memoria impura

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Este livro existe por causa das suas personagens. Foram elas que primeiro desejaram um encontro com você, leitor. São profundamente humanas. Cada conto, deste livro, reflete não apenas a personalidade de um indivíduo único, como também o seu próprio estilo de escrever e narrar os acontecimentos. São seres humanos tocantes, vivendo difi¬culdades que nos obrigam a amá-los ou odiá-los. Eles não nos deixam sair ilesos da leitura. Você será obrigado a se perguntar: Eu faria a mesma coisa? Seria capaz de perdoá-los? Elaborado a partir de uma nova forma de escrita e estilo – levando a um estilhaçamento do gênero épico –, Memória Impura é mais que um livro cujos contos se passam na Antiguidade, ele é a própria revelação do humano, dos seus desejos, de suas culpas e de seus gestos tortuosos para dar uma resposta para a vida.

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Memória Impura

Luiz Vadico

S ã o P a u l o 2012

COLEÇÃO NOVOS TaLENTOS Da LITERaTURa BRaSILEIRa

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A Hearty Welcome – Sir Lawrence Alma-Tadema

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The Coliseum – Sir Lawrence Alma-Tadema

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Os Murmúrios da Imaginação

Bernadette Lyra

O que mais me fascina neste livro é que ele só faz sentido a partir daquilo que se chama literatura.

À primeira vista, os contos aqui expostos parecem sair de um presente contaminado pelo passado que emerge envolto em assom-bro, mistério e deslumbramento. Mas essa aparência enganosa acaba logo que se começa a leitura. O que fica, então, é a certeza de que aquilo que o autor, com toda clarividência de seu ofício, reclama para si é o momento particular de um exercício estético que se faz diante do tema.

A cumplicidade displicente com a desordem dos nomes, ocor-rências e fatos que a memória cultivada deixa entrever (ou que ela, de algum modo, pretende preservar) permite que Luiz Vadico jogue com a impureza dos segredos, intuições, mutações, mentiras, fantasias e delírios que se alojam nos interstícios da História da Antiguidade.

Contudo, por baixo dessa displicência de cúmplices, assegura--se o prazer com que se liberam as histórias de vidas que se presu-mem terem sido vividas e que se formatam em pleno rigor literá-rio. Assim, as personagens se movem em um espaço de captação de valores vitais, de nervos e de veias, de carne e de sangue.

Por estas páginas passam damas, centuriões, imperadores, escra-vos, guerreiros, filósofos, aurigas, gladiadores e um sem número de criaturas que se materializam e se exibem para além das secas

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alegorias de que se serve o sistema comum das referências mentais, em seu costume de generalizar e esquematizar os episódios bíbli-cos, o ciclo greco-romano e a tipologia cristã.

Assim é que por aqui perpassam os ventos que varrem o mar Mediterrâneo ou os desertos da Ásia Menor. Afloram na superfície do texto os territórios míticos de Roma, Grécia, Pérsia, Macedônia. Tornam-se palpáveis as intrigas e as glórias, as alegrias e as mortes, as traições e os amores, os altruísmos e as dores de toda uma época que o sal do passado escondeu.

Neste livro, por certo, haverá coisas menos mágicas do que o sentimento de haver rebentado as amarras e saltado para além do cais fixo da História, porém igualmente capazes de estranhamento. Uma delas é essa capacidade evidenciada por Luiz Vadico de superar a realidade sem renunciar ao prazer pelos objetos concretos. Tudo se passa como uma réplica de colunas, pátios, átrios, vestimentas, ador-nos, estátuas e de muito mais coisas de que o autor – com evidente deleite –, sabe se aproveitar, como se repentinamente pulasse de seu secular sono para envolver os leitores em uma concretude sensível e em um erótico sensualismo advindo de sua estilização pessoal.

E, pairando sobre tudo, há o tempo. Esse tempo que não se fixa pelo relógio ou qualquer aparato de medição. Porque, no final, as pala-vras podem mais que o tempo e traçam um modo em que os jogos das linhas e entrelinhas oferecem um instante cravejado de cacos de urnas, poeira de vasos, pedaços de mármores, enfim, fragmentos catárticos em que se gravaram maravilhas, horrores, cerimônias e perfis.

Ler Memória Impura é estar frente a frente com essa translação quase inverossímil que estilhaça a História em narrativas que se vão desdobrando até o limite visível da penumbra que nunca será desvendada, porque, para além dela, só resta aos leitores um cheiro de sal e de mirra, uma melodia distante, uma breve visão de um menino que se senta à beira de uma escadaria e brinca com os murmúrios da imaginação.

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Who is it – Sir Lawrence Alma-Tadema

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Prólogo

Estes poucos contos não intencionam enveredar pela literatura histórica; eles são mais e menos do que isso. São memórias. Uma memória da Antiguidade que guardo dentro de mim. Em algum lugar desconhecido e estranho da minha alma reuniram-se fatos, histórias, personagens, costumes e o cheiro da Antiguidade. Assim como se o cheiro bom e doce de uma ameixa madura pudesse ativar lembranças, algo os trouxe para fora. Uma Memória Impura, pois ao mesmo tempo em que são verdadeiros, parte da minha verdade pessoal, são também lembranças confusas recontadas para aqueles, meus cúmplices, imersos neste cheiro do passado que nos envolve cotidianamente. É esse aroma penetrante de perfumes antigos que inebria aos poucos e evoca memórias e mais memórias que chegam a ser reais, reais na Antiguidade que está em mim.

