luz na neve - anita shreve

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Luz Na Neve - Anita Shreve

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Luz na Neve

Luz na Neve.

Anita Shreve.

Para l da janela da oficina do meu pai, a luz de meados de Inverno rasa a neve. O meu pai levanta-se e endireita as costas.

- Como correu a escola?

- Bem - respondo.

Pousa a plaina e vai buscar o casaco pendurado num cabide. Passo a mo pela superfcie da mesa. A camada de p forma uma pelcula enfarinhada no tampo, mas por baixo tem uma macieza acetinada.

- Ests pronta?

- Estou.

Eu e o meu pai samos para o frio. O ar, seco e imvel, fere-me o nariz quando respiro. Atamos os atacadores das raquetes de neve e batemo-las com fora contra o cho. A casca das rvores tem uma cor ferruginosa e o sol desenha sombras purpurinas atrs das rvores. De tempos a tempos, a luz emite um brilho de vidro martelado.

Caminhamos num passo rpido, esquivando-nos s ramadas dos pinheiros, mas de quando em quando somos surpreendidos por uns pingos de gua na nuca.

- Sinto-me como se fosse um co. Vamos fazer um pouco de exerccio de fim de dia.

A quietude da floresta sempre uma surpresa, como um auditrio silencioso e expectante antes do espectculo. Por entre o si lncio, escuto o rumorejar das folhas mortas, o estalido de um galho, um riacho que corre sob a leve camada de gelo. Para l do bosque, ouve-se o queixume cavo de um camio na estrada 89, o ronco de um avio que ruma em direco a Lebanon. Seguimos por um trilho familiar, que acaba num muro de pedra perto do cume. O muro, que forma trs lados de um quadrado, delimitava em tempos a propriedade de um fazendeiro. A casa e o celeiro desapareceram, s restam as fundaes. Quando chegamos junto ao muro, o meu pai s vezes senta-se-lhe em cima a fumar um cigarro.

Embora tenha agora trinta anos, nesta tarde de meados de Dezembro tenho doze e ignoro ainda que a puberdade est mesmo ao virar da esquina e que o inexorvel narcisismo da adolescncia far com que em breve as caminhadas na floresta na companhia do meu pai sejam a ltima coisa que me apetece fazer depois de um dia de aulas. Dar longos passeios juntos foi um hbito que eu e o meu pai adquirimos. Ele passa demasiadas horas dobrado, a trabalhar, e sei que tem necessidade de sair.

Assim que a mesa estiver pronta, o meu pai vai p-la na sala da frente ao p dos outros mveis que j fez. Dez peas em dois anos no uma coisa por a alm, mas a verdade que teve de aprender sozinho nos livros. Aquilo que no consegue aprender num manual, pergunta a um homem chamado Sweetser, o dono do armazm de ferragens.

O mobilirio do meu pai simples e rudimentar, o que se coaduna com ele. Possui linhas modestas e acabamentos aceitveis, embora nada disso interesse. O que importa

que a oficina o mantm ocupado e diferente de tudo o que fez at agora.

Um ramo estala e arranha-me a face. O sol declina. Restam-nos uns vinte minutos de luz. O caminho de regresso a casa fcil, sempre a descer, e pode ser feito em menos de dez minutos. Ainda temos tempo para chegar ao muro.

nesse momento que ouo o primeiro gemido e penso que um gato. Paro debaixo de um dossel de pinheiros, escuta, e ouo-o outra vez. Um choro rtmico, uma espcie de vagido.

- Pai

Dou um passo em direco ao som, mas este cessa to abruptamente como comeou. Atrs de mim, a neve cai com um baque surdo no cho.

- um gato - diz o meu pai.

Iniciamos a ngreme subida. Sinto os ps pesados. Quando alcanamos o cimo, o meu pai observa a luz e, se houver tempo, senta-se no muro de pedra e tenta avistar a nossa casa, uma nesga amarela atravs das rvores.

- Ali - dir-me-, apontando para o sop da colina -, consegues v- la, agora?

O meu pai perdeu o peso de um homem que, em tempos, levou uma vida sedentria. As calas de ganga esto pudas nas ancas e tm manchas de serradura cor de ferrugem.

Quando muito, s faz a barba de dois em dois dias. A suaparka bege tem ndoas de leo, de graxa e de resina de pinheiro. ele quem corta o seu prprio cabelo e os seus olhos azuis so uma constante surpresa.

Sigo os seus passos e orgulho-me por j no ter dificuldade em acompanhar a sua passada. Por cima do ombro, atira-me uma tablete de chocolate, que apanho no ar.

