mark twain - o príncipe e o mendigo

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O PRNCIPE E O POBREMARK TWAIN

PREFCIO Vou-vos contar uma histria tal como me foi contada por algum que a ouviu do seu pai, cujo pai a tinha ouvido do pai DELE, este ltimo tendo-a ouvido, da mesma maneira, do pai DELE - e assim por diante, mais e mais para trs, este conto foi preservado durante trezentos anos ou mais, ao ser passado de pais para filhos. Pode ser Histria ou pode ser s lenda, uma tradio. Pode ter acontecido ou pode no ter; mas PODIA ser verdade. Nos velhos tempos talvez s os sbios e os cultos acreditassem nele; ou talvez s gostassem dele e o levassem a srio os ignorantes e os simples.

I O NASCIMENTO DO PRNCIPE E DO POBRE

Na muito antiga cidade de Londres, num certo dia de Outono do segundo quartel do sculo XVI, nasceu um rapazinho de uma famlia pobre chamada Canty, que no o desejava. No mesmo dia, nasceu outra criana inglesa, essa de uma famlia rica, Tudor de nome, que o desejava muito. Toda a Inglaterra tambm o queria. O Reino tinha-o esperado tanto, e desejado tanto, e rezado a Deus para que ele nascesse, que agora, que ele tinha realmente chegado, o povo estava quase doido de alegria, a danar nas ruas de felicidade e jbilo, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Todos se permitiram ter um dia de descanso, altos e baixos, ricos e pobres, e fizeram festas, bailaram e cantaram at quase endoidecer; esta festa durou vrios dias. Durante o dia, Londres valia a pena ser vista, com alegres pendes1

desfraldados em todas as varandas e telhados e esplndidos cortejos a desfilar. noite tambm valia a pena, com grandes fogueiras em todas as esquinas e grupos de folies a pular volta delas. No se falava noutra coisa em toda a Inglaterra seno no novo menino, Edward, Prncipe de Gales (1), que dormia envolto em sedas e cetins, inconsciente desta agitao, sem saber que grandes senhores e damas tomavam conta dele e o admiravam - e tambm sem se importar muito com isso. Mas ningum falava do outro beb, Tom Carity, embrulhado nos seus pobres farrapos, a no ser na famlia de pobres que ele tinha acabado de importunar com a sua presena.

II OS PRIMEIROS ANOS DE TOM

Deixemos passar alguns anos. Londres tinha cinco sculos e era uma grande cidade para a poca. Contava com cem mil habitantes - h quem diga que havia o dobro. As ruas eram muito estreitas, tortas e sujas, especialmente na parte onde Tom Canty vivia, no muito longe da ponte de Londres. As casas tinham sido construdas em madeira, com o segundo andar projetado para fora do primeiro e o terceiro com as ombreiras para fora do segundo. Quanto mais altas as casas fossem, mais largas ficavam. Pareciam esqueletos formados por toros de madeira, fortes e cruzados, com argamassa coberta de estuque aplicada entre elas. As travessas eram pintadas de encarnado, azul ou preto, conforme o gosto do dono, o que lhes dava um aspecto muito pitoresco. As janelas faziam-se pequenas, fechadas, com vidros em forma de losango, e abriam para fora com dobradias, como se fossem portas. A casa onde o pai de Tom vivia chamava-se Offal Court, perto de Pudding Lane. Era pequena, degradada e pouco firme, e estava pejada de famlias extremamente pobres. A tribo dos Carity ocupava um quarto no terceiro andar. O pai e a me tinham uma espcie de estrado no canto; mas Tom, a av e as duas irms, Bet e Nan, tinham o cho todo para eles e podiam dormir onde quisessem. Havia ali restos de um ou dois cobertores e alguns molhos de palha velha e suja, mas esses no podiam ser verdadeiramente chamados de camas; de manh, eram arrumados num monte e, noite, podia-se escolher na pilha, para uso prprio. Bet e Nan tinham quinze anos - gmeas. Eram meninas bem dispostas, sujas, vestidas com farrapos, * profundamente ignorantes. A me era como elas. Mas * pai e a av eram um bom par de diabos. Embebedavam-se sempre que podiam; ento zangavamse um com o outro ou com algum que se lhes metesse no caminho; bbedos ou sbrios, estavam sempre a dizer palavres e blasfmias; John Canty era um ladro e a sua me uma mendiga. Transformaram as crianas em mendigos, mas no conseguiram faz-los ladres. No meio da terrvel escumalha que morava na casa, mas sem fazer parte dela, havia um velho padre que o rei tinha expulso de casa com uma penso de alguns fartbings

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C) e que tinha o hbito de se esconder com as crianas e ensinar-lhes o bom caminho. O padre Andrew tambm ensinou a Tom um pouco de latim e a ler e escrever; e teria feito o mesmo com as meninas, mas elas tinham medo que os amigos fizessem troa perante uma instruo to esmerada. Todo o beco de Offal Court era um cortio igual casa dos Carity. Bebedeiras, desordens e discusses eram de Henrique VIII, ao separar-se da Igreja Catlica e criar a Igreja de Inglaterra, expulsou dos templos e conventos os padres que se recusaram a converter-se, dando-lhes uma penso simblica. praxe todas noites e durante quase toda a noite. Ali, as cabeas partidas eram to habituais como a fome. Contudo, o pequeno Tom no se sentia infeliz. Tinha uma vida muito difcil, mas no sabia. Era a mesma vida que tinham os outros midos de Offal Court, portanto ele achava que era normal e confortvel i noite, quando voltava para casa com as mos vazias, j sabia que, primeiro, o pai ia insult-lo e agredi-lo e que, quando tivesse acabado, seria a vez da av fazer-lhe o mesmo, com mais requintes; e que, durante a noite, a sua me esfomeada lhe passaria s escondidas qualquer resto ou casca que tivesse conseguido guardar-lhe, mesmo passando ela fome, embora muitas vezes o marido lhe batesse violentamente por causa disso. Mesmo assim, a vida de Tom corria-lhe bastante bem, especialmente no Vero. Pedia apenas o suficiente para escapar do pior, pois as leis eram severas e os castigos pesadosento, podia ficar bastante tempo a ouvir o padre Andrew contar velhas lendas cheias de encanto e fbulas sobre gigantes e fadas, anes e gnios, castelos encantados e maravilhosos reis e prncipes. A sua cabea acabou por ficar cheia dessas coisas to bonitas e, muitas noites, enquanto estava deitado s escuras na palha pobre e suja, cansado, esfomeado e com o corpo modo, dava asas sua imaginao com imagens deliciosas da vida agradvel de um prncipe mimado, a morar num lindo palcio. Com o tempo, um desejo passou a persegui-lo noite e dia; queria ver, com os seus prprios olhos, um prncipe verdadeiro. Um dia falou nisso aos seus camaradas de Offal Court, mas os outros midos riram-se dele e fizeram troa com tanta crueldade, que desde a Tom resolveu guardar os seus sonhos para si mesmo. Lia muitas vezes os livros velhos do padre e pedia-lhe para lhos explicar. Aos poucos, os sonhos e as leituras provocaram-lhe algumas mudanas. As pessoas com que sonhava eram to finas que comeou a lamentar-se das roupas esfarrapadas e da sujidade, a querer ser mais limpo e estar mais bem arranjado. Continuava a brincar na lama da mesma maneira e no deixava de se divertir; mas, em vez de chapinhar no Tamisa s por gosto, comeou a achar que tambm valia a pena pelos banhos a que dava ensejo. s vezes Tom presenciava algum acontecimento no mastro de Cheapside ou nas feiras; e de vez em quando a criana e os outros habitantes de Londres tinham oportunidade de ver uma parada militar, quando algum famoso que tinha cado em desgraa era levado preso para a Torre por terra ou pelo rio. Num dia de Vero viu queimar, na pira de Smithfield, a pobre Ana Askew e mais trs homens, ouviu o sermo que o bispo fez sobre eles, assunto que no lhe interessava. Realmente, a vida de Tom era variada e no desagradvel de todo.

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Aos poucos, as leituras e os sonhos de Tom sobre a vida principesca tiveram um efeito to forte sobre si prprio que, inconscientemente, comeou a fazer o papel de prncipe. As suas conversas e maneiras tornaram-se curiosamente cerimoniosas e corteses, para grande divertimento dos amigos mais prximos. Mas agora a influncia de Tom sobre esses midos crescia todos os dias e passaram a olh-lo com respeito, como um ser superior. Parecia saber tanto! E conseguia dizer e fazer tantas coisas maravilhosas! E, alm disso, era to profundo e esperto! Os comentrios e as representaes de Tom foram relatados pelos rapazes aos adultos; e esses tambm passaram a conversar sobre Tom Carity e a ach-lo a mais prendada e extraordinria criatura. Os crescidos traziam as suas dvidas a Tom para que lhes desse uma soluo e muitas vezes ficavam surpreendidos com a esperteza e sabedoria das suas decises. Na realidade tinha-se tornado um heri para todos os que o conheciam, menos para a sua prpria famlia, que no lhe dava nenhum valor. Ao fim de algum tempo, Tom organizou uma corte real em privado! Ele era o prncipe; os seus camaradas mais especiais faziam de guardas, chanceleres, palafreneiros, fidalgos, aias e famlia real. Todos os dias o prncipe, de brincadeira, era recebido com os complicados cerimoniais que Tom tirava das suas leituras cavalheirescas; todos os dias os grandes negcios do reino faz-de-conta eram discutidos no conselho real e diariamente sua majestade faz-de-conta lavrava decretos para os imaginrios exrcitos, armadas e vicereinos; terminada a comdia, l ia vestido de farrapos, recolhia algumas moedas na mendigagem, comia as cdeas, aturava os insultos e pancadas do costume e, finalmente, deitava-se num molho da palha pestilenta e voltava aos seus sonhos de v grandeza. Mesmo assim, o seu desejo de ver, pelo menos uma vez, um prncipe verdadeiro de carne e osso continuava a crescer-lhe l dentro, dia a dia, semana a semana, at absorver todos os outros desejos e tornar-se a nica paixo da sua vida. Num dia de janeiro, na habitual volta da mendigagem, Tom andava com desnimo para cima e para baixo, na rea volta de Mincing Lane e Littie East Cheap. Estava descalo e com frio, olhava para as terrveis empadas de porco e outras invenes mortais que estavam nas montras - para ele eram delcias prprias dos anjos; quer dizer, a julgar pelo cheiro, porque nunca tinha tido a boa sorte de possuir e comer uma delas. Caa uma neblina fria; o ambiente era sombrio; estava um dia melanclico. Nessa noite, Tom chegou a casa to molhado, cansado e esfomeado, que era impossvel que o pai e av no se comovessem com o seu aspecto desconsolado - moda deles. Assim, deram-lhe logo uma estalada e mandaram-no para a cama. Durante muito tempo a dor e a fome, a gritaria e pancadaria que iam pelo prdio mantiveram-no acordado; mas, por fim, os seus pensamentos voaram para terras romnticas e distantes e adormeceu na companhia dos prncipes cobertos de outro e jias. E ento, como de costume, sonhou que ele mesmo era um prncipe. Toda a noite privou com grandes senhores e damas, num brilho de luzes, a respirar belos perfumes, a beber ao som de msica deliciosa; e, quando acordou de manh e viu a misria sua volta, o sonho tinha tido o efeito habitual - intensificara mil vezes a sordidez daquele ambiente. Vieram ento a amargura, a tristeza e as lgrimas.

