a ave forma de ave, não há nada mais simples (…)”

(Cap. 6)

Page 15: Memorial  do Convento_ José Saramago

“ (…) Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda, e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja, então, então.”

(Cap. 16)

Na pista do rei D. João V…“Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a

Page 16: Memorial  do Convento_ José Saramago

freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício (…) encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro das minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados. “

(Cap. 18)

“No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, que é alemão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito, olhou severamente o artista. Ora, a um rei nunca se diz não, (…)”

(Cap. 21)

Page 17: Memorial  do Convento_ José Saramago

Na pista da rainha Ana de Áustria...“D.João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. " (Cap. 1)

“(…) é o caso da rainha, devota parideira que veio ao mundo só para isso, ao todo dará seis filhos, mas de preces contam-se por milhões, agora vai à casa do noviciado da Companhia de Jesus, agora à igreja paroquial de S. Paulo, agora faz a novena de S. Francisco Xavier, agora visita a imagem de Nossa Senhora das Necessidades, agora vai ao convento de S. Bento dos Loios (…)

(Cap. 10)

“D. Maria Ana dormiu bem, debaixo do seu cobertor de penas, que para todo o lado leva,

Page 18: Memorial  do Convento_ José Saramago

embalada no suave sono pela chuva que caía (…)

(Cap. 22)

Na pista do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão…“Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos.” (Cap. 11)

“O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três, É uma trindade terrena, o pai, o filho e o espírito santo, Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos (…) Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terreal (…)”

(Cap. 14)

Page 19: Memorial  do Convento_ José Saramago

Na pista de Domenico Scarlatti…“O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que das margens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas dilatadas de um lago profundo (…)”

(Cap.14)

“ (…) É homem, italiano de nação, está há poucos meses na corte, e é músico, mestre de cravo da infanta, mestre da capela real, o nome dele é Domenico Scarlatti, (…)”

(Cap. 14)

“ Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva, pelos caminhos alagados de

Page 20: Memorial  do Convento_ José Saramago

S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar (…)”

(Cap. 15)

“(…) e tu, Blimunda, lembra-te de que são precisas pelo menos duas mil vontades, duas mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não merecerem as almas, ou os corpos as não merecerem, com essas trinta que aí tens não se levantaria o cavalo Pégaso apesar de ter asas (…) Blimunda, vai à procissão do Corpo de Deus, em tão numerosa multidão não hão-de ser poucas as que se retirem, porque as procissões, bom é que o saibam, são ocasiões em que as almas e os corpos se debilitam, a ponto de não serem capazes, sequer, de segurar as vontades(…).”

(Cap. 13)

Page 21: Memorial  do Convento_ José Saramago

José Saramago visto por outras pessoas…

Depoimentos ao “Público” sobre Saramago (20/06/10)

Eduardo Lourenço, ensaísta"Em todos os sentidos, como destino e como autor, é um caso paradoxal. Aparece tarde no horizonte da ficção portuguesa, quando já ninguém o esperava, provavelmente nem ele. E isso é já em si um paradoxo e sobretudo um milagre cultural. À sua maneira, era uma versão nossa da Gata Borralheira.Para imitar Saramago, também ele se levantou do chão, de um sítio sem memórias eruditas canónicas, apoiado na sua extraordinária experiência dos homens, sonhando e ressonhando o texto que foi para ele matricial. Refiro-me à Bíblia.Quase todos os seus livros célebres são um diálogo com a mitologia bíblica, que ele vai submeter a uma estranha desmitologização, fazendo com ela um mundo às avessas ou antes um mundo onde as mais famosas histórias bíblicas se tornam a história mesma da humanidade unicamente humana.Provavelmente com a queda da utopia que foi assumidamente a dele, essa espécie de diálogo dramático com a mundovisão religiosa de raiz bíblica foi o que o salvou, não só literariamente, do traumatismo ideológico e ético.Deportou o essencial da sua utopia para paragens onde esse autêntico apocalipse político fosse substituído pelos sonhos de uma humanidade que pudesse ter perdido uma guerra mas nunca a ilusão que a faz viver."