Descalo as luvas, enfio-as debaixo do brao e comeo a rasgar o papel celofane. Nesse instante, ouo o rudo distante da porta de um carro a bater.

Escutamos o som de um motor a arrancar. Parece vir dos lados de um motel na vertente nordeste da colina. A entrada do motel fica mais fora dos limites da cidade do que a estrada que leva nossa casa, pelo que raramente passamos por l de carro. No entanto, sei que fica ali e, s vezes, nos nossos passeios, avisto-o atravs das rvores - um edifcio baixo com um telhado de telhas vermelhas, que faz bom negcio na poca do esqui.

Ouo, ento, um terceiro gemido, pungente, suplicante, que se dilui num estremecimento.

- Hei! - exclama o meu pai.

Apesar das raquetes de neve, comea a correr o mais que pode na direco do grito. A cada dez passadas, estaca, deixando-se guiar pelo som. Sigo-o, enquanto o cu escurece. Ele tira uma lanterna da algibeira e acende-a.

- Pap - chamo, sentindo o pnico aumentar dentro do peito.

O feixe de luz ziguezagueia na neve, medida que corre. O meu pai agita o feixe de luz num arco, para a frente e para trs, de um lado ao outro. A lua surge no horizonte, para nos acompanhar na nossa busca.

- Est a algum? - chama o meu pai.

Contornamos a base da vertente. O feixe de luz vacila e o meu pai sacode a lanterna para restabelecer o contacto das pilhas.

Escorrega-lhe da mo enluvada e cai numa pequena cavidade de neve ao lado de uma rvore, gerando um tmido e lgubre cone de luz sob a superfcie. Inclina-se para a apanhar e, ao levantar-se, a luz incide sobre um pedao de tecido azul axadrezado no meio das rvores.

- Hei! - chama o meu pai.

O bosque permanece silencioso, troando dele, como se tudo no passasse de um jogo.

O meu pai agita a lanterna de um lado para o outro. Interrogo-me se no devamos virar costas e regressar a casa. noite, perigoso andar na mata, muito fcil uma pessoa perder- se. O meu pai d mais um passo com a luz da lanterna, depois mais outro, mas tem de avanar vinte passos at captar de novo o pedao de xadrez azul.

Cado na neve est um saco-cama, com um dos cantos de flanela revirado junto abertura.

- Fica a - diz-me o meu pai.

Vejo-o correr nas suas raquetes de neve, como acontece s vezes nos sonhos - sem conseguir mover as pernas com rapidez. Avana curvado para imprimir maior impulso ao corpo e mantm a luz focada com firmeza no saco. Quando chega ao p do tecido axadrezado, abre-o. Ouo-o emitir um som como nunca tinha ouvido antes. Cai de joelhos na neve.

- Pap! - grito, ao mesmo tempo que corro para ele. Agito os braos e sinto-me como se algum me estivesse a comprimir o peito. O gorro cai-me, mas continuo a avanar atabalhoadamente atravs da neve. A minha respirao ofegante quando chego ao p dele. No me diz que me afaste. Baixo os olhos para o saco-cama.

Um rosto minsculo fixa-me, com os olhos muito abertos apesar das mltiplas pregas de pele. O cabelo preto espetado est pegajoso, impregnado das substncias do parto. O beb est embrulhado numa toalha manchada de sangue e tem os lbios roxos.

O meu pai inclina-se e aproxima o rosto da boca pequenina. Permaneo em silncio, sem proferir uma nica palavra.

Com um gesto rpido, apanha o saco-cama gelado, aperta-o contra si e levanta-se. O tecido ordinrio e escorregadio, e no consegue segur-lo bem.

Estendo os braos para segurar o beb.

Ele volta a ajoelhar-se na neve. Pousa o seu fardo, corre o fecho clair do casaco e puxa com fora a camisa de flanela, fazendo saltar os botes. Afasta a toalha ensanguentada que envolve a criana. Uns vinte centmetros de uma coisa, que vim mais tarde a saber ser o cordo umbilical, pende do umbigo do beb. O meu pai estreita a criana contra a pele, mantendo-lhe a cabea direita na palma de uma das mos. Os gestos dele so rpidos, mas, de algum modo, mesmo sem ter conscincia de ter olhado, compreendo que a criana uma rapariga.

O meu pai pe-se de p, cambaleante. Envolve a criana na camisa de flanela e na parka, e aperta o casaco com fora com ambos os braos, a aconchegar a sua trouxa contra o peito.