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III O ENCONTRO DE TOM COM O PRNCIPE Tom acordou com fome e, esfomeado, foi vadiar, mas com os pensamentos ocupados nos esplendores imaginrios do sonho dessa noite. Vagueou ao acaso pela cidade, sem reparar para onde que ia. Por aqui e por ali, acabou por dar por si em Temple Bar, o mais longe de casa que j tinha ido, naquela direo. Parou e, por uns momentos, tomou conscincia de onde estava, para cair de novo nos sonhos, enquanto passava para fora das muralhas de Londres. Nessa altura, o Strand j tinha deixado de ser uma estrada rural e considerava-se uma rua, mesmo pouco construda; pois, embora houvesse uma fileira bastante compacta de casas de um dos lados, do outro s se viam algumas grandes construes dispersas, que eram palcios de fidalgos ricos, com amplos e maravilhosos jardins a estender-se at ao rio. Foi ento que Tom descobriu a aldeia de Charing, e sentou-se a descansar na bonita cruz ali erigida por um algum rei esquecido de outros tempos; depois passeou por uma bela e pacata estrada, passou pelo palcio monumental do grande cardeal e foi em direo a um palcio ainda mais imponente e majestoso - Westminster. E Tom ficou a olhar, agradavelmente surpreendido com o vasto volume de alvenaria, as alas que se abriam at ao longe, os carrancudos basties e torres, a imensa entrada de pedra com as suas barras douradas e magnfica fileira de lees de granito e as outras imagens e smbolos da realeza britnica. Como que poderia no esperar ver, numa altura destas, um principe, um prncipe em carne e osso, se os cus o permitissem? De cada lado do porto dourado estava uma esttua viva, quer dizer, uma sentinela empertigada, imponente e imvel, coberta da cabea aos ps com uma armadura de metal brilhante. A uma distncia respeitosa havia muitos camponeses e pessoas da cidade, espera de alguma oportunidade de espreitar a realeza. Magnficas carruagens, com magnficas pessoas dentro e magnficos lacaios fora, chegavam e partiam atravs de outras nobres entradas que se abriam na cerca real. O pobre Tom, todo esfarrapado, aproximou-se mais * ia a passar lenta e timidamente pelas sentinelas, com * corao a bater e a esperana a aumentar, quando de repente viu uma coisa atravs das barras douradas e quase o fez gritar de alegria. L dentro estava um belo menino, de tez bronzeada, cujas roupas eram todas em seda e cetim, com jias a brilhar; cintura trazia uma pequena espada e uma adaga, ambas cobertas de brilhantescalava elegantes borzeguins com saltos vermelhos; e na cabea trazia um garboso chapu carmesim com as plumas presas por uma grande pedra brilhante. Oh! Era um prncipe um verdadeiro e autntico prncipe - sem sombra de dvida; e o desejo do corao do pobre menino estava finalmente satisfeito. A respirao de Tom tornou-se rpida e curta com a excitao e os olhos abriram-se de espanto e alegria. Na sua cabea tudo se apagou perante um nico desejo: aproximarse do prncipe e com-lo com os olhos. Antes que pudesse perceber o que estava a fazer, tinha colado o rosto nas barras do porto. Imediatamente um dos soldados empurrou-o5

com rudeza, atirando-o para cima da multido boquiaberta de simplrios do campo e desocupados da cidade. O soldado disse-lhe: - V se tens maneiras, pedintezinho! A turba gritou e riu-se; mas o jovem prncipe veio at ao porto com o rosto vermelho e os olhos a brilhar de indignao e gritou: - Como vos atreveis a tratar assim o pobre mido? Como vos atreveis a tratar de tal modo o mais pequeno vassalo do rei, meu pai? Abri o porto e deixai-o entrar! Deviam ter visto como a volvel multido tirou logo o chapu! Deviam ter ouvido como eles davam vivas, a gritar Longa vida ao Prncipe de Gales! Os guardas apresentaram armas com as alabardas, abriram o porto e fizeram outra vez continncia quando o Prncipe da Pobreza entrou, com os seus andrajos esvoaantes, para apertar as mos do Prncipe da Abundncia Ilimitada. Edward Tudor disse-lhe: - Pareceis cansado e com fome; v-se que tendes sido maltratado.Vinde comigo. Meia dzia de lacaios aproximaram-se imediatamente para fazer no sei o qu interferir, com certeza. Mas foram afastados por um gesto real e pararam onde estavam, que nem outras tantas esttuas. Edward levou Tom para uma rica sala do palcio, a que chamava de seu gabinete. sua ordem foi trazido um repasto tal que Tom nunca tinha visto, a no ser nos livros. O princpe, com educao e delicadeza principescas, mandou embora os criados, para que o seu humilde hspede no se sentisse embaraado com a sua presena depreciativa; ento, sentou-se ao p de Tom e fez-lhe perguntas enquanto ele comia. - Como te chamas, meu rapaz? - Tom Canty para vos servir, senhor. - Que nome estranho. Onde viveis? - Na cidade, para vos servir, senhor. Offal Court, ao p de Pudding Lane. - Offal Court! Na verdade, esse tambm um nome estranho. Tendes pais? - Pais eu tenho, senhor, e tambm uma av que no aprecio muito, Deus me perdoe se pecado diz-lo, e tambm duas irms gmeas, Nan e Bet. - Ento essa av no boa para vs, pelo que vejo. - Nem boa para mais ningum, para servir vossa senhoria. Tem um mau corao e trabalhou como o Diabo no tempo dela. - Ela maltrata-vos? - H alturas em que no se mexe, quando est a dormir ou tomada pela bebida; mas quando est acordada bate-me bastante. Os olhos do prncipe brilharam de fria e gritou: - O qu? Bate-vos?6

- Oh! Sim. Certamente, para vos servir, senhor. - Bate-vos! E vs, to frgil e pequeno. Escutai-me: antes que chegue a noite ser atirada da Torre. O rei, meu pai... - Na verdade, senhor, esqueceis a sua baixa condio. A Torre s para os grandes. - Isso verdade, certamente. No tinha pensado nisso. Vou cuidar para que tenha outro castigo. E o vosso pai trata-vos bem? - No trata melhor do que a vov Canty, senhor. - Talvez os pais sejam todos iguais. O meu tambm no tem muito bom feitio. Castiga com mo pesada, embora me poupe; mas no me poupa com palavras, verdade seja dita. Como e que a vossa mae vos trata? - Ela boa, senhor, e no me d nem tristeza nem dor de espcie nenhuma. E a Bet e a Na so como ela. - Que idade tm elas? - Quinze, para vos servir, senhor. - Lady Elizabeth, minha irm, tem catorze anos, e Lady Jane Grey, a minha prima da minha idade e bastante bonita e graciosa; mas a minha irm, Lady Mary, com a sua cara zangada... Dizei-me: as vossas irms probem os lacaios de sorrir, sob pena de o pecado destruir as suas almas? - As minhas irms? Pensais, senhor, que elas tm lacaios? Por um momento o pequeno prncipe contemplou o pequeno pobre com toda a seriedade e depois disse: - Ora dizei-me, porque no? Quem as ajuda a despir noite? E quem as veste quando acordam? - Ningum, senhor. Deveriam elas tirar a roupa para dormirem nuas, como os animais? - A roupa! Mas s tm uma? - Ah! Saiba vossa senhoria, o que fariam elas com mais? Na verdade s tm um corpo cada uma. - Que pensamento estranho e fantstico! Perdoai-me, no queria fazer troa. Mas a vossa Nan e a vossa Bet, em breve, tero roupas e lacaios; o meu tesoureiro cuidar disso. No, no me agradeceis; isto no nada. Falastes bem; tendes uma prosa fcil. Estudastes? No sei se estudei ou no, senhor. O bom reverendo que se chama padre Andrew ensinou-me, com a sua bondade, a ler os livros dele. Sabeis latim? - S um pouco, senhor.

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- Pois aprende-o, meu rapaz; s difcil ao princpio. O grego mais difcil; mas no acho que nenhuma delas nem quaisquer outras lnguas sejam dificieis para a Lady Elizabeth e para a minha prima. Devereis ouvir essas damas falarem! Mas contai-me do vosso Offal Court. Tendes l uma vida agradvel? - Na verdade tenho, para vos servir, senhor, exceto quando se tem fome. H espectculos de fantoches e de macacos... Oh, que criaturas to diferentes! E como se vestem! Quando se apresentam gritam e brigam at morrer. muito divertido de ver e custa s um fartbng. Embora seja difcil arranjar o farthing, para vos servir. - Contai-me mais. - Algumas vezes ns, l em Offal Court, lutamos uns contra os outros com paus, maneira dos aprendizes. os olhos do prncipe brilharam. Disse: - Isso eu gostaria de ver! Contai-me mais. - Fazemos corridas, senhor, para ver quem de ns o mais rpido. - Isso eu tambm gostaria! Continuai. - No Vero, senhor, chapinhamos e nadamos nos canais e no rio, e cada um empurra o mais prximo, e atira-lhe gua, e mergulhamos, e gritamos, e corremos, e... - Valeria o reino do meu pai alegrar-me assim pelo menos uma vez! Por favor continuai. - Danamos e cantamos no mastro de Cheapside; brincamos na areia, cobrindo-nos uns aos outros; s vezes fazemos bolos de lama - chafurdamos bastante na lama, senhor, com o perdo de vossa senhoria. - Oh, por favor, no digais mais nada destas maravilhas! Se eu pudesse vestir-me com roupas iguais s vossas, descalar-me e chafurdar na lama, uma vez que fosse, sem ningum para me admoestar ou proibir, mesmo que tivesse de abdicar da coroa! -E se eu me pudesse vestir ao menos uma vez, doce senhor, como vs estais vestido... S uma vez... - Oh, gostareis? Ento assim ser. Tirai os vossos a farrapos e colocai estes esplendores, meu rapaz! uma curta felicidade, mas no ser mais pequena por isso. TIa-emos enquanto pudermos e trocamos outra vez antes que algum nos venha perturbar. Minutos mais tarde, o pequeno Prncipe de Gales estava coberto com os esvoaantes restos da roupa de Tom e o pequeno Prncipe da Pobreza via-se ataviado com a bela plumagem da realeza. os dois puseram-se ao lado um do outro em frente de um grande espelho e, veja-se, um milagre: no parecia que uma troca tinha sido feita! olharam um para o outro e depois para o espelho. Por fim, o prncipe disse surpreendido: - Que achais disto? - Ah, meu bom senhor, no me peais uma resposta. No prprio da minha condio falar tais coisas.

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- Ento falo eu. Vs tendes o mesmo cabelo, os mesmos olhos, a mesma voz e jeito, a mesma forma e estatura, o mesmo rosto e expresso, isso o que vejo. Se estivssemos os dois despidos, ningum poderia dizer qual sois vs e qual o Prncipe de Gales. E agora que estou vestido como vs estveis, parece-me que estou mais prximo de sentir o que sentistes quando o bruto do soldado... Dizei-me, isto na.vossa mo, no um arranho? - Sim, mas uma coisa leve e vossa senhoria sabe que o pobre soldado... - Calai-vos! Foi um ato cruel e vergonhoso! gritou o pequeno prncipe, batendo com os ps descalos. - Se o rei... No vos moveis daqui at eu voltar! uma ordem! Num instante apanhou e guardou um objeto de importncia nacional que estava em cima de uma mesa e, saindo pela porta, correu pelos jardins do palcio em farrapos esvoaantes, com o rosto vermelho e os olhos a brilhar. Assim que chegou ao porto agarrou-se s grades, tentando sacudi-Ias, a gritar: - Abram! Abram o porto! O soldado que tinha maltratado Tom obedeceu imediatamente; e, quando o prncipe passou pelo umbral, a deitar fumo com real fria, o soldado mandou-lhe uma sonora estalada nas orelhas, que o atirou aos piparotes para a estrada, e disse-lhe: -Toma l, filhote de ladro, pelo que me fizestes ouvir de Sua Majestade! A multido agitou-se s gargalhadas. O principe levantou-se da lama e avanou com energia para a sentinela, a gritar: - Sou o Prncipe de Gales, a minha pessoa sagrada; e vs sereis enforcado por me teres posto as mos em cima! O soldado apresentou armas com a alabarda e disse, em tom de brincadeira: - Sado Vossa Graciosa Alteza. - E depois, zangado: - Vai-te embora, seu porco maluco! Nesta altura, a multido rodeou o pobre principezinho e correu com ele pela estrada abaixo, apupando-o e gritando Passagem para sua alteza real! Passagem para o Prncipe de Gales!

