maria helena wagner rossi o desenvolvimento do pensamento estético visual na escola

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O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO ESTÉTICO-VISUAL NA ESCOLA Maria Helena Wagner Rossi Universidade de Caxias do Sul RESUMO O texto aborda o desenvolvimento e os resultados de um estudo longitudinal de oito anos em uma turma do Ensino Fundamental, com o objetivo de conhecer o processo de desenvolvimento do pensamento estético de estudantes em função de exposição sistematizada a atividades de leitura estética durante o processo de escolarização. Apresenta excertos de diálogos realizados entre professora-pesquisadora e estudantes. Comenta os progressos no desenvolvimento do pensamento estético a partir de exemplos de depoimentos, cotejando com a literatura e pesquisas anteriores. Defende uma abordagem pedagógica de natureza especulativa como meio de promover uma compreensão estética mais adequada ao mundo da arte. Palavras-chave: Ensino de Artes Visuais. Educação Estética. Pensamento Estético. ABSTRACT The article discuss the results of a research with the objective of revealing the process of development of the visual aesthetic understanding of students, in function of a systematized exposition at activities of aesthetic interpretation and debate during the firsts eight grades of the education process, in the same class, on longitudinal study. It compares the aesthetic understanding of the students of an experimental group with the one of students of the control group, presenting highlights from dialogs that were developed during the analysis of works of art and images. It defends a pedagogical approach as speculative as a way to promote a richer understanding of art. Keywords: Visual Art teaching. Aesthetic education. Aesthetic thinking. Este artigo discute aspectos de uma pesquisa com delineamento longitudinal realizada durante as oito séries do Ensino Fundamental 1 . Da 1ª a 8ª série foram realizadas uma centena de aulas de leitura estética frente a imagens e obras de arte. O objetivo principal da pesquisa foi: Conhecer o processo de desenvolvimento da compreensão estético-visual de alunos da Educação Fundamental em função de uma exposição sistematizada a atividades de leitura estética durante o processo de escolarização. Como objetivos secundários, pretendia-se analisar a transformação do pensamento estético de um grupo de estudantes e experimentar e avaliar uma abordagem pedagógica de trabalho com imagens em sala de aula, evitando a costumaz ênfase em contextualizações históricas, factuais e formais. Ao invés disso, a abordagem visava adequar-se à natureza do pensamento estético dos estudantes em cada momento do processo de escolarização, identificada em pesquisas anteriores e na literatura (HOUSEN, 1983; PARSONS, 1992; FREEMAN & SANGER, 1995; ROSSI, 2003). Pode-se chamar essa 1 O estudo foi realizado em Caxias do Sul/RS, entre 1997 e 2004, quando o Ensino Fundamental era desenvolvido em oito séries.

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Texto com argumentações muito relevantes sobre o desenvolvimento Do Pensamento Estético Visual Na Escola

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Page 1: Maria Helena Wagner Rossi O Desenvolvimento Do Pensamento Estético Visual Na Escola

O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO ESTÉTICO-VISUAL NA ESCOLA

Maria Helena Wagner Rossi Universidade de Caxias do Sul

RESUMO O texto aborda o desenvolvimento e os resultados de um estudo longitudinal de oito anos em uma turma do Ensino Fundamental, com o objetivo de conhecer o processo de desenvolvimento do pensamento estético de estudantes em função de exposição sistematizada a atividades de leitura estética durante o processo de escolarização. Apresenta excertos de diálogos realizados entre professora-pesquisadora e estudantes. Comenta os progressos no desenvolvimento do pensamento estético a partir de exemplos de depoimentos, cotejando com a literatura e pesquisas anteriores. Defende uma abordagem pedagógica de natureza especulativa como meio de promover uma compreensão estética mais adequada ao mundo da arte. Palavras-chave: Ensino de Artes Visuais. Educação Estética. Pensamento Estético. ABSTRACT The article discuss the results of a research with the objective of revealing the process of development of the visual aesthetic understanding of students, in function of a systematized exposition at activities of aesthetic interpretation and debate during the firsts eight grades of the education process, in the same class, on longitudinal study. It compares the aesthetic understanding of the students of an experimental group with the one of students of the control group, presenting highlights from dialogs that were developed during the analysis of works of art and images. It defends a pedagogical approach as speculative as a way to promote a richer understanding of art. Keywords: Visual Art teaching. Aesthetic education. Aesthetic thinking.

