manuel lobato e vitor rodrigues, o mar e o sertão no percurso de nuno velho pereira

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  ANUÁRIO 201 1 Centro de Estudos de História do Atlântico ISSN: 1647-3949, Funchal, Madeira (2011) pp. 800-798 De náufrago na «Terra dos Fumos» a cativo na Inglaterra. O mar e o sertão no percurso de Nuno Velho Pereira From castaway in the ‘Land of the Pfumos’ to captive in England.The sea and the hinterland in the life and career of Nuno Velho Pereira Vítor Rodrigues IICT, Lisboa Manuel Lobato IICT, Lisboa

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ANUÁRIO 2011

Centro de Estudos

de História do AtlânticoISSN: 1647-3949,

Funchal, Madeira (2011)

pp. 800-798

De náufrago na «Terra dos Fumos»

a cativo na Inglaterra.

O mar e o sertão no percurso de

Nuno Velho Pereira

From castaway in the ‘Land of the Pfumos’ to captive in

England.The sea and the hinterland in the life

and career of Nuno Velho Pereira

Vítor Rodrigues

IICT, Lisboa

Manuel Lobato

IICT, Lisboa

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Notas curriculares

Vitor Luís Gaspar Rodrigues – Presidente do Conselho Cientíco doInstituto de Investigação Cientíca ropical; Director do Centro de His-tória do IIC; Investigador Auxiliar com Agregação do IIC; autor doslivros  A Geograa Eleitoral dos Açores de 1856 a 1884, contributo parao seu estudo, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986; Portugal yOriente: El proyecto Indiano del Rei Juan, em co-autoria com João PauloOliveira e Costa, Madrid, Ed. Mapre, 1992; A Batalha dos Alcaides –1514. No apogeu da presença portuguesa em Marrocos, em co-autoriacom João Paulo Oliveira e Costa, Lisboa, ribuna, 2007; Conquista deGoa, 1510-1512. Campanhas de Aonso de Albuquerque, vol. I, em co--autoria com João Paulo Oliveira e Costa, Lisboa, ribuna, 2008; O Esta-do da Índia e os Desaos Europeus. Actas do XII Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, em co-autoria com João Paulo Oliveira e

Costa (coord.), Lisboa, Centro de História de Além-Mar, FCSH/UNL/UAçores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portu-guesa/UCP, 2010.

Manuel Leão Marques Lobato - Nascido em 1956 em Lisboa, licen-ciado em História (1980), mestre em «História dos Descobrimentos eExpansão Portuguesa» (1993). Assistente de Investigação (1993-2004)no IIC (Instituto de Investigação Cientíca ropical, Lisboa). Actual-mente Investigador Auxiliar do IIC, posição adquirida em 2004 com a

tese de Comércio, Conito e Religião. Portugueses e espanhóis nas ilhasMolucas (1512-1618). Vice-coordenador do Centro de História do IICa partir de 2008 e coordenador (2008-2010) do Conselho Cientíco doIIC.

Docente no mestrado em Estudos Orientais do Instituto de EstudosOrientais da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e na graduaçãoem Estudos Asiáticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa(FLUL).

Duas bolsas de estudo pela Fundação Oriente (1991-1994 e 2001-2004).Quatro livros e mais de 35 trabalhos sobre a história da presença por-

tuguesa em Moçambique e na Costa Oriental aricana, na Índia e noarquipélago malaio-indonésio.

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Resumo

Nuno Velho Pereira desempenhou durante duas longas estadias noOriente as unções de cabo de guerra e de comandante de navios emparalelo com a de dalgo mercador, tendo a sua vida aventurosa cadomarcada por episódios extraordinários que a cronística e a literatura de

 viagens registaram.

Oriundo, tal como a generalidade dos chamados capitães da Índia, deuma linhagem secundária, possuía, no entanto uma estreita ligação àCasa do inante D. Luís, o que, aliado às suas qualidades militares e dechea, lhe permitiu ascender socialmente a um patamar que a sua con-dição de secundogénito não azia prever.

Ao contrário da maior parte dos capitães da Índia, não só sobreviveu auma existência extraordinariamente aventurosa, que lhe coneriu a amae o direito a ser elevado à condição de herói ímpar da história trágico--marítima, como também conseguiu, não obstante os grandes prejuízossoridos em naurágios, transerir para o Reino uma ortuna apreciável

que lhe permitiu terminar os seus dias com signicativa notoriedade.Palavras chave: História trágico-marítima; linhagem; dalguia; nobre-za; costa oriental aricana; sub-continente indiano; “Estado da Índia”;literatura de viagens; naurágios.

Abstract

During two long sojourns in Asia and Arica, Nuno Velho Pereira played

the role o soldier, commander o ship and captain o ortresses, alongwith the activity o a merchant dalgo. His adventurous lie was markedby extraordinary episodes recorded by chroniclers and travelogues.Born in a secondary lineage, like most o the ‘captains o India’, he had,however, a close connection to the house o Prince Louis, which, alongwith military and leadership qualities, allowed him to climb the socialladder to a level that his social origins as a second son could not predict.Unlike most o his peers, he survived extremely severe military expe-riences and adversities that have earned him ame and status as a uniquehero’s in the história trágico-marítima. He also succeeded, despite theheavy losses sustained in wrecks, in transerring to Portugal a consi-derable ortune and he spent his last days in his hometown, Santarém,enjoying a remarkable status.

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A gura sobre a qual agora nos debruçamos representa o paradigma da actuação dos chamados

«capitães da Índia». Nuno Velho Pereira, com eeito, desempenhou durante duas longas esta-dias no Oriente, não só as unções de cabo de guerra e de comandante de navios, mas também a dedalgo mercador, vindo, já no nal da vida, a revelar-se um elemento comprometido com a sua co-munidade, tendo deixado à Santa Casa da Misericórdia de Santarém uma parte signicativa da vastaortuna conseguida na Índia. A sua vida aventurosa, repleta de situações de grande risco, que tiveramlugar nos mais variados cenários, desde as ilhas atlânticas à costa de Ceilão, passando pela costa orien-tal aricana e pelo Mar Arábico, cou por isso marcada por episódios extraordinários que a cronísticae a literatura de viagens registaram1.

ratando-se de uma gura de algum relevo social, político-militar e administrativo, a sua acção,relativamente bem documentada, decorre em vários teatros operacionais da Ásia e de Árica, numperíodo habitualmente considerado de declínio, mas que a nova historiograa tem mostrado tratar-sede uma época de grande dinamismo e até de reorientação para objectivos mais ambiciosos por parteda coroa portuguesa no quadro da monarquia dual.