IV COMEAM AS PROVAES DO PRNCIPE Depois de horas de correria e perseguio obstinada, o pequeno prncipe foi finalmente abandonado pela turba e deixado sozinho. Enquanto tinha alimentado a fria da multido, ameaando-a com uma pose real e dando ordens que s faziam rir, fora um bom motivo de diverso; mas quando o cansao, finalmente, o obrigara a calar-se, deixou de ter interesse para os seus atormentadores, que foram procura de divertimento noutro stio qualquer. Olhou ento sua volta, mas no conseguia reconhecer o stio. Estava dentro da cidade de Londres - era tudo o que sabia. Continuou a andar a eito e dentro de pouco9

tempo as casas comearam a rarear e os traseuntes a serem menos frequentes. Lavou os ps feridos no pequeno riacho que passava ento onde agora a Rua Farringdon; descansou alguns momentos e depois continuou at chegar a um grande espao que tinha apenas algumas casas dispersas. Havia tambm uma igreja enorme, que ele reconheceu. Por toda a parte se viam andaimes e enxames de trabalhadores, pois estava a ser beneficiada com grandes obras. O principe encorajou-se imediatamente - sentia que os seus problemas estavam a acabar. Disse para si mesmo: a antiga igreja de Grey Friars, que o rei, meu pai, tirou aos monjes para fazer um asilo de crianas pobres e abandonadas, chamando-a agora de Igreja de Cristo (1). Com certeza que serviro com alegria o filho daquele que generosamente fez tanto por eles. Meteu-se logo no meio de um grupo de rapazes que corriam, pulavam, jogavam bola, saltavam ao eixo e se divertiam noutras brincadeiras, com grande algazarra. Estavam todos vestidos de igual, segundo a moda dos operrios e aprendizes naquela poca - ou seja, com uma boina no topo da cabea, chata e preta, do tamanho de um prato, de onde saa um franja at ao meio da testa, com o cabelo cortado a direito a toda a volta; um colarinho de padre volta do pescoo; uma tnica azul justa, que ia pelo menos at aos joelhos; mangas compridas e cinto largo encarnado; meias amarelas, presas por ligas acima dos joelhos; e sapatos baixos, com grandes fivelas de metal. Era uma farda bastante feia. Os rapazes pararam de brincar e juntaram-se volta do prncipe, que lhes disse, com ingnua dignidade: - Meus bons rapazes, dizei ao vosso mestre que Edward, Prncipe de Gales, deseja falar com ele. Estas palavras provocaram grande gritaria e um deles, com modos rudes, disse-lhe: - Sois vs, mendigo, um mensageiro de Sua Graa? Esta piada provocou orgulhosamente e respondeu: mais gargalhadas. o pobre Edward empertigou-se

- Eu sou o prncipe; e de mau tom que vs, que viveis da bondade do meu pai, me trateis assim. Estas palavras foram muito apreciadas, como se provou pelas gargalhadas. O jovem que tinha falado primeiro gritou para os seus camaradas: - E vs, porcos, escravos, pensionistas do pai de sua principesca graa, onde esto as vossas maneiras? Vergai os ossos, todos vs, e prestai homenagem sua nobre atitude e reais farrapos! Com espalhafato e alegria todos se ajoelharam e fingiram que prestavam homenagem sua vtima. O principe deu um pontap ao que estava mais perto e disse-lhe, furioso: - Tomai isto, at que amanh chegue e vos mande fazer uma forca! Ah, mas isto no tinha piada nenhuma - passava do engraado! As gargalhadas pararam imediatamente, substitudas pela fria. Uma dzia deles gritou:10

- Agarrem-no! Para o bebedouro dos cavalos, para o bebedouro dos cavalos! Onde que andam os ces? Aqui Leo! Ho, vem c, Presas! Seguiu-se coisa nunca antes vista em toda a Inglaterra - a sagrada pessoa do herdeiro do trono rudemente esbofeteada por mos plebeias, atirada aos ces e mordida. Quando chegou o entardecer desse dia, o prncipe viu-se bem no meio da rea da cidade densamente construda. O corpo tinha ndoas negras, as mos sangravam e os trapos estavam todos sujos de lama. Continuou a vaguear, cada vez mais desnorteado, to cansado e fraco que mal conseguia arrastar um p atrs do outro. Tinha deixado de fazer perguntas a quem quer que fosse, pois em vez de informaes s lhe traziam insultos. Dizia consigo mesmo: Offal Court, esse o nome; se conseguir encontr-lo antes de gastar todas as foras e cair, ento estou salvo - pois essas pessoas vo levar-me ao palcio e provar que no sou um deles, mas o verdadeiro prncipe, e voltarei ao meu lugar, s vezes lembrava-se do tratamento que tinha recebido dos brutos do hospital de Cristo e dizia para consigo prprio: Quando for rei, eles no vo ter apenas comida e abrigo, mas tambm o ensinamento dos livros; pois uma barriga cheia vale de muito pouco quando a mente e o coraao esto famintos. Lembrar-me-ei sempre disto, para que a lio deste dia no se perca e o meu povo continue a sofrer; pois o conhecimento adoa o coraao e traz boas maneiras e gestos caridosos. As luzes comearam a brilhar, veio a chuva, levantou-se o vento e a noite fez-se dura e tempestuosa. O desabrigado herdeiro do trono de Inglaterra continuava a andar, perdendo-se ainda mais no labirinto de becos esqulidos. De repente, um enorme rufio bbedo agarrou-o pelo pescoo e disse-lhe: - Estou a ver que andas outra vez na rua a esta hora da noite e nem trouxeste um fartbing para casa! Se por tal coisa eu no partir todos os ossos do teu fraco corpo, ento no me chame John Canty! O prncipe soltou-se e disse-lhe, com um tom decidido: - Oh, sois o seu pai de verdade? Permita o doce cu que sejais; ento ide busc-lo e devolver-me ao meu lugar! - O seu pai? No sei o que que queres dizer; mas sei que sou o teu pai e em breve vais ter que te haver comigo... - Oh, parai com isso, que no agento mais. Levai-me ao rei meu pai, que ele vos far mais rico que os vossos maiores sonhos. Acreditai-me, homem, acreditai-me! No faleis mentiras, mas s a verdade! Estendei a vossa mo e salvai-me! Eu sou realmente o Prncipe de Gales! O homem baixou os olhos para ele, estupidificado, e depois abanou a cabea e murmurou: - Est completamente maluco, como qualquer Z ento agarrou-o outra vez pelo pescoo e disse-lhe, com uma gargalhada brutal e um palavro: - Mas maluco ou so, eu e a av Carity vamos descobrir logo onde que te di ou eu no seja um homem a srio!

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Com estas palavras arrastou o principe, que tremia e se debatia inutilmente e meteuse pelo ptio em frente, seguido por um enxame da ral barulhenta e divertida.

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V TOM COMO UM ARISTOCRATA Tom Carity, sozinho no gabinete do prncipe, resolveu aproveitar bem a oportunidade. Ficou a virar-se para c e para l em frente do grande espelho, a admirar a sua elegncia; depois, afastou-se, imitando a atitude bem-educada do principe, ainda a observar o resultado no espelho. A seguir, desembainhou a bonita espada e fez uma vnia, beijou a lmina e empunhou-a frente do peito, como tinha visto fazer a um nobre cavaleiro, cinco ou seis semanas antes, quando saudava o oficial da Torre, ao entregar sua guarda os grandes senhores de Norfolk e Surrey. Depois brincou com a adaga incrustada com pedras que pendia da sua coxa; inspeccionou os extraordinrios ornamentos da sala; experimentou todas as suntuosas cadeiras e pensou como ficaria orgulhoso se a malta de Offal Court pudesse espreitar pela fechadura e ver a sua grandeza. Perguntou-se se eles iriam acreditar no fantstico acontecimento quando lhes contasse, ao voltar para casa, ou se abanariam a cabea a dizer que a sua exaltada imaginao tinha, finalmente, tomado conta da cabea. Devia ter passado meia hora, quando subitamente lhe ocorreu que o principe tinha sado h muito tempo; comeou a sentir-se solitrio; logo a seguir parou de brincar com as coisas bonitas que tinha volta e ficou a ouvir ansiosamente os rudos de fora; foi ficando nervoso, depois agitado e, por fim, preocupado. Imagine-se, se algum viesse e o apanhasse com a roupa do principe, sem que o prncipe ali estivesse para explicar. No poderiam eles enforc-lo imediatamente e s depois inquirir sobre o seu caso? Tinha ouvido dizer que os grandes decidiam depressa sobre os pequenos assuntos. O seu medo cresceu mais e mais; e foi a tremer que abriu devagarinho a porta da antecmara, resolvido a correr e encontrar o prncipe, com a proteo e liberdade que ele lhe podia dar. Seis maravilhosos cavaleiros e dois jovens pajens do mais alto nvel, vestidos como borboletas, levantaram-se num pulo e dobraram-se de alto a baixo sua frente. Tom deu um pulo para trs e fechou a porta . Pensou: Oh, esto a fazer troa de mim! Vo j contar tudo. Oh! Porque que vim aqui para acabar com a minha vida? Andava para um lado e para o outro, cheio de inominveis receios, de ouvido atento e olhos abertos ao menor rudo. Foi ento que a porta se abriu e um pajem vestido de seda lhe disse: - Lady Jane Grey! A porta fechou-se e um menina, com ar doce, ricamente vestida, fez-lhe uma vnia. Mas parou imediatamente e disse-lhe, com voz preocupada: - Estais triste, meu senhor? Tom estava quase sem respirar, mas conseguiu dizer: - Ah, tende piedade, vs! Na verdade no sou fidalgo, mas o pobre Tom Carity de Offal Court, na cidade. Por favor deixai-me falar com o principe e ele, com a sua graa, me devolver os meus trapos e me deixar sair imediatamente. Oh, sede misericordiosa e salvai-me!13

Nesta altura, o rapaz estava de joelhos, a suplicar tanto com os olhos e as mos postas como com as palavras. A menina parecia aterrorizada. Gritou-lhe: - Oh, meu senhor, de joelhos? E perante mim! Depois fugiu de medo; e Tom, atingido pelo desespero, deixou-se cair, murmurando: No h ajuda possvel, no h esperana. Agora eles vo vir para me levar. Enquanto ele jazia dormente de terror, terrveis rumores corriam pelo palcio. O segredo voou de lacaio para lacaio, de senhor para dama, por todos os longos corredores, de andar para andar, de salo em salo: O prncipe enlouqueceu, o prncipe enlouqueceu! Rapidamente, todas as salas e todas as cmaras de mrmore estavam cheias de senhores e damas a sussurrar animadamente e todos os rostos mostravam consternao. Veio ento um magnfico oficial, a andar de grupo em grupo, fazendo uma solene proclamao: - Em nome do rei!Que ningm d ouvidos a este rumor falso e louco, nem o comente, nem o transmita, sob pena de morte. Em nome do rei! Os murmrios acabaram imediatamente, como se os que sussurravam tivessem ficado mudos. Logo a seguir, comeou-se a ouvir em todos os corredores: O principe! Vejam, o prncipe vem a! O pobre Tom vinha a andar devagar por entre os grupos que o saudavam, a tentar responder aos cumprimentos e a olhar humildemente para aqueles ambientes estranhos, com olhos deslumbrados e patticos. Grandes fidalgos andavam ao seu lado, fazendo-o apoiar-se neles e assim acelerando os seus passos. Atrs dele seguiam os mdicos da corte e alguns lacaios. Ento Tom viu-se numa sala ainda mais majestosa e ouviu a porta a fechar-se atrs dele. sua volta estavam aqueles que'o tinham acompanhado. sua frente, a pouca distncia, reclinava-se um homem muito grande e muito gordo, com um rosto largo e balofo e uma expresso severa. A enorme cabea tinha cabelos brancos; e a barba, que ele usava a toda a volta do rosto, como uma moldura, tambm era branca. As roupas eram muito ricas, mas estavam velhas e um pouco esgaadas nalguns stios. Uma das pernas, inchada, apoiava-se numa almofada e estava toda envolvida em ligaduras. Este invlido, de cariz severo, era o temvel Henrique VIII! Comeou a falar - e o seu rosto tornava-se doce enquanto dizia: - Como estais, meu senhor Edward, meu prncipe? Decidistes enganar-me, o bom rei, vosso pai, com uma brincadeira sem graa? O pobre Tom ouviu o comeo deste discurso o melhor que as suas faculdades entorpecidas o permitiam; mas, quando as palavras, a mim, o bom rei, entraram nos seus ouvidos, ficou branco e caiu instantaneamente de joelhos, como se tivesse levado um tiro. Levantando as mos, exclamou: - Vs, o rei? Ento estou verdadeiramente perdido!