- Nicky - diz o meu pai.

Olho para ele.

- Agarra-te ao meu casaco, se for preciso, mas no fiques para trs mais de um ou dois passos.

Seguro-me bainha da suaparka.

- Mantm a cabea baixa e observa os meus ps.

Avanamos seguindo o cheiro do fumo. s vezes aspiramos os cheiros, outras no. Distingo os vultos das rvores, mas no vejo os ramos

- Segura-te bem - diz o meu pai, mas no sei se se dirige a mim ou criana que aperta contra o peito.

a deslizar ou a correr que descemos a colina. Sinto as coxas a arder com a tenso dos msculos. O meu pai perdeu a lanterna quando deixou o saco-cama na neve e no h tempo para voltar atrs procura. Caminhamos no meio das rvores, e os galhos arranham-me o rosto. Tenho o cabelo e o pescoo ensopados da neve derretida que volta a gelar. De quando em quando, sinto um assomo de medo: estamos perdidos e no vamos conseguir tirar o beb dali a tempo. Vai morrer nos braos do meu pai.

No, no, digo a mim mesma, no vamos deixar que isso acontea. Se no conseguirmos chegar a casa, acabaremos por ir ter auto-estrada. No pode ser de outra maneira.

Avisto a luz do candeeiro na oficina do meu pai.

- Pap, olha!

As ltimas centenas de metros parecem-me a maior distncia que alguma vez percorri na minha vida. Abro a porta e escancaro-a para o meu pai entrar. Entramos no celeiro calados com as raquetes de neve e dirigimo-nos ao fogo de lenha. O meu pai senta-se numa cadeira, abre o casaco e olha o rosto pequenino. O beb tem os olhos fechados e os lbios ainda arroxeados. O meu pai encosta as costas da mo sua boca e, pelo modo como fecha os olhos, percebo que a criana respira.

Desaperto as correias das minhas raquetes de neve e, a seguir, as do meu pai.

- Chamamos uma ambulncia? - pergunto.

O meu pai abana a cabea.

- No sei se uma ambulncia conseguir subir a colina. E se ficar atolada, a estrada fica bloqueada e, ento, ningum a poder levar para o hospital. - Apertando a criana contra si, o meu pai pe-se de p. - Vem comigo - diz.

Transpomos a porta do celeiro, metemos pela passagem que leva casa e entramos no vestbulo das traseiras. O meu pai galga os degraus dois a dois e dirige-se ao quarto. H roupa espalhada no cho e uma pilha de revistas em cima da cama. raro entrar no quarto do meu pai. Pega numa camisola, mas atira-a para o lado por causa da l spera. Agarra numa camisa de flanela e repara que ainda no foi lavada. Num dos cantos, est um cesto de roupa suja de plstico azul que eu e o meu pai levamos

lavandaria quase todas as semanas. Mais tarde usa-o como uma espcie de gaveta de secretria.

- D-me aquilo - diz-me, apontando o cesto.

Com um dos braos, varre as revistas de cima da cama. Pouso o cesto de roupa suja em cima do colcho. Ele tira o beb para fora, embrulha-o em duas camisas de flanela lavadas, com a parte da frente virada para as costas, o pequeno rosto a assomar por cima das dobras. Aconchega os lenis dentro do cesto, uma espcie de alcofa, onde deposita docemente a criana.

- Pronto - exclama, para se acalmar. - Agora, est tudo bem.

Subo para a carrinha e o meu pai coloca-me o cesto no colo.

- Sentes-te bem? - pergunta.

Digo que sim com a cabea, consciente de que no possvel outra resposta.

O meu pai entra no carro e mete a chave na ignio. Sei que est a pedir aos cus para que o motor pegue. No Inverno, s metade das vezes responde primeira tentativa.

Consegue transformar o resfolegar do motor num lamento. Tenho medo de olhar para a criana dentro do cesto de plstico, tenho medo de no ver as pequenas baforadas de respirao no ar glido, que reproduzem as minhas.

O meu pai conduz o mais depressa que pode sem correr riscos. Sinto os dentes a ranger nas gengivas. O caminho gelado tem sulcos abertos pelas primeiras neves que caram e pelos degelos do Outono. Na Primavera, antes de virem da cidade nivelar o piso, a estrada estar praticamente intransitvel.