1. O homem e a carreira

Nuno Velho Pereira era lho segundo de Baltazar Velho e de D. Inácia Pereira, ambos com raízesamiliares em Santarém2 e que, em virtude da estreita relação que mantinham desde há muito com

1 Navragio / Da Nao Santo Alberto, / e Itenerario da gente, que delle se salvou. / Por João Baptista Lavanha / Cosmograo Mòr de Sua Magestade / Dedicado / Ao Principe Dom Philippe Nosso Senhor . / Em Lisboa, Em Caza de Alexandre de Siqueyra. / Anno de 1597. Com o título de «Relaçãodo Naurágio […]», na História Trágico-Marítima, compilada por Bernardo Gomes de Brito com outras noticias de naurágios , vol. V, Bibliothecade Classicos portuguezes, (XLIV), Lisboa, 1905, pp. 5-87. Ed. bilingue português-inglês: «Nauragio da Nao Santo Alberto No Penedo das Fontesno anno de 1593. Compiled in 1597, rom the manuscript journal kept by the pilot, by Joao Baptista Lavanha, chie cosmographer to the king»,  em G. M. Teal, Records o South-Eastern Arica collected in various libraries and archive departments in Europe, vol. II, Cidade do Cabo, 1964, pp.225-346. Digo do Couto, Década Undécima, Lisboa, 1788, Caps. XXII a XXVI, pp. 97-135, e Capts. XXVIII a XXXI, pp. 140-164. «Regimento quese ez por ordem do Snõr Vizorrej Matias d’Albuquerque tirado do Roteiro da viagem que ez por terra da Cararia a gente da nao Santo Albertogovernada por Nuno Uelho Pereira», Biblioteca da Ajuda, 52-VIII-58, s. 117-120v, publicado por Maria Emília Madeira H. Santos, «O CarácterExperimental da Carreira da India: Um Plano de João Pereira Dantas, com orticação da Árica do Sul (1556)», Coimbra, separata da Revistada Universidade de Coimbra, 1969 (reimp. Agrupamento de Estudos de História e Cartograa Antiga, «Série Separatas», 1969, n.º 29), pp. 48-53.Sobre o naurágio da nau Chagas: Tratado Das Batalhas, e Sucessos do galeam Santiago Com os Olandezes na Ilha de Santa Elena, E da Nao Chagascom os Inglezes entre as Ilhas dos Açores [...]. Escrito por Melchior Estacio do Amaral. Na Ofcina de Antonio Alvares. No Anno de 1604.

2 O Nobiliário de Felgueiras Gayo é o único que o apresenta como primogénito. C. Manuel José da Costa Felgueiras Gayo, Nobiliário de Famíliasde Portugal , Braga, Ed. Agostinho de Azevedo Meireles e Domingos de Araújo Aonso, 1940. odavia, a sua condição de secundogénito parece

estar muito mais de acordo com o percurso de vida dos dois irmãos, tendo Nuno Velho partido para a Índia, ao contrário do irmão Gaspar queserviu em ânger e que viria a morrer em Alcácer-Quibir, onde serviu ao lado de D. Sebastião. C. Nobiliário, por Diogo Gomes de Figueiredo, t.VI, p. 103. C. também Zeerino Sarmento, «Um santareno no Oriente: Nuno Velho Pereira. Notas biográcas», Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, vol. V, pt. I, Lisboa, 1960, pp. 263-275.

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a casa do Inante D. Luís (1506-1555), integravam a nobreza da corte. Com eeito, não só o seu avômaterno, Lopo Gomes Pereira, servira como amo do príncipe, mas também a sua mãe ora colaça da-quele, acabando mais tarde o seu pai, Baltazar Velho, por ali desempenhar as unções de escrivão daazenda. Sabemos, por outro lado, que quer o nosso dalgo, quer o seu irmão, Gaspar Velho Pereira,

eram, à data da morte de D. Luís, moços dalgos da sua casa3.Nuno Velho era ainda parente, por via do casamento da sua meia-irmã (D. Filipa Pessanha era

lha do primeiro casamento de seu pai com D. Inácia Pessanha), de uma outra gura grada da Corte,Manuel Coresma Barreto, que oi valido de D. Sebastião e seu Vedor da Fazenda, o qual acompanhouo monarca a Marrocos, aí morrendo. Desse casamento nasceu D. Bárbara Coresma, que viria a casarcom D. Rodrigo Lobo, 5.º Barão do Alvito, com quem aquele parece ter tido uma relação muito pró-xima, deixando-lhes a maior parte da sua vasta ortuna.

O nosso dalgo terá passado à Índia por volta de 1560, altura em que teria cerca de 20 anos (as-sentamos esta suposição no acto de sabermos que em 1555 surge reerenciado como moço dalgo da

casa de D. Luís, o que nos permite situar a sua data de nascimento por volta de 1540). Os anos seguin-tes oram passados a azer o seu tirocínio militar nas dierentes armadas que cruzavam o Índico, ounas ortalezas durante as invernadas, não havendo, naturalmente, qualquer reerência à sua pessoa nacronística em virtude da sua ainda reduzida importância social e militar.