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Este discurso pareceu deixar o rei pasmado. Os seus olhos passearam de rosto em rosto, sem se fixarem, e depois detiveram-se, surpreendidos, no rapaz sua frente. Depois disse, num tom de profunda desiluso: - Que pena, tinha achado o boato exagerado; mas receio que no o seja. Deu um pesado suspiro e disse, com voz suave: - Vinde ao vosso pai, criana: vos no estais bem. Tom foi ajudado a levantar-se e aproximou-se de Sua Majestade de Inglaterra, trmulo e humilde. O rei segurou o rosto assustado entre as mos, olhou-o com determinao e amor durante um tempo, como se ali pudesse encontrar algum sinal de razo, e deu-lhe umas palmadas carinhosas. Ento disse-lhe: - No reconheceis o vosso pai, criana? No quebreis assim o meu corao de velho: dizei que me reconheceis. Vs reconheceis-me, no verdade? - Sim; vs sois o rei meu senhor, que Deus conserve! - Verdade, verdade, est muito bem, descansai, parai de tremer assim- no h aqui ningum que vos possa ferir; no h aqui ningum que no vos ame. Estais melhor agora; o mau sonho j passou, no verdade? E agora sabeis quem sois, no verdade? - Suplico a vossa graa que me acrediteis, no falei seno a verdade, meu temido senhor; pois nasci pobre e somente por uma amarga confuso aqui me encontro, embora nada tivesse feito de que possa ser culpado. Sou muito novo para morrer e vs podeis salvar-me com urna s palavra. Oh senhor, falai! - Morrer? No faleis assim, doce principe, vs no ides morrer! Tom caiu de joelhos com um grito de alegria: - Deus recompense a vossa generosidade, oh meu rei, e vos preserve por muito tempo para abenoar esta terra! Ento, levantando-se num pulo, virou o rosto sorridente para os dois fidalgos que estavam mais perto e exclamou: - Vs ouvistes! No vou morrer; foi o que o rei disse! No aconteceu nada, exceto que todos fizeram uma vnia com profundo respeito; mas ningum falou. Tom hesitou, um pouco confundido, e depois virou-se timidamente para o rei e disse-lhe: - Agora posso ir-me? - Ir-vos? Certamente, se o desejais. Mas porque no vos atardeis mais um pouco? Onde podereis vs ir? Tom baixou os olhos e respondeu humildemente: - Por ventura me enganei; mas, julgando-me livre, pensei em procurar outra vez o canil onde nasci e cresci na desgraa, mas onde vivem a minha me e irms, e portanto

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o meu lar; enquanto a estas pompas e esplendores no estou acostumado; oh senhor, por favor, deixai-me ir! Durante algum tempo, o rei ficou silencioso e pensativo e o seu rosto mostrava uma crescente tristeza e incmodo. Depois disse, com um tom de esperana na voz: - Talvez que ele esteja louco s neste aspecto e mantenha o juzo so no que toca a outros assuntos. Deus faa que assim seja! Vamos fazer uma experiencia. Ento fez uma pergunta a Tom em latim e ele respondeu bastante mal na mesma lngua. O rei mostou-se deleitado. Os fidalgos e doutores tambm manifestaram a sua satisfao. O rei disse: - No foi de acordo com a sua educao e possibilidades, mas mostrou que a sua mente est apenas doente e no fatalmente atingida. Que dizeis vs, senhor? O fisico interpelado fez uma grande vnia e respondeu: - minha convico, senhor, que estais certo no que adivinhastes. O rei pareceu satisfeito com este encorajamento e continuou bem disposto: - Agora reparai todos: vamos experiment-lo mais. Fez uma pergunta a Tom, em francs. O mido ficou um momento calado, envergonhado pelos muitos olhos que estavam fixados nele, e falou com acanhamento: - No tenho conhecimentos dessa lngua, preze a vossa majestade. O rei atirou-se para trs na cadeira. Os presentes correram a assisti-lo; mas ele afastou-os e disse: - No me perturbem: no nada seno uma vil tontura. Levantai-me! Assim, chega... Vinde c, criana; isso, descansai a essa pobre cabea, assim perturbada, perto do corao do vosso pai, e descansai. Em breve ficareis bom. - Depois, virou-se para a corte; o seu lado terno desapareceu e fascas malignas comearam a danar nos seus olhos. Disse assim: - Ouvi todos vs! Este meu filho est louco; mas no permanentemente. Excesso de estudo foi o que provocou isto e tambm confinamento um pouco exagerado. Que fique longe dos livros e dos professores, o que deveis cuidar! Satisfazei-o com desportos, distra-o com atvidaes saudveis, para que a sua sade volte. Levantou-se mais alto e continuou com toda a energia: - Ele est louco; mas o meu filho e o herdeiro de Inglaterra; e, louco ou so, todavia reinar! E ouvi o que mais digo e proclamai-o: aquele que falar da sua perturbao estar a agir contra a paz e a ordem deste reino e ir para a masmorra! ... Dai-me de beber; estou a queimar por dentro; esta dor enfraqueceu as minhas foras... Aqui, levai a taa... Segurai-me... Aqui, assim est bem. Ele est louco? Estivesse ele mil vezes mais louco, contudo o Prncipe de Gales e sou eu, o rei, quem o afirma. Amanh mesmo ser sagrado na sua dignidade principesca, como deve ser, segundo o antigo costume. Dai imediatamente as ordens convenientes, meu Lord Hertford (1).

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Um dos nobres ajoelhou-se em frente da cadeira real e disse: - Sua majestade o rei sabe que o Grande Marechal Hereditrio de Inglaterra jaz detido na Torre. No seria prprio de um preso... - Chega! No insulteis meus ouvidos com esse odiado nome. Dever esse homem viver para sempre? Deverei ser contrariado na minha vontade? Dever o prncipe deixar de ser sagrado porque at agora o reino no tem um marechal livre da mancha da traio, que o possa investir nas suas honras? Avisai o Parlamento para que me traga a condenao de NorfoIk antes que o Sol nasa de novo, ou ento tero que responder pela ofensa! Lord Herteford disse: - A vontade do rei lei - e, levantando-se, voltou para o seu lugar. Lentamente a ira foi-se afastando do rosto do rei, que disse: - Beijai-me, meu principe. Aqui... que receais? No sou o vosso pai bem-amado? - Sois para mim melhor do que mereo, poderoso e gracioso senhor; isso eu sei, na verdade. Mas, mas... Entristece-me pensar naquele que deve morrer e... - Ah, isso bem vosso, bem vosso! Vejo que o corao ainda o mesmo, mesmo que a mente tenha sofrido dano, pois sempre tivestes um gentil esprito. Mas este duque est entre vs e as vossas honras: colocarei outro no seu lugar. Descansai, meu prncipe; no preocupeis a vossa cabea com este assunto. - Mas no verdade que assim apresso o seu fim, meu soberano? Quanto tempo poderia ele viver, se no fosse por mim? - No penseis nele, meu prncipe; no o merece. Beijai-me outra vez e ide para os vossos afazeres e divertimentos; pois a minha doena perturba-me. Estou cansado e devo repousar. Ide com o vosso tio Hertford e a vossa gente, mas voltai quando o meu corpo estiver restaurado. Tom, com o corao pesado, foi levado da sua presena e sentia-se mais e mais preocupado, enquanto, passava por entre as faiscantes filas de cortesos que o saudavam; pois percebia que agora estava prisioneiro e poderia ficar para sempre fechado naquela gaiola dourada, um prncipe triste e sem amigos, a menos que Deus na Sua misericrdia tivesse pena dele e o libertasse. E, virasse-se para onde se virasse, aparecia-lhe a flutuar no ar uma cabea cortada com o rosto do grande duque de Norfolk, que ele ainda se lembrava da Torre, com os olhos reprovadores fixados nele. Os seus antigos sonhos tinham sido to saborosos; mas a sua realidade era to aterradora!

VI TOM RECEBE INSTRUOES17

Tom foi levado para o salo de uns aposentos senhoriais e obrigado a sentar-se coisa que detestou, pois ficou rodeado de damas e cavalheiros mais velhos de alta estirpe. Pediu-lhes que se sentassem e eles limitavam-se fazer vnias e murmurar agradecimentos, mas ficavam de p. Teria insistido mais, mas o seu tio conde de Hertford segredou-lhe ao ouvido: - Por favor deixai de insistir, meu senhor; no prprio que eles se sentem na vossa presena. Foi anunciado o Lord Saint John que, depois de fazer uma vnia a Tom, disse-lhe: - Venho a mandado do rei, para tratar de um assunto que requer privacidade. Far vossa alteza real o favor de dispensar todos os que vos acompanham, com excepo do meu senhor, o conde de Hertford? Ao reparar que Tom parecia no fazer idia de como agir, Hertford segredou-lhe para assinalar com a mo e no se incomodar a falar, a no ser que lhe apetecesse. Quando os cavalheiros se retiraram, Lord Saint John disse-lhe: - Sua majestade deu ordens de que, devido a importantes razes de Estado, sua graa, o prncipe, deve esconder a sua doena de todos os modos que lhe seja possvel, at que ela passe e ele volte a ser como era antes. Dever com toda a vontade jamais negar a quem quer que seja que o verdadeiro prncipe e o herdeiro da grandeza de Inglaterra; deve manter a sua dignidade principesca e deve receber a reverncia e o respeito que lhe pertencem, sem palavras ou sinais de protesto; que deixe de falar a qualquer dos plebeus que a doena trouxe para a sua imaginao perturbada, estragando-lhe o julgamento; deve lutar com insistncia para trazer novamente -sua memria aqueles rostos que tem por dever conhecer; e quando no conseguir lembrar-se deve ficar quieto, no deixando mostrar que se esqueceu nem pela aparncia, nem pela surpresa, nem por nenhum outro sinal; quando das cerimnias oficiais, sempre que qualquer assunto o deixe em dvida sobre o que deveria dizer ou deveria fazer, no deve mostrar nem ignorncia nem nervosismo perante os curiosos que o olham, mas deve antes pedir conselho sobre esse assunto ao Lord Hertford, ou minha humilde pessoa, que terrios ordens do rei para estar ao seu servio e sempre perto dele, at que esta ordem seja revogada. Ao dizer tal, sua majestade o rei, que mandou saudaes a sua alteza real, reza a Deus para que o sare rapidamente na Sua misericrdia e o tenha agora e sempre Sua sagrada guarda. O Lord SaintJohn fez uma reverncia e ficou espera. Tom respondeu-lhe, resignadamente: - O rei falou. O rei ser obedecido. Lord Hertford disse-lhe: - No que respeita s ordens de sua majestade sobre livros e assuntos igualmente srios, decerto agradar a vossa alteza que possa aliviar o vosso tempo com divertimentos18