Pedro Mexia, subdiretor da Cinemateca e crítico literário "Já há algum tempo que se esperava a notícia, embora José Saramago tenha recuperado até muito bem nos últimos tempos, numa espécie de nova vitalidade. Mas tinha 87 anos e já tinha estado quase do outro lado. Ele teve uma espécie de segunda vida, depois daquela quase morte de há três anos em que passou a ter um renovado sentido de humor, uma coisa que não era muito óbvia nele. E escreveu A Viagem do Elefante, um livro também invulgar na obra dele. Foram os últimos anos de vida um bocadinho diferentes, e para mim foi uma surpresa agradável.O gosto de viver acentuou-se no confronto com a morte, como, aliás, penso que é relativamente natural que aconteça. A Viagem do Elefante, que só terminou depois de ser hospitalizado, é um livro que não tem uma amargura muito comum noutros livros dele. Isso foi uma novidade de fim de vida que apreciei bastante.Duas características marcam o lugar dele na literatura portuguesa. É um escritor de ideias, o que não é o mais comum no âmbito da ficção portuguesa. Os romances dele partiam sempre de uma ideia forte, alegorias sobretudo políticas e civilizacionais. É um autor que constrói os seus romances à volta de ideias e não necessariamente de personagens ou de enredos. Há uma visão do mundo que é muito forte.

E, por outro lado, a sua escrita era uma espécie de atualização do barroco do padre

Page 22: Memorial  do Convento_ José Saramago

António Vieira, um autor de que ele gostava e que tinha lido. Os famosos parágrafos corridos tinham também muito a ver com o incorporar dos diálogos e portanto com uma mistura de uma linguagem muito literária com uma abertura à oralidade que era a abertura às personagens e às classes que não têm acesso a outro tipo de linguagem - que falam e não escrevem.Isso também tinha uma intenção política. Acho que ele também ficará como um autor político, o que naturalmente também tem os seus perigos, porque os autores que ficaram ligados à política nem sempre as suas obras envelhecem bem. Não sei se será o caso de Saramago. É um autor de que gosto muito de alguns livros e nada de outros.Foi o primeiro português que ganhou o Nobel e provavelmente o último e desse ponto de vista esse lugar está assegurado na literatura portuguesa."

Urbano Tavares Rodrigues, escritor"Toda a obra literária de José Saramago é tocada pela centelha do génio, particularmente livros como Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. A força das ideias mestras, a lucidez e o humor, a originalidade de um discurso oral que interpela o leitor e mescla dialeticamente ação, diálogo e comentário combinam-se em todos os seus livros com elementos mágicos de variada extração, que ele muito justamente faz seus.A sua defesa das grandes causas, mesmo para além das suas convicções comunistas, se é certo que lhe valeram alguns pequenos ódios e perseguições, trouxeram-lhe inegavelmente grande prestígio mundial. Como personalidade ímpar é olhado e respeitado.Amigos desde o tempo da resistência ao salazarismo fascista e ao caetanismo, criámos laços de fraternidade inesquecíveis. Nunca olvidarei aquela folhinha dobrada que ele me metia no bolso, na redação do Diário de Lisboa já no começo dos anos 70, dizendo-me: "Toma lá isto." Isto era o Avante! clandestino.Ao longo dos anos, após o 25 de Abril, partilhámos lutas, esforços tenazes, alegrias e deceções. Muitas vezes divergimos e discutimos, dentro do partido ou cá fora, por diferente avaliação de acontecimentos ou realidades polémicas. Mas a frontalidade dessas divergências nunca empanou nem a admiração nem o profundo afeto que lhe dedico.Recordo, emocionado, certas pausas da nossa intensa atividade de escritores e revolucionários, nos anos em que mais convivemos, e como a ironia de José Saramago faiscava nessas inesquecíveis conversas.Hoje como ontem, nos lançamentos dos seus romances em Lisboa, sobre os quais quase sempre escrevi, ou a sua presença nas feiras do livro, entre dois livros assinados, o seu sorriso cúmplice, o seu abraço rijo.Deixo-te aqui, Zé, um incitamento: continua a olhar para cima, para o sol da razão, que iluminou sempre a tua vida e a tua escrita."