Na Primavera passada, durante um degelo que se prolongou por duas semanas, tive de ficar em casa da minha amiga Jo para poder ir escola. O meu pai, a quem custou muito ficar sozinho, acabou finalmente por ir cidade, no s para ver a filha, mas para quebrar a sensao de isolamento. Marion, a empregada de caixa na loja de Remy, tentou lev-lo a casa no seu Isuzu, mas no conseguiu ir alm da primeira curva. O meu pai teve de fazer a p o resto do percurso e ficou com os msculos das pernas doridos durante dias a fio.

O beb ressona e assusta-me. Solta um vagido e, mesmo luz fraca do painel de instrumentos do carro, distingo a colorao vermelha da sua pele. O meu pai estende a mo para lhe tocar.

- V l, rapariga! - sussurra no escuro.

Mantm a mo levemente apoiada na trouxa macia de camisas de flanela. Interrogo-me se os gestos que costumava fazer para acalmar Clara voltam, agora, de novo e lhe causam uma dor no peito. A estrada que desce a colina parece-me agora mais comprida do que tinha ideia. Espero que o beb chore durante todo o caminho at Mercy.

O meu pai acelera quando chega ao asfalto e o camio derrapa por causa do gelo nos trilhos dos pneus. Carrega no acelerador ao mximo sem perder o controlo do carro.

Passamos pela estao da Mobil, pelo banco e pela escola elementar com uma nica sala de aula, onde obtive o meu diploma no ano passado. O supermercado de Remy ainda tem as luzes acesas. Interrogo-me se o meu pai vai parar e entregar o beb a Marion para que ela chame uma ambulncia. Porm, o meu pai ultrapassa o armazm, porque parar s servir para atrasar o que j est a fazer

- entregar a criana a algum que saiba o que fazer com ela.

Passamos pelo parque relvado da terra, usado como ringue de patinagem no Inverno. No meio, h um mastro de bandeira com um holofote no topo.

Quem deixou a criana dentro do saco-cama?

O meu pai vira na placa que indica Mercy. O caminho at ao hospital est sinalizado de ambos os lados por luzes amarelas, e vejo o beb, com a cara agora enrugada e feia. Mas lembro-me dos olhos que me fitavam no bosque - uns olhos escuros, serenos e vigilantes. O meu pai dirige-se para as Urgncias e carrega na buzina.

A porta do meu lado aberta e um segurana de uniforme enfia o rosto na carrinha.

- Para que a buzina? - pergunta.

Vejo o beb desaparecer atrs das macias portas automticas. O meu pai atira a cabea para trs e fecha os olhos. Ao ouvirmos o ronco distante de uma sirene, endireita-se.

Limpa o nariz manga do casaco. H quanto tempo est a chorar? Roda a chave na ignio e desliga o motor de arranque porque o carro j est a trabalhar. Conduz como se fosse um novato ao volante, seguindo as indicaes at ao parque de estacionamento. Quando samos do carro, baixa os olhos e s ento v que ainda tem a camisa desabotoada por baixo do casaco.

No passeio em frente entrada das Urgncias, hesita.

- Pap?

Pe-me o brao volta dos ombros e encaminhamo-nos para a porta, com as botas a pisar as pedras de sal grosso.

O vestbulo pintado de bege e cor de hortel est vazio, e parece-me haver uma enorme profuso de metal. Semicerro os olhos sob as luzes demasiado fortes que tremeluzem como focos intermitentes. No sei para onde levaram o beb e aonde nos devemos dirigir. O meu pai segue as indicaes das tabuletas e cada passo em frente nos ladrilhos do cho representa um enorme esforo. No temos nada a ver com aquele stio. Ningum tem.

Contornamos uma esquina e avistamos uma sala pequena onde esto sentadas uma meia dzia de pessoas, em cadeiras de plstico presas parede. Uma mulher, de calas de ganga e pulver, anda de um lado para o outro, os cabelos louros ainda tm marcas dos rolos.

Parece impaciente e irritada com um rapaz mal-humorado que pode ser seu filho. O rapaz est sentado numa cadeira de plstico, tem o casaco vestido, o queixo sulcado de borbulhas. Julgo perceber a razo por que est ali pelo modo como balana a mo direita: um dedo? o pulso? O meu pai dirige-se ao guichet de informaes e aguarda junto da abertura enquanto uma mulher fala ao telefone e ignora a sua presena.

Enfio as mos nos bolsos do casaco e observo o corredor. Algures h uma sala, uma marquesa e um mdico a examinar um beb. Ela ainda estar viva? A recepcionista tamborila no vidro para chamar a ateno do meu pai.

- Acabei de trazer um beb - diz o meu pai. - Encontrei-o na floresta.

A mulher fica calada, por momentos.

