mecânica lagrangiana - continuação -...

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Mecânica Lagrangiana - Continuação * Antonio Roque Março 2020 Cálculo Variacional Dada uma função f (x), podemos achar seu mínimo calculando os pontos em que sua derivada é zero: df (x) dx =0. Por exemplo, se f (x)=5x 2 + x, a derivada é df (x)/dx = 10x +1 e, 10x +1=0 x = - 1 10 =0,1. Portanto, o mínimo da função é 0,1. Esse método funciona porque a derivada nos diz algo sobre a inclinação de f (x) e a inclinação em um mínimo é necessariamente zero. Infelizmente, esse método não funciona para funcionais como a ação S[q(t)]. Por causa disso, precisamos de um novo método para calcular o mínimo de um funcional. * O material destas notas de aula, assim como das demais deste curso, está fortemente baseado no livro de Jakob Schwichtenberg: No-Nonsense Classical Mechanics, No-Nosense Books, 2020. 1

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Page 1: Mecânica Lagrangiana - Continuação - SisNesisne.org/.../MecanicaTeorica/Mecanica_Teorica_Aula_6.pdf · 2020-03-31 · Mecânica Lagrangiana - Continuação Antonio Roque Março

Mecânica Lagrangiana - Continuação∗

Antonio Roque

Março 2020

Cálculo VariacionalDada uma função f(x), podemos achar seu mínimo calculando os pontos emque sua derivada é zero:

df(x)

dx= 0.

Por exemplo, se f(x) = 5x2 + x, a derivada é df(x)/dx = 10x+ 1 e,

10x+ 1 = 0⇒ x = − 1

10= 0,1.

Portanto, o mínimo da função é 0,1.

Esse método funciona porque a derivada nos diz algo sobre a inclinação def(x) e a inclinação em um mínimo é necessariamente zero.

Infelizmente, esse método não funciona para funcionais como a ação S[q(t)].Por causa disso, precisamos de um novo método para calcular o mínimo de umfuncional.

∗O material destas notas de aula, assim como das demais deste curso, está fortementebaseado no livro de Jakob Schwichtenberg: No-Nonsense Classical Mechanics, No-NosenseBooks, 2020.

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

Para entender o novo método, vamos voltar atrás e tentar caracterizar o queé o mínimo de uma função de outra maneira.

Imagine que você está em um terreno montanhoso e quer encontrar exata-mente o ponto mais baixo dele. O ponto onde a altura é mínima.

A chave para encontrar o mínimo é notar que, quando se está em um mínimoe olha-se em volta, percebe-se que em qualquer direção que se vá se irá paracima1.

Isso significa que um mínimo é caracterizado por sua vizinhança. Se todosos pontos vizinhos são mais altos, então o ponto em questão é um mínimo.

Vamos usar essa ideia para, mais uma vez, encontrar o mínimo da funçãof(x) = 5x2 + x.

Vamos pegar um ponto específico x = a e investigar sua vizinhança a→ a+ε,onde ε é um número infinitesimalmente pequeno (positivo ou negativo). Emgeral, ε é chamado de variação.

Matematicamente, temos:

f(a+ ε) = 5(a+ ε)2 + (a+ ε) =

= (5a2 + a) + (10a+ 1)ε+ 5ε2.

1Note que esse critério só nos diz se estamos em um mínimo local ; podem haver mínimosmais profundos em outras regiões.

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

O que acontece se a for um mínimo? A função f(a+ε) tem que ser maior quef(a) para qualquer ε. Essa condição pode ser escrita matematicamente como:

f(a+ ε)− f(a) > 0.

Fazendo a subtração explicitamente,

f(a+ ε)− f(a) = (5a2 + a) + (10a+ 1)ε+ 5ε2 − (5a2 + a) = (10a+ 1)ε+ 5ε2,

de maneira a condição para que a seja um mínimo é a seguinte:

(10a+ 1)ε+ 5ε2 > 0

Note que como ε é infinitesimalmente pequeno, ε2 � ε. Portanto, o termodominante na expressão acima é o termo linear em ε. Note que se ε < 0, essetermo é negativo contrariando a nossa condição. Portanto, a condição para queo ponto a seja um mínimo é que:

O termo de primeira ordem em ε deve ser nulo.Para verificar isso, basta igualar o termo linear em ε a zero:

(10a+ 1)ε = 0⇒ 10a+ 1 = 0⇒ a =1

10.

Este é o resultado que obtivemos anteriormente: o ponto de mínimo da funçãof(x) = 5x2 + x é x = 1/10.

Para funções f(x), os dois métodos mostrados aqui funcionam igualmentebem. Porém, para funcionais como a ação S[q(t)] apenas o método variacionalfunciona.

Note que, para funcionais, nosso objetivo não é encontrar um ponto comoa que seja o mínimo de uma função, mas encontrar uma função q(t) que seja omínimo de um funcional.

