mártir do gólgota

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O MRTIR DO GLGOTA

IntroduoDoze anos havia que o mundo gozava de uma paz inaltervel, desconhecida desde a morte de Numa Pomplio, quando Deus, lanando um olhar de compaixo para a terra, determinou baixar a ela em frma de homem, e de derramar o seu sangue pelos crimes alheios. Devia anunciar-se a sua vinda com grandes e assombrosos acontecimentos, e assim sucedeu. Os mpios idlatras do Olimpo do Homero, os adoradores sensuais de Venus, a prostituta, e de Mercrio, o deus dos ladres, os corrompidos cortezos do Capitlio, definhavam em languidez nos braos da indolncia e do amor. Aquela paz inaltervel enchia-os de admirao, e um dia foram ao templo consultar o orculo de Apolo para saberem quanto tempo ela duraria. O orculo respondeu-lhes estas palavras: At que se d o caso de uma Virgem dar luz. Julgando, segundo a ordem natural, que seria impossvel que semelhante vaticnio sucedesse, colocaram esta inscrio na elevada porta: Templo da paz eterna. Entretanto, a sibila Cumeia, a poetisa, inspirada, predizia a vida de Cristo na cidade mpia dos sibaritas. Otvio Augusto fez reunir o conselho e a profetisa foi interrogada. O Csar queria saber se nasceria outro homem mais onipotente que le. Esperava o imperador a resposta, quando um crculo de ouro apareceu em torno do sol. No centro, rodeada de vividos raios, via-se uma Virgem que tinha nos braos um formoso menino. A sibila ento estendeu a mo par ao brilhante astro do cu, e exclamou com proftica voz: - Aquele menino mais onipotente que tu, adora-o. De sbito ouviu-se uma misteriosa voz que bradava: Esta a ara santa do cu.1 Sucedia isto em Roma quando no Oriente, na Babilnia moderna, na populosa Selecucia, apareceu uma estrla que, fazendo sair os reis magos dos seus palcios, os conduziu com o fulgor do seu brilho porta de um estbulo de Belm. Cumpria-se a profecia de Balao: a estrla de Jac acabava de despontar nos cus. Do Oriente chegavam alguns idlatras, que depositavam aos ps de um bero a primeira pedra do cristianismo. A voz do anjo despertou nas suas cabanas os pastores, e stes achavam-se junto de um leito aos ps do qual ia morrer o mundo pago. Um menino, formoso como o sonho do justo, loiro como as espigas do Egito, agitava-se sbre um monto de palha sorrindo com doura; filho de uma Virgem, nasceu em um prespio e estava destinado a redimir o mundo. O recm-nascido era o Messias, que os profetas haviam anunciado. Os terrveis deuses do paganismo, Molok, Tifon, Abriman, curvaram a torva fronte ante o Cristo, o DeusHomem, o Deus da nobreza e da mansido que, envolto na tnica de mendigo, procurava o tugrio do humilde para viver com le e ensinar-lhe estas palavras de confrto: Bemaventurados os que choram, porque les sero consolados. Principiou ento o homem a sentir dentro de si o germen de uma nova vida, e quando a fadiga o fazia cair banhado em suor sbre a charra, erguia ao cu os olhos cheios de lgrimas, e pedia a Deus fras para esperar o dia da recompensa. O escravo, sacudindo os grilhes, lanou um olhar em trno de si e permaneceu com o ouvido atendo, at que a sua fisionomia se foi animando pouco a pouco, e um sorriso melanclico assomou aos seus lbios. Despontava-lhe no corao a esperana; os grilhes caiam despedaados aos seus ps, porque estas palavras pronunciadas por Deus: Todos somos irmos haviam chegado aos seus ouvidos. Reuniram-se ento os desgraados em volta de Jesus Cristo, que, qual pastor das almas, atravessava a terra para procurar os aflitos, afim de lhes enxugar as lgrimas, e derramar-lhes no corao angustiado a rica semente da f crist. Onde uma creatura gemia, l estava Cristo para a consolar. Onde se lamentava um enfermo, l estava o Messias para lhe devolver a sade. As suas palavras eram o manancial copioso da caridade e da consolao, manancial onde a humanidade colocou os lbios sedentos, onde mitigou a sde abrasadora que lhe minava o peito, exclamando ao mesmo tempo com entusiasmo: Creio em Vs, Senhor, porque entre os inumerveis benefcios que a vossa vinda nos trouxe, um h que eternamente guardaremos no corao: os Evangelhos, porque les so os escolhidos entre os escolhidos, so o po da alma crist, o divino facho que nos indica o caminho da glria, a tua santa doutrina enfim. Na Samaria, em Candam, na Galilia, Betnia e Jerusalm, Jesus apareceu sempre como o anjo do bem sbre a terra. Viu-se rodeado de um povo que sedento de amor, lhe derramava flres ante os ps, e que chamando-lhe seu Deus e seu Rei, lhe pedia com as lgrimas nos olhos que lhe ensinasse a nova doutrina. Sua fama, seus feitos, seus milagres, correram de boca em boca por todos os mbitos do mundo, at que um dia as palavras todos somos iguais chegaram aos ouvidos dos pontfices e pretores de Jerusalm.1 Sbre o Capitlio em Roma, onde existia em tempo da vinda de Cristo o palcio de Otvio Augusto, existe hoje o convento de Santa Maria d1Arca-Coeli, donde provm a tradio que narramos.

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Estremeceram os tiranos nos seus palcios e, fazendo girar os sangrentos olhos, procurarem o filho do povo que ousava intitular-se Deus da humanidade, Rei dos judeus, e cujas palavras principiavam a transtornar a ordem das cousas. Por fim acharam-no, interrogaram-no e, ao ouvirem a santa verdade da sua doutrina, retiraram-se envergonhados, murmurando estas palavras com enleio: Com ste homem a cincia impotente. Ser o Messias? Desde ento nos seus sonhos, nas suas bacanais, nas suas orgias, viram escritas estas palavras O que fr maior entre vs ser vosso servo. Em seguida calcularam as suas fras e a imensidade do perigo que os ameaava e rugindo como os habitantes das selvas africanas, com ua mo continham as pulsaes do corao, devorado pela conscincia, enquanto que com a outra assinavam a morte do Redentor. A raivosa impotncia e o cego orgulho dos tiranos fizeram com que se levantasse a Deus um cadafalso! A tragdia divina teve o seu termo. Cristo subiu ao calvrio, exalou o ltimo suspiro nos braos do lenho sagrado; foi dali tirado para o sepulcro, e ao terceiro dia elevou-se ao cu em apoteose. As suas lgrimas cairam como gotas de orvalho sbre o corao da humanidade; e as suas palavras foram a fonte da consolao, o seu sangue a semente preciosssima da religio crist, a cruz o sagrado sinal da redeno, a chave do paraso. Haviam-se cumprido as profecias. Os apstolos da f, os propagadores da nova lei, espalharam-se pela terra e, mo se importando como o martrio, comearam a semear a palavra humanidade at ento desconhecida no mundo. O Cristianismo cresceu como uma bola de neve. Os circos de Roma, os tormentos da ndia, no puderam esmagar-lhe a radiante e formosa cabea. Nero, Cmodo, Deocleciano, Maxncio, todos sses verdugos da humanidade, sacrificaram mais de um milho de cristes; porm o Cristianismo renasceu das suas cinzas como a ave fnix. Por toda a parte renasciam novos rebentos da f, que estendiam a sua nova e viosa seiva pelo corao da humanidade. Os filhos dos pagos recebiam a gua do batismo como man celeste. As mulheres, com a sagrada instituio do matrimnio cristo, tiveram uma posio social e uma famlia; e como se todos stes benefcios no bastassem para proclamar a divindade do Galileu, a mpia Jerusalm, a cidade ingrata dos fariseus, foi destruida pelas legies de Vespasianos e Tito, sepultando nas suas ruinas um milho de hebreus, que a celebrao da Pscoa havia reunido a profcia dos muros da cidade sacerdotal. O Cristianismo, salvando a sociedade de uma ruina certa, abrigou no seu seio carinhoso os restos da civilisao e das artes. O plano deste livro abrange todos sses grandes acontecimentos que o povo de Israel presenciou. Antes de o principiar, tratmos de estudar as Sagradas escrituras, os costumes hebreus e as poticas tradies do Oriente. Sem faltar ao dogma, muitas vzes havemos adotado o estilo potico, que no fica mal a um livro desta indole. A f e a religiosa admirao que nos inspira aquele que exalou o ltimo suspiro no monte do Calvrio, levou-nos a escrever uma obra que nos assombrava ao conceb-la, e que hoje, vendo-a terminada, damos luz com respeito e venerao. Que a julgue todo aquele que a ler, e longe de ter ste livro como uma obra importante, tenha-o s como um gro de areia que colocamos na pirmide imensa do Cristianismo, elevada pelas santas palavras do Mrtir do Glgota.

LIVRO PRIMEIRO

Que outra coisa a Escritura seno uma Carta do Todo Poderoso aos homens? Rogo-te que todos os dias estudes e me-Dites as palavras do teu Creador, aprendendo assim a conhec-lo, - (GREGRIO MAGNO,Livro IV, epist.39)

CAPTULO I

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O POVO ERRANTE

Formoso cu da Galilia: desgraadamente os meus olhos no admiram ainda as poticas cambiantes dos teus crepsculos. Perfumadas faldas do Carmelo: o meu peito ainda no respirou o balsmico aroma das tuas viraes. Frescas margens do Jordo: os meus lbios profanos jamais se humedeceram com o claro manancial da tua santa corrente. Cume sagrado do Calvrio:os meus ps nunca pisaram as tuas caleinadas rochas, que um dia se humedeceram com o sangue do Messias e com as lgrimas da Virgem. Velutos Olivete, cujos cimos serviram de pedestal do Nazareno quando as nuvens celestes desceram do paraso para o tirarem da manso dos homens: a brisa vespertina que agita as pequenas e aveludadas folhas das tuas oliveiras nunca bafejou a fronte. Imortal Lbano, magestoso fantasma de todos os tempos, que em teus mudos anais guardas a histria monumental: Balbek que os homens desconhecem, que fertilizas as terras de Blak com o hmido p da tua neve, que refrescaste os alvos cabelos do solitrio No e presenciaste a tragdia divina do Glgota, soltando um gemido doloroso, cujo eco foi perder-se nas profundas brenhas das tuas quebradas: o balsmico perfume dos teus cedros, o resplandecente reflexo das tuas cordilheiras jmais me detiveram os passos para te admirar dos pintorescos vales de Zakle. E tu, rainha da Asia, inacessvel cume do Sabino, que ocultas a eterna neve das tuas cumiadas no tranquilo azul do firmamento: os midos efsivos que o vento da tarde arranca a tua cabeleira nevada, nunca me humedeceram os vestidos, nem me cegaram os olhos. Jamais tive a dita de te admirar, potica e formosa Palestina. Os meus olhos nunca se extasiaram ante a contemplao dos campos de Zabulon, eternamente cobertos de violetas. Invejo os viajantes ilustres, os peregrinos, cristos que tem percorrido o dilatado solo, que foi ocupado pelas doze tribos de Israel desde o monte Hermon at torrente do Egito, desde as cordilheiras de Galaad at s tempestuosas plagas do mar ocidental. A histria do teu povo tem sido o meu livro querido desde que a minha lngua principiou a ligar as letras do alfabeto. Mai ai! Que feito dos descendentes de Abrao e Jac? O povo de Israel, to sbio e valente, essa raa da qual nasceram os profetas, essas tribos que imortalizaram o nome dos seus chefes, aonde existem? Qual o ponto da terra que ocupam? Onde se acha o seu lar domstico? Qual a sua ptria? Deus nasceu entre les, e o sangue do seu Deus que derramaram pesa-lhes sbre a cabea como uma maldio, impelindo-os pelo mundo quais ligeiras arestas que o possante spro do vendaval arrasta sem rumo certo. O arete romano converteu as suas poderosas cidades em um monto de runas; a espada triunfante dos filhos do Tibre cortou-lhes as cabeas, e as sombras terrveis de Vespasiano e de Tito pairam ainda sbre os escombros sangrentos de Jerusalm, perturbando o sono e arrancando lgrimas de luto e de vergonha aos descendentes dos Macabeus. A hora anunciada pelos profetas soou no incorruptvel relgio do tempo; as guias e os corvos, que se aninhavam nas escarpadas rochas do Lbano, submissas aos mandados de Deus, cairam ento sbre o solo da cidade maldita. Com os curvos bicos e as garras aduncas despedaaram sem piedade as entranhas dos deicidas; e os que sobreviveram a to horrvel catstrofe legaram aos filhos uma maldio eterna, uma vida errante e miservel, que se prolongar at a consumao dos sculos. Cumpriram-se as profecias: o templo de Sio j no tem os seus soberbos prticos; as suas portas de ouro j no se abrem ante os passos do sacerdote hebreu; os descendentes de Jac j no vo pressurosos fazer os sacrifcios ante os altares do invisivel Deus dos seus antepassados, e as harpas e os saltrios das filhas de Jud j no entoam doces e poticas melodias ao Santo dos Santos. Moiss, o intrprete de Jeov, o teu sbio legislador, o teu dogma, j no tornar a guiar-te pelo deserto. Debalde esperas, povo maldito, a vinda do Messias! Em teu seio teve o teu bero: cuspiste-lhe no rosto, derramaste-lhe o sangue, e a sua maldio esmaga com o seu pso a prosperidade de teus filhos. No esperes, no; no esperes que os campos de Gabaon se cubram outra vez com os louros de Josu e com os despojos sangrentos dos cinco reis comandados por Adonisec. Aquela batalha, que durou trs dias sem se ocultar o sol, s pudeste venc-la pela vontade de Deus, e Deus amaldioou a tua raa. Por isso que a bandeira dos Macabeus nunca mais tornar a tremular triunfante pela inimiga Samaria, nem os valentes filhos de Matias volvero a erguer as suas tendas sbre as altas cumiadas do Garizim. Dbora j no far justia sombra das palmeiras de Efraim, nem o canto de Jael, a forte mulher, reanimar nos combates o valor dos filhos de Jud. Ester, a formosa, nunca mais tornar a salvar o seu povo do furor dos inimigos; nem Elias, o raio de Deus, far chover do cu para acender a lenha verde do sacrifcio. As tuas conquistas no se estendero do Mediterrneo ao Eufrates como no tempo de Davi, o ungido do senhor; nem teus filhos gozaro mais em paz sombra dos salgueiros as imensas riquezas que o florescente reinado do rei dos Cnticos lhes proporcionou.