- Encontrou um beb? - pergunta.

- Sim.

Escrevinha qualquer coisa num bloco de papel.

- A criana apresenta ferimentos

- No sei.

- O senhor o pai?

- No. Encontrei a criana na floresta. No sou da famlia. No fao a mnima ideia de quem seja.

A recepcionista volta a observ-lo e sei o que est a ver: um homem a atirar para o alto, enfiado numa parka bege com ndoas, na casa dos quarenta, talvez quarenta e cinco, com uma barba de trs dias, cabelo castanho-escuro com uns fios prateados e umas rugas fundas e verticais cavadas entre as sobrancelhas. Lembro-me que o meu pai no deve tomar duche desde o pequeno-almoo de anteontem.

- O seu nome?

- Robert Dillon.

Ela escreve depressa, com tinta vermelha.

- Morada?

- Bott Hill.

- Tem seguro?

- Tenho seguro pessoal.

- Posso ver o seu carto?

O meu pai tacteia as algibeiras e pra.

- No tenho comigo a minha carteira. Deixei-a em casa, numa prateleira no vestbulo das traseiras.

- E a carta de conduo?

- Tambm no - responde o meu pai.

O rosto da recepcionista fica imvel. Pousa a caneta e cruza as mos num gesto lento e controlado, como se receasse qualquer movimento sbito.

- Sente-se. J vem algum para falar consigo.

Sento-me ao lado de um homem com uma cara pastosa e frouxa, que tosse baixinho para dentro da gola de umaparka acolchoada cor de erva. A luz agressiva e incmoda, faz com que os velhos paream moribundos e ressalta as imperfeies das crianas. Passado algum tempo - vinte minutos? meia hora? - um mdico novo de bata branca entra na sala, com uma mscara pendente volta do pescoo, um estetoscpio ancorado numa algibeira do peito. Atrs dele est um polcia de uniforme.

- Mr. Dillon? - pergunta o mdico.

O meu pai levanta-se e vai ter com os homens ao centro da sala. Eu tambm me levanto e sigo-o. O mdico plido, louro e parece demasiado novo para mdico.

- Foi o senhor que encontrou a criana? - pergunta.

- Fui - responde o meu pai.

- Eu sou o Dr. Gibson e este o chefe Boyd.

Sei que o chefe Boyd, um dos dois nicos agentes da polcia da cidade de Shepherd, o pai de Timmy Boyd. So ambos bastante gordos e possuem as mesmas sobrancelhas negras e rectangulares. O chefe Boyd tira de um dos bolsos do uniforme um bloco e um lpis curto.

- A criana est bem? - pergunta o meu pai ao mdico.

- Deve perder um dos dedos das mos e, possivelmente, alguns dedos dos ps - responde o mdico, esfregando a testa. - E os pulmes podem estar afectados. muito cedo para dizer.

- Onde que a encontrou? - pergunta o chefe da polcia ao meu pai.

- Na floresta atrs da minha casa.

- No cho?

- Num saco-cama. Estava embrulhada numa toalha dentro do saco

- Onde que esto a toalha e o saco? - quer saber o chefe Boyd, lambendo a ponta do lpis, um gesto que a minha av costumava fazer quando estava a escrever a lista das compras. Fala como a maior parte dos naturais de New Hampshire, com uns aaa arrastados, sem rr e imprimindo um certo ritmo s frases.

- Na floresta. Deixei-os l.

- Vive em Bott Hill, certo?

- Certo.

- J o tenho visto por a - diz o chefe Boyd. - Na loja do

Sweetser.

- Penso que foi perto do motel l em cima - diz o meu pai.

- No me lembro do nome.

O chefe afasta-se do meu pai e fala para um rdio que tem preso ao ombro. Eu analiso a parafernlia presa ao seu uniforme.

- Quanto tempo que a criana ali esteve? - pergunta o mdico ao meu pai.

- No sei.

Assalta-me nesse instante a imagem do beb imvel na neve, no escuro. Emito um leve som. O meu pai pousa a mo no meu ombro.

- Diga-me como foi que a encontrou - pede o chefe Boyd ao meu pai.

- Eu e a minha filha tnhamos ido dar um passeio e ouvimos uns gemidos. Ao princpio, no sabamos o que era. Pensmos que fosse um gato. Mas, de repente, pareceram gemidos humanos.

- Viu alguma coisa? Algum perto do beb?

- Ouvimos bater a porta de um carro. E depois o barulho de um motor a arrancar - explica o meu pai.