A primeira reerência que encontramos a seu respeito no Oriente surge pela pena de Couto e re-ere que em 1565 era já capitão de um navio da armada de Gonçalo Pereira Marramaque, que procediaà guarda das cálas portuguesas a operar ao longo da costa ocidental indiana4. Dois anos mais tarde,integrava como capitão de uma usta a grande armada enviada para o norte pelo vice-rei D. Antão deNoronha5. De acordo com as inormações veiculadas por António Pinto Pereira, o nosso capitão teráentão comandado uma pequena esquadra de 10 ustas que se lhe haviam juntado em Damão, onde in-

 vernara, e de onde saíra com ordens expressas do governador para, durante o verão de 1568, controlara navegação e a costa do golo de Cambaia. Estava-lhe cometida ainda a tarea de socorrer as «praçasdo norte» no caso de um ataque das orças do Nizam ul-Mulk, sultão de Ahmadnagar 6. Em Outubrodesse ano, capitaneou uma pequena orça de 40 arcabuzeiros, gente de cavalo e de pé, no ataque à or-taleza do monte Parnel, próxima de Damão e que se encontrava em poder dos mogores, a qual viria adestruir após dois ataques extraordinariamente mortíeros, em que cou patente a sua temeridade e

 valentia, bem como a sua extraordinária capacidade de comando7.

Em nais de Outubro de 1570 Nuno Velho Pereira integrou como capitão de um navio a armadade D. Francisco de Mascarenhas, enviada para o Norte pelo vice-rei D. Luís de Ataíde, que, assim,procurava travar os ataques iminentes da coligação muçulmana à generalidade das praças portuguesas

não só no sub-continente indiano, mas também na Insulíndia8. A 3 de Janeiro de 1571 encontra-seem Chaúl deendendo com os seus homens uma das principais tranqueiras que serviam de escudo àpraça. Esta, como é sabido não possuía muralhas, razão pela qual oi necessário escavar cavas e erigirtranqueiras que, em paralelo com algumas habitações transormadas em verdadeiros baluartes, oramutilizadas pelos deensores portugueses para travar os ataques sucessivos das orças de Ahmadnagar,

3 C. Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, publ. por D. António Caetano de Sousa, omo IV, Parte II, Coimbra, 1950, p. 512.

4 C. Maria Augusta Lima Cruz, Diogo do Couto e a Década VIII da Ásia, cap. IX, vol. I, Lisboa, CNCDP-INCM, 1993, p. 75.

5 Idem, Ibidem, p. 224.

6 C. História da India no tempo em que a governou o VisoRei Dom Luís de Ataíde , Lisboa, INCM, 1987, p. 30.

7 Idem, Ibidem, p. 368 Luís Filipe Tomaz reere que o Estado da Índia se encontrava ameaçado por um eixo muçulmano que, indo de Constantinopla aos conns da

Insulíndia, envolvia os principais reinos muçulmanos pondo seriamente em risco a continuidade da presença portuguesa no Oriente. C. Luis Filipedos Reis Tomaz, «A crise de 1565-1575 na História do Estado da Índia», in Mare Liberum, n.º 9, Lisboa, CNCDP, Julho de 1995, pp. 485-486.

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muito superiores em número9.

Ao longo dos combates, que se prolongaram por vários meses, e que se encontram descritos comminúcia por Diogo do Couto e Pinto Pereira, o nosso dalgo viria a revelar todos os seus dotes mili-tares e guerreiros, não só em termos de destreza ísica e de bravura (bastante comum na dalguia daÍndia nessa altura e que não raro era responsável por graves insucessos militares), mas também, e so-bretudo, como estratega e condutor de homens, atributos que seriam decisivos mais tarde, por alturados naurágios em que se viu envolvido, para evitar males maiores 10.

Alcançada no campo de batalha a honra e glória que buscava para o seu engrandecimento pes-soal e do nome da sua amília, regressou ao Reino, em data que não pudemos precisar. erá, prova-

 velmente, embarcado em 1571 na armada de D. Luís de Ataíde que, terminado o seu triénio, deixavao Oriente depois de uma acção governativa extraordinariamente bem sucedida, a qual permitiu aoEstado da Índia sobreviver à mais grave crise político-militar de toda a sua história até à chegada dosHolandeses.

A 5 de Outubro de 1577 encontrava-se em Santarém, onde serviu de testemunha de uma petiçãode Aonso Vaz Viegas, antigo alcaide-mor de Goa e muito provavelmente seu antigo companheiro dearmas11. Aprestava-se, no entanto para partir de novo para a Índia, mas agora de posse da capitania deMoçambique, que lhe havia sido doada poucos dias antes, a 27 de Setembro 12, pelos serviços anterior-mente prestados na Índia. Via-se, assim, detentor de uma das mais desejadas capitanias do Oriente,em virtude dos elevadíssimos cabedais que aquela proporcionava aos seus capitães.

Alguns dias mais tarde, a 16 de Outubro de 1577, Nuno Velho Pereira partiu de novo para oOriente, integrado na armada do vice-rei D. Luís de Ataíde que o escolheu13 para capitanear o galeãorindade, que, tal como os restantes dois navios, se destinava a reorçar as esquadras portuguesas es-tacionadas no Índico14.

Após a sua chegada ao Índico terá continuado a servir como capitão nas dierentes armadasque todos os anos eram aparelhadas nas ribeiras de Cochim e Goa, sobretudo aqui, aguardando pelasua vagante dos providos para poder tomar posse da capitania de Moçambique, com que havia sidoagraciado. A vagante dos providos era uma orma de a Coroa distribuir um maior número de cargosdo que aqueles que estavam disponíveis em cada momento, entrando os nomeados na posse da suamercê por ordem cronológica da mesma. Podiam, no entanto, ter que esperar longos períodos, peloque as mercês podiam ser vendidas, doadas, legadas a herdeiros e instituições como qualquer outrobem móvel, embora com certas restrições impostas pela coroa, alcançando mesmo uma cotação nomercado. A de Moçambique, designada por «mercê de Soala», era das mais valiosas pelo rendimentoque proporcionava. Nuno Velho, que dela viria a tomar posse em 1583, oi o último a exercer tal car-

go antes do advento da contratação do trato dos Rios de Cuama, arrendado ao próprio capitão, novosistema que introduziu alterações de vulto na governação, administração e exploração comercial da

9 Sobre a organização militar da praça de Chaúl veja-se Vitor Luís Gaspar Rodrigues, «A Organização Militar da “Província do Norte” durante oséculo XVI e princípios do século XVII», in Mare Liberum, nº 9, Lisboa, C.N.C.D.P., Julho de 1995, pp. 247-259.