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Salomo, o amado do Senhor, nunca mais enviar os seus navios a Ofir, terra do ouro, nem passear pelas ruas da cidade santa com o seu carro de bronze de Corinto, no qual se lia em letras de diamantes: Amo-te, querida Jerusalm. A rainha do Meio-dia, a bela Nicaulis, jamais tornar, atrada pela fama da tua opulncia, montada no seu dromedrio de Efra, e resplandecente como um mar de ouro, esmaltado de prata e esmeraldas, a presentear o teu rei com trs elefantes carregados de aromas perfumes, ouro em p e pedras preciosas. As tuas naus nunca mais exploraro o comrcio do mar Vermelho, nem das costas orientais da frica, como no tempo de Josaf; nem teus filhos acharo no destrro outro Zrobadel, que os guie at aos abandonados lares para que reedifiquem o templo derrocado dos seus antepassados. Povo dAbrao, o teu nome um oprbio, a tua ptria um detrro! Grande foi o castigo que Deus lanou sbre a tua raa porm o teu crime ainda foi maior, pois derramaste o seu sangue, quando le havia escolhido o vosso pas para a sua morada entre os homens. Tapaste os ouvidos s suas palavras, e fechaste os olhos aos seus milagres; e aquelas palavras e aqueles fatos ainda retumbam, perturbando at o teu nome. Deus quis acolher-te debaixo das suas asas, como a carinhosa galinha aos pintinhos, e tu sacrificaste-o em recompensa do seu amor inexgotvel. Jerusalm, Jerusalm! Em ti no h de ficar pedra sbre pedra disse le, e a sua promessa cumpriu-se. Jerusalm, Jerusalm! A tua passada glria um monto de escombros, sbre os quais ainda adeja a terrvel maldio de Deus, repetindo sem descanso: Chora, chora, cidade ingrata!

CAPTULO II S NO MUNDO

O cu estava carregado, a noite escura, e frio o ambiente. O solitrio mocho, qual sentinela noturna, soltava de vez em quando dos altos ramos das rvores um montono e prolongado pio, cujo eco lgubre se ia perder nas profundidades dos barrancos. O interminvel ranger dos dentes dos famintos chacais do bosque de Efraim, despertava do seu ligeiro sono os ferozes lbos das brenhas da tribo de Manasss, os quais enviavam aos seus terrveis companheiros, nas asas do vento, noturno, ivos estridentes e prolongados. De tempos a tempos a lua rompia as espessas nuvens que a encobriam, deixando cair um raio da sua luz prateada sbre as altas cumiadas dos montes da Samaria, que estendem o seu dorso sombrio de leste a oeste, quais fantasmas negros e encadeados. O monte Hebal, mais escarpado, mais sombrio e imponente que os seus irmos, erguia-se no meio daquela cordilheira como um gigante ameaador, amaldioando a impiedade dos rebeldes samaritanos. O vento norte comeou a sibilar por entre as saras e as fendas das rochas, e em seguida grandes montes de nuvens repletas de eletricidade estenderam-se rpidamente desde as plagas do mar ocidental at s margens pacficas do rio Jordo. O surdo e longquo trovo comeava a ribombar pelo espao anunciando com a sua voz possante aos filhos de Semer a prxima tempestade que ia estalar sbre as tuas cabeas. A atmosfera ia-se condensando, e do seu hmido seio comearam a cair grossas gotas de gua sbre a seca terra dos adoradores do bezerro, e qual os judeus chamaram Terra da iniquidade. Tudo anunciava uma dessas terrveis tempestades, que com tanta frequncia turvam o cu da Palestina. Os relmpagos comearam a suceder-se com rapidez, e o trovo, percorrendo o espao, fazia redobrar a sua voz potente. Sbre o alto cume do monte Hebal, borda de um profundo precipcio, como o ninho de uma guia, viam-se os negros e toscos muros de um castelo de mesquinha e ttrica arquitetura. Esta sombra fortaleza, ali levantava pela atrevida mo dos cuteus depois da dominao dos assrios, era habitada por uma quadrilha de malfeitores. O chefe desta quadrilha, mancebo de apenas vinte anos, valente e temerrio, conhecedor do terreno, e que tinha sido levado por uma vingana vida aventureira de salteador de estrada, zombava dos soldados de Herodes, e carregado de despojos voltava sempre para o seu covil inexpugnvel, onde repartia pelos companheiros os roubos que fazia. Um relmpago iluminou momentaneamente o obscuro horizonte, e ao claro azulado da sua luz viram-se uns homens que deslisavam pela escarpada e resvaladia encosta do monte Hebal, em direo aos barrancos de Garizim. Os viandantes noturnos caminhavam, deixando aps si a fortaleza de Hebal, sem fazerem caso da tempestade que rugia pelo espao, e sem se importarem com as densas trvas que os envolviam, nem com o caminho perigoso pelo qual seguiam com passo acelerado e seguro. Um outro relmpago iluminou por dois segundos o espao. O seu livido claro incidiu sbre os misteriosos caminhantes com ttrica e fantstica luz. Pode-se vr ento que eram oito. Os trajos, misto de romano e hebreu, as fontes requeimadas pelo sol, as barbas hirsutas e incultas, davam-lhes um aspecto verdadeiramente feroz. Ia entre les um mancebo, imberbe por assim dizer: vestia uma tnica pardacenta como os nazarenos. Na cabea trazia um turbante alto com bandas de linho, e uma camisola de l de camelo servia-lhe de manto.

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Com a mo direita apertava a curta lana de trs pontas dos soldados de Cesar, e de sua cinta pendia-lhe o comprido punhal dos samaritanos. Era o chefe dos bandidos. O valor temerrio que sempre demonstrara havia-o elevado entre os companheiros ao posto de capito, apesar dos seus poucos anos. Tinha uma estatura esbelta e fisionomia franca e enrgica. Os seus olhos pretos, velados por longas e espessas pestanas, ora despendiam olhares irresistveis, quando a clera lhe devorava o corao, ora doces e compassivos, quando a quietao se lhe hospedava no peito. Nem uma s linha se encontrava no seu semblante que inspirasse o sentimento da repugnncia. Podia-se dizer que era quase formoso. Ao v-lo caminhar no meio, daqueles foragidos de olhar torvo e asquerosamente vestidos, dir-se-ia que era antes um prisioneiro que o chefe de semelhantes homens. O jovem capito dos bandidos samaritanos chamavam-se Dimas, nome que trinta e dois anos depois devia ser imortalizado no cume de Glgota pelo Martir da Cruz, o Redentor do homem. Dimas era filho de um honrado ourives de Jerusalm. Desde os mais tenros anos havia demonstrado um carinho sem limites para com todas as crianas de menor idade que a sua, um profundo respeito pelos cabelos brancos, e uma extrema venerao pelos cadveres. Como bom israelita cresceu, aprendendo o ofcio paterno, andando sempre rodeado de rapazes do bairro e com os quais repartia suas frutas e brinquedos. Quando algum defunto era levado pela rua em que vivia Dimas, le acompanhava o fnebre prstito at o vale de Josaf, oferecendo-se sempre a ajudar os coveiros a colocar o cadver no sombrio sepucro. Um dia Dimas ficou orfo; o filho chorou a repentina e inesperada morte do bondoso pai, e com os olhos ainda humedecidos pelo pranto, dirigiu-se casa de um pedreiro para que ste fizesse uma modesta sepultura s cinzas do autor dos seus dias. O ajuste foi feito por mil e duzentos bulos (trinta mil ris, pouco mais ou menos). Porm qual no seria a surpresa de Dimas quando ao chegar em casa, onde ainda o cadver descansava no leito da morte, viu um fariseu, um centurio romano e um malsim, a confiscarem a pequena fortuna do falecido joalheiro! - Que fazeis em minha casa? perguntou Dimas com assombro. - Tomo, com autorizao da lei e do poder romano, o que teu pai devia, respondeu o velho. - O spro da morte emudeceu a bca a meu pai, porm nosso jurar elo Deus invisvel de Abrao, de Isaque e Jac, que le nunca me disse nada a respeito da dvida que agora reclamas. - Um fariseu que tem as barbas brancas e que curva a fronte ante a ara de Sio nunca mente. Estes que me acompanham so testemunhas do emprstimo, que fiz a teu pai e de certo que tudo quanto possui no chega s duas teras partes do que me deve. Dimas, aturdido, com o corao traspassado pela dr e pela surpresa, no encontrava em si palavras com que responder quele velho, que o lanaria na misria. As testemunhas afirmaram a verdade das palavras do fariseu, e o malsim continuou a confiscar tudo que via, sem se importar com a atitude dolorosa do pobre rfo. - Pois bem; levem o meu errio, todos os meus vestidos, a minha cama, se querem; no me oporei a isso. Sou jovem e robusto e o trabalho no me atemoriza; porm concedam-me ao menos um favor. - Fala! disse o fariseu com lacnico acento. - Empresta-me dois mil bulos: eu os restituirei logo. - Dois mil bulos! ests louco, mancebo? Como poders pagar to enorme quantia? - Se fr preciso trabalharei para ti tda a minha vida. - No posso servir-te. - Vende-me como escravo, se queres. - Um fariseu israelita no pde vender um descendente da sua raa. - Pela santa sinagoga, suplico-te que no me negues o que te peo. - Acabamos com isto! Exclamou o fariseu com evidentes sinais de mau humor. - Pensa no que fazer! volveu Dimas rangendo os dentes ao ver a dureza daquele velho. - Ameaar-me? - Unicamente te aviso. - Desprezo-te. - Olha que sse dinheiro que te peo para enterrar meu pai! - Os pobres no precisam de sepulcros pois h valas comuns. - Miservel! bradou Dimas, agarrando nervosamente o velho fariseu pelo pescoo, tu e meu pai descero ao mesmo tempo sepultura. As testemunhas arrancavam o fariseu das mos de Dimas, no sem custo, e duas horas depois o jovem rfo era posto em uma escura masmorra da torre Antnia. Dimas tinha nesse tempo dezoito anos, idade em que as paixes e os sentimentos no se ocultam nem comprimem. Ao vr-se s no mundo, encerrado entre quatro hmidas e lbregas paredes, chorou como criana, porque se lembrava dos carinhos de sua me e do cadver insepulto do velho autor dos seus dias.