Este artigo discute aspectos de uma pesquisa com delineamento longitudinal realizada

durante as oito séries do Ensino Fundamental1. Da 1ª a 8ª série foram realizadas uma centena

de aulas de leitura estética frente a imagens e obras de arte. O objetivo principal da pesquisa

foi: Conhecer o processo de desenvolvimento da compreensão estético-visual de alunos da

Educação Fundamental em função de uma exposição sistematizada a atividades de leitura

estética durante o processo de escolarização. Como objetivos secundários, pretendia-se analisar

a transformação do pensamento estético de um grupo de estudantes e experimentar e avaliar

uma abordagem pedagógica de trabalho com imagens em sala de aula, evitando a costumaz

ênfase em contextualizações históricas, factuais e formais. Ao invés disso, a abordagem visava

adequar-se à natureza do pensamento estético dos estudantes em cada momento do processo de

escolarização, identificada em pesquisas anteriores e na literatura (HOUSEN, 1983;

PARSONS, 1992; FREEMAN & SANGER, 1995; ROSSI, 2003). Pode-se chamar essa

1 O estudo foi realizado em Caxias do Sul/RS, entre 1997 e 2004, quando o Ensino Fundamental era desenvolvido em oito séries.

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abordagem de especulativa.2 Embora essa palavra tenha alguns sentidos pejorativos, aqui é

entendida, aproximadamente, no sentido de reflexiva, conjectural, hipotética, imaginativa,

filosófica... Como dizem Parsons e Blocker: O papel do professor em estética não é o de autoridade que pode proporcionar aos estudantes respostas a perguntas filosóficas. É mais um papel de provocador e de facilitador cuja função é ajudar os estudantes a identificar e discutir questões filosóficas relacionadas às obras de arte com as quais eles se deparam. A atitude exigida é antidogmática, porque o dogmatismo é um inimigo da filosofia. A filosofia sempre exigiu uma atitude especulativa e de mente aberta, na qual o interesse está tanto em esclarecer a questão como em assegurar as respostas. Exige o interesse em jogar com ideias alternativas e considerar situações contrafactuais, mesmo quando a resposta que acaba vindo parece ser óbvia (1993, p. 165).3

A abordagem pretendeu considerar e valorizar as ideias que os alunos traziam, sem deixar

de questioná-las, com o intuito de provocar reflexões e contribuir no crescimento da

compreensão estética.

A seleção das imagens buscou a variedade de meios, períodos históricos, nacionalidades,

estilos, gêneros de artistas, etc. Também foram usadas imagens não artísticas, jornalísticas, de

propaganda, etc. Uma vez por ano os estudantes visitavam obras de arte em museus e galerias

da cidade.

A avaliação do desenvolvimento do pensamento estético do grupo experimental foi

realizada através de comparação com turmas equivalentes da mesma escola, constituindo os

grupos de controle. A comparação entre os grupos foi realizada uma vez por ano, enfocando as

mesmas imagens e a mesma abordagem que o grupo experimental vivenciava.

Nos primeiros meses da pesquisa, as imagens selecionadas para leitura eram mais

realistas, com presença de pessoas ou de animais, propiciando interpretações com narrativas e

animados debates. Conforme o grupo foi avançando no processo de desenvolvimento estético,

as questões geradoras dos diálogos foram se adequando, tornando-se mais complexas e

enfatizando leituras mais abrangentes e elaboradas.

A discussão estética nas oito séries da Educação Fundamental

A seleção dos diálogos, aqui apresentada, visa mostrar como e quando ideias estéticas

mais avançadas e sofisticadas (denominadas de mentalísticas por Freeman & Sanger, 1995)

aparecem e como é construída a compreensão estética na discussão entre pares. Os autores

afirmam que, mesmo sem qualquer educação em arte, acontece uma mudança conceitual entre

os 11 e os 14 anos, quando o pensamento realístico das crianças – ingênuo e prático, não

2 A abordagem da “ação educativa” desenvolvida na pesquisa é fundamentada em Parsons e Blocker (1993) e no “Visual Thinking Curriculum”, um programa desenvolvido pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), divulgado por Amelia Arenas, em curso no Museu Lasar Segall no início da década de noventa. 3 Tradução livre da autora.