Ouve-se um silvo agudo no rdio do chefe Boyd, que fala para o ombro. Parece agitado e afasta-se de ns. Ouo-o dizer experincia de vinte e oito anos e ele est aqui.

Ouo-o soltar uma imprecao abafada.

Vira-se para ns e guarda o bloco de notas e o lpis. Faz tudo isto com gestos lentos.

- H por a algum stio para onde possa levar Mr. Dillon? pergunta o chefe ao mdico. - Vem a um detective de Concord, do Departamento de Crimes Graves da Polcia

Estadual.

O mdico belisca a parte superior do nariz. Tem os olhos avermelhados do cansao.

- Pode esperar na sala do pessoal - diz o mdico.

- Eu posso levar a mida a casa - diz o chefe Boyd como se eu nem sequer ali estivesse. - De qualquer modo, vou para aquelas bandas.

Inclino-me para o meu pai.

- Quero ficar contigo - murmuro.

O meu pai olha para mim.

- Ela fica aqui comigo - diz.

Seguimos o mdico at uma sala de refeies no muito distante da sala de espera. No interior vejo cacifos altos de metal, um par de esquis de corta-mato arrimados a um canto, uma pilha de casacos em cima de uma mesa de frmica encostada parede. Sento-me noutra mesa e observo as mquinas automticas. Apercebo-me de que tenho fome. Lembro-me que o meu pai no trouxe a carteira.

Penso no beb que vai ficar sem um dedo da mo e, possivelmente, sem alguns dedos dos ps. Interrogo-me se vai ficar deficiente. Ter dificuldades em aprender a andar sem os dedos dos ps Poder jogar basquete sem um dos dedos

- Posso telefonar me da Jo para ela te vir c buscar - diz o meu pai.

Abano a cabea.

- Vou buscar-te depois disto terminado - acrescenta.

- Eu estou bem - respondo, sem mencionar que estou com fome, o que me recambiaria com toda a certeza para casa de Jo. O beb vai ficar bem?

- Temos de esperar para saber - responde o meu pai.

- Pap?

- O qu

- Foi estranho, no foi?

- Pois foi.

Mexo-me na cadeira e sento-me em cima das mos.

- E tambm foi assustador - acrescento.

- Um bocadinho.

O meu pai tira os cigarros do bolso do casaco, mas depois hesita.

- Quem que achas que a abandonou ali? - pergunto-lhe. Ele esfrega o queixo.

- No fao ideia.

- Achas que eles nos vo dar o beb?

O meu pai parece surpreendido com a pergunta.

- O beb no nosso - diz, cauteloso.

- Mas fomos ns que o encontrmos.

O meu pai inclina-se para a frente e comprime as duas mos juntas entre os joelhos.

- Fomos ns que a encontrmos, mas ela no nos pertence. Eles vo tentar descobrir a me.

- A me no a quer - protesto.

- No temos a certeza disso - diz o meu pai.

Abano a cabea com toda a convico de uma criana de doze anos.

- Claro que temos a certeza. Que me abandonaria um filho para o deixar morrer na neve? Tenho fome.

O meu pai saca uma tablete de chocolate da parka e empurra-a sobre o tampo da mesa.

- Que vai acontecer ao beb? - pergunto enquanto desembrulho o celofane.

- No sei ao certo. Podemos perguntar ao mdico. Enfio a barra de chocolate na boca e enrolo-a na bochecha.

- Mas, pap, vamos imaginar que eles nos deixavam ficar com o beb. Tu ficavas com ela?

O meu pai desembrulha outra barra de chocolate. Amassa o celofane numa bola e mete-a no bolso.

- No, Nicky. No ficava.

Os minutos vo-se escoando. Passa meia hora. Peo ao meu pai outra tablete. Por cima das nossas cabeas, no ecr da TV, um locutor do noticirio anuncia cortes oramentais.

Trs adolescentes de White River Junction foram levados a julgamento depois de uma tentativa de assalto. Aproxima-se uma frente de tempestade. Observo o mapa da meteorologia e depois olho para o relgio. So seis e dez.

Levanto-me e ando volta da sala. No posso ir muito longe. No fim da fiada de cacifos h um espelho do tamanho de um livro. A minha boca sobressai por causa do aparelho dos dentes. Tento no sorrir, mas s vezes no o consigo evitar. A minha pele lisa e macia, sem uma nica borbulha. Herdei da minha, me os olhos castanhos e o cabelo ondulado, que neste momento tenho preso no alto da cabea. Tento alis-lo com os dedos.