Carlos Reis, ensaísta"A notícia da morte chega nos momentos e nos lugares mais estranhos, mesmo que ela seja uma morte não propriamente anunciada, mas já esperada. À porta de um

Page 23: Memorial  do Convento_ José Saramago

hotel, em Cáceres, pouco depois da reunião de um júri que atribuiu o prémio de criação da Junta de Extremadura a Eugenio Trías, comentávamos, Eduardo Lourenço e eu, o frágil estado de saúde de José Saramago; de repente, uma chamada telefónica (malditos telemóveis!) deu notícia daquilo que há tempos estava para vir: a morte de José Saramago.Com José Saramago desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal. Mas fica connosco um universo: esse que Saramago criou, feito de uma visão subversiva da História e dos seus protagonistas, dos mitos estabelecidos e das imagens estereotipadas. Ainda que a sua obra tenha a dimensão plurifacetada e sempre em renovação que é própria dos grandes escritores, quero evocar, neste momento de comovida homenagem, alguns dos seus componentes mais fortes e expressivos. E assim, digo que o romancista que em 1980 publicava Levantado do Chão - uma espécie de romance de iniciação que confirmava a aprendizagem representada em Manual de Pintura e Caligrafia - pagava uma espécie de tributo literário ao extinto neo-realismo, com o qual o escritor mantinha fortes laços de solidariedade ideológica e política. Mas logo depois, e na sequência do admirável Memorial do Convento, Saramago escreve e pública, entre outros que agora não menciono, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986) e História do Cerco de Lisboa (1989).Isto significa que Memorial do Convento não era um caso isolado, no que à inscrição da História na ficção diz respeito. E significa também que a tematização da História desencadeava inevitavelmente um jogo de variações e de modulações temáticas. A reflexão sobre Portugal e o seu destino (mau destino, para Saramago) de integração europeia, a problematização de mitos portugueses (o de Fernando Pessoa, por exemplo) em articulação com um tempo histórico tão bem identificado como o dos inícios do salazarismo, a revisão crítica e provocatória do cristianismo, a reflexão em clave ficcional sobre as origens históricas e políticas de Portugal, de novo em incipiente "diálogo" com a Europa, são alguns dos grandes temas que a ficção saramaguiana nos legou.Depois desta, que é a década mais fecunda da escrita literária de Saramago, abre-se um tempo de tematização de sentidos, de valores e de temas com um alcance universal. É então sobretudo que o registo da alegoria entra decididamente na escrita literária de Saramago; e é por isso que romances como Ensaio sobre a Cegueira ou Todos os Nomes são e serão lidos como grandes romances da literatura universal.Diz-se que José Saramago era um escritor polémico. É verdade. São polémicos os escritores que, com desassombro e com arrojada visão do futuro, interpelam os homens e os poderes do seu tempo. E é justamente quando o fazem, em conjugação com o impulso inovador que às suas obras incutem, que dizemos deles que são grandes escritores. Saramago foi e será um grande escritor."

Hélia Correia, escritora"Diz a lenda o que a história não confirma: que, no tempo em que Sófocles morreu, a Atenas que tanto o venerou e que tão venerada foi por ele se encontrava cercada pelos espartanos. A aldeia natal do dramaturgo encontrava-se então fora de portas, inacessível aos atenienses. O deus do teatro apareceu então nos sonhos de Lisandro, o