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admitindo, ainda, a autonomia do artista – cede lugar gradualmente a uma compreensão da arte

como uma manifestação intencional da mente do artista.4

As séries iniciais (1ª a 3ª série)

No início do estudo as crianças se preocupam em decifrar os elementos da imagem,

relacionando o que veem com as coisas que conhecem no mundo real, revelando a concepção

de que a arte serve para mostrar as coisas que existem concretamente no mundo. A narrativa é

privilegiada no momento da interpretação:

Fig. 1 - Edward Hicks, Reino tranquilo, 1834. Óleo sobre tela. National Gallery of Art, Washington.

Arlan – Eu estou vendo um leão; em cima tem um tigre, um lobo, uma ovelha e um cordeirinho; acho que é um cabrito. Mateus – Tem muitos animais, muitas árvores e lá no fundo, umas pessoas. Camila – Aqui tem dois leopardos, e aquele anjinho está querendo passar a mão neles. Rebeca – Um anjinho tem um pano vermelho na mão. MH5 – Tem um pano vermelho na mão dele? Quem mais viu? Laura – Ali atrás tem uns homens que estão ajoelhados com as mãos assim. Thomaz – Eu estou vendo que tem uns índios ali junto com os homens. MH – Por que você acha que eles são índios? Thomaz – Porque eles têm topete. Bruno – Eu acho que é um gurizinho de plástico pendurado ali em cima. Mateus – Eu acho que a criança queria subir em cima do tigre. MH – O que esta criança está fazendo ali em cima? Thomaz– Eu acho que ela queria fazer carinho no leão. Pedro – Parece que o urso e a vaquinha estão namorando.

Para julgar a qualidade das imagens a justificativa priorizada inicialmente é a qualidade

do tema:

MH – Agora eu queria saber se gostaram da imagem; se é uma boa imagem. Crianças – Sim! Bruna – Eu gostei porque tem bastante animais. Pedro – Porque tem bastante árvores, muitos animais. Tomás – Tem bastante natureza. 4 Para saber mais sobre a teoria de Freeman e Sanger, ver ROSSI (2003). 5 As iniciais MH correspondem ao nome da professora-pesquisadora, Maria Helena, o único não fictício neste texto.

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Camila – Sabe por que o leão ataca o touro? MH – Não, por quê? Camila – Olha o tamanho do chifre! MH – É verdade! Então todos acham que é uma boa imagem porque tem coisas boas?

Durante a 1ª série não há propriamente discussão ou diálogo, pois as crianças estão

preocupadas apenas em expor suas ideias e opiniões. Até o início da 2ª série continuam

preferindo as imagens realistas, usam a narrativa na interpretação e, no julgamento da

qualidade das imagens, priorizam os critérios: maestria, cor e realismo. As imagens que não

atendem essas exigências são consideradas “engraçadas” – bizarras:

Fig. 2 - Marc Chagall, Eu e a vila, 1911. Óleo sobre tela. MoMA, Nova Iorque.

Tomás – Parece que tem um terremoto e está todo mundo fugindo. Tem um cara deitado. Luiz – Parece que é o dia das bruxas. Camila – Eu acho que esta pintura é moderna. MH – Por quê? Camila – Porque eu acho que está cheia de rabiscos. Porque se fosse uma pintura boa, seria pintado bem bonitinho. MH – Vocês concordam com a Camila? Quer dizer que uma pintura moderna não pode ser boa? Camila – Ela pode ser boa, mas ela tem que ser bem colorida. MH – Quem acha que esta imagem é ruim? Bruna – É ruim, porque é bem mal pintada, mal desenhada, e até eu desenho melhor! Camila – Eu acho que é uma pintura bem esquisita, porque eu nunca vi uma mulher pegar um burro e uma escada e começar a passear. Nem casas de cabeça para baixo... MH – Quem acha que é uma boa imagem? Cristina – Eu acho que é uma pintura mais ou menos, porque as cores são alegres. Mas a pintura é horrível! Ele pintou mal. Eu pinto e desenho melhor do que ele!

Neste momento, a discussão estética é centrada no que está acontecendo na cena. As

crianças dão sentido ao que veem, desconsiderando a intencionalidade do artista:

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Fig. 3 - Umberto Boccioni, Nonna, 1905. Pastel sobre cartão. Fundação de Veneza.