CAPTULO III AJUSTE AJUSTE

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Tanto a dr como o prazer tem o seu trmo, e ambos se dissipam quando o corao se enfastia ou endurece. O pobre rfo acabou por no ter mais lgrimas. Trs meses permaneceu, esquecido dos homens em hmida e sombria priso, sonhando com a anelada hora da xingana. Ua manh, o carcereiro anunciou-lhe liberdade. Dimas correu a sua casa e, por um vizinho soube que o corpo de seu pai havia ficado por sepultar durante seis dias, e que por fim os coveiros o haviam lanado a uma vala, onde se enterravam os cadveres de leprosos. Dimas ouviu a repugnante narrao sem proferir uma s palavra. Nem uma lgrima lhe assomou aos olhos. O corao estava empedernido; a vingana crescia dentro do peito como a vermelha papoula no meio de um campo esteril e requeimado pelo sol do Egito. Durante o resto do dia e da noite, andou sem norte nem rumo pelas ruas de Jerusalm. Ao amanhecer notou que se achava no bairro da Bezeta ou a Cidade Nova. Suas estreitas ruas sujas e torturosas, pertenciam rica e opulenta Jerusalm; porm nem o canto de Sion, nem os perfumes dos jardins de Herodes, nem o luxo da cidade de Davi, chegavam at les. Eram habitadas por modestos mercadores de l, por industriosos armeiros, por gente, enfim, dedicada ao trabalho e ao comrcio. Dimas, cansado, sem saber para onde havia de dirigir os passos, recostou-se a uma porta apenas cerrada. Maquinalmente fixou os olhos nas folhas reluzentes dos punhais, que pendiam de uma espcie de mostrador formado com fios de cnhamo. Dimas desejou comprar um daqueles punhais e com o olhar no mostrador, comeou a procurar a arma para executar a sua vingana. - Quanto custa esta navalha? perguntou indicando uma comprida folha de Damasco que pendia de um dos fios. - Dois silcos de prata, uma arma excelente, respondeu o cutileiro tirando-a do mostrador. Dimas examinou-a por um momento; mas, lembrando-se de que no possuia um miservel bulo, disse ao vendedor: - Queres fiar-me esta navalha? Dar-te-ei por ela vinte onas romanas, e isto antes que a lua nova alumie com os seus raios o alto minarete da terra de Davi. - E quem me responde pela tua palavra? Bem sabes que nunca te vi. - Responde-te a memria de meu falecido pai, a quem vou vingar com estarma, e sbre cuja cabea juro entregar-te, caso no morra na emprsa, a quantia que te oferec, que , como sabes, vinte vzes maior que aquela que me pediste. As palavras de Dimas tinham um cunho de verdade irrefragvel. O cutileiro compreendeu que se passava no corao daquele moo o quer que fsse de estranho e, por um dsses impulsos inexplicveis em um judeu, fiou-se na palavra do matutino comprador, pois previa um negcio excelente naquela venda. - Se me enganares, peor para ti! disse, entregando-lhe a navalha; se tiveres palavra, ento que Jeov te proteja e te salve dos perigos a que a tua vingana te vai expr. - Obrigado! falou o rfo. Mas antes de separar-nos, devo dizer-te o meu nome, para que conheas o teu devedor. Chamo-me Dimas; algum dia ouvirs falar de mim, pois estou certo que ste nome h de soar bastante pelas doze tribos. E, sem esperar resposta, caminhou rua adiante, atravessou a porta das Cabras e foi sentar-se sombra de um robusto sicmoro, de cuja fruta comeu com apetite, pois bastantes horas havia que no tomava alimento algm. Em seguida empunhou o cabo da navalha, e vibrou um forte golpe no tronco da nodosa rvore. A folha da arma enterrou-se umas trs polegadas. - Oh! Tem boa tempera! disse consigo, nem sequer dobrou a ponta: bem pde entrar toda a folha de um s golpe na garganta ou no corao daquele que atirou com o cadver de meu pai aos ces da vala dos leprosos. Dois dias depois, junto torre de Silo, os soldados de Herodes encontraram o cadver de um velho. Tinha uma ferida profunda na garganta e outra, exatamente igual no corao. Sbre a fronte qual estava escrito com sangue: Dimas vingou o cadver insepulto do seu pai com a morte dste fariseu e jura, pela sua memria, perseguir os descendentes dle at quarta gerao. Depois deste atentado, o jovem rfo fugiu da cidade sacerdotal, refugiando-se nos montes de Rama. O cadver profanado do autor dos seus dias impeliu-o a cometer o primeiro assassnio. A fome obrigou-o a praticar o primeiro roubou. Dimas arrebatou um cabrito a uns pastores. Da em diante comeou a vaguear como um malfeitor pela mais fragoso dos bosques. De noite abandonava as guaridas incultas para assitar os indefesos caminhantes; porm nunca o infeliz rfo, que aborrecia o sangue por instinto, empregou outras armas alm da ameaa para despojar as vtimas. Entretanto, a lua nova aproximava-se e Dimas no tinha pago ainda no cutileiro as vinte onas romanas que lhe devia. Jurara pag-las pela memria do insepulto cadver de seu pai, e era necessrio cumprir o juramento. Mas como, se no possuia sequer ua miservel moeda de cobre? Dimas, sentado borda de um estreito barranco, comeou a meditar sbre a sua sorte no futuro. Havia dado o primeiro passo no caminho do crime. Suas proezas vandlicas no passavam ainda de miserveis roubos, feitos a pastores indefesos, com o fim nico de aplacar a fome. Vivia s, errante; e meditando em sua conscincia, comeou a compreender o que havia feito. Era impossvel retroceder e via que era indispensvel que as suas aventuras fossem em maior escala. - Salteador por salteador, disse consigo, busquemos ento o ouro. Tanto se arrisca a vida roubando um sestrcio 1 como um talento2 hebreu. Tanto se perde a honra roubando uma pomba como um boi. 6

Aps esta resoluo, Dimas levantou-se, e agitando os compridos cabelos com um movimento enrgico de cabea, lanou um altivo olhar pela solides que o cercavam e, afagando o cabo tosco da navalha, murmurou:1

moeda de cobre de pouco valor.

- Quando se estima pouco a vida, o homem pode chegar a ser muito. Sim, preciso que eu seja o rei dos bosques, o terror de Israel. Nesse tempo andava pelos montes da Samaria uma quadrilha de bandidos que, sombra das contendas civis que agitavam as tribos de Israel, cometiam com incrvel audcia tda a casta de crimes. Debalde Herodes enviava seus soldados para os exterminar: os bandidos da Samaria eram invisveis, apesar do corao da Palestina ser o teatro da suas sangrentas expedies. A audcia dos bandidos samaritanos no tinha limites. As ruas de Jerusalm presenciaram milhares de vzes cenas de repugnante barbaridade, praticadas pelo punhal homicida dos indmitos habitantes do monte Hebal. Os mercadores do Egito, de Damasco, de Tiro, e Sidon, viam-se frequentemente assaltados ao meio dia nas estradas mais concorridas. As devastadoras correrias dos terrveis bandidos, estenderam-se desde a tribo de Jud, tribo de Aser; e no poucas vzes, atravessando o Jordo, haviam levado o terror e o saque at aos bosques de Efraim. Os montes de Samaria, com as suas profundas cavernas serviam-lhe de refgio para se esquivarem s perseguies dos soldados de Herodes. O sombrio e solitrio castelo, que coroava o topo do monte Hebal, servia-lhes de quartel de inverno. Dimas era valente: perdendo a esperana de reingressar na sociedade dos homens honrados, resolveu buscar a dos ferozes salteadores da Samaria. Por conseguinte, depois de quatro dias de marcha forada chegou raiz do terrvel monte. Ningum se atrevia a tanto naquele tempo. O desespro centuplicava o nimo do filho do ourives jerossolimitano. Dimas deteve-se a uns trinta passos da solitria fortaleza. A subida era escabrosa e fatigante. Desfalecido pelo cansao, o jovem hebreu sentou-se em uma pedra. Achava-se s: nem o canto das aves, nem a voz humana interrompiam a solido profunda dos precipicios que o rodeavam. Dimas parecia o anjo do mal, quando depois da sua queda se sentou borda do abismo a contemplar por um instante a horrvel manso, que Deus lhe concedia em castigo da sua louca soberba.

CAPTULO IV OS BANDIDOS Nem uma s nuvem maculava o claro e formoso cu da Palestina. O sol no seu zeni, e banhava com a radiante luz dos seus raios as escabrosas cordilheiras e as frteis plancies da Samaria. E, l ao longe, para o levante, estendia-se uma nuvem pardacenta que, semelhana de uma longa cobra de gaze, mergulhava a cabea enorme nas azuladas guas do lago de Genezar, enquanto a sua enroscada cauda ia abismar-se nas guas pesadas e malditas do mar Morto. Esta cinta de flutuante renda, esta manga de p que parecia brotar da terra, eras as nvoas do Jordo que iam subindo para o cu em vaporosas e hmidas emanaes. Dimas contemplou em silncio o panorama grandioso que se dilatava ante os seus olhos. Sua vista fixava-se no sombrio e solitrio castelo, cuja fechada porta, ameias desertas e desmoronados muros, lhe davam o aspecto de uma dessas manses malditas, cujas tradies sangrentas afastavam com terror os tmidos habitantes das aldeias e os simples e supersticiosos pastores. Dimas, firme no seu propsito, depois de certificar-se de que o punhal permanecia oculto nas dobras da tnica, desprendeu do cinto uma larga funda, formada de folhas de palmeira seca, colocou nela uma pedra de trs polegadas de dimetro e, fazendo-a girar em trno da cabea, atirou com o projtil para dentro do castelo Esperou alguns instantes, porm ningum assomou a cabea pelas frestas dos torres. Dimas repetiu por trs vzes a mesma manobra, obtendo sempre o mesmo resultado. - O castelo est solitrio penso. E aos seus lbios assomou um singular sorriso: - No seria mau que me apoderasse dos tesouros dsses raposos barbados que fazem tremer s com os seus nomes os mpios e afeminados romanos, os torpes e covardes herodianos e, os indefesos mercadores do Nilo, do Eufrates e do Jordo, pensou. Dimas passou vrias vzes a mo pela fronte e, tirando a comprida navalha, principiou a afiar a ponta do instrumento com que tinha vingado a morte do pai. - Vamos, valor, Dimas! A morte um instante: a vida longa e pesada quando se tem fome e se dorme ao relento. Dirigiu-se resolutamente para o castelo, a cuja porta bateu trs vzes com uma pedra que apanhara no cho. Ningum respondeu. Ento, seguro de que o castelo estava abandonado, examinou com ateno o muro que o cercava e,