Um homem com um casaco azul-marinho e um cachecol vermelho entra na sala sem bater e calculo que seja outro mdico. Aliza o cachecol e pousa-o em cima de uma cadeira. Percebo que o meu pai quer abrir o fecho do casaco, mas no pode. A camisa no tem botes.

O homem despe o casaco e coloca-o em cima do cachecol. Esfrega as palmas das mos como se na expectativa de um momento agradvel. Traz vestido um pulver preto e um blazer, e tem o rosto marcado por cicatrizes de acne. Do lado direito do queixo a pele est repuxada como se tivesse sofrido um acidente de carro ou levado uma navalhada.

- Robert Dillon? - pergunta o homem.

Surpreende-me que este mdico saiba o nome do meu pai e ento que compreendo que no mdico nenhum. Endireito- me na minha cadeira. O meu pai acena com a cabea a confirmar.

- George Warren - apresenta-se o homem. - Pode tratar-me por Warren. Quer um caf?

O meu pai abana a cabea.

- Esta a minha filha, Nicky.

Warren estende a mo que eu aperto.

- Ela estava consigo quando encontrou o beb? - pergunta Warren.

O meu pai acena com a cabea.

- Sou detective da polcia estadual - explica Warren. Tira uns trocos da algibeira, que introduz na mquina do caf. - Disse ao chefe Boyd que encontrou o beb em

Bott Hill - diz, de costas voltadas para o meu pai.

- verdade - responde o meu pai.

Uma chvena de papel prensado desliza para a cavidade. Observo o caf que jorra do tubo. Warren recolhe a chvena e sopra a superfcie.

- O saco-cama e a toalha ainda l devem estar - acrescenta o meu pai. - Encontrei-a dentro de um saco-cama.

Warren mexe o caf com um pauzinho de madeira. Tem o cabelo grisalho, mas um rosto jovem.

- Porque que o deixou l ficar? - pergunta. - Refiro-me ao saco- cama.

- Estava demasiado escorregadio - explica o meu pai. Tive receio de deixar cair a criana.

- Como que a transportou?

- Meti-a dentro do meu casaco.

Os olhos de Warren deslizaram para o casaco do meu pai. O detective puxa uma cadeira com a biqueira da sua bota Timberland. Senta-se.

- Posso ver qualquer documento de identificao? - pergunta.

- Deixei a carteira em casa. Estava cheio de pressa para trazer o beb para o hospital.

- No chamou a polcia? No chamou uma ambulncia?

- Ns vivemos na extremidade de um caminho longo e acidentado. Tecnicamente, uma estrada municipal, mas no tem sido reparada. Tive medo que uma ambulncia ficasse atolada.

Warren observa o meu pai por cima do rebordo da chvena.

- Fale-me do saco-cama - pede.

- Era azul vivo por fora e axadrezado por dentro. Barato, como os que se compram no Ames. Tambm havia uma toalha. Branca e suja de sangue.

- Vive h muito tempo em Bott Hill? - pergunta Warren, sorvendo mais um gole de caf. Os olhos dele so simultaneamente vivos e distantes, como se todos os dados importantes fossem transferidos para outro stio, algures.

- H dois anos.

- Donde ?

- Nasci em Indiana, mas vim para c directamente de Nova Iorque.

- Da cidade? - pergunta Warren, esfregando o lbulo da orelha

- Trabalhava na cidade, mas vivamos mais a norte.

- Se no fosse o senhor, Mr. Dillon - diz Warren -, teramos encontrado alguns ossos na Primavera.

O meu pai olha para mim. Retenho a respirao. No quero pensar nos ossos.

- Tem calor? - pergunta Warren ao meu pai. - Dispa o casaco.

O meu pai encolhe os ombros, mas qualquer pessoa pode ver que est a transpirar dentro daquela sala sobreaquecida.

- O que andavam a fazer quando encontraram a criana? interroga o detective.

- A dar um passeio.

- Quando?

O meu pai reflecte durante um minuto. Que horas eram? J no usa relgio de pulso porque o estorva com frequncia ao trabalhar com as ferramentas. Levanto os olhos para olhar o relgio de parede por cima da porta. Seis e vinte e cinco. Parece meia-noite.

- Foi depois do pr-do-sol - diz o meu pai. - O sol tinha acabado de se pr por detrs da colina. Calculo que a encontrmos uns dez ou talvez quinze minutos depois.

- Estavam na floresta - diz Warren.

- Sim.

- Vo muitas vezes passear para a floresta depois do sol se pr?