Tomás – Por que ela está tapando a cesta? Cristina – Pode ter uma coisa valiosa que ela guarda lá. Natália – Deve ser porque ela está segurando. Thomaz – Porque quando o pintor pintou, ele não queria que ninguém visse o que tinha dentro. Cássio – Eu acho que tem água quente e ela tapa para não esfriar. Cristiane – Deve ter um bicho dentro da cesta, então ela tapa para ele não escapar. Camila – O que será que ela tem dentro da cesta? Laura – Frutas. Felipe – Docinhos e salgados. Cristiane – Por que será que ela está séria? Camila – Porque eu acho que alguém comeu alguma coisa da cesta dela.

Nessa leitura não há lugar para significados subjetivos e abstratos. A obra é, literalmente,

a representação do mundo, das coisas que existem ou acontecem, e o papel do artista se reduz a

“transferir” as características e as qualidades dessas coisas para a obra.

Em meados da 2ª série as crianças já demonstram preocupação em ouvir as ideias dos

outros e a considerá-las durante a exposição de suas próprias ideias, como se vê neste diálogo:

Fig. 4 - Vincent van Gogh, Noite estrelada, 1889. Óleo sobre tela. MoMA, Nova Iorque.

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Luísa – Tem uma pedra ali na frente. MH – Onde? Isto aqui? [aponto para a árvore em primeiro plano] Eliezer – Esta pedra parece um castelo. Thomaz – Lá embaixo tem uma cidade. E isto, que dizem que é uma montanha ou um castelo, eu acho que é uma chama bem alta. No céu está dando um monte de clarão. Antonio – Aquilo que disseram que é fogo, eu acho que é um castelo. Cássio – Eu acho que é o cabelo de uma mulher todo levantado. Luísa – Deve ser uma mulher gigante, com os cabelos tão grandes assim!

Esse diálogo mostra que as crianças acreditam que o artista pode escolher o que quer

mostrar, mas não interpreta nem modifica o que está “vendo” ao pintar. Assim, o cipreste em

primeiro plano em Noite estrelada é interpretado como os cabelos de uma mulher que saltava

em frente à cena. Van Gogh teria mostrado esse exato momento. Essa ideia, que não admite a

intencionalidade do artista, é caracterizada de realística por Freeman & Sanger e faz parte do

Nível I na classificação do pensamento estético de Rossi (2003).

Antes que a maioria das crianças completasse oito anos de idade aparece a depreciação do

realismo fotográfico, uma ideia que mostra um avanço no processo do desenvolvimento

estético. Segundo a literatura, a valorização do realismo no julgamento estético é

prioritariamente usada entre os seis e os 15 anos de idade (PARSONS, 1992, p. 64). Antes dos

seis a valorização do realismo ainda não é comum, e depois dos 15 anos já é abandonada pelas

pessoas com certa familiaridade com arte. Nossas pesquisas anteriores confirmam esses

achados. No entanto, neste estudo longitudinal, crianças com sete/oito anos já abandonam o

realismo como critério de julgamento. Começam, precocemente, a menosprezar a facilidade do

ato de “bater uma foto”, em comparação ao trabalho do artista:

Fig. 5 - Franz Marc, Cavalo Azul I, 1911. Óleo sobre tela. Galeria Stadtische, Munique.

Fig. 6 - Glauco Rodrigues, Cavalos, c. 1975. Lito offset sobre papel. Coleção privada.

MH – Por que vocês acham que esta não é arte? [Figura 6] Luísa – A outra imagem é mais arte, porque foi pintada. [Figura 5]

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Bruno – É, porque foi pintada. MH – Por isso é arte? Bruno – Não, também porque tem um cavalo que é mais desenho. E esta parece com foto. Flávia – Eu também acho que a primeira imagem é mais arte. A outra foi feita com uma fotografia.

No início da 3ª série (oito anos) aparece a compreensão de que a arte mostra algo que não

pode ser concretamente apontado. As crianças falam do quê os elementos podem significar no

contexto do quadro:

Fig. 7 - Isaac Oliver, Retrato em miniatura de duas meninas, 1590. Aquarela sobre papel. Victoria and Albert

Museum, Londres.

Fig. 8 - Pablo Picasso, Mulher em lágrimas, 1937. Óleo sobre tela. Museu Picasso, Paris.