O melhor vinho já produzido foi o Falerno, há muitos séculos perdido. Quando li sobre ele desejei muito prová-lo, descobrir seu aroma, seu sabor, seu volume em minha boca. Nos outros vinhos sempre encontro um pouco dele. Nenhum é ele. Ele é sempre melhor em minha memória. Em minha memória, pois nunca bebi o Falerno. Para quem, como eu, bebe por meio da memória de coisas não vividas, ofereço estes contos. Mas, cuidado: esse vinho embriaga mais rápido...

Luiz Vadico

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Caracalla and Geta – Sir Lawrence Alma-Tadema

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Nike

Tu já tiveste na mão a vitória? Pois eu tive. Lembro-me ainda do dia. Dia? Não, era tarde. O sol estava dourado e caía lei-

toso sobre a extensa arquibancada do hipódromo. Eu sentia o frê-mito das pessoas, os arreios vibravam em minhas mãos que san-gravam, o carro tremia... Como um louco eu chicoteava os ani-mais; sabia o nome deles de cor, no treinamento chamava-os como se fossem antigos amigos, conhecidos de há muito tempo e que assim deviam ser, era o que eles eram. Foram anos trabalhando juntos, colecionando pequenos e grandes prêmios. Quatro cavalos suarentos correndo, seus músculos fortes rompendo todas as bar-reiras. Velozes como o vento, pareciam até os cavalos que puxam o carro do deus Sol para anunciar o dia. Ainda assim, tinha de chicoteá-los. Os Azuis e os Vermelhos estavam ganhando terreno, e as arquibancadas estremeciam aos gritos: “Verdes!”, o que soava como uma música celestial. Eu seguia envolvido por essa estranha canção. Meus gestos fortes até faziam Hipnos sangrar, o cavalo principal que puxava a brida. O sangue ensopava minhas mãos, era delas mesmas que ele vinha. Minha pele formigava. Fúria, vento, um suor louco escorria pela fronte! Mal conseguia enxergar. Mas continuava, continuava inspirado por alguma força maior que eu. Maior que tudo. Talvez o próprio Marte, que inspira o fragor das batalhas, estivesse colocando no meu sangue seu delicioso veneno que mata os outros e, às vezes, nós mesmos. Sim, eu corria, corria como o vento e sentia as chibatadas e vergastadas dos adversários caindo sobre mim. Nem percebia o sangue escorrer-me das costas que, aos poucos, ficavam praticamente nuas; eu não usava esse tipo de golpe e todos sabiam. Eu tinha de correr! Tinha de chegar em

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primeiro. Não importava que os Azuis fossem os corredores do Imperador, eles me chicoteavam e eu me recusava a sentir a dor das minhas carnes rasgando. Apenas um deleite cego me guiava. O chão vibrava e estremecia, os baques surdos no carro não me incomodavam e quase podia ouvir a canção de Zéfiro em meus ouvidos. Um pouco mais, um pouco mais apenas e aquelas notas poderiam se transformar em música. Um pouco mais... Alguns murmúrios visitavam meus ouvidos: “Nike!”, eu escutava a cada nova volta. “Nike!” ia dominando tudo A população envergava a cor dos Verdes. Naquele dia todos eram dos Verdes, a cor domi-nava a arquibancada. “Não apostem no Verde!”, ouvi dizer. Eu era do Verde, como não apostaria em mim?! Pelos deuses! Se houvesse alguma boa razão para não apostar nos Verdes, eu mesmo diria. Como não iria apostar em mim? Então apostei tudo o que tinha; ninguém iria me dizer o que deveria fazer. Ninguém. Apostaria contra todas as perspectivas, pois eu era as perspectivas, com cava-los ou sem cavalos.

Que importava se o Imperador torcia pelos Azuis, que impor-tava! Nem sentia mais as mãos banhadas em sangue, meu sangue... “Danem-se os Azuis!”, gritei. Foi mais forte que a vida, mais forte que todas as recordações de infância, mais forte que saber que tinha pai e mãe, irmãos, deuses. Só havia uma veneração: a grande velo-cidade que os cavalos alcançavam. Vencer, vencer! “Nike! Nike!”, gritavam. “Nike!”, eu gritava. “Nike!”, gritavam os cavalos, a terra, o chão, o céu. Tudo fazia transparecer a vitória: “Nike!”

Numa última vergastada do adversário meus cavalos perde-ram o controle; trançaram-se, trançaram minhas mãos nas rédeas de uma só vez e fui envolvido pelas suas patas que se esmaga-vam umas às outras e a mim. Por fim o carro desabando pesada-mente sobre meu corpo. Não havia dor, apenas ligeiras pontadas. Estranho como se morre... nada de dor. E o som... o som vindo

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dos domínios de Hades: “Nike! Nike!”, aos poucos silenciou-se, a multidão por instantes calou-se. Antes que eu morresse, ouvi o bramido terrível crescendo novamente, crescendo, crescendo: “Nike! Nike! Nike!” Depois não sei o que a multidão fez. Já tiveste a vitória em tuas mãos? Eu tive e me foi arrancada. Que se arran-que o sangue daqueles que foram responsáveis! Que se arranque! Aguardemos todos no infernal mundo dos mortos até que alguém se lembre de nós.

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