10 A dureza dos combates está bem patente nas elevadas baixas registadas em ambos os exércitos, tendo as capitanias de Nuno Velho e de D. Gonçalode Menezes sido das mais sacricadas porque se mantiveram na rente das reregas ao longo de praticamente todo o cerco. C. António PintoPereira, História da India no tempo em que a governou o VisoRei Dom Luís de Ataíde , já cit., pp. 506-527, 571-581 e 647-669; e Maria Augusta LimaCruz, Diogo do Couto e a Década VIII da Ásia, cap. IX, vol. I, pp. 32-71.

11 C. Índex das notas de vários tabeliães de Lisboa, vol. IV, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1949, p. 360.

12 C. Registo da Casa da índia, vol. I, introdução e notas de Luciano Ribeiro, Lisboa, AGU, 1954, pp. 203-204.

13 Ao receber as instruções das mãos do rei, a 15 de Outubro, D. Luís de Ataíde ter-lhe-á pedido para que Nuno Velho Pereira e João Álvares Soaresossem nomeados para o acompanharem, o primeiro pela sua experiência militar e o segundo pela experiência na arrecadação da azenda real

(c. Diogo Barbosa Machado, Memorias para a historia de Portugal, [...] delrey D. Sebastiaõ, […] Do anno de 1575 até o anno de 1578, t. IV, Lisboa,1751, p. 191).

14 C. Maria Hermínia Maldonado, Relação das Naos e Armadas da India com os successos dellas que se puderam saber, para noticia e instrução doscuriozos, e amantes da Historia da India, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985.

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costa oriental aricana ao sul do cabo Delgado15.

O seu desempenho no cargo de capitão da ortaleza de Moçambique, no triénio de 1583 a 1586,pautou-se por actos dignos de menção. Foi, como o próprio arma, o primeiro capitão a instalar-se nanova ortaleza de S. Sebastião da Ilha de Moçambique, cujas obras, iniciadas em 1558, oram conclu-ídas em 1583 a expensas próprias e de acordo com os seus conhecimentos da arte de orticar, dandoassim cumprimento à ordem régia nesse sentido16. Neste particular sabemos ainda que depois de haverterminado o seu triénio à rente da capitania de Moçambique, procedeu «de bom modo ao repairo econcerto das ortalezas da costa do Malabar», o que, em paralelo com o acto de ser um homem avi-sado e muito conhecedor das coisas do mar da Índia, lhe valeu ser escolhido pelo Governador Matiasde Albuquerque, em 1591, para o cargo de capitão-mór da armada do Malabar17. ratava-se, assim,de um homem de muitos saberes e oícios, aprendidos porventura durante as suas andanças asiáticase no próprio reino, onde terá interiorizado os princípios básicos dos sistemas abaluartados, surgidoscomo resposta à revolução da pólvora e aos avanços técnicos registados pela artilharia. O seu percursocomo cabo de guerra e o exercício de uma das principais capitanias da Índia, aliados à inuência de

que gozava em Lisboa, explicam, provavelmente, que o seu nome gure, em 1590, na segunda via desucessão como governador do Estado em caso de morte do vice-rei Matias de Albuquerque 18.

A sua passagem pela capitania de Moçambique permitiu-lhe construir rapidamente uma imensaortuna, como ele próprio declarou ao viajante holandês, Linschoten, quando este, em 1583, passoupela Ilha de Moçambique a caminho da Índia na companhia do dominicano Vicente da Fonseca, ar-cebispo de Goa, que o tomou ao seu serviço como guarda-livros. Linschoten escreveria, mais tarde,no seu célebre Itinerário19:

«digo que só o rendimento do capitão no período de três anos é superior a 300 mil duca-

dos, isto é, 900 mil orins de ouro, como, quando aqui estávamos ancorados, o própriocapitão Nuno Velho Pereira nos declarou, e a maior parte em ouro que vem de Soala eMonomotapa».

Não obstante, soreu também reveses de monta. Na travessia entre Moçambique e o Cuama, eec-tuada ora da monção propícia, por ser a mesma que podia trazer do Golo Pérsico armadas turcas so-bre aquela costa, perdeu um navio com azenda avaliada em 24 mil cruzados. Esta perda elevadíssimalevou-o a dizer em carta ao monarca:

«não espero hir desta ortaleza tão riquo como os reis passados, e Vossa Magestade, queme zerão mercê dela, cuidarão, mas quoando cuido que me ei d’ir aprezentar aos pés deVossa Magestade creio que me não levantarei deles, sem hir muito restaurado desta perda,e isto ma az sentir tão pouquo, que me não lembra.»20.

15 Manuel Lobato, «Maritime rade rom India to Mozambique. A Study on Indo-Portuguese Enterprise (16th to 17th Centuries)», K. S. Mathew(ed.), Ship-building and navigation in the Indian Ocean Region, Ad 1400-1800, Nova Delhi, Munshiram Manoharlal Publishers, 1997, pp. 113-131.

16 C. Carta Nuno Velho Pereira ao Rei, de 29 de Outubro de 1585, Moçambique, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na ÁricaCentral , vol. VIII, Lisboa, 1975, pp. 526-528.

17 C. Carta do rei ao governador da Índia, 18 de Fevereiro de 1595, in Archivo Portuguez Oriental , org. por Cunha Rivara, asc.º 3, pte. 2, n.º 162,cap. XIII, Nova Goa, 1861, p. 478.

18 Calendar o State Papers. Colonial Series. East Indies. China and Japan. 1513-1616 , Londres, 1862, p. 95.

19 Arie Pos e Rui Loureiro (eds.), Itinerário. Viagem ou Navegação de Jan Huyghen van Linschoten para as Índias Orientais ou Portuguesas , Lisboa,CNCDP, 1997, p. 82.