Thomaz – Eu estou vendo dois quadros: um numa emoção e o outro, na outra emoção. Uma é feliz e a outra é triste. Ana – O pintor teria feito essa flor e essa maçã, porque... A flor é porque tem uma coisa alegre, e a maçã, porque... eu não sei o porquê da maçã. A flor é pelo nascer e pela vida que ela tem... ela está contente. A maçã, eu não sei... MH – Ana, você está dizendo que a flor representa a vida na imagem da menina sorrindo? Por que será que tem uma fruta onde ela está séria? Thomaz – Porque a maçã não tem vida, é imóvel. A gente só pode comer ela... Ou colocar em um enfeite, mas seria a mesma coisa que deixar ela no chão, caída.

Essa busca de sentidos por meio de possíveis metáforas – e não mais a partir do

concretamente visível – é uma novidade no processo dessas crianças e se constituiu em uma

grande diferença em relação aos alunos do grupo de controle e aos sujeitos de pesquisas

anteriores.

MH – Agora eu quero saber o que duas as imagens têm em comum! Pedro – Meninas! MH – São meninas. O que mais? Adriane – O que as duas imagens têm em comum são cores. MH – As duas imagens têm cores. O que mais? Tomás – As duas imagens têm pessoas com expressão.

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MH – Ah, vejam o que o Tomás descobriu! Nas duas imagens têm pessoas com expressões. Quem concorda? Natália – Eu ia dizer! MH – Muito bem! Vamos falar mais sobre isso. O que é uma expressão? Camila – Eu acho que expressão significa um sentimento. Um sentimento de alegria... quando se ganha na loteria; um sentimento de tristeza quando se perde uma aposta. Cristina – Eu acho que expressão significa o que a pessoa está demonstrando com o rosto, com o corpo dela. O que ela quer demonstrar com um sorriso? Que ela está contente. O que ela quer demonstrar quando ela está chorando? Que ela está triste.

A interpretação das expressões estava de acordo com a literatura, isto é, as crianças

identificavam sentimentos nas imagens, atribuindo-os aos seus personagens. Neste momento,

lembrei que em pesquisas anteriores o estabelecimento da relação da obra com o estado de

espírito do artista não havia aparecido antes dos 11 anos, sendo que nos estudos de Parsons

(1992) e de Freeman & Sanger (1995) esse pensamento não aparece antes dos 12 anos. Então,

segui com o diálogo, buscando favorecer a ampliação das concepções dos alunos:

MH – Muito bem! E o pintor, pintando esta mulher chorando, está mostrando o sentimento da mulher ou o seu próprio sentimento? Cristina – Eu acho que era o sentimento dele. Ele estava com tristeza e queria pintar uma coisa triste, uma coisa de guerra, uma coisa de morte... uma pessoa triste, uma pessoa chorando, uma pessoa sentindo a falta de alguém... MH – Então o pintor estava expressando a sua tristeza? Quem concorda? Camila – Eu acho que ele pode estar expressando a tristeza dele ou expressando a tristeza de outros. Eu acho que ele estava triste, ou aconteceu alguma coisa, ou morreu alguém. Ele perdeu uma aposta, uma coisa assim...

Isso constitui uma diferença importante em relação a pesquisas anteriores: a ideia aparece

no início da 3ª série (atual 2º ano), portanto três anos antes dos casos relatados na literatura.

Em meados da 3ª série, outro avanço é admitir que uma obra de arte pode ser concebida

pelo artista e realizada por terceiros:

Fig. 9 - Willem de Kooning, Porta para o rio, 1960. Óleo sobre tela. Whitney Museum, Nova Iorque.

Fig. 10 - Joseph Beuys, Terno de feltro, 1970. Escultura. Tate Modern, Londres.

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MH – Vocês acham que tem mais valor o trabalho deste artista [De Kooning], que pintou o quadro com as próprias mãos ou o do que teve a ideia, mandou costurar e assinou seu nome? Cristina – O artista pensou: eu quero fazer isso, isso e isso. Aí ele mandou fazer. Mas quem teve a ideia? Foi a costureira teve a ideia de colocar o terno na exposição? Não! Então eu acho que o artista é a pessoa que teve a ideia.

Em síntese, no início do estudo, todas as crianças apresentam um pensamento estético

realístico (Freeman & Sanger, 1995), típico do Nível I segundo a classificação de Rossi (2003).