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achando um pedao derruido pelo qual se podia escalar a fortaleza mais fcilmente, comeou a trepar pela muralha com o punhal entre os dentes. Se lhe tivesse fraqueado uma das mos, se se despegasse uma pedra, com certeza sua morte seria inevitvel, pois o corpo, rolando no abismo, ter-se-ia desfeito em sanguinolentos pedaos de encontro s salientes arestas da rocha. Por fim, depois de incalculveis dificuldades, Dimas chegou plataforma da muralha com o rosto inundado de suor e a mos ensaguentadas. Em vo percorreu depois os estreitos passadios, as desertas habitaes da ttrica fortaleza: o desejado tesouro com que sonhara no lhe foi possvel encontrar. Indubitvelmente, os bandidos deviam ter outro lugar onde ocultavam as rapinas. Depois de trs horas de minuciosas buscas, Dimas desesperou de o encontrar. - Tudo me indica, disse le consigo, que esta guarida habitada pelos bandidos samaritanos. Vi ossos frescos de carneiro pelo cho e archotes resinosos apagados de fresco. o mesmo: vim por ouro e no o encontro; esperarei que regressem, e depois eles mo daro. De todo jeito preciso de um albergue e achei ste castelo. Assim pensando dirigiu-se para uma estncia que j antes tinha visto e que, segundo os seus clculos, devia ser a cozinha e a sala de jantar dos bandidos. L, comeou cuidadosamente a revistar todos os escaninhos escuros da cozinha, e no levou muito tempo a descobrir uma perna de carneiro suspensa em um gancho de ferro. Seguindo avante nas suas investigaes, achou algumas nforas com gua, diversos odes de vinho e alguns sacos de milho em vrias concavidades praticadas na parede, e que primeira vista no tinha distinguido por causa da obscuridade. Era a despensa dos bandidos, e Dimas tratou de aproveitar o tempo. Resolvido a esperar os salteadores, encaminhou-se para o fogo, que se achava, segundo o costume dos hebreus, no meio da cozinha. Com grande alegria, viu que entre as cinzas brilhavam algumas brazas, A um canto da lareira havia algumas achas de lenha seca e archotes resinosos. Dimas reanimou o fogo e acendeu um archote, porque naquele lugar a claridade era pouca. Depois colocou a perna de carneiro junto ao fogo e, enquanto a assava, amassou um po com a farinha amarela do milho e a gua das nforas. Meia hora, depois, o moo aventureiro comia tranquilamente e bebia o delicioso sumo da uva, sentado na cozinha do castelo. Achava-se nesta plcida ocupao o ousado Dimas, quando distinguiu um rudo surdo nas profundidades da terra, mas continou a interrompida ceia, encolhendo os hombros com indiferena. O rudo aproximava-se cada vez mais. Dir-se-ia que falavam muitos homens, arrastando ao mesmo tempo pesados fardos por baixo da terra. De repente ouviu-se um rumor spero e singular no pavimento como se tivessem corrido um ferrolho ou uma tranca de ferro humedecido. O rfo continuou a comer como se nada tivesse ouvido; s por precauo pegou no punhal. De repente abateu-se um pedao do pavimento, e Dimas viu ao seu lado uma abertura de cinco ps de dimetro. Em seguida duas mos apoiaram-se borda daquela abertura e pouco depois, apareceu o corpo de um homem, que saltou com ligeireza para dentro da cozinha. Sem reparar em Dimas, porque depois de saltar inclinou o corpo para o buraco, estendeu os braos, aos quais se agarram outras mos. Puxou-as para si com fra, e outro homem saltou da cova cozinha, como se a terra os vomitasse, quatorze foragidos, de aspecto repugnante, de sujo e descomposto trajo. O primeiro efeito que produziu nos bandidos a presena de um homem que tranquilamente comia na sua impenetrvel guarida, foi o da surpresas. Porm voltando a sim deram um rugido e desembainhando os compridos punhais, arrojaram-se sbre Dimas. ste ps-se em p de um salto, e retrocedendo alguns passos com a navalha na mo, bradou com firmeza: - Vamos, companheiros! Os lobos no devem comer-se uns aos outros. Alm disso a ingratido um defeito desprezvel. Pelo santo altar de Sion! Preparei a ceia para vos poupar trabalho, e quereis matar-me em paga do servio que acabo de vos prestar? Os bandidos entreolharam-se com assombro.

CAPTULO V DIMAS EMPENHA SUA HORA PARA PAGAR O SEU PUNHAL

Entre os salteadores, entre essa gente que arrisca a vida a todo momento e crava o punhal no peito do prximo com a mesma indiferena com que esgota um copo de vinho, entre essa raa de miserveis, que pululam nos presdios e morrem no cadafalso, nada to digno de admirao, assombro e at respeito, como o valor pessoal. Aquele moo imberbe, criana quase, fitava-os com olhar sereno e sorriso nos lbios. Tinha o corao e o esprito tranquilo ante as afiadas lontas dos punhais que lhe ameaavam a existncia. S um homem ousado podia ter assaltado aquela manso de horror, que les habitavam, aquele teatro das suas cenas vandlicas, o espanto dos camponezes samaritanos. Essas reflexes perpassaram indubitvelmente pelas obtusas e selvagens imaginaes dos bandidos e, sem o poderem explicar, sentiram certa simpatia, certa admirao para com o atrevido mancebo que desafiava o seu poder, e que tinha com a sua audcia cativado os coraes daqueles homens empedernidos por uma vida de crimes e de sangue. - Ningum lhe toque! Exclamou um bandido cuja barba branca, gesto altivo e luxuoso trajo diziam claramente que devia ser o capito. 8

E dirigindo-se ao jovem aventureiro, falou: - Quem s? - Um companheiro vosso; um rapaz que quer encetar o lucrativo ofcio que professais; que, admirado das vossas proezas, deseja que o aperfeioes com o vosso saber nos segredos da arte. Os bandidos soltaram uma ruidosa gargalhada. - Rides? Atalhou Dimas imitando a hilaridade dos fascinoras. Estimo, pois vejo que j principiamos a ser amigos. Vou, portanto, pedir-vos um favor. Quereis emprestar-me vinte onas romanas? Os bandidos entreolharam-se como querendo dizer: no j dvida, o rapaz est doido. S o capito no demonstrou espanto com as palavras de Dimas. Seus olhos, penetrantes como os da ave de rapina oculta nos matagais, fitavam-se de um modo tenaz na franca e altiva fisionomia do mancebo. - Compreendo o vosso espanto, volveu Dimas, vendo que ningum lhe falava. Antes de pedir dinheiro devia ternos explicado o motivo que me obriga a solicitar um emprstimo, logo pela primeira vez que tenho a honra de tratar convosco; porm pelo sombrio Balaal, a quem todos pertencemos, suplico que vos senteis, e no me olheis com olhos espantados. Dimas contou em poucas palavras o que desde a morte de seu pai havia sucedido em Jerusalm e seus arredores. Ao terminar a narrao, o velho capito, que at ento s descerrara os lbios para impedir que a sua gente fizesse mal ao atrevido hspede, deu um murro terrvel nos joelhos e, deitando nas mos de Dimas um punhado de moedas de prata, exclamou com voz sonora: - Toma e paga a tua dvida, mancebo, pois sagrada. Se fores ingrato, que Belzebu te envie s suas regies asquerosas, e sejas devorado por elas; se, porm, fores leal, ento que Gad2 te eleve sbre os raios da sua roda e te proteja o corpo dos golpes do ferro homicida. - Obrigado, capito. Dimas te mostrar que no semeaste o benfcio em terra infrtil. - O meu nome, repz o velho capito, Abadon3 Sou samaritano; no esqueas, pois, o que vou dizer-te: com a mesma facilidade estenderei a mo para proteger-te como para exterminar-te. - Jamais o olvidarei. Agora d-me licena para partir; antes de quatro dias ser a lua cheia, e daqui a Jerusalm h trs longas jornadas.

1 Belsebuth ou deus das moscas, adorado pelos filisteus. Chamav-se assim porque estava sempre coberto de moacas por causa de se achar incessantemente borrifado de sangue. (Lamy, Aparato Bblico, liv. III, Cap. I) 2 dolo da fortuna 3 Anjo exterminador

- A paz de Deus seja contigo durante a viagem, falou Abadon. - E acrescentou, dirigindo-se a um dos bandidos: - Uries1 , acompanha este rapaz pelo subterrneo estrada dos romanos. - Devo-lhe vendar-lhe os olhos? Perguntou Uries ao seu capito. Abadon olhou um instante para Dimas: este manteve aquele olhar com tal nobreza e serenidade, que o capito respondeu: - No necessrio; fio-me na sua palavra; porm conduze-o pelo caminho comprido. Uries levantou o alapo e desapareceu por le, acompanhado de Dimas. Ambos por espao de meia hora caminharam por um subterrneo. O caminho era escuro, atmosfera pesada e salitrosa, refrescando com os seus vapores as frontes de Dimas e de Uries. - Por Jac! exclamou Dimas, se no me ds a mo para guiar, com certeza vou deixar os miolos em alguma destas rochas que ameaam cair sbre as nossas cabeas. Segue-me sem receio; o piso suave, e a abobada to alta que Golia e Saff, se vivessem, poderiam passar sem inclinar a cabea. E dizendo isto, o bandido estendeu a ponta do seu manto a Dimas. O jovem aventureiro sentia de vez em quando sbre o rosto um ar fresco, que lhe indicava que alguns buracos abertos na rocha permitiam a renovao do ar naquele subterrneo. So respiradouros essas correntes de ar que se sentem de tempos em tempos? - So caminhos que vo ter a outras sadas. Oh! Se os soldados de Herodes chegam algum dia a descobrir a nossa guarida, h de ter bastante trabalho para darem conosco. Dimas compreendeu que tratava com homens prudentes e entendidos no ofcio, e isto foi um motivo de jubilo para le. Por fim o bandido deteve-se, dizendo: - Chegamos. Ajuda-me a erguer esta pedra.... Dimas obedeceu, e pouco depois via os raios da lua, que brilhavam como fios de prata sbre o extenso vale que se dilatava aos seus ps. O mancebo olho em trno para reconhecer o terreno. - No vejo o castelo, disse. - Fica da parte oposto do monte. Comearam a saltar da rocha em rocha em direo plancie. A noite estava clara e tranquila, e o zfiro noturno apenas tinha fra para gitar as folhas das rvores. 9

1 Fogo do cu.

- Tu, que has de ser prtico no curso dos astros, sabes a que horas estamos da noite? perguntou Dimas. - cedo; achamo-nos apenas cabea de osgelis;1 antes que chegue a hora do cantar do galo poders encontrarte em Betel. Uma vez ali, caminha sempre para o nascente, marginando um arroio que te conduzir ao Jordo, em seguida torce em direo ao sul at encontrares Jeric; de Jeric a Jerusalm ningum se perde, pois a estrada romana conduzirte- cidade santa. Porm vou dar-te um conselho. As estradas feitas pelos romanos, que Deus confunda, no nos convm tanto como as veredas intransitveis dos lobos. Acredita-me, mas vale caminhar s, pelos bosques, que acompanhado pelas estradas do Cesar. - Obrigado; seguirei teu conselho. - Ento a paz seja contigo; j chegmos ao lugar em que preciso separar-nos. Segue sse atalho que te conduzir a Betel. A noite est clara e, dormindo ns, a terra de Samaria est mais segura que o palcio do Idomeu.1 Antes de nos separar-mos quero fazer-te uma pergunta. Quando eu voltar, por onde devo introduzir-me no castelo? - Pela muralha, como fizeste hoje. Se no estivermos l, espera. - Esta bem. At daqui a alguns dias. - Que Jeov te guie, e que tudo saia medida dos teus desejos. - O mesmo te desejo eu. Dimas tomou o atalho que conduzia a Betel, e Uries principiou a subir a encosta do monte em direo sua guarida. Dimas, enquanto caminhava, dizia a si mesmo, acariciando as moedas de prata, que to generosamente lhe havia emprestado o velho capito. - A minha primeira aventura saiu melhor do que esperava. Com ste dinheiro poderei honrar a minha palavra e, se encontrar o cadver de meu pai, dar-lhe-ei uma sepultura digna dle. Vamos, aceleremos o passo, pois, como diz o rifo quem paga descansa.