20 Carta de Nuno Velho Pereira ao rei, Moçambique, 29 de Outubro de 1585, Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na Árica Central ,

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A esta perda acrescem outras posteriores. Ainda em Moçambique e após Nuno Velho ter deixadoo cargo de capitão, o seu sucessor, D. Jorge de Meneses, aleres-mór de Portugal, sequestrou-lhe 80bares de marm no valor de 24 mil cruzados, um core com 4 mil cruzados em peças e tecidos, e umnavio seu com 12 mil miticais de ouro no valor de outros 24 mil cruzados 21. Ainda assim, estas perdas

não o impediram de, alguns anos mais tarde, nanciar o Estado da Índia em 11 000 xerans22. Viriaainda a perder uma boa parte da sua ortuna em especiaria, pedraria e outros objectos de grande valorno naurágio da nau Santo Alberto na costa do Natal, em 1593, como se dirá adiante.

Em 1584, ocorreu, no sertão da Macuana, o massacre de algumas dezenas de moradores portu-gueses e de um número indeterminado de escravos-soldados. Ficou a dever-se à imprudente iniciativadestes moradores que, contrariando as ordens de Nuno Velho e de Gaspar Quitério de Vasconcelos,castelão de Moçambique durante a ausência do primeiro em Cuama, tentaram repelir a invasão daregião ronteira à Ilha de Moçambique por populações aguerridas vindas do interior23. As ontes por-tuguesas designam estas migrações por Zimbas, ou Azimbas, e descrevem-nas reproduzindo ingenu-amente os mitos que circulavam entre os próprios aricanos. Nestas narrativas mistura-se o caniba-

lismo e destruição da natureza, mulheres-guerreiras, selvajaria e crueldade. Nuno Velho remediou asituação perseguindo e destruindo as orças rebeldes do rei Mauruça.

Da sua viagem de reconhecimento aos «Rios de Cuama», que teve por nalidade inteirar-se dasrealidades das minas de ouro e de prata existentes no vale do Zambeze, resultou uma avaliação noterreno sobre a orma como se deveria proceder para uma mais ecaz exploração das suas riquezasnaturais. Assim, transmitiu ao rei o parecer de que as minas deveriam ser conquistadas por uma orçade dois mil soldados e 200 cavalos e não exploradas através de comércio pacíco com os aricanos,recomendando que tal expedição deveria ter por objectivo central a conquista das minas de prata daChicova, nas imediações de ete24. ambém nisto se revelou um visionário e um hábil estratega, pois,embora esquecidos do seu parecer, oi esta a política que os portugueses acabariam por seguir trêsdécadas depois.

O conhecimento dos sertões e dos aricanos viria, mais tarde, por ocasião do naurágio de que oi vítima, a revelar-se de grande utilidade, permitindo-lhe salvar uma parte signicativa dos seus com-panheiros de inortúnio que, sob o seu comando, oram resgatados após uma longa caminhada que oslevou da costa do Natal até às terras de Moçambique.

Como se disse atrás, a sua sucessão na capitania de Moçambique, em nais de 1585, pelo aleres--mór de Portugal, D. Jorge de Meneses, caria marcada, a exemplo do que era usual nestas situações,por violentas conrontações entre os dois homens e respectivas clientelas. A questão nasceu do actode Nuno Velho ter deixado negócios pendentes e créditos por arrecadar ao terminar o seu mandato

em Moçambique, de que D. Jorge, que oi o primeiro contratador do trato de Moçambique e Rios deCuama (vale do Zambeze), se terá aproveitado, ao abrigo de cláusulas do contrato pelo qual o vice-reiD. Duarte de Meneses lhe arrendou o estanco dos tratos naqueles Rios. A actuação do aleres-mór vio-lava os regimentos régios que impediam as autoridades de intererir com os capitães cessantes até lhesser tirada sindicância (residência) do seu desempenho e suscitou a reacção de Nuno Velho em queixa

 já cit., vol. VIII, p. 532.

21 Copia da petição de Nuno Velho Pereira que oi a Sua Magestade em 7 de Janeiro de 89, ibid ., p. 540.

22 À data da realização do seu testamento, 31 de Dezembro de 1601, a Coroa ainda lhe devia 6.000 xerans. Testamento de Nuno Velho Pereira.Testamentos e Capelas, in   Arquivo da Misericórdia de Santarém, cód. 658, apud  Zeerino Sarmento, «Um santareno no Oriente: Nuno VelhoPereira. Notas biográcas», já cit., p. 270. Em 1630, o assunto voltava a merecer a atenção do vice-rei da Índia, ao qual o monarca ordenou quepagasse em prestações a dívida em causa a D.ª Madalena de Castro, sobrinha de Nuno Velho. C. Carta régia para o vice-rei, Lisboa, 20 de Marçode 1632, publicada por Germano Correia na História da colonização portuguesa na Índia,  vol. III, Lisboa, 1951, pp. 16-17.

23 Carta de Nuno Velho Pereira ao rei, Moçambique, 29 de Outubro de 1585, Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na Árica Central , já cit., vol. VIII, p. 530.

24 Id., ibid ., pp. 526-528.

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dirigida ao monarca25. O conito arrastar-se-ia ao longo dos anos, com ambos os contendores a apela-rem para a intervenção do monarca e a recorrerem ao ribunal da Relação de Goa. Este processo, emque ambos se acusavam de deraudar o erário régio, só terminaria por morte de Nuno Velho, apesardo monarca, que procurou manter-se equidistante no conito e remeteu a solução para as instâncias

 judiciais, ter procurado também conciliar as partes desavindas26.Em Goa, Nuno Velho Pereira oi um dos dalgos mais desconsiderados pelo governador Manuel

de Sousa Coutinho (1588-1591)27, porventura por divergências quanto à condução dos negócios doEstado. Encontrando-se em Cananor, em 1591, oi nomeado capitão-mor da armada do Malabar, pordestituição de André Furtado de Mendonça, a quem sucedeu, em virtude da acção deste em Ceilãonão ter agradado ao vice-rei Matias de Albuquerque. Nuno Velho, no entanto, recebeu Furtado deMendonça no mar com toda a pompa e circunstância que se devia a um homem que desempenharaaltos cargos no Estado da Índia e que era, à época, considerado já um herói de guerra e um grandegeneral28. A descrição desta cerimónia pelos cronistas mostra que não era hábito entre os portuguesesconcederem-se tais honras a pessoas caídas em desgraça e visa atestar o carácter e as qualidades hu-

manas da gura em análise29.