As interpretações são permeadas de narrativas, referindo-se às coisas concretas da imagem,

sendo que os critérios de julgamento mais usados são a cor, o tema, o realismo e a maestria do

artista. Ao final da 3ª série é visível o avanço no processo do desenvolvimento estético dessas

crianças, em comparação com as do grupo de controle. Além de estabelecerem relações entre a

imagem e seu produtor (mesmo que apenas com o seu sentimento), a maioria deixa de julgar as

imagens a partir de critérios usados no julgamento moral. Obras com temas tristes, como Mãe

Morta (Lasar Segall, 1940), recebem juízo positivo, devido à habilidade do artista em

representar a dor da perda pelas cores, por exemplo. As crianças deixam de privilegiar o

realismo fotográfico como critério; as imagens mais realistas são menosprezadas e

consideradas não criativas. A cópia é condenada e o conceito de criatividade é relacionado com

originalidade, passando a ser valorizado nos julgamentos.

As séries intermediárias (4ª a 6ª série)

A partir da 4ª série (nove/dez anos) torna-se mais frequente a atribuição de significados

mais subjetivos e abstratos, quando os estudantes vão além do que está fisicamente

representado na imagem. O desafio agora é pensar em possibilidades de interpretações,

ponderando argumentos, lidando com possibilidades:

Fig. 11 - Fernando Baril, Rosa, 1991. Óleo sobre tela. Brasil. Coleção privada.

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Camila – Parece que é assim: um lado do rosto tem a pele mais clara e o outro, a pele mais escura. Eu acho que a imagem mostra as duas faces da humanidade! MH – Você pode falar mais sobre isso? Camila – Tem duas faces: um lado que é sem preconceito e o outro, às vezes, tem preconceito. Um lado que está sempre na boa e o outro que está mais no escuro, quase no fim do túnel; uns estão mais para baixo; outros têm mais de tudo. [...] Eu acho que o brinco simula a riqueza. MH – Quem concorda com a Camila? Ana, por que você concorda? Ana – Porque eu achei que faz sentido, até pelo brinco. Um brinco é só uma argola e o outro tem um bebê pendurado. MH – O que significa esse bebê? Ana – Ah, não sei! O futuro! Camila – Esse lado tem muito mais riqueza e aquele ali tem mais pobreza... Eu não sei se vocês notaram, mas o rosto mais escuro está cheio daqueles parafusos. O rosto mais claro tem menos. Será que também não mostra isto, o caminho de cada um? E também o pescoço é grande... As pessoas geralmente não têm o pescoço tão comprido... Mostra também que é um longo caminho... Poderia ser...

Com esse pensamento estético mais sofisticado, a maioria dos estudantes reconhece a

autonomia (intencionalidade) do artista; desconsidera o sentimento/humor do artista no

momento da produção como determinante da natureza e da qualidade da obra; deprecia o

realismo fotográfico no julgamento, privilegiando a expressividade em detrimento da natureza

do tema, como se vê na leitura de Os Pobres na Praia (1903), da fase azul de Picasso:

MH – Estas pessoas estavam usando roupas azuis ou foi o artista que escolheu, ou inventou, essas cores? Camila – Ele colocou alguns tons de azul na sombra e na luz para mostrar como a tristeza abala o ser humano... a pobreza, a miséria... Cristina – Ele poderia estar retratando uma cena real ou uma cena fictícia, mas isso não significa que ele esteja triste. Marisa – Eu acho que ele fez com que a obra transmitisse um sentimento de tristeza. MH – Não necessariamente que a tristeza seja a dele? Camila – É de toda a humanidade.

Enfim, desde a 4ª série torna-se frequente esse pensamento mais sofisticado, que na

classificação de Rossi (2003) caracteriza o Nível III. Na literatura, tal pensamento aparece aos

12 anos.

As séries finais (7ª e 8ª séries)

Enquanto os estudantes dos grupos de controle mostram concepções ingênuas e

realísticas, pressupondo que a arte deve retratar, com realismo e maestria, coisas bonitas e

boas6, os do grupo experimental manifestam sua compreensão mentalística na discussão frente

às imagens. No diálogo a seguir há menção à estrutura da obra, pensamento não demonstrado

por sujeitos de pesquisas anteriores (ROSSI, 2003), nem por sujeitos de Housen (1983),

Parsons (1992) ou Freeman & Sanger (1995) antes da idade adulta.

6 Ideias que caracterizam o pensamento estético de Nível I, segundo a classificação de Rossi (2003).

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Fig. 12 - Pablo Picasso, Mulher chorando, 1937. Óleo sobre tela. Tate Modern, Londres.