Page 24: Memorial  do Convento_ José Saramago

general das tropas sitiantes. Ordenava que abrissem alas para dar passagem ao cortejo funerário. Lisandro obedeceu sem hesitar . Todos, atenienses e espartanos, se inclinaram com vénia e com lamento, ante o corpo do grande criador. Não consigo fazer elogios fúnebres. Digo "não" ao louvor de circunstância. Palavras e palavras vão cair com um grande barulho neste dia e todas elas ficarão aquém da grandeza deste homem. Que houve entre nós um luminoso afeto é coisa que me diz respeito a mim e sobre a qual não tenho que escrever. Que tenho um pensamento de triunfo é o que eu gostaria de explicar. Porque há aqui triunfo: a plenitude de um cidadão inteiramente dedicado à sua polis e aos seus contemporâneos. E a plenitude de um "poeta", daquele que faz obra e é por ela tornado glorioso. É o homem na sua existência absoluta. O homem que, sabendo-se mortal e não acreditando num Além, se empenha soberbamente em viver e criar com um fulgor e com uma coragem que os crentes desconhecem ou receiam.Para além do meu preito pessoal, que não se há de resumir a depoimento, eu imagino aqui uma cidade que o leva em ombros - e os inimigos a abrirem caminho e a curvarem-se. Se os gregos inventaram esta lenda, é para que a memória a ative quando um homem como Saramago nos deixa."

Miguel Ángel Bastenier, jornalista"Não sei se entre Portugal e Espanha há algum convénio de dupla nacionalidade, como o Estado espanhol mantém com muitos países latino-americanos. Penso que não, provavelmente devido aos receios que uma parte da opinião pública portuguesa sempre abrigou acerca dos supostos desígnios imperialistas de Madrid. Mas isso seria quase redundante, pois não há duas nações - e atrevo-me a dizer nações, apesar da Catalunha e do País Basco - que estejam mais próximas, que tenham mais a ver uma com a outra nem que sejam mais indistinguíveis do que Portugal e Espanha. O hispânico é mais lusitano e o lusitano é mais hispânico do que muitos nacionais da América Latina que fala espanhol. E, de todos os homens públicos dos dois países, ninguém simboliza melhor do que José Saramago essa nacionalidade "portunhola", esse encontro nas margens do Douro-Duero, esse sonho nem sempre bem compreendido de Filipe II de olhar a Península Ibérica como um todo, ou de Oliveira Martins, ao proclamar sem rodeios a Hispânia de todos, subprefeitura das Gálias, Império Romano, que teve num personagem lendário, num "pastor lusitano", como se dizia nos meus livros de História do liceu, um primeiro mito de toda a península - obviamente, Viriato.O Nobel português disse há uns meses que Portugal acabaria por ser absorvido pela Espanha, o que provocou alguma comoção no nosso irmão atlântico, ainda que se possa entender que essa fusão apenas poderia ter sentido no quadro da integração europeia. Em Espanha a notícia foi recebida com humor, como uma boutade intelectual, ainda que, no fundo, talvez muitos espanhóis possam ter achado que Portugal compreendia finalmente o seu "destino".Saramago, tão "portunhol" - língua que falava na perfeição e que provavelmente preferia ao espanhol assepticamente académico -, olhava para lá de Lisboa e de Madrid, mas isso não significava - apesar de ter empregado a expressão "absorção", talvez como concessão à castelhanidade de base dos seus leitores espanhóis - que

Page 25: Memorial  do Convento_ José Saramago

ignorasse as diferenças entre os dois países.Lembro-me de um artigo que lhe pedi nos anos 90 para um suplemento internacional publicado por mais de vinte jornais - entre eles o PÚBLICO e o El País - no qual explicava como a dureza castelhana na ortografia e orografia da palavra "Tajo", que cortava como aço toledano, se pronunciava em português com a suavidade do "J" arrastado, que não corta mas, pelo contrário, aconchega. Essas eram as diferenças que o autor resolvia na "portunhalidade".Quase rematando o ano, José Saramago fez-se ao mar naquela formidável jangada da pedra na qual resumia o seu ideário: Portugal e Espanha são uma mesma realidade diversa, têm uma entidade e identidade ibérica intensamente comum. Por isso Saramago agrada tanto na Espanha castelhana, por isso, quando lhe pedi o artigo do Tejo, a sua colaboração apareceu como pertencendo ao contingente "espanhol" entre as contribuições dos diferentes jornais para esse suplemento mundial. E, por isso, não tenho a mínima dúvida de que Saramago e eu somos da mesma nacionalidade. Seja ela qual for."