leves, nao acontea que fiqueis cansado com o banquete e possais sofrer dano por causa disso. O rosto de Tom mostrou curiosidade e surpresa; e corou quando viu a pena com que o olhava o Lord Saint John. Sua senhoria disse-lhe: - A vossa memria continua a enganar-vos e vs mostrastes surpresa; mas no deixeis que tal vos perturbe, pois esta uma perturbao que se ir quando a vossa doena passar. O meu Lord Hertford falava no banquete da cidade que sua majestade, o rei, prometeu que vossa alteza assistiria, j faz dois meses. Lembrai-vos agora? - Lamento confessar que realmente me tinha esquecido - disse Tom, com voz hesitante; e corou novamente. Nessa altura foram anunciadas Lady Elizabeth e Lady Jane Grey. Os dois fidalgos trocaram olhares significativos e Hertford foi rapidamente at porta. Quando as duas meninas chegaram, disse-lhes em voz baixa: - Rogo-vos, senhoras, para fazerdes meno de no reparar nos seus humores, nem para mostrardes surpresa quando a sua memria falhar; decerto ficareis preocupadas ao ver como ele tropea no mais pequeno pormenor. Entretanto, Lord Saint John dizia ao ouvido de Tom: - Por favor, meu senhor, tende sempre na mente os desejos de sua Majestade. Lembrai-vos do que puderdes; fazei meno que vos lembrais de todo o resto. No deixeis que elas percebam que mudaste muito na vossa maneira, pois sabeis como vos querem com ternura as vossas amiguinhas e como ficariam perturbadas. Desejais, senhor, que eu permanea? E o vosso tio? Tom mostrou concordncia com um gesto e uma palavra murmurada, pois j estava a aprender e no seu corao puro tinha resolvido comportar-se o melhor que pudesse, de acordo com as ordens do rei. Apesar de todas as precaues, a conversa entre as crianas, s vezes, tornou-se um pouco embaraosa. Mais do que uma vez, para dizer a verdade, Tom esteve quase a desistir e a confessar-se incompetente para o seu tremendo papel; mas o tato da princesa Elizabeth salvou-o, ou uma palavra de um dos dois atentos cavaleiros, dita aparentemente por acaso, teve o mesmo feliz resultado. Uma vez, a pequena Lady Jane virou-se para Tom e surpreendeu-o com esta pergunta: -j hoje visitastes sua majestade a rainha, meu senhor? Tom hesitou, mostrou-se preocupado e estava quase a gaguejar alguma coisa ao acaso, quando o Lord SaintJohn tomou a palavra e respondeu por ele, com a gentileza natural de um corteso habituado a resolver sempre as mais subtis dificuldades:

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- j visitou de fato, senhora, e a rainha muito o animou no que respeita situao de sua majestade; no verdade, vossa alteza? Tom murmurou qualquer coisa que ficou como uma concordncia, mas sentiu que estava a cair num campo perigoso. Algum tempo depois mencionou-se que ele no deveria estudar mais nesta altura, ao que a pequena dama exclamou: - Mas que pena, que pena! Estveis a progredir to bem! Mas esperai com pacincia; no ser por muito tempo. Sereis agraciado com sabedoria igual do vosso pai e fareis a vossa lngua dominar tantos idiomas como ele, meu bom prncipe! - O meu pai! - gritou Tom, descaindo-se por um momento. - Digo-vos que no consegue falar nem o seu prprio idioma a no ser de um modo que s sunos que chafurdam no chiqueiro o conseguem entender; e quanto a conhecimentos de qualquer espcie que seja... Olhou para cima e deu com o severo aviso que brilhava nos olhos de Lord Saint John. Parou, corou e, depois, continuou, em voz baixa e triste: - Ah, a minha doena apanhou-me de novo e a minha mente perdeu-se! No queria ofender sua graa, o rei. - Ns sabemo-lo, senhor - disse a princesa Elizabeth, segurando a mo do irmo entre as suas. - No vos preocupeis com isso. No vossa culpa, mas da vossa perturbao. - Dais-me um gentil conforto, doce senhora - disse Tom, agradecido -, e o meu corao pede-me que vos agradea pelo vosso esforo, se posso ser to franco. A graciosa LadyJane disse a Tom uma frase em grego. A perspiccia de Lady Elizabeth imediatamente viu, na serena impassividade do rosto de Tom, que este no tinha percebido nada e fez um comentrio sobre ele em excelente grego, para depois desviar a conversa para outro assunto. O tempo passava-se agradavelmente, sem grandes problemas, e Tom estava cada vez mais e mais vontade, vendo que todos estavam to enternecidamente empenhados em ajud-lo e em no reparar nos seus erros. Quando veio conversa que as jovens damas o deviam acompanhar, nessa tarde, ao banquete do alcaide, o seu corao deu um salto de prazer e alvio, pois sentia que no devia ficar sem amigos entre uma multido de estranhos, enquanto uma hora atrs a idia de elas tambm irem lhe teria provocado um insustentvel terror. os dois fidalgos, ou seja, os anjos da guarda de Tom, tinham passado a entrevista com muito menos tranqilidade que os demais participantes. Parecia-lhes que estavam a conduzir um enorme navio por um perigoso canal. Estavam permanentemente atentos e percebiam que a sua misso no era uma brincadeira de crianas. Assim, quando a visita

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das damas estava terminada e Lord Guilford DudIey foi anunciado, no s acharam que a sua carga j era excessiva, como tambm que era melhor retroceder com o navio antes que comeasse nova e perigosa viajem. Portanto, respeitosamente aconselharam Tom a dar uma desculpa, coisa que muito o alegrou, enquanto se notava uma sombra de descontentamento no rosto de Lady Jane Grey, ao ouvir que se negava a entrada do belo rapaz. Seguiu-se uma pausa, uma espcie de compasso de espera, que Tom no conseguia compreender. Deu uma olhadela para Lord Hertford, que lhe fez um sinal que ele tambm no conseguiu perceber. A rpida Elizabeth veio em seu auxlio com a habitual graa. Fez uma reverncia e disse: - Temos autorizao de sua graa, o prncipe, meu irmo, para nos irmos? Tom disse-lhes: - Na verdade vossas senhorias podem ter de mim o que desejaram, bastando pedir; contudo, preferia dar-lhes qualquer outra coisa dentro dos meus pobres poderes, do que autorizao para retirar a luz e a bno que a vossa presena aqui. Ide-vos ento e que Deus esteja convosco! - Depois riu-se consigo prprio e pensou: No foi em vo que s lidei com prncipes nas minhas leituras e que ensinei minha lngua alguns dos truques da sua prendada e graciosa maneira de falar! Quando as ilustres meninas se tinham ido embora, Tom virou-se com determinao para os seus guardies e disse-lhes: - Permitam vossas senhorias que eu possa ir para algum canto e descansar! Lord Hertford respondeu-lhe: - Sois vs que mandais e somos ns que obedecemos, para vos servir. De fato, necessrio que descanseis, uma vez que ides viajar para a cidade dentro em breve. Tocou numa sineta e um pajem apareceu, recebendo ordens para convocar a presena de Sir William Herbert. Este cavaleiro veio imediatamente e levou Tom para uma sala interior. O seu gesto, quando entrou, foi para pegar uma taa com gua; mas um lacaio vestido de seda e veludo apanhou-a primeiro, ajoelhou num joelho e ofereceu-a numa salva de ouro. A seguir, o cansado prisioneiro sentou-se e comeou a tirar os borzeguins, pedindo timidamente com os olhos que o deixassem sozinho, mas outro perturbador vestido de seda e veludo ajoelhou-se e fez-lhe o trabalho. Tom tentou mais uma ou duas vezes fazer as coisas sozinho, mas sendo sempre impedido no mesmo momento, finalmente desistiu, com um gesto de resignao, e murmurou: Admira-me que no tenham tambm que respirar por mim! De chinelos e envolvido num suntuoso robe, deitou-se finalmente para descansar, mas no para dormir, pois a sua cabea estava demasiadamente cheia de

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pensamentos e o quarto apinhado de pessoas. No podia afastar os primeiros, portanto deixou-os ficar; e no sabia como dispensar os segundos, logo esses tambm ficaram, para sua grande pena e pena deles. A partida de Tom tinha deixado sozinhos os seus dois guardies. Conversaram algum tempo, andando de um lado para o outro a sacudir as cabeas, e ento Lord Saint John disse: - Sem rodeios, o que que vs achais? - Sem rodeios ento, penso o seguinte: o rei est perto do seu fim e o meu sobrinho est louco, louco subir ao trono e louco continuar. Deus proteja a Inglaterra, pois vai precisar! - De fato, assim parece ... Mas, no estais apreensivo quanto... no que respeita a ... Lord Saint John hesitava e finalmente parou de falar. Era evidente que sentia que estava a pisar um terreno delicado. Lord Hertf.ord parou sua frente, olhou-o com olhos francos e diretos, e disse-lhe: - Falai; no h ningum a ouvir a no ser eu. Apreensivo sobre o qu? - Receio muito dizer o que vai na minha cabea, sendo vs de um sangue to prximo dele, meu senhor. Mas, implorando perdo se estou a ofender, no parece to estranho que a loucura tenha mudado de tal modo a sua postura e atitude? No que a postura e a fala no sejam ainda as de um prncipe; mas que tenham mudado apenas num ou outro detalhe sem importncia, em relao ao que ele era antes. No parece estranho que a loucura tenha eliminado da sua memria as feies do prprio pai; os hbitos e regras que so o seu dever desde que se conhece; e que, deixando-o com o latim, o tenham feito esquecer o grego e o francs? Aterrorizou-me ouvi-lo dizer que no o principe e, portanto... - Por favor, meu senhor, estais a pronunciar uma traio! Esquecestes as ordens do rei? Lembrai-vos que, s por vos ouvir, sou cmplice do vosso crime. Sirjohn empalideceu e apressou-se a dizer: - Errei, confesso-o. No me denuncieis, concedei-me essa graa pela vossa cortesia, e no pensarei nem falarei mais em tal coisa. Sede clemente comigo, ou estarei arruinado. - Estou satisfeito, meu senhor. Se no ofenderdes novamente, aqui ou aos ouvidos de outros, ser como se no tivsseis falado. Mas no precisais de ficar apreensivo. Ele o filho da minha irm; no so a sua voz, o rosto e o corpo meus conhecidos desde o bero? A loucura pode provocar todos os pequenos pormenores conflituantes que vistes nele e muitos mais. Este o prprio prncipe que eu conheo to bem e que em breve ser o vosso rei; pode ser vantajoso para vs lembrar-vos de tal coisa e preocupar-vos mais com isso do que com o outro assunto.22

Depois de mais alguma conversa Lord Hertfrd dispensou o seu colega guardio e sentou-se para ficar de vigia sozinho. Depressa caiu numa profunda meditao. Evidentemente que quanto mais pensava mais preocupado ficava. Aos poucos ps-se a andar de um lado para o outro e a murmurar consigo prprio. Ora, tem que ser o prncipe! Algum, em todo o reino, diria que pode haver dois to maravilhosamente iguais, no sendo do mesmo sangue e condio? E, mesmo que isso fosse verdade, seria um milagre muito estranho que o destino colocasse um no lugar do outro. No, isso pura loucura! A seguir disse-se: Se ele fosse um impostor e se intitulasse prncipe, isso seria natural; seria razovel. Agora, j alguma vez existiu algum impostor que, sendo chamado de prncipe pelo rei, pela corte e por todos, tenha negado essa dignidade e se declarado contra a sua confirmao? No! Pela alma de santo Swithin, no! Este o verdadeiro prncipe, que enlouqueceu!