2. O modelo de herói na História trágico-marítima

Os anos de 1593 a 1595 haveriam de se revelar os mais conturbados na vida de Nuno Velho Pe-reira. Rico e agraciado com os mais altos cargos a que podia aspirar por condição e mérito próprio,decidiu regressar ao Reino após 16 anos de ausência. A 21 de Janeiro de 1593, partiu de Cochim nanau Santo Alberto, sendo o mais rico e prestigiado dalgo a bordo. A 23 de Março, devido a rombo, anau encalhava no Penedo das Fontes, na costa do Natal, em 32º e meio S.

Desde que o rombo se declarou, Nuno Velho oereceu alvíssaras pela sua reparação, o que se  vericou impraticável; em seguida conseguiu desimpedir o convés, oerecendo-se para pagar, comcravo-da-Índia que trazia, as azendas que se deitassem ao mar. Entupidas as bombas de água compimenta, oi o primeiro a descer ao porão suspenso por cordas para encher barris e manter o navio autuar. Como conhecedor de Moçambique e dos Rios de Cuama, partiu dele a ideia de se recolheremas armas de ogo e demais apetrechos indispensáveis à sobrevivência entre as populações aricanas.

O exemplo do seu esorço, risco e empenho, conrmando a reputação que adquirira na Índiae em Moçambique, pesaram na sua eleição como capitão-mor dos náuragos. Foi eleito, no dizer deJoão Baptista Lavanha, «por sua nobreza, prudência, esorço, e experiência». Inicialmente recusou tal

responsabilidade, apontando em seu lugar o capitão da nau, Julião Faria de Cerveira, que havia dadomostras de grandes qualidades de comando. Cedeu, contudo, perante a ameaça dos soldados de queabandonariam os náuragos à sua sorte se não aceitasse.

Doravante, conrma-se como centro da acção e protagonista de uma aventura sem paralelo nosanais da história marítima. O Pro. Boxer, com o rigor a que nos habituou, escreveu:

25 Copia da petição de Nuno Velho Pereira que oi a Sua Magestade em 7 de Janeiro de 89, ibid ., p. 540.

26 C. Carta do rei para o vice-rei D. Duarte de Meneses, de 21 de Janeiro de 1588, ibid ., p. 538; Sumário das cartas régias para o vice-rei D. Duartede Meneses de 21 de Janeiro e 14 de Março de 1588, 6 de Fevereiro de 1589, e para Matias de Albuquerque, de12 de Janeiro de 1591, Boletim daFilmoteca Ultramarina Portuguesa, n.º 2, 1955, pp. 281, 286, 296 e 307.

27 Carta de r. Manuel Pinto ao rei, Reis Magos [Bardês], 20 de Novembro de 1589, publ. por Félix Lopes, OFM, «Os Franciscanos no OrientePortuguês de 1584 a 1590», Stvdia, n.º 9, Jan. 1962, doc. XIII, p. 140.

28 Alredo Botelho de Sousa, Subsídios para a história militar marítima da Índia, vol. I, Lisboa, 1930, p. 282-283.

29 C. R. Boxer e Frazão de Vasconcelos, André Furtado de Mendonça, Macau, Fundação Oriente - Centro de Estudos Marítimos de Macau, 1989[Lisboa, 19551], pp. 18-19.

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«Even the most hostile critics o Portuguese behaviour have been constrained to admitthat Nuno Velho Pereira’s leadership in 1593-4 could not have been surpassed, and themarch o the survivors rom the Santo Alberto through the hinterland o Natal is generally admitted to have been the outstanding eat o its kind»30.

A odisseia dos náuragos da nau Santo Alberto é sobejamente conhecida. rata-se do texto Na-vragio / da nao Santo Alberto, / e Itenerario da gente, que delle se salvou. / por João Baptista Lavanha / Cosmograo Mòr de Sua Magestade / dedicado / ao Principe Dom Philippe Nosso Senhor. / Em Lisboa,em caza de Alexandre de Siqueyra. / Anno de 1597 31. Logo de início, Lavanha arma ter-se limitado aescrever um «breve tratado, resumindo nelle hum largo cartapacio, que desta viagem ez o Piloto dadita Nao; o qual emendey, e veriquey com a inormaçaõ, que depois me deo Nuno Velho Pereyra,Capitaõ mòr que oy dos Portuguezes nesta Jornada». Baseou-se pois num detalhado diário, hoje per-dido, escrito pelo piloto Rodrigo Miguéis.

O texto de Lavanha, não obstante ser um resumo, é muito circunstanciado e mantém a estruturado diário em que se baseou. É também mais comedido na atribuição de responsabilidades pelo nau-rágio do que Diogo do Couto, na narrativa incluída na Década Undécima32, a qual, por sua vez, é umresumo do diário de Lavanha e, como ela, mantém, especialmente no início e no nal da narrativa,algumas das características do diário, o que não é invulgar na cronística desta época, dispensandodepois ao itinerário por terra um tratamento muito sumário.

A narrativa de Lavanha inclui-se nos tópicos maiores da História rágico-Marítima, o do naurá-gio seguido de «peregrinação», na terminologia de Giulia Lanciani33 para designar o que talvez seja amaior das demandas: a salvação colectiva, com tudo o que isso pode implicar de dimensão salvíca,escatológica e messiânica, mesmo sem Salvador ou Messias. E aqui, quer-nos parecer que nesta nar-

rativa há um outro tópico, descurado talvez pelos estudiosos do género, apesar de estar presente doprincípio ao m a acção: o herói.