CAPTULO VI OS CADVERES Dimas seguiu o conselho de Uries. Atravessando os atalhos mais nvios, chegou torrente do Cedron trs dias depois, e entrando na cidade sacerdotal pela porta judicial, dirigiu-se para a baixa Jerusalm, que era1 Herodes o grande

onde morava o cutileiro. O confiado artista achava-se ocupado em afiar a ponta de um punhal, com o peito inclinado sbre um rebolo, e bem longe por certo de imaginar que o seu devedor viria interromp-lo no trabalho a que se entregava. - A paz de Deus seja contigo; disse Dimas entrando. - O cutileiro ergueu a cabea, sem suspender o movimento do p direito que fazia girar o rebolo, e fixou um olhar indiferente no mancebo. - No me conheces? falou Dimas. - Parece-me que j te vi em alguma parte. - H quinze dias, aqui, fizeste-me um favor, e venho pagar-te. - Ah! Exclamou o vendedor de punhais, recordo-me. - Por sinal que me ofereceste... - Vinte onas romanas. Aqui as tens, ajuntou Dimas. - Tirando da bolsa as moedas foi colocando-as sbre ua mesa. O tilintar da prata impressionou agradvelmente os ouvidos do judeu, a julgar pelo sorriso que lhe animou o rosto. - Por Jac e minha me! No esperava que cumprisses a palavra! - Fizeste mal em desconfiar. - Tens razo; no entanto as tuas palavras indicam-me que fizeste fortuna, o que estimo. - Herdaste de algum parente? - No. - Encontrarias por fortuna algum tesouro no velho palcio de Salomo? - Tambm no. A minha fortuna tem uma origem que no posso revelar; porm se no se riscar da tua memria o meu nome, algum dia a sabers. Chamo-me Dimas, no o esqueas. Grava bem na memria as cinco letras de que o meu nome se compe. - Deus de justia! Porventura sers o assassino do sacerdote Isaac, desse velho avarento e de m condio, que os cus confundam? 10

-

Sim, assassinei-o, porque assim devia faz-lo: a navalha que me vendeste foi o instrumento de que me servi. Agradeo-te em nome de meu pai, e em meu nome entrego-te as vinte onas romanas. Dimas, sem esperar resposta, tomou pela rua adiante, deixando o cutileiro absorto e aturdido. O jovem aventureiro encaminhou-se para o cemitrio dos leprosos onde, segundo lhe tinham dito, haviam os coveiros enterrado o cadver do pai. Restavam-lhe na bolsa mais de dois mil bulos e, firme no seu propsito, queria dar honrosa sepultura ao autor dos seus dias. Porm tudo foi em vo: trs horas de escrupulosas pesquizas empregou naquela hediondo esterquilnio, e por fim perdeu a esperana de achar os restos do pai, que talvez houvessem servido de pasto aos abutres e corvos que esvoaam pela pesada atmosfera dsses lugares to repugnantes. Duas grossas lgrimas assomaram-lhe s palpebras e erguendo os olhos ao cu, murmurou: Meu pai e senhor, tu foste bom durante a tua vida, e enquanto vivi ao teu lado fiz sempre por imitar a tua honradez. Porque motivo ao veres a angstia de teu filho, no me chamas para que possa dar-te sepultura digna de ti? Tornou a curvar-se sbre a terra, e com auxlio da navalha continuou a interrompida e penosa tarefa de remover aquele monto de ossos e corrompidos cadveres meio insepultos, que os seus ps calavam. Dimas procurava o cadver do seu pai como se aquela seca e estril terra ocultasse um tesouro. O amor filial fez-lhe esquecer que os raios abrazadores do sol lhe caiam perpendicularmente sbre a cabea. Aquele jovem moo valente e formoso, coberto de suor, abstrado no trabalho, indiferente a tudo, era na verdade um filho modlo. Cada cabea que assomava flor da terra era uma esperana; porm quando os seus olhos, ao buscarem as feies queridas do velho pai, se encontravam com o lvido e decomposto cadver de um desconhecido. Dimas ento, exalando um doloroso gemido, continuava a tarefa. Aquele gemido doloroso era uma esperana que lhe fugia do corao, esperana vencida pela realidade de um desengano. Morto de fadiga, sem alento, o pobre aventureiro deixou-se cair sombra de um salgueiro, sem esperana de poder achar o cadver do seu pai. Ali, s com a sua dr, assaltou-o uma idia terrvel, e um sorriso feroz assomou aos seus lbios. - Sim disse consigo, isso; esta noite irei ao vale de Josaf: procurarei o tmulo opulento do fariseu, dsse velho cruel que infamou o cadver de meu pai; arrancarei a lousa que o cobre, tirarei o corpo embalsamado dsse miservel, e deixa-lo-ei neste lugar imundo para que sirva de pasto s carnvoras raposas que lhe despedacaro a carne maldita, enquanto o noturno onocrtalo1, pousando as frreas garras na sua impura fronte, batendo as negras asas sbre a sua insepulta cabea, satisfeito o seu pio horrvel, e preprar para o festim os dois estmagos, famintos de carne humana. 1

Dimas, depois de proferir to terrvel ameaa, meneou a cabea, como se as furias com o seu ardente e impuro hlito. Com os lbios entreabertos, os olhos brilhantes e encovados, o rosto decomposto, o belo semblante de Dimas tinha o que quer fosse de terrvel e infernal. - Eu era bom, falou, e tu, fariseu, impeliste-me para a senda do crime. Um mar de sangue estende-se aos meus ps; minha vida ser infame; minha morte, a cruz e o meu corpo feito em pedaos talvez seja exposto nas estradas. De tudo isto tens a culpa, avarento de corao de pedra. Maldito sejas! Maldito sejas como a mulher impura at dcima gerao, a qual eu juro exterminar, enquanto o meu brao tiver fra para empunhar o punhal vingador! E Dimas, deixou cair a cabea com abatimento sbre as mos. Assim permaneceu por bastante tempo. A brisa da tarde comeou a gemer por entre os ramos das rvores, e le ainda permanecia imvel. O zfiro noturno suspirou por entre as plantas do campo, e Dimas no se movia do lugar onde estava. A lua banhou com os seus dbios raios a cilndrica e alta torre de David, e Dimas continuou na mesma atitude, mudo e silencioso. As cegonhas, dos altos mirantes de Jerusalm, comearam a entoar os eus sentidos cantos, e um mocho, pousando sbre os ramos da rvore ao p da qual se achava o jovem rfo, soltou ao vento o seu lgubro e ttrico pio. Ento Dimas ergueu-se e olhou em trno de si, como se despertasse de um sono profundo. O rosto havia perdido a ferocidade que pouco antes demonstrara. O olhar, triste e hmido ainda pelas lgrimas de fogo que derramara, era doce e inofensivo. De repente, um suspiro angustioso e prolongado escapou-se-lhe do de seu peito. - - No... mil vzes no! Jamais profanarei um cadver, jamais deixarei sem proteo as crianas e os velhos. A velhice e a infncia sero sempre veneradas por Dimas o bandido. Perda, meu pai, vinguei-te em um corpo vivo. Deixa-me respeitar a matria inerte que serve de sustento aos vermes da terra. - Dimas, durante as horas da triste meditao decorrida junto daquela rvore, mantivera uma luta horrvel entre o desejo da vingana e os bons e generosos instintos do seu corao juvenil; e o corao saira vencedor. Desistindo dos seus planos, s um caminho se abria ante os seus passos: o dos montes de Samaria. Dirigiu-se, portanto, para les, chegando quatro dias depois, ao entardecer, junto dos muros da inexpugnvel fortaleza dos bandidos e entro nela como da primeira vez. - Quando se achou dentro, dirigiu-se para a cozinha, e achou-a deserta. Estendeu-se no cho e esperou.O onocrtalo o corvo noturno dos hebreus e dos gregos. Tm nas fauces outro estmago qu enche depois de farto para ruminar a carne nos momentos de fome. O seu pio triste e horrvel; s vezes com o pescoo na gua imita o zurrar do onago.1

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Dimas tinha dezoito anos e o sono, nesta idade, no tarda a fazer cerras as palpebras. O jovem aventureiro adormeceu com a mesma tranquilidade como se achasse debaixo do teto hospitaleiro da casa de seu pai, quando o sono inocente da adolescncia sorria sbre a formosa cabea. Estava a noite bastante adiantada quando o alapo, que os nossos leitores j conhecem, se abriu para dar passagem aos companheiros de Abadon. Desta vez vinham carregados de despojos e, nas suas selvagens e ferozes fisionomias, brilhava o contentamento. Como na cozinha estava escuro, no repararam em Dimas. O capito mandou acender luz, e pouco depois as negras paredes coloriram-se dessa claridade avermelhada que os archotes resinosos expelem. Foi ento que viram Dimas, que dormia tranquilamente no duro e frio cho da cozinha. Cumpriu a palavra, disse Abadon, dirigindo-se aos seus. Parece-me que poderemos tirar proveito deste rapaz.

CAPTULO VII O BATISTMO DE SANGUE

O rfo de Jerusalm pertenceu deste aquele dia terrvel quadrilha dos samaritanos. Sua juventude, seu valor e sua boa presena foram para os bandidos poderosos motivos para que todos o olhassem com certa deferncia, que no escapou perspicacia do jovem aventureiro. Alm disso, Abadon, velho encanecido no crime comeou a trat-lo como filho. Seu corao empedernido nunca havia amado, e aquele belo e temerrio moo, que o acaso tinha lanado no seu caminho, havia-lhe feito sentir essa suave simpatia, sse afan desinteressado e puro, que os pais sentem pelos filhos. Dimas, medianamente instruido, nas Escrituras sagradas por um rabino, amigo inseparvel de seu pai, tinha a vantagem de saber ler e escrever o hebreu com bastante correo. Algumas noites, quando os esculcas no traziam notcias favorveis e era preciso permanecer encerrado na inexpugnvel guarida, Dimas, que tinha comprado em Sichem o Pentateuco1, lia-lhes as sagradas narraes que o historiador dogmtico, o insigne filsofo, o admirvel telogo, o inspirado profeta Moiss havia escrito para os descendentes de Abrao.

A sublime inspirao do Eterno, que transmitiu ao povo israelita o seu ilustre caudilho e libertador, entretinha agradvelmente aquele punhado de homens que o crime havia expulsado da sociedade, obrigando-os a viver nas brenhas mais recnditas como as carniceiras feras do deserto. As vzes, quando Dimas, com meigo sentido acento lhes transmitia as sbias narraes do legislador do Sinai, os ferozes bandidos prorrompiam em espontneas aclamaes, e a admirao para com o seu jovem companheiro chegava at ao entusiasmo. Ento os bandidos aconselhavam Dimas abandonar o seu nome que nenhuma significao divina tinha entre os hebreus, e tomar outro que expressasse uma condio celeste ou honrosa para aquele que o usasse. Todos os sentimentos como um filho, gritava um bandido: ponhamo-lhe o nome de Davi2, que o nome que lhe corresponde. No, no, dizia outro. Jeov enviou-o para o meio de ns, e portanto deve chamar-se Samuel3. Dimas ouvia com o sorriso nos lbios as contendas dos seus companheiros, e acabava por convenc-los que o nome posto pelo pai era melhor e o nico que devia trazer um filho. Assim decorreram alguns meses. Dimas foi insensivelmente incutindo naqueles coraes algumas idias humanas, fazendo-lhes ver que nada podia engrandec-los tanto aos olhos dos israelitas como converter as suas vandlicas emprsas em heroicas e temerrias proezas de soldados independentes. Uma guerra de partido contra Herodes e os romanos era o que Dimas, a coberto dos montes de Samaria, queria compreender; porm os seus ferozes companheiros no se decidiam a abandonar fcilmente os costumes antigos. O roubo e o crime nutriam-se no seu peito impuro, contaminando-lhe o sangue, e quando se encanece em uma profisso, adquirem-se certos hbitos que chegam a encarnar-se no mesmo ser, formando uma segunda natureza, que s abandona o indviduo quando exala o ltimo spro da vida. Dimas conheceu que para conseguir seu intento era preciso deixar correr o tempo e os acontecimentos, ou rodear-se de nova gente por conseguinte resolveu esperar melhor ocasio. Uma noite os bandidos souberam pelos seus esculcas que uma caravana que conduzia a Jerusalm preciosas mercadorias de Tiro, havia acampado em um barranco das cordilheiras de Jope. Abadon tratou de a assaltar, e saiu da inacessivel guarida, seguido dos seus terrveis companheiros.