Juan Cruz, jornalista do "El País" e antigo editor de Saramago"Nas últimas semanas, José Saramago mal falava, mas ria, continuava a rir. Pilar del Rio, a sua mulher, com quem conviveu mais de 20 anos, continuava a preparar-lhe jantares e pequenos-almoços, e embora a comida parecesse ser de outro mundo ou de outras necessidades, ele estava em todos os ritos que ela preparava para que continuasse ligado ao fio da sobrevivência.Estava e não estava, mas ria. Ontem [quinta-feira] amanheceu melhor, como se ressurgisse, e conversou com Pilar, com o médico, como se se despedisse da vida e das pessoas que o acompanharam até ao fim. Às vezes - aconteceu quando estivemos pela última vez com eles, há uma semana, na sua casa de Tías, Lanzarote - só ouvia música, que Pilar escolhia com o cuidado com que tratou até ao último detalhe (e até ao fim) da felicidade do marido [...].Lanzarote deu-lhe muita felicidade, desde que Pilar ali o levou pela primeira vez em 1993, um ano depois de ali morrer um herói cujo esteiro ele prolongou, César Manrique, outro Quixote, neste caso insular, que tinha abraçado causas que sempre foram familiares a Saramago: o respeito aos homens e à terra, a luta contra a injustiça dos homens contra os homens. De forma intermitente, viveu em Lanzarote (onde se curou de um desengano, o do seu país, que o impediu de concorrer a um prémio internacional com o seu Evangelho segundo Jesus Cristo) e continuou a viver em Lisboa, que guardava o mais central do seu coração: o amor aos outros e o amor aos seus antepassados. O seu avô, analfabeto, ensinou-lhe a amar os homens e a terra, e a ele dedicou num discurso memorável o prémio Nobel [...].Esse carácter português e quixotesco levou-o à garupa de todas as causas civis do seu tempo: comunista convicto, jornalista contra a ditadura e a favor da mudança dos cravos em Portugal, foi em todos os países que visitou (do Brasil ao México, de Espanha a Israel ou Palestina) um firme defensor dos direitos humanos, contra as guerras (a do Iraque nos últimos anos), contra o esmagamento (de Israel sobre a Palestina), a favor de aquelas pessoas (como Baltasar Garzón) assediadas por defenderem o que ele mesmo defendeu, a memória civil dos perdedores.

Page 26: Memorial  do Convento_ José Saramago

Sempre com essa filosofia espartana com que comparecia aos atos, nas apresentações e nos múltiplos aeroportos que frequentou, como se a honra e a glória fossem penugem no casaco. Foi uma hospedeira de Frankfurt que o informou de que ganhara o Nobel, quando já abandonava a Feira do Livro, uma quinta-feira de Outubro de 1998. Então sentiu-se só, "à minha volta não havia nada, ninguém, nada, ninguém, nada", e começou a caminhar sem rumo até encontrar a sua editora Isabel de Polanco a quem comunicou a notícia. Esse abraço, que durante anos foi marca da relação que mantiveram, adquire hoje o aroma triste da melancolia, porque os dois protagonistas deste bonito episódio simples morreram.Há uma semana, Pilar del Rio disse-me a mim e a Francisco Cuadrado, o seu editor de Santillana, que uma dessas manhãs o seu marido se levantara com vontade de escrever outra vez, de retomar o fio de uma das suas histórias em que estava enfrascado quando a gravidade do seu estado fez com que perdera a voz mas não o riso. Pilar aconselhou-o a esperar, e ela mesmo esperava que o milagre de dois anos antes amanhecesse outra vez no cenário discreto da vida de Saramago, que o autor das Intermitências da Morte voltasse outra vez a ocupar o seu sítio preferido da casa, a biblioteca da Fundação, sob os cristais da luz que também foi o ar de Manrique. Mas já só o animavam as piadas de Pilar, a persistência dela em continuar os hábitos da vida diária, o pão com azeite, as verduras, o arroz, o bacalhau português, os peixes, a carne, a vida viva que Saramago sempre quis.Já havia pouco para dizer, depois de ter dito tanto, depois de tanto sonho e de tanta escrita. Fomos vê-lo onde esperava as imagens da televisão e, sem dúvida, o sonho que já pouco se interrompia. Então dissemos-lhe adeus, até amanhã, e ele disse, acariciando com as suas mãos já transparentes, grandes mas simples: Até amanhã".