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VII O PRIMEIRO JANTAR REAL DE TOM A certa altura, depois da 1 hora da tarde, Tom passou resignadamente pela provao de ser vestido para jantar. Viu-se ataviado com o mesmo luxo de antes, mas com todas as peas diferentes, desde o barrete at s meias. A seguir, foi levado com muita cerimnia para uma sala espaosa e ornamentada, onde j estava posta mesa para um. O mobilirio era todo de ouro macio, embelezado com desenhos que o tornavam de um valor incalculvel, uma vez que era obra de Benvenuto. A sala estava quase cheia de nobres servidores. Um capelo fez as oraes e Tom preparava-se para comear, pois a fome sempre fizera parte da sua natureza, mas foi interrompido pelo nosso senhor o conde de Berkeley, que prendeu um guardanapo volta do seu pescoo; pois o grande lugar de colocador de guardanapo do Prncipe de Gales era um direito hereditrio da sua nobre famlia. O escano de Tom estava presente e antecipou-se a todas as suas tentativas de se servir do vinho. Tambm l estava o provador de Sua Alteza o Prncipe de Gales, pronto para ser mandado provar qualquer prato suspeito e, assim, correr ele o risco de ser envenenado. O nosso senhor D'Arcy, primeiro-camareiro real, estava l, para fazer sabe Deus o qu; mas estava, o que o importante. O senhor mordomo-chefe tambm estava e ficava atrs da cadeira de Tom, acompanhando as solenidades conduzidas pelo senhor grande-camareiro e pelo senhor cozinheiro-chefe, que ficava ao p dele. Alm destes, Tom tinha mais trezentos e oitenta e quatro servidores; mas, evidentemente, no estavam todos na sala, nem sequer um quarto deles, nem Tom sequer sabia da sua existncia. Todos os que estavam presentes tinham sido bem treinados durante a hora precedente para terem em mente que o prncipe estava temporariamente ensandecido e para terem cuidado em no mostrar surpresa perante as suas excentricidades. Essas excentricidades depressa lhes foram exibidas; mas a tristeza e a pena que sentiam no afetava o seu sangue-frio. Era com profundos cuidados que viam o seu querido prncipe to alterado. O pobre Tom comeu principalmente com os dedos; mas ningum se riu, nem pareceu ter reparado nisso. Inspecionou o guardanapo com curiosidade e grande interesse, pois o tecido era muito belo e fino, e depois disse com simplicidade: - Por favor levai-o, no v a minha falta de jeito suj-lo. O colocador de guardanapos hereditrio levou-o com uma atitude reverente, sem qualquer tipo de protesto. Tom examinou os nabos e a alface com grande interesse e perguntou o que eram e se se deviam comer; pois s recentemente que essas coisas eram plantadas em Inglaterra, em vez de serem importadas da Holanda como artigos de luxo. Esta pergunta foi

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respondida com grande respeito e sem que se manifestasse alguma surpresa. Quando acabou o doce, encheu os bolsos com nozes; mas ningum parecia ter reparado ou ficado perturbado com isso. Mas logo depois foi ele prprio que se sentiu perturbado e embaraado, pois fora a nica coisa que o tinham deixado fazer com as suas prprias mos durante toda a refeio, e no tinha dvidas de que era imprprio e pouco principesco. Nesse momento, os msculos do nariz comearam a contrair-se e a ponta desse rgo levantou-se e enrugou-se. Isto continuou e Tom comeou a mostrar-se cada vez mais incomodado. Olhou a pedir ajuda para cada um dos fidalgos sua volta e lgrimas vieramlhe aos olhos. Eles acorreram com a preocupao estampada no rosto e pediram para saber o que que o preocupava. Tom disse-lhes, com angstia genuna: - Imploro a vossa indulgncia: sinto uma comicho cruel no nariz. Qual o hbito e a norma para esta emergncia? Por favor, apressai-vos, pois no vou agentar por muito tempo. Ningum se riu; todos ficaram amargamente perplexos e olhavam uns para os outros com profunda preocupao, procura de um conselho. Mas, cuidado, estava aqui um beco sem sada e no havia nada na Histria de Inglaterra que dissesse como sair dele. O mestre de cerimnias no estava presente; no havia ningum que se sentisse seguro para se aventurar nesta rea nova, ou se arriscasse a tentar resolver o problema. Horror! No existia um coador hereditrio. Entretanto, as lgrimas corriam pelas bochechas de Tom. O seu nariz contorcido pedia alvio ainda com mais urgncia. Por fim, a natureza quebrou as barreiras da etiqueta: Tom rezou por perdo, caso estivesse a fazer alguma coisa errada, e aliviou os preocupados coraes da sua corte ao coar ele mesmo o nariz. Acabada a refeio, um fidalgo segurou sua frente um prato de ouro, largo e pouco fundo, com gua de rosas, para que limpasse a sua boca e dedos; e o nosso senhor, o colocador de guardanapos hereditrio, ficou ao lado com uma toalha, para que ele se secasse depois. Confuso, Tom olhou para o prato por um instante, depois levou-o aos lbios e tomou um gole com toda a seriedade. Voltou-se ento para o fidalgo que o servia e disse-lhe: - No, no gostei nada, meu senhor; tem um bom aroma mas falta-lhe sabor. Esta nova excentricidade da mente arruinada do prncipe fez doer todos os coraes sua volta; mas a triste viso no levou ningum a manifestar-se. O disparate inconsciente que Tom fez a seguir consistiu em levantar-se da mesa na altura em que o capelo tinha tomado o seu lugar atrs da cadeira, com as mos levantadas e os olhos fechados virados para cima, e comeava a rezar e dar a bno. E ainda ningum parecia ter notado que o prncipe tinha feito algo de inusitado. A seu pedido, o nosso pequeno amigo foi ento levado para a sua sala privada e l deixado sozinho entre as suas coisas. Penduradas em cima dos livros, espalhados pelos

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lambris de carvalho, estavam vrias peas de uma armadura de metal brilhante, trabalhado com belos desenhos gravados a ouro. Esta panplia marcial pertencia ao verdadeiro prncipe - um presente de Madame Parr, a rainha. Tom colocou as perneiras, as luvas, o elmo com plumas e ainda outras peas que eram possveis prender sem assistncia. Durante algum tempo pensou em pedir ajuda e acabar de se armar, mas veio-lhe memria as nozes que tinha trazido do jantar e a alegria que seria com-las sem ningum a olhar para ele e sem grandes hereditrios para o aborrecer com servios indesejados; portanto, colocou as belas peas nos seus diversos stios e logo estava a partir as nozes e a sentir-se quase que naturalmente feliz, pela primeira vez desde que Deus o tinha castigado fazendo-o prncipe. Quando as nozes acabaram, encontrou um livro sobre etiqueta na corte inglesa, entre os muitos volumes convidativos que estavam num armrio. Recostou-se num suntuoso sof e comeou a ler com sincera boa vontade. Por agora deixemo-lo nesta situao.

VIII A QUESTO DO SELO volta das 5 horas, Henrique VIII acordou de uma sesta que no o tinha descansado e murmurou para si prprio: Sonhos pesados, sonhos preocupantes! O meu fim aproximase, o que dizem estes avisos e o meu fraco pulso assim o confirma. Num instante brilhou uma chama de maldade nos seus olhos e murmurou: Todavia no morrerei sem que ele se v antes. Os seus servidores viram que ele estava acordado e um deles perguntou a sua graa se queria receber o Lord Chanceler, que estava espera l fora. - Admiti-o, admiti-o - disse o rei com deciso. O Lord Chanceler entrou e ajoelhou ao lado da cama do rei, enquanto lhe dizia: - J dei as ordens e, de acordo com a vontade do rei, os pares do reino, com as suas tnicas, esto na Cmara onde, tendo confirmado a sorte do duque de Norfolk, humildemente esperam as decises de vossa majestade sobre o assunto. O rosto do rei iluminou-se com uma grande alegria. Disse: - Levantem-me! Irei pessoalmente perante o Parlamento e com a minha prpria mo porei o selo na ordem que me livra do... A sua voz falhou; uma palidez acinzentada lavou a cor do seu rosto; os lacaios ajudaram-no a voltar para as almofadas e apressaram-se a dar-lhe os tnicos. Ento disse, num tom triste:

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- Meu Deus, como ansiei por esta doce hora! Demorasse mais a chegar e seria roubado desta oportunidade to desejada. Mas apressai-vos, apressai-vos! Deixai que outros faam este alegre trabalho que me negado. Coloco o meu grande selo nas mos da comisso; escolhei vs os lordes que a devem formar e que se metam ao trabalho. Apressai-vos, homem! Antes que o Sol se levante e se ponha de novo, trazei-me essa cabea para que a possa ver! - Assim seja, conforme a vontade do rei. Quer vossa majestade dar ordens para que o selo me seja entregue, para que possa prosseguir com este assunto? - O Selo! Mas quem, seno vs, guarda esse selo? - Vossa majestade retirou o selo da minha posse h dois dias, dizendo que no deveria executar a sua funo at que a vossa real mo o usasse para a ordem contra o duque de Norfo1k. - Assim o disse, na verdade; estou-me a lembrar... O que que eu fiz com ele?... Estou muito fraco... Amide nestes dias a memria me tem trado... estranho, estranho... O rei caiu num murmrio sem sentido, sacudindo fracamente a sua cabea branca de tempos a tempos, enquanto tentava lembrar-se o que que tinha feito com o selo. Finalmente, Lord Hertford ousou ajoelhar-se e dar a informao: - Senhor, se a tal posso atrever-me, vrias pessoas aqui, eu inclusive, nos lembramos de que colocastes o grande selo nas mos de sua alteza o Prncipe de Gales, para que o guardasse at ao dia... - verdade, inteiramente verdade! - interrompeu o rei. - Ide busc-lo! Ide, que o tempo voa! Lord Hertford correu para os aposentos de Tom, mas em breve voltava, preocupado e de mos vazias. Disse o seguinte: - Entristece-me, senhor, trazer-vos to ms e indesejadas novas; mas a vontade de Deus que o mal do prncipe ainda subsista e que ele no consiga lembrar-se de que recebeu o selo. Assim, vim imediatamente contar-vos, pensando que seria grande perda de tempo e de pouca utilidade que se procedesse a uma busca na grande quantidade de quartos e salas que pertencem a sua alteza... Aqui, um gemido do rei interrompeu o fidalgo. Depois de uma pausa, sua majestade disse, com um tom de voz profundamente triste: - No o importuneis mais, pobre criana. A mo de Deus caiu pesadamente sobre ele e o meu corao di de pena; lamento que no possa carregar a sua provao nos meus ombros, j pesados com tantos problemas, e assim dar-lhe descanso.

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Fechou os olhos, caiu num murmrio e depois ficou calado. Algum tempo depois abriu outra vez os olhos e passeou-os distraidamente pela sala, at se fixarem no Lord Chanceler, que ainda ali estava ajoelhado. Instantaneamente o seu rosto enrubesceu de fria: - O qu, ainda a estais! Pela glria de Deus, se no tratardes imediatamente deste assunto do traidor, amanh a vossa mitra estar de frias, por falta de uma cabea para decorar! Tremendo, o Chanceler respondeu: - Por Deus, majestade, peo a vossa compaixo! Mas estava espera do selo. - Homem, perdestes o juzo? O Selo pequeno, que antigamente gostava de levar comigo para o estrangeiro est no meu tesouro. E uma vez que o grande selo desapareceu, no ser esse suficiente? Perdestes o juzo? Ide-vos! E cuidai de no voltar sem trazer a sua cabea! O pobre Chanceler no demorou muito a afastar-se desta perigosa proximidade; nem a comisso levou tempo algum a sancionar a deciso do escravizado Parlamento, indicando o dia seguinte para a decapitao do primeiro nobre de Inglaterra, o desgraado duque de Norfolk.