Pentateucho, palavra grega que significa cinco volumes e que so: o Gnesis, o Exodo, o Levtico, os Nmeros e o Deuteronomio. o nico livro que os samaritanos veneram, tendo-o como divino e como nico. 2 Amado 3 Posto por Deus

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A noite estava clara e serena; brancas e vaporosas nuvens como pequenos blocos de neve deslizavam pelo lmpido horizonte, salpicando o difano azul do cu com as suas poticas e caprichosas ondulaes. As vzes a lua, como as virgens de Sio, lanava os seus dbios raios atravs de um areo e delicado vu de renda. Era uma noite formosa e potica, cheia de encanto, de mistrio e doura, e em que o cu sorria e a terra exalava os perfumes do seu seio. Uma noite serena dirige alma o imenso tesouro de encantos cheios de volpia, enquanto a beleza do dia s nos fala aos sentidos. O sol arranca lgrimas dos olhos e a lua, suspiros do corao. A noite representa a bondade do Criador, e o dia o poder e a fra de Deus; por isso, enquanto uma chora lgrimas doces e perfumadas como o rocio, o outro fortalece e abraza a terra com os seus raios de fogo. Sem as formosas brisas da noite, sem a virao perfumada do zfiro noturno, o mundo seria um rido deserto, um paramo inabitvel. Os salteadores deslisavam de rocha em rocha em direo ao ponto indicado pelos esculcas. Seria meia noite quando se detiveram no cume de um outeiro. Uris, que era o mais conhecedor do terreno, separou-se dos companheiros para explorar as cercanias do outeiro, pois segundo os seus clculos, a caravana devia achar-se acampada por aqueles sitios. O bandido, arrastando-se como uma cobra, chegou sem fazer barulho borda de um barranco e, agarrando-se a uns arbustos com as suas calosas mos, inclinou-se sbre o abismo para reconhecer o fundo do solitrio vale, que se dilatava para alm do despenhadeiro. A noite estava clara, e a lua deixava ver os objetos sem dificuldades. Uris langou os olhos pelo vale, e em seguida foi reunir-se aos seus companheiros. - Que h? Disse-lhe secamente o capito ao v-lo chegar. A caravana, como nos disseram, respondeu Uris com indiferena, acampou efetivamente no vale de Jope. Todos dormem, camelos e homens, porm pareceu-me ver reluzir luz da lua o quer que era semelhante aos capacete romanos. - Isso talves seja apreenso tua, atalhou outro bandido. - Tenho bons olhos; j sabes que me engano poucas vzes... mrmente de noite. - Nada tem de singular, tornou a dizer Abadon, que em alguma cidade dos arredores se tenha reunido um ou outro soldado caravana. - Quem sabe se os da caravana tero pedido um Sichem uma escolta? Interveio Dimas. - E que devemos fazer? perguntaram diversos bandidos. - Por Deus vivo! Que devemos fazer? Descer ao vale e, sejam romanos ou herodianos, levarmos as suas cabeas para o nosso capito como trofeu de vitria, exclamou Dimas cheio de ardor. - Tens razo: desamos plancie, reps o velho capito. Pouco depois cairam de improviso sbre o acampamento, envolvendo-o como em uma rde. Os mercadores, surpreendidos no seu primeiro sono, acordaram sobressaltados; o pnico apoderou-se dles e s pensaram em fugir, deixando em poder dos terrveis inimigos as cargas e os camelos. Porm no sucedeu o mesmo aos trs soldados romanos, que ao primeiro grito de alarma saltaram com presteza sbre os cavalos, e armando as dextras com a curta e terrvel espada que os fizera senhores do mundo, arrojaram-se com mpeto sbre os bandidos. Um romano, principalmente um romano da Palestina, no tempo de Herodes, julgar-se-ia desonrado se retrocedesse diante de seis judeus, raa vencida e escrava, que os filhos do Tibre olhavam com insultante desprzo. Os legionrios do Idumeu iam para Jerusalm. Tendo encontrado por acaso aquela caravana, haviam-se unido a ela por sse esprito sociavel, que predominava nos soldados do Capitlio. Os romanos, soltando um grito de guerra ao qual se seguiram os nomes de Marte e Minerva, brandiram as terrveis espadas sbre as cabeas dos bandidos; porm aqueles israelitas no eram os covardes e fracos filhos da cidade de Jerusalm: eram raios da montanha, soldados ferozes do deserto, cujo renome terrvel de habitantes do monte Hebel lhes fazia centuplicar as fras. Os romanos no podiam fazer mais que bater-se at morrer, e assim o fizeram. Porm as suas mortes deviam custar caro aos samaritanos. Abadon, o velho capito, ao querer cravar a sua lana no peito do cavalo de um dos seus inimigos, recebeu um terrvel golpe no pescoo, pelo qual se esvaiu em sangue, morrendo pouco depois. Dois bandidos mais tiveram a sorte do seu chefe. Dimas matou pelas suas mos um dos legionrios; porm ao mesmo tempo recebeu uma cutilada na cabea que o fez vacilar, e que indubitvelmente seria secundada, se Uries no viesse em seu auxlio cravando o punhal nas costas do romano, que caiu do cavalo. A lua, sempre clara e formosa, alumiou, com os seus dbios e poticos raios aquele combate, aquela cena do sangue em que seis homens haviam exalado o ltimo alento e seis ficado gravamente feridos. Os bandidos, senhores do campo, dispunham-se a carregar os camelos com o mais rico da preza e a colocar em outros os que no podiam pelo seu estado andar o caminho a p; porm Dimas, que apesar do ferido no tinha perdido a serenidade e o conhecimento deteve-os, dizendo-lhes: Companheiros, antes de partir devemos dar sepultura aos mortos, com o que honraremos os corpos dos nossos camaradas, no deixando alm disso vestgios desta catstrofe que havemos experimentado, e que sempre poderia alentar os nossos perseguidores. Esta segunda razo convenceu os bandidos, que imediatamente se puseram a cavar uma vala. Pouco depois, romanos e samaritanos jaziam sepultados para sempre debaixo do psado manto de terra. Os bandidos abandonaram o lugar do combate, mudos e cabisbaixos. 13

Dimas caminhava ao lado dles sem descerrar os lbios. Pelas suas faces rolaram lgrimas. O velho capito havia-lhe demonstrado um afeito franco e desinteressado, chamava-lhe filho, e o mancebo chorava pela memria do segundo pai que acabava de perder. J o dia ia bem adiantado quando chegaram ao monte Hebal. A poucos passos da entrada subterrnea os bandidos detiveram-se. - Que devemos fazer aos camelos? Perguntou Uris dirigindo-se a Dimas, como se ste fosse o chefe da quadrilha. Descarregai-os e, em seguida, voltai-lhes a cabea para o lado do mar, da-lhes a voz de marcha e que vo para onde quiserem. - No seria melhor vend-lhos amanh em Bethel? disse um dos bandidos. - J disse que convm desorientar os nossos perseguidores, e stes animais poderiam descobrir-nos. - Tens razo, - ajuntaram vrios salteadores. Descarregados os camelos, foram os animais colocados como mandara Dimas, e os quadrpedes largaram a trote atravs do monte, em direo ao oeste. Ento os bandidos fizeram entrar a brao no castelo a rica preza, que tanto sangue lhes havia custado. Naquela noite Dimas foi proclamado capito e ao tomar o comando fez jurar trs cousas aos seus subordinados: a primeira, que amparariam sempre, mesmo com perigo de vida, tdas as crianas de menos de dez anos; a segunda, que respeitariam em todas as ocasies, todos os velhos; a terceira e ltima, que nunca deixariam os cadveres insepultos, havendo tempo para cumprir to santa tarefa. Dimas fez compreender aos companheiros que, j que a sorte os lanara na vida de aventureiros, o que no era muito honroso, foroso era que a guerra sociedade se fizesse em condies mais suaves; e visto que sua inteno no era seno enriquecerem, se poderia conseguir sem necessidade do terror, ao abrigo da sua bandeira do partido que como bons israelitas, deviam levantar em defesa da ptria aviltada pelos mpios romanos. As palavras de Dimas exaltaram os bandidos, chegando alguns dles a sentir remorsos pelo sangue derramado e pelo tempo perdido no roubo e no crime. Em seguida, olvidando o capito morto, beberam sade do capito novo at cairem ao solo, embrigados. Desde ento a quadrilha de Dimas, apesar de viver ainda da rapinagem, comeou a ser mais humana, chegando com o tempo a frmar no uma quadrilha de salteadores, mas um grupo de homens livres, que amantes da lei, da religio e da independncia, faziam com suas espadas uma guerra terrvel aos soldados do tirano Herodes. Agora retrocedamos ao captulo segundo deste livro, quando ao livido claro do relmpago vimos deslisar pelos torturosos atalhos dos montes da Samaria oito bandidos de feroz aspecto, entre os quais caminhava um mancebo armado com uma lana curto e envolvido em um manto de l de camelo. O mancebo era Dimas, que havia seis meses capitaneava os foragidos, alcanando de dia para dia mais afeto e domnio nos seus coraes. Explicado o procedimento do moo bandoleiro, sigamo-lo, apesar da noite tempestuosa e das escabrosidades do terreno.

CAPTULO VIII UM GOLPE DADO EM FALSO - Com que ento, amigo Uries, dizia Dimas a um dos bandidos que caminhavam a seu lado, com que ento afirmas que a caravana egpcia, apesar do seu aspecto pobre e miservel, conduz um tesouro? - O carregamento de trigo fecundado pelas guas do Nilo; porm nos sacos do cereal esto ocultadas duas caixinhas construidas em Alexandria, que encerram um tesouro. Uma vez repleta de ouro em p; e outra, de pedras preciosas; ambas so destinadas a Cesar. Seus condutores ignoram que entre o louro gro que transportam se esconde uma verdadeira fortuna. O carregamento vai consignado a um rico negociante de Cesaria, em cujo porto est um navio romano ancorado, para transport-lo cidade dos cnsules. - Boa deve ser a presa para que os meus lobos montanheses no te amaldioem por lhes teres feito abandonar o castelo em uma noite como esta. Mas, por Deus vivo! Muito me admira que to preciosos tesouro no seja escoltado por gente armada. - Os negociantes egpcios so desconfiados, odeiam os romanos e receiam ser roubados por aqueles mesmos a quem confiam a guarda das suas caravanas mediante um salrio. - No estars enganado? - S Deus infalvel. No entanto, agouro um xito feliz a expedio. - Que parte ofereceste a quem te revelou o segrdo? - Nada ofereci; foi le que fez as suas exigncias; de maneira que, se nada lhe dermos, no faltaremos nossa palavra. - Vejo que s astuto e prudente. 14