Não o herói que meramente pratica actos de bravura e de que a cronística está repleta, pois, deacto, desde que toma o comando, Nuno Velho Pereira não os pratica, nem coloca em risco a própria

 vida, mas o herói responsável e condutor do seu povo pelos dédalos de um inerno onde, para o su-perar, apenas pode contar com as suas qualidades morais e orça de carácter. É esse o leitmotiv destahistória: o chee que toma as melhores decisões em unção do bem de todos, que se preocupa com osmenores detalhes, que arma a sua autoridade com brandura e rmeza, que respeita o aricano, seupotencial inimigo, o conquista pela deerência e o mantém connado mediante o eeito psicológicodesencadeado pela suposta magia da arma de ogo.

Nuno Velho Pereira convenceu os companheiros a caminharem através do interior em direcçãoà Baía de Lourenço Marques, em vez de seguirem ao longo da costa, trajecto mais longo e cheio dediculdades, descrevendo-lhes o que se passara quatro anos antes com os náuragos da nau S. omé,cujo relato, escrito pelo sota-piloto, Gaspar Ferreira Reimão, ele lera em Goa. E no discurso que então

30 C. R. Boxer, «An Introduction to the História Trágico-Marítima»,  Miscelânea de Estudos em honra do Proessor Hernani Cidade. Revista daFaculdade de Letras, 3.ª série, n.º 1, Lisboa, 1957, pp. 48-99, reimp. em From Lisbon to Goa, 1500 1750: studies in Portuguese maritime expansion,Hampshire, Collected studies series, Variorum Reprints, 1990, p. 99.

31 Esta narrativa conheceu desde então várias reedições, quer anteriores quer posteriores à sua inclusão na História Trágico-Marítima compiladapor Fr. Bernardo de Brito, tendo sido traduzida para inglês  como NAUFRAGIO / DA NAO SANTO ALBERTO / No Penedo das Fontes no annode 1593/Compiled in 1597, rom the manuscript journal kept by the pilot, by Joao Baptista Lavanha, chie cosmographer to the king. // ed. bilingueportuguês-inglês, em G. M. Teal, Records o South-Eastern Arica collected in various libraries and archive departments in Europe, vol. II, Cidadedo Cabo, 1964, pp. 225-346.

32 Couto, Década Undécima, Lisboa, 1788, caps. XXI a XXIII, pp. 97 e ss.

33 Os relatos de naurágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII , Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, Biblioteca Breve, Série Literatura,n.º 41, 1979.

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ez, citou de cor outros relatos de naurágios ali ocorridos em meados do século. Lourenço Marques,como ele bem sabia, era o ponto mais a sul para onde o capitão de Moçambique, cargo que ocupara,enviava cada dois anos um navio a comerciar marm.

O nosso herói surge ainda como o protector das damas, especialmente de uma D.ª Isabel Pereira ede sua lha D.ª Luísa de Melo, donzela muito ormosa de 16 anos de idade. D.ª Isabel Pereira era lhade Francisco Pereira, que ora capitão e tanadar-mór de Goa, e viúva de Diogo de Mello Coutinho, queora capitão de Ceilão. Lavanha diz que Nuno Velho Pereira a «acompanhava e amava», expressão queCouto mudou em «acompanhava e estimava»34, mas destes amores, de um homem que sabemos termorrido solteiro e sem descendência, nada se sabe.

Já de idade e longa barba, caminhava em passo lento pelo qual se guiava toda coluna convertidaem arraial, com vanguarda, retaguarda, etc. As dalgas seguiam em andores levados por escravos domesmo Nuno Velho. Da nau salvou-se uma caixa com peças de ouro e prata que lhe pertenciam. a qualmandou entregar ao tesoureiro do arraial para que o produto da venda osse distribuído em partes

iguais por todos, como viria a ser à chegada a Moçambique, tendo rendido a sua venda 1600 cruzados.Os sobreviventes da Santo Alberto encontraram na Baía de Lourenço Marques a eitoria portu-

guesa instalada na ilha dos Portugueses, então designada por ilha do Inhaca, do nome do rei que osacolheu até embarcarem no navio Nossa Senhora da Salvação, enviado pelo capitão de Moçambique,D. Pedro de Sousa, ao trato de marm naquela baía e no cabo das Correntes. Era capitaneado por Ma-nuel Malheiro e pilotado por Baptista Martins, piloto que se salvara da perda da nau Santiago naquelacosta, em 158535, tendo Martins sido uma das ontes de inormação a que recorreu Diogo do Coutopara escrever o relato desse naurágio36.

Vinte e oito náuragos, que não couberam no navio, seguiram a pé para Soala, onde se encon-trava o dominicano Frei João dos Santos, o qual relata na sua Etiópia Oriental que «polas desordens,

e demasias que tiveram, e usaram com os cares no caminho, oram mortos polos mesmos cares, emuito poucos escaparam, que oram ter a Soala. Onde se viu claramente a alta que lhes ez Nuno Ve-lho Pereira, o qual com sua prudência, e bom governo os tinha guiado, e sustentado por toda a terra dacararia, até à ilha do Inhaca, com muita paz, e quietação, sem algum deles perigar, nem ser arontadode tantas, e tão diversas nações de cares, que acharam»37.

Ao chegarem a Moçambique, os náuragos da Santo Alberto puderam embarcar na nau CincoChagas, capitânia da mesma armada de torna-viagem desse ano de 1593, cujo capitão-mór era Fran-cisco de Melo Canaveada ou Canaveado, irmão do Monteiro-mor. Esta nau, «muito grande e ormo-sa», construída em Baçaim38, arribara a Moçambique juntamente com a N.ª S.ª da Nazaré, capitão BrásCorreia, que neste porto cou impossibilitada de prosseguir viagem. Por essa razaão, a Chagas recebeu

a sua azenda e passageiros, bem como os náuragos da Santo Alberto39, ainda que alguns tivessempreerido regressar à Índia a embarcar numa nau tão sobrecarregada e sobrelotada, com 400 pessoas abordo, das quais 270 eram escravos. Nuno Velho Pereira oi dos que arriscaram a passagem juntamen-te com D.ª Isabel e D.ª Luísa, suas protegidas.