Camila – Pega só este pedaço [a aluna aponta a parte central, com tons azulados]. Isso não retrata o desespero puro? MH – Apesar do colorido, vocês não veem alegria nesta imagem? Alunas – Não! Camila – É puro desespero! Tapando alguns pedaços da imagem... Talvez isto não represente só uma mulher, mas sim o desespero de uma geração, ou de uma época. Cristina – Nós chegamos à conclusão que a parte mais importante do quadro é a que está em azul e branco. Essa parte representa o desespero das mulheres daquela época. E ele fez isso bem na época que pintou a Guernica... Tem relação... Isadora – Fala do desespero de uma época! Ela chega estar despedaçada, destruída pelo desespero, e eu acho esta imagem linda!

Essa leitura se aproxima das características do quarto estágio da classificação de Parsons

(1992), quando o leitor se interessa pela organização e pelo estilo da obra: “No quarto estágio,

a forma e o meio de expressão adquirem uma importância que nunca antes haviam tido:

relacionam-se agora diretamente com a significação do quadro” (p. 124). O leitor não descreve

mais o que são as figuras, mas a forma em que estão agrupadas e a relação entre esse aspecto e

o sentido do todo, o que cria algum tipo de impressão importante para a compreensão da obra.

“Os quadros são agora entendidos num contexto social, e por conseguinte histórico; a história

do universo artístico, em particular, influencia fortemente o sentido das obras” (ib., p. 124).

Assim, o pensamento estético que permite identificar sentidos atribuídos à Guernica e

relacioná-los à estrutura formal de Mulher chorando é uma novidade nos achados de pesquisas

no domínio da compreensão estético-visual, em se tratando de adolescentes. Na literatura esse

pensamento – que situa a leitura no âmbito do universo artístico – só é encontrado em pessoas

adultas com familiaridade com o mundo da arte (PARSONS, 1992; HOUSEN, 1983).

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Considerações finais

Comparando o desenvolvimento estético dos alunos do grupo experimental com os dos

grupos de controle pode-se dizer que as diferenças são significativas. Os alunos que não

vivenciaram atividades de discussão estética incorporadas ao currículo tendem a apresentar

uma leitura realística e ingênua, enquanto que os do grupo experimental apresentam uma

leitura sofisticada e mais adequada ao mundo da arte. “As interpretações da arte podem ser

mais ou menos racionais e juízos de valor mais ou menos defensáveis. Não se tratará

propriamente de os considerar certos ou errados, mas há seguramente alguns mais pertinentes

do que outros (PARSONS, ib, p. 30). Esses depoimentos ao final da Educação Fundamental

mostram isso.

Os excertos de diálogos exemplificam como as discussões foram encaminhadas durante

os anos do estudo, numa abordagem que valoriza as ideias trazidas pelos estudantes,

considerando as características do seu pensamento estético no decorrer do processo de

escolarização. Em outras palavras, através do questionamento de suas ideias/teorias/intuições,

de maneira não dogmática – mas sem cair num espontaneismo vazio – a abordagem promoveu

uma melhor compreensão da arte.

A pesquisa mostra que uma aula mensal de leitura estética pode proporcionar o

desenvolvimento de uma compreensão estética sofisticada ao final do Ensino Fundamental. As

diferenças entre as leituras dos grupos são significativas, sendo coerente atribuir a riqueza do

pensamento estético do grupo experimental às atividades rotineiras de discussão estética frente

a imagens vivenciadas ao longo da pesquisa.

Referências

FREEMAN, Norman H.; SANGER, Daniela. The commonsense aesthetics of rural children. Visual Arts Research, v. 21, n. 2(42), 1995.

HOUSEN, Abigail, The eye of the beholder: measuring the aesthetic development. Tese. (Doutorado em Educação). Harvard University, 1983.

PARSONS, Michael J. Compreender a arte. Lisboa, Presença, 1992. ______; BLOCKER, H. Gene. Aesthetics and education. Chicago, University of Illinois Press, 1993. ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003.

Maria Helena Wagner Rossi Cursou Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado e Doutorado em Educação na UFRGS. É professora na Universidade de Caxias do Sul. É vice-líder do GEARTE/CNPq (Grupo de Estudos em Educação e Arte - PPGEDU da UFRGS). Tem publicado artigos sobre leitura de imagens e compreensão estético-visual. É autora do livro Imagens que falam: leitura da arte na escola (Editora Mediação, 2003; 5ª ed. 2011). http://lattes.cnpq.br/5017888754814808