- Capito, tenho quarenta anos, entrei no ofcio de salteador quando apenas tinhas fras para levantar do cho uma lana como essa que trazes na mo. Era criana ainda e o autor dos meus dias reconheceu que eu era um rapaz aproveitvel; portanto, serviu-se de mim dando-me a honrosa e delicada profisso de espio. Tomei como um passatempo aquela ocupao e desempenhei-a com o afan com que a infncia faz as cousas que lhe agradam. Aos doze anos era eu um modlo de astcia, sagacidade e penetrao. No imodestia. Dimas: todos os velhos bandidos da Palestina tinham-se por modlo, e designavam-se como uma maravilha da nossa arte. No tenho sido capito por dois motivos: primeiro porque no sou ambicioso, e isto no quer dizer que tu o sejas; e o segundo, porque sendo simples membro de uma quadrilha, posso servir melhor os meus companheiros e levar uma existncia mais independente. Como sabes, s vzes ausento-me por dez ou quinze dias; durante ste tempo percorro as dozes tribos: sou judeu entre os da Judia, galileu entre os da Galilia, e samaritano na Samaria. Quando me convm mudo tanto de nome como de raa. Umas vzes sou mercador, outras sacerdote; introduzo-me nas casas, e como tenho isso que chamam dom de agradar, fao por ganhar a amizade e simpatia dos donos delas, descubro os seus segredos, apodero-me dos seus planos e negcios, e quando a minha memria rene uma boa quantidade de conhecimentos, volto ao velho castelo de Hebal, onde os companheiros me esperam: informo-os depois de tudo, e les saem a colher o fruto dos meus trabalhos, evitando-lhes deste modo que passem a noite em um barranco, mortos de frio ou ensopados, esperando os Viandantes, que muitas vzes no trazem mais que um saco de negra cevada ou um punhado de farinha. - s um sbio, Ureis, e os nossos companheiros fazem bem em dar-te duas partes nas prezas. - Ah, meu caro Dimas! Os homens so muito ingratos. Estou certo de que, apesar do meu saber, qualquer dia, em recompensa dos meus cuidados e desvelos, me penduraro de uma rvore, como fizeram a meu pai que sabia tanto como eu. - Dimas sorriu-se ao ouvir as palavras do bandido, que era tido entre os seus camaradas, como o mais astuto da quadrilha. - Acredita, capito, volveu Uries, o homem foi criado para no fazer nada; estuda com ateno o seu corpo, e vers que os seus braos se prestam mais a estirar-se em preguiosa atitude que a cavar a terra com pesada enxada. A preguia natural; o trabalho violento e imprprio. O homem, se se afadiga e trabalha, porque cr que chegar um dia em que no far nada. Trabalhemos, pois, por algum tempo, e em seguida a regalada preguia nos reter entre os seus amants e carinhosos braos. - Uries terminou dando um bocejo que s um trovo espantoso fez acabar. - Temos m noite, disse um dos bandidos. - Piores foram as do dilvio, atalhou outro. - Se a prsa fr to pesada como a atmosfera, ento tudo correr bem. - Uries um preguioso, e visto que nos fez sair do castelo em noite to ruim, por certo que no foi com o fim de nos fazer dar um passeio por stes barrancos. - Falai mais baixo, que chegmos, disse Uries, aproximando-se dos camaradas. Por aqui deve passar a caravana quando a luz da aurora romper no Oriente. Ento o melhor ser emboscar-nos, atalhou um outro bandido. Vamos, rapazes, cada um procure ao abrigo de uma rocha um refgio contra o mau tempo, interveio Dimas em voz baixa. Embrulhai-vos nas vossas capas e cuidado com o sono. Ao primeiro grito de alarma, todos ao meu lado. Os bandidos emboscaram-se do melhor modo que puderam nas salientes rochas de um estreito barranco. Dimas e Uries, desprezando a chuva, colocaram-se, envolvidos nas mantas, junto a uma rvore corpulenta, beira do caminho por onde a caravana passaria. Meia hora haveria que os bandidos se achavam acampados no baranco, quando o canto montono do cuco principiou a ouvir-se. Uries ergueu-se como o chacal que ouve os passos do caador e os latidos do co; que deu com o rasto. - Que h? perguntou Dimas sem altear a voz. - Ignoro; porm aquele canto nada promete de bom. - Nos nossos livros o cuco no ave de mau agouro. - Quem canto no uma ave, mas um homem. - Um homem! exclamou Dimas, empunhando a lana. - Nada receies; um amigo, um espio que me serve bem. Breve sairemos das nossa dvidas. E Uries imitou de modo admirvel o grasnido estridente e desegradvel do corvo. Pouco depois um homem, salpicado de lama e escorrendo gua, apareceu dizendo: - A paz seja contigo, amigo Uries. Dimas olhou com assombro para aquele homem que chegara at les sem fazer o menor rudo. - Contigo venha, amigo Ado, que notcias trazes? Uma circunstncia inesperada tirou-nos a prsa. Os condutores da caravana caminham a estas horas em direo a Jeric entre duas alas de terciarios romanos. - Por Isaac, explica-te melhor e depressa! Exclamou Dimas com impacincia. - No sabeis ainda a nova, reps o espio, que agita o povo de Israel, e faz estremecer o tirano Herodes no seu palcio? - Nas montanhas de Samaria s se ouvem os uivos dos lobos, redarguiu o jovem capito. - Pois bem, na cidade santa conta-se que trs mago caldeus vieram a Jud em busca do Messias prometido. O idumeu desejando apoderar-se dsses estrangeiros, que chegaram suas terras para alentar as esperanas do povo judeu com falsas novas, espalhou seus soldados por tdas as tribos. Os viajantes so detidos e interrogados; suas mercadorias 15

sofrem revista escrupulosa, e esta sorte coube aos egpcios que esperveis por ste barranco, pois a estas horas caminham para Jeric, custodiados pelos legionrios do rei de Jerusalm. - De modo que o tesouro... disse Dimas. - Vai cair em poder de Herodes, atalhou o espio que, ao saber o seu destino, se apressara a remet-lo para Roma como uma manifestao do respeito, que lhe inspira a cidade mpia. Dimas encolheu os ombros, e disse com impassvel entoao: - A emprsa malogrou; preciso resignar-mo-nos a esperar ocasio melhor. No entanto, no deixaria de ser conveniente continuar na pista da caravana. - Sou da mesma opinio, disse Uries. Quem sabe? Herodes pode confiscar o trigo e p-lo venda, e nesse caso o melhor negcio compr-lo. - E podes encarregar-te dsse assunto? - Com todo o gsto. - Pois ento, parte para Jeric; esperaremos notcias tuas no castelo. - A minha bolsa est vasia, capito. - Recebe este cinto: contm doze minas hebreias, que te bastaro para comprar o carregamento; porm no olvides o que pode tomar-se no se deve comprar, segundo os regulamentos da nossa profisso. E Dimas, dizendo isto, entregou a Uries um cinto de couro que a sua farta tnica ocultava. - Queres acompanhar-me Ado? perguntou Uries. - Sim! Respondeu aquele fazendo um gesto de indiferena. Depois, o jovem capito reunio os companheiros, e disse-lhes em duas palavras o que se havia passado, e o que decidira. Ningum proferiu uma palavra, nem uma queixa; no entanto, os rostos dos bandidos manifestava-se claramente o desgsto daquele contratempo. Uries e Ado tomaram o caminho de Jeric, e os bandidos dirigiram-se pragueiando para os monte da Samaria. Tinha cessado a chuva; porm a noite continuava escura, ouvindo-se de vez em quando a longnqua e ameaadora voz do trovo. Os bandidos caminhavam taciturnos e cabisbaixos, demonstrando o seu mau humor no mais pequeno incidente. Tinham abandonado uma prsa fabulosa, e voltavam molhados enlameados, sem aumentar os seus cabedais com um miservel bulo sequer. J perto do castelo de Hebal, ao atravessarem um fragoso barranco, ouviram passos. Dimas f-los parar e ocultar-se por detrs das saras e das salientes rochas. Entretanto, pelo nvio barranco que ia ter ao lugar em que estavam os bandidos emboscados, caminhava um venervel ancio, envolvido no pardacento manto dos galileus. Trazia um jumento pelas rdeas, e sbre a modesta cavalgadura ia uma mulher jovem e um menino de pouco meses. A criana dormia no regao materno, e estava cuidadosamente envolvida em uma capa cr de corinto: a me chorava em silncio, e o ancio orava em voz baixa. O trovo continuava a ribombar por cima das cabeas dos pobres viandantes. De repente o ancio parou, porque ao dobrar uma curva do barranco viu surgir um homem, que lhe ps ao peito as afiadas pontas de uma lana, bradando com voz torva: - Alto ou morres! O ancio recuou dois passos, a mulher exalou um grito e, estreitando o filho ao seio, exclamou: - Deus de Sio, salvai o meu Jesus!

LIVRO SEGUNDOESTRELA DO MAR

Uma viagem conceber e dar luz um filho, que se chamar Emmanuel, isto , Deus conosco. ste filho, dado milagrosamente ao mundo, ser um rebento do tronco de Jos, uma flr nascida da sua raiz. Ser chamado o Deus forte, o Pai dos sculos futuros, o Princpe da paz. Ser levantado como um estandarte vista dos povos; as naes viro oferecer-lhes as suas homenagens, e o seu sepulcro ser glorioso. (Profecias de Isaias) CAPTULO I

MARIA

Comea o livro da Virgem. A inspirao de Zorrila, o gnio de Murilo, tornam-se pequenos ante a formosura da Me aflita que chorou no cume do Glgota a morte de seu filho. A grandeza de Maria divina, e por isso no chega a ela o talento humano. 16

Perda, pois, Virgem, se a minha insuficincia se atreve a narrar a tua histria dolorosa. A f crist d alento s minhas mesquinhas fras; o teu nome glorioso dar cr s minhas plidas idias; em ti confio para levar a cabo a penosa peregrinao que imps a mim mesmo. Nazar, a ptria de uma Virgem, o bero de um Deus, envolta ainda nas ltimas sombras da noite, dorme tranquila a um extremo do pitoresco vale de Esdrelon. A vontade suprema do Criador colocou-a no seio de duas colinas que, mes carinhosas, a cingem com os seus robustos braos a fim de a livrarem das tormentas outonais. Nazar, azulada pomba do Oriente, que formaste o teu ninho sombra de Hermon para te embriagares com o perfume que te enviam os floridos campos de Canaam que foram em tempo o cubiado jardim da tribo israelita de Zabulon; modesta aucena dos vales, em cujo clice depositou Deus a prola do Oriente, o gro de ouro do Cristianismo; ... Jerusalm, Sfora e Beiruth olharam-te com desprzo porque se julgavam rainhas da Palestina, porque ignoravam que tu estavas destinada a ser o ninho santo anunciado nas profecias, a fonte inexgotvel da salvao da alma, o sol esplndido da f e da esperana. O rcio celeste cai sbre os teus campos; Jeov sauda-te do seu trono de luz, e os anjos cantam o hino da benvinda, porque as profecias vo cumprir-se. Uma menina, formosa como a estrla da manh, acaba de respirar o primeiro spro da vida e de seu peito virginal sai um gemido de dr. E o primeiro de um Ente que nasce, de um Ente que vem ao mundo interceder eternamente por ns. Seu bero no se cobre com as ricas colchas do Egito, nem se atavia com o ouro da Prsia. Os eus vestidos no se perfumam com a essncia do nardo, nem se acende mirra nem leo balsmico em turbulos de prata, como se faz aos principes hebreus. Pobre e tosco linho lhe cobre os delicados membros; uma choa a alberga e humildes mulheres do povo rodeiam o seu bero e recebem o seu primeiro sorriso. No entanto, aquela dbil criatura nasceu com o destino de ser Rainha dos cus, a me dos anjos, a Espsa de Deus. Os conquistadores da terra deporo os cetros aos seus ps, os reis curvaro ante Ela as altivas frontes, e os aflitos, implorando a sua proteo iro ador-la de joelhos ante os altares levantados pela f crist. Porque Ela ser o blsamo universal das dres humanas, a esperana do nufrago e a consolao dos tristes. Seu nome glorioso ser invocado nos momentos augustiosos da vida, porque Deus escolheu-a para gerar em seu seio o Verbo Divino, que em frma de homem h de remir com o seu precioso sangue os pecados nefandos da humanidade. Porque Ela ser um tronco liso e brilhante em que nunca se encontrar, nem o n do pecado original, nem o cortex do pecado atual1 O seu nome ser para os aflitos mais doce aos lbios que um favo de mel, mais aprecivel ao ouvido que um cntico suave, mais delicioso ao corao que a alegria mais pura2 Porm, no adiantemos os sucessos. Sigamos as sagradas tradies do Oriente, e com elas vista e a f na alma, Deus nos dar fras para levarmos ao fim a difcil peregrinao que impusemos a ns mesmos.