Mia Couto, escritor"O primeiro sentimento que tenho é a generosidade para com os autores, que se manifestou com os escritores de língua portuguesa. Antes de ganhar o Nobel, tinha a generosidade de promover e trazer para a visibilidade os escritores e a escrita dos africanos de língua portuguesa. Não foi só comigo, mas ele ofereceu-se para fazer o lançamento e apresentou o meu primeiro livro de contos, Cada Homem É Uma Raça, lançado aqui em 1989. Já doente, saiu da cama para apresentar Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Há uma entrega aos outros, uma dedicação a uma causa, que não era só política, mas a causa dos que estavam longe e dos que não tinham voz. Isso marcou-me muito: a dimensão humana dele."

Luiz Schwarcz, editor brasileiro de Saramago"Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na Internet, liguei pelo Skype para Pilar, que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação.Posso dizer que José Saramago era um grande amigo. Quando vinha ao Brasil, hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado à cerimónia do Nobel

Page 27: Memorial  do Convento_ José Saramago

em Estocolmo - pouco antes, no hotel, aprovámos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prémio; celebrámos juntos.A obra de Saramago veio para a Companhia das Letras por acaso. No fim da Feira de Frankfurt de 1987, ao despedir-me de Ray-Gude Mertin, amiga pessoal e agente literária, comentei que era dos meus autores favoritos. Conversa de fim de feira. Não fazia ideia de que ela representava o escritor português, junto com a editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de editora no Brasil. Atrasei minha partida e voltei, com a bagagem no porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.Foi tudo muito rápido, Jangada de Pedra foi o primeiro livro, lançado em Abril de 1988. A empatia foi imediata.Em seguida fui a Lisboa. Já éramos bem amigos, ele queria mostrar-me o novo livro que escrevia. Em sua casa, na Rua dos Ferreiros à Estrela, José leu trechos de A História do Cerco de Lisboa, e levou-me para jantar no seu restaurante favorito, o Farta Brutos. Pilar foi minha guia de Lisboa. Comprei com Pilar o primeiro computador de José. Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para entregá-lo completamente limpo a seus editores.No Brasil, o lançamento de Jangada de Pedra foi uma festa interminável. Filas enormes na livraria Timbre e a efusão de beijos e abraços no escritor fizeram-no exclamar: "Luiz, esta gente quer-me matar de amor." Daí para frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes. A mais recente foi aquando da publicação de A Viagem do Elefante. Ele já estava muito fraco. Ao chegar a minha casa, disse-me que não escreveria mais.Depois do evento de lançamento, vencida uma fila enorme de autógrafos, fomos ao Rio, para a continuidade dos eventos. Ao pousarmos na cidade, José anunciou para mim, Lili e Pilar, que no voo achara a solução que faltava para Caim, que acabou por ser o seu último livro.Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?"

ENVIA OS TEUS “ENCONTROS” COM AS PERSONAGENS DE MEMORIAL DO CONVENTO

Page 28: Memorial  do Convento_ José Saramago

PARA O E-MAIL DA NOSSA BIBLIOTECA [email protected].

PARTILHA AS TUAS LEITURAS!