IX O CORTEJO NO RIO

s 9 da noite toda a enorme margem do rio em frente ao palcio brilhava com luzes. O prprio rio, at onde os olhos podiam alcanar em direo cidade, estava de tal maneira coberto com barcos de pescadores e barcaas de luxo, todas emolduradas com lanternas coloridas, a balanarem-se suavemente na gua, que parecia um jardim brilhante e interminvel, as flores a agitarem-se na brisa suave do Vero. A grande plataforma com as escadas de pedra que desciam at gua, suficientemente grande para conter o exrcito de um principado alemo, valia a pena ser vista, com fileiras de alabardeiros reais de armadura polida e com os grupos de servidores magnificamente vestidos a andar para cima e para baixo e de um lado para o outro, na pressa das preparaes. Por fim, foi dada uma ordem e, imediatamente, todas as criaturas desapareceram das escadas. Agora, o ar estava pesado com o clima de suspense e expectativa. At onde se podia alcanar via-se a mirade de pessoas nos barcos levantar-se e proteger os olhos do brilho das lanternas e tochas com as mos, fixando-os no palcio. Uma fila de quarenta ou cinqenta barcas aproximou-se dos degraus. Estavam todas ricamente engalanadas e as suas grandes proas e popas mostravam belos entalhes.28

Algumas estavam decoradas com pendes e fitas; outras com brocados e tapearias brasonadas; outras ainda com bandeiras de seda que tinham cosidas inmeras campainhas de prata, as quais se agitavam em cascatas de alegres sons quando a brisa lhes batia. Cada barcaa era puxada por uma chalupa. Alm dos remadores, estas chalupas levavam um certo nmero de soldados, com capacetes e peitorais de metal brilhante, e ainda um grupo de msicos. A guarda-avanada da to esperada procisso, um corpo de alabardeiros, aparecia agora no porto principal. Estavam vestidos com uma malha justa s riscas pretas e castanhas, tinham barretes de veludo decorados dos lados com rosas de prata e dois medalhes de tecido escarlate e azul bordados a ouro com o braso do prncipe. As varas das alabardas estavam cobertas de veludo escarlate preso com ganchos dourados e decorado com berloques de ouro. Formavam duas longas linhas, que fechavam os lados do cortejo, que iam da entrada do palcio at beira da gua. Foi ento desdobrada no espao aberto uma passadeira s riscas com as cores ouro e escarlate caractersticas dos atavios principescos. Isto terminado, soou l de dentro um floreado de trompas. Um bonito preldio subiu ao ar, vindo dos msicos nas chalupas; e dois servidores com bastes brancos saram do porto, a caminhar com passos lentos e solenes. Eram seguidos por um oficial que transportava o basto da cidade, depois do qual veio outro com a espada da cidade; vinham ento os sargentos da guarda municipal com o equipamento completo e com medalhes nas mangas; depois o gro-mestre da Jarreteira com a sua capa; depois vrios cavaleiros da Ordem do Banho, com um lao branco na manga, seguidos pelos comendadores; depois os juizes, com as cabeleiras e capas escarlates; depois o Lord Chanceler de Inglaterra, numa tnica escarlate aberta frente, debruada com pele de esquilo; uma comisso de regedores com as suas capas carmins e, por fim, os chefes das diferentes organizaes civis com os seus trajes de cerimnia. Desceram ento pelas escadas doze cavaleiros franceses esplendidamente ataviados com gibes de damasco branco com riscas douradas, capas curtas de brocado vermelho, forradas de veludo violeta e meias cor-de-carne; estavam no squito do embaixador francs e seguiram-se-lhes doze cavaleiros do squito do embaixador espanhol, vestidos de brocado negro sem adornos. Atrs destes estavam vrios nobres ingleses com os seus validos. Ouviram-se as trombetas dentro do palcio; e o tio do prncipe, o futuro grande duque de Somerset, emergiu do porto ataviado com um gibo de brocado preto e uma capa de cetim escarlate floreado a ouro, com fitas de rede prateada. Virou-se, tirou o chapu emplumado, dobrou o corpo numa profunda reverncia e comeou a andar para trs, inclinando-se a cada passo. Seguiu-se um prolongado toque de trombeta e ouviu-se uma proclamao: Abram alas para o grande e poderoso Lord Edward, Prncipe de Gales! Do alto das paredes do palcio subiu com estrondo uma longa fileira de lnguas de fogo- a multido no rio explodiu num poderoso som de boas-vindas; e Tom Canty, a causa e heri de tudo aquilo, apareceu vista de todos e inclinou ligeiramente a sua principesca cabea. Estava magnificamente metido num gibo de cetim branco, com o peitilho de brocado prpura salpicado de diamantes e debruado de arminho. Sobre isto usava um manto de brocado branco, tecido com o braso de trs plumas, forrado de cetim azul, bordado com29

prolas e pedras preciosas e preso com uma fivela de brilhantes. volta do pescoo pendia o colar da ordem da Jarreteira e diversas ordens principescas estrangeiras e qualquer luz que lhe tocasse provocava um brilho de cegar. O Tom Canty, nascido numa barraca, criado nas sarjetas de Londres, habituado a farrapos e suja misria, que belo espetculo este!

X O PRNCIPE EM APUROS

Tnhamos deixado John Carity a puxar o indignado prncipe para dentro de Offal Court, com uma turba barulhenta e deliciada nos calcanhares. No houve uma nica pessoa entre eles que oferecesse uma palavra de ajuda ao cativo e muito menos que o ajudasse; alis, mal o ouviam, tal era a agitao. O prncipe continuou a lutar para se libertar e a enfurecer-se com o tratamento que recebia, at que, John Carity, num ataque de fria, levantou o punho, pesado como um carvalho, sobre a sua cabea. Um nico aliado do mido deu um pulo para segurar a mo do homem e aparou a pancada com o pulso. Canty rosnou-lhe: - Meteste-vos, no vos metestes? A tendes a vossa recompensa! O seu punho abateu-se cobre a cabea do intrometido; ouviu-se um grito, uma forma indistinta caiu entre os ps da multido e, depois, ali ficou sozinha no cho. A turba continuou o seu divertimento, nada perturbada por este episdio. A seguir, o prncipe viu-se na casa de John Carity, com a porta fechada para afastar os intrusos. Na fraca luz de uma vela de sebo, espetada numa garrafa, conseguiu ver as formas do terrvel antro e dos seus ocupantes. Duas midas sombrias e uma mulher de meia-idade encostavam-se num canto contra a parede, com a atitude de animais habituados a maus tratos, com a espectativa e o medo de apanhar outra vez. Num outro canto encostava-se uma bruxa velha de cabelos brancos e olhos cruis. John Carity virouse para esta ltima: - Esperai! Temos aqui uma boa palhaada. No a estragai sem a apreciar primeiro; depois deixai a vossa mo ser to pesada quanto queirais. Vem c rapaz. Agora falai da vossa loucura outra vez, se no vos esquecestes. Dizer o vosso nome. Quem sois vs? O sangue ofendido subiu mais uma vez s bochechas do pequeno prncipe, que levantou os olhos firmes e indignados at ao rosto do homem e disse-lhe: - muito m educao da vossa parte dar-me ordens. Digo-vos agora, como vos disse antes, que sou Edward, Prncipe de Gales, e ningum mais. Perante esta resposta, uma surpresa atordoante pregou a bruxa ao cho e ela ali ficou quase sem respirar. Olhou para o prncipe com um assombro estpido, a que o rufio do filho achou tanta graa que rompeu numa estrondosa gargalhada. Mas o efeito na me e

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irms de Tom Carity foi diferente. O seu medo de violncia fsica foi substitudo imediatamente por um receio de outro tipo. Correram para ele com dor e tristeza nos rostos, exclamando: - Oh, pobre Tom, pobre menino! A me caiu de joelhos frente do prncipe, ps-lhe as mos nos ombros e olhou com insistncia para o seu rosto, atravs de lgrimas crescentes. Disse-lhe ento: - meu pobre menino! Essas leituras loucas fizeram finalmente o seu trabalho e tiraram-vos o juzo. Ah, porque que vos agarrastes a elas quando tanto vos avisei? Partis o corao da vossa me. - O prncipe olhou-a no rosto e disse delicadamente: - O vosso filho est bem e no perdeu o juzo, boa senhora. Confortai-vos: levai-me ao palcio onde ele est e imediatamente o rei, meu pai, o devolver a vs. - O rei vosso pai! meu filho! Desdizei essas palavras. Chamai de volta a vossa pobre memria que vagueia. Olhai-me. No sou eu a me que vos gerou e que vos ama? O prncipe abanou a cabea e disse relutantemente: - Deus sabe quanto me custa acabrunhar o vosso corao- mas, na verdade, nunca antes olhei para o vosso rosto. A mulher deixou-se cair sentada no cho e, tapando os olhos com as mos, comeou a chorar e a soluar de partir o corao. - Continuemos com o espetculo! - gritou Carity. - Que isso, Nan e Bet? Suas ordinrias sem maneiras! Quereis ficar de p na presena do prcipe?j de joelhos, suas pobres nojentas, e prestem-lhe homenagem! Estas palavras foram seguidas de outra gargalhada cavalar. Timidamente, as midas comearam a interceder a favor do irmo; e Nan disse: - Pai, devereis era deix-lo ir para a cama, pois o descanso e o sono curaro sua loucura: deixai, por favor. - Deixai, pai - disse Bet -, ele est mais cansado do que pode agentar. Amanh voltar a ser ele prprio, e pedir com boa vontade e voltar para casa sem ser de mos a abanar. Este comentrio acalmou a alegria do pai e trouxe-lhe cabea os assuntos importantes. Virou-se zangado para o prncipe e disse-lhe: - Amanh temos que pagar dois pennes quele que dono deste buraco; dois pennies, notai bem; todo esse dinheiro por meio ano de renda, ou ento vamos daqui para fora. Mostrai o que juntastes com o vosso peditrio de preguioso. O prncipe disse-lhe: - No me ofendeis com esses assuntos srdidos. Digo-vos outra vez que sou o filho do rei.31

Uma palmada sonora da enorme mo de Carity no ombro do prncipe atirou-o, cambaleante, nos braos da boa senhora Carity, que o abraou encostado ao peito, para o proteger da chuva de murros e bofetadas. As meninas, assustadas, refugiaram-se no canto delas; mas a av avanou com vontade, para ajudar o filho. O prncipe deu um pulo para longe da senhora Canty, exclamando: - Vs no sofrereis por mim, senhora. Deixai estes porcos fazer o que quiserem somente em mim. Este discurso enfureceu os porcos a tal ponto que se puseram ao trabalho sem perda de tempo. Os dois juntos deram uma boa tareia no rapaz e depois bateram nas meninas e na me por terem mostrado simpatia pela vtima. - Agora - disse Carity - para a cama, todos vs. O divertimento deixou-me cansado. Apagou-se a luz e a famlia recolheu-se. Assim que o ressonar do chefe da casa e da sua me mostrou que eles dormiam, as meninas arrastaram-se at onde estava o prncipe e cobriram-no carinhosamente com palha e trapos, para o proteger do frio; e a me tambm veio para ao p dele, acariciou-lhe o cabelo a chorar, ao mesmo tempo que lhe murmurava ao ouvido palavras entrecortadas de compaixo e conforto. Tambm guardara um naco para ele comer; mas as dores do rapaz tinham-lhe tirado todo o apetite - pelo menos para cdeas escuras e sem sabor. Estava comovido pelo preo que ela tinha pago e a bravura que tinha mostrado para o defender, e ainda pela sua compaixo; agradeceu-lhe com palavras nobres e principescas e pediu-lhe que fosse para a cama e esquecesse as suas penas. E ainda acrescentou que o rei seu pai no deixaria que a sua leal ternura e zelo ficassem sem recompensa. Esta recada da sua loucura partiu-lhe outra vez o corao e apertou-o outra vez contra o peito antes de voltar para a cama, afogada em lgrimas. De manh, deitada a pensar, comeou a meter-se-lhe na cabea a sensao de que havia neste rapaz alguma coisa que faltava em Tom Carity, louco ou so. No conseguia descrever o que era, contudo, o seu perspicaz instinto maternal parecia detect-lo e perceb-lo. E se o rapaz afinal no fosse o filho dela? Oh, que absurdo! Quase que se riu com a idia, apesar das suas tristezas e problemas. De qualquer maneira, a impresso no a deixava, nem ela queria afast-la ou ignor-la. Por fim, percebeu que no teria paz enquanto no achasse um teste que provasse, claramente e sem nenhuma dvida, se aquele mido era ou no filho dela e, assim, eliminasse to cansativos e preocupantes pensamentos. Mas era mais fcil dizer do que fazer. Ficou a pensar em muitos testes que pareciam prometedores, mas nenhum era absolutamente seguro. Evidentemente que estava a dar voltas cabea em vo. Quando este pensamento deprimente lhe passava pela mente, o ouvido captou a respirao regular do rapaz e percebeu que ele tinha adormecido. E enquanto prestava ateno, o respirar ritmado era interrompido por um grito baixo e nervoso, como acontece com as pessoas num sonho agitado. Imediatamente, meteu-se nervosamente ao trabalho de acender a vela, sem fazer barulho e a murmurar consigo prpria: J deveria saber, no o tivesse visto nessa altura! Desde esse dia, quando a plvora explodiu no seu rosto, que ele nunca mais deixou de acordar dos seus sonhos ou pensamentos sem deixar de colocar as mos frente dos32