Em Nazar, pequena cidade da baixa Galilia, vivia um homem honrado, conhecido pelo nome de Joaquim, da tribo da Jud e da descendncia de Davi por Nat. Sua espsa chamava-se Ana. Ambos eram bons e observavam com a f no corao os mandamentos de Jeov; porm o Senhor afastava deles os olhos, e Ana era estril depois de vinte anos de casada. Joaquim podia quebrar aqueles infecundos laos, dando a sua mulher a carta de divrcio, que a lei dos fariseus com tanta facilidade concedia. Lei brbara e desumana, em que as espsas se convertiam em escravas e os maridos em despticos senhores. Ana, pois, vivia triste, porque a esterilidade era olhada em Israel como um oprbrio. Porm Joaquim amava a espsa, e vivia resignado entre o trabalho, a orao e a esmola. Pediam a Deus com fervor que lhe concedessem um herdeiro, para se verem limpos da mancha que sbre les pesava; e Deus ouviu as suas splicas, porque saiam de dois coraes puros. Ana sentiu agitar-se nas suas entranhas o germen de um novo ser, e louca de alegria, participou-o a seu esposo. Passou um lua e outro lua, e por fim em uma manh do ms de Tirsi3 Ana foi me, e Joaquim apresentou aos parentes e amigos uma menina, formosa como um anjo, loira como o ouro em p dos mercadores do Egito. Nove dias depois, segundo os costumes judicos, reuniram-se todos na casa paterna para porm um nome tenra criana. O pai ps-lhe o mais formoso, o mais sublime que ainda combinaram as letras do alfabeto, porque le s encerra um poema de ternura inexgotvel. Este nome era Mirian (Maria) nome que um lngua siraca significa Soberana, e na hebreia Estrela do Mar. E como dar-lhe outro nome que melhor explicasse a alta dignidade da Virgem, que havia de gerar em seu seio o martir do Calvrio? S. Bernardo disse: Maria com efeito aquela formosa e brilhante estrla que brilha sempre sbre o mar vasto e tempestuoso do mundo.

Santo Ambrsio Santo Antnio de Pdua 3 Segundo a opinio de alguns orientalistas a Virgem Maria nasceu a 8 de setembro (Tori, primeiro ms civil dos judeus) do ano 734 de Roma e 21 antes de Cristo. A hora do seu nascimento foi ao amanhecer, e a dia sbado.2

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A mulher hebreia purificava-se solenemente no templo oitenta dias depois do parto, oferecendo no altar sagrado um cordeirinho branco ou duas rolas, sendo pobre, ou uma croa de ouro, sendo rica. Ana era pobre, e ofereceu uma rola para o sacrifcio; porm grata ao preciosssimo dom que Jeov lhe concedra, empenhou a palavra de consagrar a filha ao servio do templo, logo que aquela tenra flor soubesse distinguir o bem do mal. Ana criou Maria ao peito, porque Jud as mes tinham a obrigao de amamentar os filhos.1 Estranho a formosa criana desde os seus mais tenros anos aos brinquedos da infncia, cresceu entre a meditao e as tenras carcias de seus pais. Aos trs anos era olhada com respeito por todos os humildes habitantes de Nazar. Nos seus olhos, azuis como o cu do Oriente, brilhava um reflexo de luz divina. Seus lbios, nacarados como as ptalas dos cravos de Jeric, tinham sempre um sorriso de indefinvel doura para todos os que se acercavam dela. Os abundantes aneis dos seus louros cabelos caam como chuva de ouro sobr a modesta tnica de l azul, que lhe cobria a delicada carne. Em certas tardes, na pintoresca estao da primavera, seu pai levava-a a passear pelos floridos jardins do vale de Esdrelon. A formosa criana, sentada sombra de um daqueles salgueiros, que tantas vzes abrigaram as caravanas arabes2, comprazia-se em estender a vista pelo claro e difano cu da Galilia. Durante stes momentos de contemplao celeste, o pai no se atrevia a interromp-la, pois, julgava-a inspirada por alguma revelao divina. Ao voltar para casa, com as pequeninas mos, brancas e finas como a flr do terebinto, fazia um ramo de narcisos, anmonas e aucenas, e durante o caminho deleitava-se em aspirar o seu delicado perfume. Mutas vzes o pai colhia-lhe o dourado fruto do sicmoro e do platno; a formosa criana guardava-o e, ao chegar povoao oferecia-o me. Maria chegou idade fixada por seu pais para ser entregue, conforme haviam prometido, ao templo sagrado, como uma das virgens de Israel. Os parentes de Joaquim dispuseram-se a acompanh-la, pois segundo os costumes hebreus deviam presenciar a sagrada cerimnia. A humilde caravana saiu por conseguinte de Nazar em direo a Jerusalm. Estava-se na estao das chuvas. O Cison, seco durante os ardentes mses do estio, arrastava sbre o seu leito de areia vermelhas e trbidas guas. Os viandantes evitaram o perigo que o rio lhes oferecia, tomando as encostas balsmicas do monte Carmelo e a frtil e arenosa plancie de Saron, semeada por tdas as partes de laranjeiras, palmeiras e betos. Depois de alguns dias de viagem, chegaram por fim populosa cidade de Jerusalm, e entraram nela pela porta de Efraim.

CAPTULO II

A VIRGEM DE SION

Alguns dias depois os pais, seguidos de numerosos parentes e ataviados com os vestidos de gala, dirigiram-se para o templo. Joaquim levava nos braos o cordeiro sem mcula que devia oferecer ao Senhor. A espsa conduzia Maria, sua filha. A menina levava nas suas pequeninas mos, envolvida em uma toalha de alvo linho, a flr de farina indispensvel ao sacrifcio. Ouamos o que diz o abade Orsini da apresentao de Maria: Atravessando o pteo exterior, onde qualquer estrangeiro devia deter os passos sob pena de morte, o squito aumentou com bom nmero de empregados do rei, de fariseus, de doutores e damas ilustres que uma disposio oculta da Providncia reunira por acaso nos prticos de Salomo. A comitiva deteve-se no estrado de mrmore do chel3. Ali os fariseus estenderam os seus thephllins4, e cobriram as frontes orgulhosas com um dos panos do seu talet5 de l branca e fina, guarnecido de granadas purpurinas e de cordes cr de jacinto. Os valentes capites de Herodes envolveram-se nos eus ricos mantos presos com broches de ouro, e as filhas de Sion velaram mais os rostos com os vus em respeito aos anjos do santurio. A divina donzela e a brilhante comitiva transpuseram a porta de bronze que fechava aos profanos o sagrado recinto. A porta de Nicanor girou sbre os gonzos para deixar passar a vtima, e ofereceu em perspectiva o tempo de Zorobabel com as suas coras votivas, as suas portas forradas de folhas de ouro, as suas paredes construdas de pedras enormes e polidas, nas quais as mos dos sculos haviam deixado essa cr de folha seca que distingue os antigos edifcios do Oriente. Tudo era grande e venervel na casa de Jeov, e no entanto, apesar da sua magnificncia, quanto decaira do seu esplendor e santidade! Um no sei que de defeituoso e incompleto fazia-se sentir at nas cerimnias mais imponentes. Os seus sacerdotes j no eram os ungidos do Senhor; a Arca santa havia desaparecido. Porm ia brilhar um dia glorioso e o Oriente comeava a iluminar-se.

Em todos os livros da Escritura no se encontram seno trs amas: a de Rebeca, a de Mefibosl e a de Jos. Deve notar-se que Rebeca, a espsa de Isaac, era estrangeira; e os outros princpes 2 A caravana mais numerosa podia abrigar-se em torno dos seus troncos colosais (Lamart, Viagem Palestina) 3 Espao de dez covados entre o ptio dos gentios e das mulheres. 4 Tephilim, pequeno pedao de pergaminho, sbre o qual os fariseus escreviam com tinta feita de prposito versculos da Escritura, colocando-o depois no brao direito ou ao meio da testa. Estava isto muito em voga no tempo de Cristo e era um sinal de distino. (Bernage, Hist. dos Judeus, livro VII, cap. VII 5 Talet, manto quadrado que os judeus levavam para fazerem a orao, e com o qual cobriam o rosto.

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Os sacerdotes e os levitas, reunidos no ltimo degrau do estrado, receberam das mos de Joaquim a vtima da prosperidade stes ministros do Deus vivo no tinha a fronte cingida de louro e de pio verde, como os sacerdotes dos dolos: uma espcie de mitra arrendondada, de um espsso tecido de linho, uma tnica comprida, tambm de linho, branca e pouco farta, apertada por um cinto bordado a ouro, compunha o traje sacerdotal que no se usava seno no templo. Depois de ter deitado sbre o ombro esquerdo as pontas flutuantes do cinto, um dos echaneos1 pegou no cordeio cuja cabea virou para o norte, e enterrando-lhe no pescoo o cutelo sagrado, pronunciou uma breve invocao ao Deus de Jac. O sangue, que caa em um vaso de bronze, ficou reservado para rociar os cornos do altar2. Feito isto, o sacrificador amontou em larga salva de ouro as entranhas, os rins, o fgado, a cauda e as mais partes da vtima, que vrios levitas lhe apresentavam sucessivamente3; depois de as ter lavado com cuidado na sala da fonte, deitou sbre a oferenda incenso e sal; em seguida, subindo com os ps descalos a suave escada que ia ter plataforma do altar dos holocaustos, fez libaes de vinho e sangue, lanou chama brilhante, a qual nenhum spro humano havia acendido4 um pouco de flr de farinha diluda em um copo de ouro com azeite do mais puro, e colocou finalmente a oferenda da paz sbre os ardentes lenhos que tinham saido do bosque de Sichem5 e que os oficiais superiores do templo haviam examinado com cuidado e despojado das suas cascas. O resto da vtima, exceto o peito e a espdua direita que pertenciam aos sacrificadores, foi entregue ao esposo de SantAna, que dividiu pelos seus parentes mais prximos, segundo o costume do seu povo. Os ltimos sons das trombetas sacerdotais ecoaram ao longo dos prticos; e o sacrifcio ardia ainda sbre o altar de bronze quando um ministro do templo desceu ao trio das mulheres para determinar a cerimnia. Ana, seguida de Joaquim, levando sua filha nos braos, com a cabea coberta por um vu, adiantou-se para o ministro do Altssimo e apresentou-lhe a jovem serva do Senhor, pronunciando comovida estas ternas palavras: Venho oferecer-vos o dom que Deus me fez. O sacrificador hebreu aceitou, em nome do Anjo, que fecunda o seio das mes, o depsito precioso, que a gratido lhe confiava, e abenoou os santos esposos, como Heli6, o pontfice, havia abenoado em outro tempo e em circunstncias idnticas o piedoso Elcana e sua ditosa espsa. Em seguida estendeu as mos sbre a assemblia em que se inclinava sua beno pontificial7, exclamou: Oh Israel, que o Eterno dirija, sbre ti a sua luz, e te faa prosperar em tdas as cousas e te conceda paz. Um cntico de gzo e de ao de graas, harmoniosamente acompanhado pelas harpas sacerdotais, terminou a apresentao da Virgem. Tal foi a cerimnia que teve lugar no templo de Sion nos ltimos dias de novembro. Zacarias, prncipe dos sacerdotes de Ain e parente de Joaquim e Ana, foi quem recebeu a meiga Virgem dos braos de sua me, para depositar ao lado das suas companheiras na casa de Deus. Desde aquele dia, as piedosas matronas, que eram responsveis perante os sacerdotes pelo precioso depsito que lhes era confiado, olharam com respeito para a terna adolescente, cuja bondade e formosura as subjugava. O seu retiro no templo no foi uma clausura monstica. Os pais, que desde o momento da apresentao se domiciliaram em Jerusalm, visitavam-na com frequncia. Tdas as tardes, quando os raios do sol comeavam a iluminar com a vermelha luz do crepsculo as cordilheiras do Tabor, e as guias, abandonando os seus negros ninhos do Lbano, pairavam com preguioso vo sbre os brancos e elevados minaretes de Jerusalm, Maria, coberta com pudico vu das virgens, e seguida das suas companheiras, entoava com fervoroso acento junto ao altar, as oraes de Extra; e Deus de Sion indubitvelmente ouvia a sua doce splica, que do p da terra se elevava at o santurio do paraso, expressa neste potico e santo estilo: Oh Deus!, Que vosso nome seja santificado neste mundo que criastes segundo a vossa vontade: fazei reinar o vosso reino: que a redeno floresa e que o Messias aparea sbre a terra8. Isto entoavam ao