O protagonismo de Nuno Velho Pereira na destruição desta nau pelos ingleses, ao largo dosAçores, não passou despercebido à generalidade dos autores que se ocuparam da história trágico-

34 Década Undécima, cit., p. 105.

35 Caetano Montez, Descobrimento e undação de Lourenço Marques. 1500-1800, Lourenço Marques, 1948, pp. 33 e 41.

36 Boxer, «An Introduction to the História Trágico-Marítima», já cit., p. 67.

37 Etiópia Oriental e Cousas de Vária História do Oriente, Lisboa, CNCDP, 1999, cap. XV, p. 578.

38 Em Goa, segundo Couto (Década Undécima, Lisboa, 1788), p. 97.

39 Frei João dos Santos declara «Achámos aqui mais nesta ilha a Nuno Velho Pereira com toda a gente, que se salvou da perdição da nau S. Alberto, ea mais dela se tornou a embarcar nesta nau Chagas pera Portugal» (Etiópia Oriental e Cousas de Vária História do Oriente , já cit., cap. XIV, p. 576).

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-marítima40. A Chagas partiu de Moçambique em Novembro; dobrado o Cabo da Boa Esperança, ocapitão Canaveado anunciou as instruções do vice-rei Matias de Albuquerque para não escalar a ilhade Santa Helena nem o Brasil, mas Luanda, como ez. Sem água nem mantimentos para alcançar oReino, decidiu o capitão escalar os Açores e logo todos a bordo se prepararam para o combate quase

certo com os corsários ingleses. Estes oram avistados a 22 de Junho de 1594, tratando-se de três nausinglesas do conde de Cumberland, que haviam zarpado de Plymouth no início de Abril, capitaneadaspelo capitão de inantaria Cave.

O combate travou-se à entrada do canal que separa as ilhas do Pico e Faial. Faltando, porém,bombardeiros, mortos de doença, oram substituídos por dalgos, entre os quais o nosso Nuno Velho.Os deensores repeliram duas tentativas de abordagem, a segunda das quais mediante o expediente deNuno Velho, que incendiou a vela inglesa mais próxima com uma lança de ogo. Aliás, ele recusara umposto certo a bordo, preerindo car livre para acudir onde mais necessário osse. Ao cabo de muitashoras de combate a nau pegou ogo e os portugueses atiraram-se à água, onde oram todos mortos,excepto 13, uns «por respeito de alguns bisalhos de pedraria, que lhes mostraram», e Nuno Velho e

Brás Correia por este ter prometido bom resgate41. Finalmente a nau explodiu e aundou-se.

Neste passo, o cronista reproduz uma ala de D.ª Luísa de Melo, a qual oi decerto recolhida dodepoimento de Nuno Velho Pereira. Diz Couto:

«Neste lance oi que Dona Luiza de Mello entrou a ormar queixas contra a sua ortuna,dizendo: ‘Quanto melhor me ora acabar no naurágio da náo Santo Alberto, ou car en-terrada nas aréas da Cararia; porque se me uccedéra qualquer destas cousas, nao meachara agora em tão acerba aficção. Cruel ortuna, pêra que me lisongeaste com teusavores, se me havias de enganar tão cruelmente? Ingratas aréas da Cararia, que cubristes

e comestes Dona Leonor de Sá, por que não tivestes comigo a mesma piedade quando por vós caminhei três mezes, e nelles trezentas léguas?»42

Os ingleses, que soreram 235 baixas, entre mortos e eridos, recorreram aos prisioneiros NunoVelho e Brás Correia43 como intérpretes para intimarem a nau S. Filipe a render-se. Esta, que saíra deLisboa, conseguiu escapar. Os dalgos portugueses oram conduzidos a Inglaterra, onde chegaram a28 de Agosto de 1594, tendo sido bem tratados pelo conde de Cumberland e resgatados passado umano pela quantia de 3.000 cruzados, que Nuno Velho pagou por ambos.

40 C. Giulia Lanciani, Os relatos de naurágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII , cit., p. 127.

41 Frei João dos Santos diere neste ponto. C. Etiópia Oriental e Cousas de Vária História do Oriente, já cit., cap. XV, p. 579.

42 Década Undécima, cap. XXIX, p. 154.43 «Narrative o the Destruction o a great East India Carak, in 1594, written by Captain Nicholas Downton», Hakluyt’s Voyages, vol. V, apud Robert

Kerr (ed.), A general history and collection o voyages and travels, vol. VII, Londres, 1824, pp. 456-460. Downton reere terem sido recolhidos daágua «two gentlemen. One o them was an old man named Nuno Velio Pereira (...). Te other was named Bras Carrero» (p. 459).

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Conclusão

A gura de Nuno Velho Pereira enquadra-se no perl habitual dos chamados capitães da Índia,

grupo constituído na sua grande maioria por dalgos secundogénitos de média condição, oriundos deramos amiliares colaterais. No entanto, a sua ligação estreita à casa do inante D. Luís, por um lado,e as suas qualidades de chea militar e administrativa, bem como a experiência adquirida em impor-tantes cenários de guerra, por outro, coneriram-lhe uma relevância social e política que a sua origemnão permitia prever.

Assim, estamos perante um dalgo cuja ascensão social se ez através duma brilhante olha deserviços, militar e administrativa, que lhe possibilitou a aquisição de uma enorme ortuna no exer-cício de cargos públicos, designadamente na capitania de Moçambique, e que oi coroada com a suanomeação para as vias de sucessão no governo do Estado da Índia. Constitui também um dos poucoscasos documentados em que as riquezas adquiridas ao longo da sua carreira, não obstante os grandes

prejuízos soridos em naurágios, oram sendo transeridas para o reino, proporcionando-lhe um nalde vida com alguma notoriedade.

Ao contrário da maior parte dos capitães da Índia, sobreviveu a uma existência por demais aven-turosa, repleta de situações limite, em que tantas vezes esteve perto de perder a vida, e que lhe coneriua ama e o direito a ser elevado à condição de herói ímpar da história trágico-marítima. Dicilmentese encontrará neste género literário uma gura que alie o sucesso pessoal e as qualidades de carácteràs desventuras da ortuna, e que, tendo sobrevivido onde todos os demais pereceram, conduza o leitora um desecho que, embora trágico, é também único: a condição de herói que a própria sobrevivêncialhe granjeou.