olhos, tal como fez nesse dia, e como nenhum outro o faria, no com as palmas viradas para dentro, mas sempre com as palmas para fora; j vi cem vezes e nunca variou nem nunca falhou. Sim, vou saber agora mesmo! Assim se arrastou at ao p do rapaz adormecido, com a vela tapada. Inclinou-se sobre ele com todo o cuidado, mal respirando na sua excitao contida, e, de repente, iluminou-lhe o rosto, enquanto batia com os ns dos dedos no cho, ao lado da sua cabea. Os olhos do adormecido abriram-se completamente e olhou com surpresa sua volta - mas no fez nenhum movimento especial com as mos. A pobre mulher quase desmaiou de surpresa e dor; mas conseguiu esconder as suas emoes e embalar o rapaz at que dormisse outra vez; depois, afastou-se e ficou tristemente a falar consigo prpria sobre o desastroso resultado da experincia. Tentou convencer-se de que a loucura de Tom tinha abolido este seu gesto habitual; mas no conseguiu. No, dizia, as suas mos no esto loucas, no poderiam desaprender um hbito to antigo em to curto espao de tempo. Oh, que dia complicado que eu tive! Mesmo assim no conseguia levar-se a aceitar o veredito do seu teste; portanto, acordou o rapaz uma segunda vez e depois uma terceira - com os mesmos resultados do primeiro teste -, at que caiu no sono, consternada, a dizer: Mas no posso abandon-lo oh, no, no posso, no posso - ele tem que ser o meu menino! Terminadas as interrupes da pobre me, e as dores do prncipe tendo perdido gradualmente o poder de o perturbar, o cansao por fim selou-lhe os olhos num sono profundo e descansado. As horas passavam e ele continuava a dormir como um defunto. Depois, a letargia comeou a passar. Em seguida, semiadormecido e semiacordado, murmurou: - Sir William! Momentos depois: - Oh, Sir William Herbert! Aproximai-vos e escutai o sonho mais estranho que alguma vez... Sir William! Onde estais? Homem, pensei que me tinha transformado num pobre e... Eh a! Guardas! Sir William! - Como vos sentis? - perguntou um sussurro ao p dele. - Quem estais a chamar? - Sir William Herbert. Quem sois vs? - Eu? Quem poderia ser seno a vossa irm Nan? Oh Tom, tinha-me esquecido! Pobre rapaz, ainda estais louco, que jamais eu acordasse para sab-lo outra vez! Mas, por favor, segurai a vossa lngua, ou apanharemos todos at morrer. O prncipe, surpreendido, quase que se levantou, mas uma lembrana forte das suas feridas pisadas trouxe-o realidade e deixou-se cair no meio da palha fedorenta com um suspiro: - Ai de mim, ento no era um sonho!

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Num instante toda a pesada pena e tristeza que o sono eliminara tinham voltado a cair em cima dele e percebeu que no mais era um prncipe mimado num palcio, mas um pobre, vestido de farrapos, no meio de pedintes e ladres. No momento seguinte ouviram-se algumas pancadas na porta; John Carity parou de ressonar e gritou: - Quem bate? O que quereis? Uma voz respondeu: - Sabeis quem aquele a quem destes um murro? - No. Nem sei nem me interessa. - Talvez mudeis de opinio depois de saber isto; se quiserdes salvar o pescoo, nada alm da fuga vos pode valer. O homem est neste momento a entregar a sua alma. o cura, o padre Andrew! - Deus tenha misericrdia! - exclamou Carity. Acordou a famlia e deu as ordens com brusquido. - Todos de p a voar; ou ficamos e podeis apostar que perecemos! Nem tinham passado cinco minutos e a famlia Canty estava toda em fuga pelas suas vidas. John Carity arrastava o prncipe pelas ruas escuras, segurando-o pelo pulso e avisando-o em voz baixa: - Cuidado com a lngua, meu louco varrido, e no faleis o nosso nome. Escolherei um novo nome, bem depressa, para tirar os ces da lei do nosso rasto. Cuidado com a lngua, digo-vos! Para o resto da famlia rosnou estas palavras: - Se por acaso nos separarmos, que cada um v ter ponte de Londres; quem chegar primeiro at ltima loja de roupas da ponte que espere at que os outros cheguem, depois iremos juntos para Southwark. De repente, o grupo saiu da escurido e caiu na luz e no meio de uma multido de pessoas que cantavam, danavam e gritavam, amontoadas na margem do rio. Havia uma fila de fogueiras at onde os olhos podiam alcanar, para cima e para baixo do Tamisa; a torre de Londres estava iluminada e a ponte de Southwark tambm; o rio inteiro brilhava com o claro de belas e coloridas luzes; contnuas exploses de fogo-de-artificio enchiam o cu com uma mistura intrincada de exploses esplendorosas e uma pesada chuva de fascas estonteantes que quase transformavam a noite em dia por toda a parte havia multides de folies e Londres parecia estar toda na rua. John Canty soltou uma imprecao furiosa e ordenou a retirada; mas era tarde demais. Num istante ele e a sua tribo estavam separados, sem hiptese de se juntarem outra vez. No estamos a considerar o prncipe como a fazer parte da tribo; Canty continuava a segur-lo. O corao do prncipe batia fortemente, com uma grande esperana de poder escapar agora. Um corpulento barqueiro, bastante excitado com o lcool, viu-se rudemente empurrado por Carity, nos seus esforos de passar pela multido; colocou a sua mo enorme no ombro dele e disse-lhe:

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- Onde ides to depressa, meu amigo? Sujas a tua alma com afazeres srdidos, enquanto todos os que so leais e verdadeiros esto de folga? - Os meus afazeres so meus e no vos dizem respeito - respondeu Carity, com brutalidade. - Retirai a vossa mo e deixai-me passar. - Se esse o vosso humor no passareis enquanto no tiverdes bebido em honra do Prncipe de Gales, isso vos digo eu - respondeu-lhe o barqueiro, impedindo resolutamente o caminho. - Dai-me uma taa ento, mas apressai-vos, apressai-vos! Nessa altura j havia outros folies interessados. Gritaram: - A taa da amizade! Fazei o patife mal disposto beber pela taa da amizade, ou ento d-lo-emos a comer aos peixes. Foi ento trazida uma enorme taa; o barqueiro, agarrando-a por uma das alas, apresentou-a a Canty como era costume, e este teve que agarrar a ala do outro lado, com uma das mos, e tirar a tampa com a outra, conforme uma velha tradio. Evidentemente que isto deixou o prncipe com as mos livres por um momento. No perdeu tempo, mergulhou na floresta de pernas sua volta e desapareceu. No momento seguinte seria mais difcil encontr-lo debaixo daquele agitado mar de gente do que procurar uma moeda no meio do Atlntico. Depressa o prncipe percebeu este fato e imediatamente ocupou-se com os seus problemas, sem pensar mais em John Carity. Tambm depressa percebeu uma outra coisa, que a cidade festejava um falso Prncipe de Gales no seu lugar. Concluiu logo que o pobre mido, John Carity, tinha deliberadamente aproveitado a estupenda oportunidade e se tornado um usurpador. Portanto, s havia uma rota a seguir - encontrar o caminho para Guildhall, fazer-se reconhecer e denunciar o impostor. Tambm decidiu que a Tom deveria ser permitido um tempo razovel de preparao espiritual, para depois ser enforcado, afogado e esquartejado, como era a lei e o uso do tempo em casos de alta traio.

XI EM GUILDHALL A barcaa real, rodeada por uma maravilhosa flotilha, comeou o seu percurso triunfal pelo Tamisa abaixo, no meio de uma floresta de barcos iluminados. O ar estava repleto de msica; as margens do rio viam-se salpicadas de luzes; distncia, a cidade estendia-se a perder de vista, emanando um brilho suave das suas inmeras fogueiras; sobre a cidadela subiam ao cu muitas espirais de fumo incrustadas com luzes cintilantes, como se fossem lanas cobertas de brilhantes atiradas ao ar; medida que a flotilha passava, era saudada das margens com o rudo dos vivas e os incessantes clares e estrondos da artilharia.

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Para Tom Canty, semienterrado, em almofadas de seda, estes sons e o espetculo todo eram uma maravilha impressionante e indizivelmente sublime. Para as pequenas amigas ao seu lado, a princesa Elizabeth e LadyJane Grey, no era nada de especial. Chegada a Dowgate, a flotilha foi rebocada at Bucklersbury pelo lmpido Walbrook, cujo canal est agora enterrado h sculos sob acres de prdios, passando por casas e pontes pejadas de folies e brilhantemente iluminadas, at por fim parar num lago onde agora Barge Yard, no centro da antiga cidade de Londres. Tom desembarcou, ele e a sua galante procisso atravessaram Cheapside e percorreram o curto caminho para o Guildhall, atravs da velha judiaria e da Rua Bassinghall. Tom e as suas pequenas acompanhantes foram recebidos com a devida cerimnia pelo alcaide e pelo conselho dos ancios, com as suas correntes douradas e tnicas escarlates de cerimnia, e conduzido para uma rica banqueta oficial no topo do grande salo, precedido por arautos, que liam uma proclamao, e pelo basto e espada da cidade. As damas e cavaleiros que deviam ficar ao p de Tom tomaram os seus lugares atrs das cadeiras. Numa mesa mais baixa sentavam-se os grandes da corte e outros convidados de alta estirpe, com os magnatas da cidade; os cidados comuns tomaram os seus lugares numa multitude de mesas na pista do salo. Da sua altura imponente, os gigantes Gog e Magog, ancestrais guardies da cidade, contemplavam o espetculo aos seus ps, com os olhos de quem h geraes esquecidas se habituou a tais coisas. Ouviu-se um toque de corneta e uma proclamao, e um mordomo gordo apareceu numa plataforma na parede da esquerda, seguido pelo seus servidores, que transportavam, com impressionante solenidade, uma real pea de carne, a fumegar de quente e pronta para a faca. Depois da ao de graas, Tom, tendo sido previamente instrudo, levantou-se - e toda a assemblia juntamente com ele - e bebeu de uma imponente taa com a princesa Elisabeth; dela, a taa passou para Lady Jane e depois para as outras pessoas. Assim comeou o banquete. Por volta da meia-noite, a animao estava no mximo e desenrolavam-se todos os espetculos pitorescos que eram to apreciados nesses tempos. Ainda existe uma descrio desta festa, escrita em estilo singular por um cronista que a presenciou. Abriam-se alas e entraram um baro e um conde, vestidos de turquesa, com grandes tnicas de brocado dourado. Usavam chapus de brocado escarlate, bordados com flores de ouro, e umas bonitas espadas chamadas cimitarras, penduradas em enormes bandas. Eram seguidos por outro baro e outro conde, com longas tnicas de riscas amarelas e brancas e ainda uma risca vermelha sobre as brancas, moda russa, com chapus de pele de esquilo. Usavam botas com as biqueiras compridas e enroladas para cima e tinham na mo um pequeno machado. Seguia-se um cavaleiro e depois, o Lord Grande Almirante, acompanhado de cinco fidalgos com gibes de brocado escarlate, todos abertos frente e atrs e atados com correntes de prata, tendo sobre os ombros uma capa curta carmim e na cabea chapus ao estilo dos bailarinos, com uma pluma de faiso. Este era o modelo prussiano. Vinham, depois, cinco portadores de tochas, vestidos de carmim e verde como os mouros, com as feies pintadas de escuro. Vinha depois um morno e os menestris a

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danar, mas