Resumindo:

• Mínimos são caracterizados por sua vizinhança. Se estivermos em ummínimo, o valor deve ser mais alto em toda a vizinhança.

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

• Matematicamente, isso significa que podemos encontrar um mínimo fa-zendo x = a e então variando a → a + ε. Se a for um mínimo, todos ostermos lineares em ε devem ser nulos.

• Usando esse critério, podemos encontrar os mínimos a.

A equação de Euler-LagrangeVimos acima que a principal ideia do formalismo lagrangiano é que a trajetóriade mínima ação no espaço de configurações descreve corretamente como umdado sistema evolui. Além disso, vimos que o funcional ação,

S[q(t)] ≡∫ tf

ti

dtL (q(t), q̇(t)) , (1)

é um objeto matemático que atribui um número a cada possível trajetória q(t)entre duas configurações (qi(ti), qf (tf ))2.

Desta forma, nossa tarefa será encontrar um método que nos permita calculara trajetória qm(t) para a qual o funcional ação seja um mínimo. Essa trajetóriaqm(t) é aquela que corretamente descreve a evolução do sistema. Isto será feitoa seguir, usando o que foi visto na seção anterior.

Começamos com a escolha de uma trajetória concreta q(t) e vamos considerarpequenas variações em torno dela:

q(t)→ q(t) + ε(t), (2)

onde ε é uma variação infinitesimal,

Como a lagrangiana não depende apenas de q(t), mas também da velocidadeq̇(t), temos também que considerar variações na velocidade:

2Como dito na aula passada, no caso geral de N objetos em três dimensões, a lagrangianaé uma função de 3N posições e 3N velocidades, L = L(qA, q̇A), onde A é um índice que vai de1 a 3N . Porém, para manter a notação enxuta, representaremos as posições e as velocidadesdas N partículas por q(t) e q̇(t).

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

q̇(t)→ q̇(t) + ε̇(t). (3)

Consideraremos variações entre duas configurações fixas, qi(ti) e qf (ff ). Por-tanto, a variação ε tem que se anular em ti e tf :

ε(ti) = ε(tf ) = 0. (4)

De forma análoga ao que fizemos na seção anterior, vamos expressar essasvariações explicitamente:

S =

∫ tf

ti

dtL (q(t) + ε, q̇(t) + ε̇(t)) . (5)

A ideia chave será novamente que uma dada trajetória q(t) será um mínimoda ação se todos os termos de primeira ordem em ε se anularem. Isso nos levaráa uma condição que nos permitirá encontrar a trajetória correta q(t), de formainteiramente análoga ao que foi feito antes para encontrar o mínimo de umafunção.

Para começar, vamos expandir a lagrangiana em série de Taylor retendoapenas os termos lineares em ε e ε̇3:

L(q + ε, q̇ + ε̇) = L(q, q̇) + ε∂L

∂q+ ε̇

∂L

∂q̇. (6)

Substituindo essa expansão em Taylor da lagrangiana na expressão da ação(equação 5):

S =

∫ tf

ti

dtL (q(t) + ε, q̇(t) + ε̇(t)) = (7)

=

∫ tf

ti

dt

(L(q, q̇) + ε

∂L

∂q+ ε̇

∂L

∂q̇

). (8)

Vamos agora tomar os termos lineares em ε e ε̇ e igualá-los a zero:∫ tf

ti

dt

[ε∂L

∂q+ ε̇

∂L

∂q̇

]= 0. (9)

O que faremos agora é reescrever essa condição usando alguns truques ma-temáticos para chegar a uma condição específica para q(t). Essa condição seráa equação de movimento que nos permitirá prever como o sistema evoluirá.

Para começar, vamos integrar por partes o segundo termo na integral acima4:3Para uma função f(x), seu valor em x+ ε pode ser aproximado por sua expansão em série

de Taylor até primeira ordem em ε como f(x + ε) ≈ f(x) + ε dfdx

. Para uma função de duasvariáveis g(x, y), sua expansão em Taylor é dada por g(x+ ε, y + ε̃) ≈ g(x, y) + ε ∂g

∂x+ ε̃ ∂g

∂y.

4Para relembrar, a fórmula de integração por partes é:∫ b

adx

(df(x)

dx

)g(x) = f(x)g(x)

∣∣ba−∫ b

adxf(x)

(dg(x)

dx

). (10)

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

∫ tf

ti

dtε̇∂L

∂q̇=

∫ tf

ti

dt

(dε

dt

)∂L

∂q̇= (11)

= ε∂L

∂q̇

∣∣∣∣tfti

−∫ tf

ti

dtεd

dt

(∂L

∂q̇

). (12)

Como a variação ε(t) se anula para t = ti e t = tf , o primeiro termo na expressãoacima se anula:

ε∂L

∂q̇

∣∣∣∣tfti

= 0,

resultando em ∫ tf

ti

dtε̇∂L

∂q̇= −

∫ tf

ti

dtεd

dt

(∂L

∂q̇

). (13)

Substituindo (13) em (9):

∫ tf

ti

dt

[ε∂L

∂q+ ε̇

∂L

∂q̇

]= 0∫ tf

ti

dt

[ε∂L

∂q− ε d

dt

(∂L

∂q̇

)]= 0∫ tf

ti

dtε

[∂L

∂q− d

dt

(∂L

∂q̇

)]= 0. (14)

A condição acima deve ser válida para qualquer possível variação ε(t). Issosó acontece se o termo entre colchetes for nulo:

∂L

∂q− d

dt

(∂L

∂q̇

)= 0. (15)

Esta equação é conhecida como equação de Euler-Lagrange. Podemosusá-la para qualquer lagrangiana L dada para obter a equação de movimentocorrespondente.

Note que, em geral, a função q(t) descreve uma trajetória no espaço deconfigurações de 3N coordenadas. Isso implica que, na realidade, existe umacondição como a da equação (15) para cada uma das coordenadas qA, A =1, . . . , 3N do sistema.

Significado da equação de Euler-LagrangeVamos checar a consistência da equação de Euler-Lagrange tomando o exemplomais simples possível, a saber o de uma única partícula sem potencial externo:V = 0. Para essa partícula a lagrangiana vale:

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

L = T − V = T =1

2mq̇2. (16)

A equaçào de Euler-Lagrande torna-se então:

∂L

∂q− d

dt

(∂L

∂q̇

)= 0

∂(12mq̇

2)

∂q− d

dt

(∂(12mq̇

2)

∂q̇

)= 0

− d

dt(mq̇) = 0

mq̈ = 0. (17)

Este é exatamente o resultado que teríamos obtido para a equação de movimentode uma partícula livre se tivéssemos usado a 2a lei de Newton.

Esse exemplo simples nos ajudará a entender a equação de Euler-Lagrangeum pouco melhor. Note que o termo ∂L/∂q na expressão acima é nulo porquenão há um potencial. Neste caso, a lagrangiana depende apenas da energiacinética T que é uma função apenas de q̇ e não de q. Isso quer dizer que o termo∂L/∂q descreve as forças no sistema, pois ele só é não-nulo quando existemforças F .

Em particular, para um potencial geral V = V (q), o primeiro termo daequação de Euler-Lagrange nos dá:

∂L

∂q=∂ (T (q̇)− V (q))

∂q= −∂V (q)

∂q≡ F. (18)

Por outro lado, vimos que o segundo termo na equação de Euler-Lagrange,ddt

(∂L∂q̇

)nos dá a derivada temporal do momento, d

dtp ≡ddtmq̇, para um único

objeto. Isso nos sugere que o termo entre parênteses descreve, em geral, omomento (mas veja o comentário que virá mais adiante):

∂L

∂q̇≡ p. (19)

Com os resultados (18) e (19), podemos reescrever a equação de Euler-Lagrange da seguinte forma:

∂L

∂q− d

dt

(∂L

∂q̇

)= 0⇒

⇒ d

dt

(∂L

∂q̇

)=∂L

∂q⇒

⇒ d

dtp = F. (20)

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5910255 - Mecânica Teórica Aula 6

O significado físico da equação de Euler-Lagrange é o mesmo da 2a lei deNewton: a taxa de variação do momento de uma partícula é igual à força atu-ando sobre ela.

Antes de terminar esta aula, voltemos à equação (19). A quantidade quechamamos de momento é mais apropriadamente chamada de momento con-jugado, momento canônico ou momento generalizado. Isso porque deveser observado que há sempre uma conexão íntima dessa quantidade com umavariável específica q.

Por exemplo, se descrevermos nosso sistema usando ângulos ao invés decoordenadas cartesianas, o momento conjugado correspondente será o momentoangular.

Como outro exemplo (não precisa se preocupar com os significado das quan-tidades aqui), se um corpo com carga elétrica e estiver se movimentando em umpotencial magnético ~A, a equação (19) nos daria

~p = m~̇q + e ~A.

Esta não é a expressão usual para o momento, ~p = m~v. Neste caso, para incluiros efeitos dopotencial magnético ~A, devemos substituir o momento usual pelomomento canônico mais geral.

Em geral, o momento conjugado é uma medida de quão responsiva a lagran-giana é a mudanças na velocidade.

De maneira similar, a quantidade na equação (18) é mais apropriadamentechamada de força generalizada. Novamente, isso é necessário porque ela de-pende de que coordenadas usamos. Se usarmos ângulos ao invés de coordenadascartesianas, a equação (18) nos dará o torque ao invés da força usual.

De maneira mais abstrata, podemos dizer que uma força generalizada des-creve o trabalho feito por deslocamento unitário na direção definida pela coor-denada generalizada q.

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