O detective pousa a chvena de caf em cima da mesa, enfia a mo na algibeira do sobretudo e retira um pequeno bloco. Folheia-o e faz uma anotao com um lpis pequeno.

Gostava de ter um lpis daqueles.

- Quando est bom tempo - diz o meu pai. - Normalmente, acabo o trabalho por volta das trs e quarenta e cinco, mais coisa menos coisa. Tentamos fazer uma caminhada antes de escurecer por completo.

- O senhor e a sua filha.

- Sim.

- Que idade tens? - pergunta-me o detective.

- Doze.

- Ests no stimo ano?

- Sim.

- Do ciclo?

Digo que sim com a cabea.

- A que horas sais do autocarro?

- s trs e um quarto - respondo.

- Demora um quarto de hora a subir o resto do caminho acrescenta o meu pai.

Warren volta-se de novo para o meu pai.

- Como que descobriu o beb, Mr. Dillon?

- Com uma lanterna. Ouvimo-lo chorar. Nessa altura j o procurvamos. Andvamos procura de um beb.

- H quanto tempo andavam a caminhar?

Uma voz procura do Dr. Gibson interrompe-os atravs do altifalante. Interrogo-me se haver algum problema com o beb.

- H cerca de trinta minutos - responde o meu pai.

- Ouviram alguma coisa fora do comum?

- Primeiro, pensei que fosse um gato. Ouvi bater a porta de um carro e, depois, o motor de um carro a arrancar.

- De um camio? De um automvel?

- No sei dizer.

- Foi depois de encontrarem a criana?

- No. Foi antes.

- Antes ou depois de ouvirem o primeiro choro?

- Depois - diz o meu pai. - Lembro-me de ter pensado que devia ser um homem ou uma mulher que andava a passear com um beb.

- Na floresta? No Inverno?

O meu pai encolhe os ombros.

- Dirigamo-nos para a parte de trs de Bott Hill. H l um muro de pedra e, muitas vezes, esse o nosso destino.

Lembrei-me das inmeras vezes que o meu pai se sentava no muro a fumar um cigarro. Voltaremos l mais alguma vez? perguntei a mim mesma.

- Era capaz de o encontrar outra vez? - pergunta Warren. O stio onde encontrou o beb?

- No tenho a certeza. Talvez haja ainda sulcos no solo. Levvamos as raquetes de neve caladas, mas o cho estava duro. De manh, talvez lhe consiga mostrar o lugar aproximado.

O detective Warren voltou a sentar-se na cadeira. Olha para mim e depois afasta os olhos.

- Mr. Dillon - comea a dizer e depois faz uma pausa. Conhece algum que possa ter dado luz este beb?

A pergunta surpreende o meu pai, por causa do que tem implcito, porque foi feita na minha presena.

- No. - Diz com dificuldade.

- casado?

Desvio os olhos do meu pai.

- No.

- Tem mais filhos

Um sopro de vento quente percorre-me o peito.

- Eu e a minha filha vivemos sozinhos - diz o meu pai.

- O que o levou a vir viver para aqui - pergunta o detective. Segue-se um breve silncio. Preferia que no me tivessem autorizado a ficar na sala.

- Na altura, pareceu-me uma boa ideia - ouo o meu pai dizer.

- No lhe agradava a presso - sugere Warren.

Levanto os olhos. O meu pai est a olhar para os esquis ao canto da sala.

- Mais ou menos isso.

- O que fazia na cidade?

- Trabalhava para uma firma de arquitectos.

Warren anui com a cabea, absorvendo os factos.

- E agora o que que faz, l em cima, em Bott Hill?

- Fao mveis.

- Que tipo de mveis?

- Coisas simples. Mesas. Cadeiras.

Ouo a porta abrir-se atrs de mim. O Dr. Gibson entra, ao mesmo tempo que vai despindo a bata. Atira-a para dentro de um cesto num dos cantos. Cumprimenta o detective com um ol.

Como se j o conhecesse, ou se estivessem a conversar antes de o detective entrar na sala.

- J estou despachado - diz o mdico, visivelmente exausto.

- Como est o beb? - pergunta o meu pai.

- Melhor. O estado dela est a estabilizar.

- Posso v-la? - pergunta o meu pai.

O Dr. Gibson tira umaparka amarela e preta de um dos cacifos.

- Ela est a dormir na Unidade de Cuidados Intensivos.

Reparo numa troca de olhares entre o detective e o mdico.

O mdico olha para o relgio.

- Ok - diz Gibson. - S uma espreitadela. Acho que no vir da mal algum.

Seguimos o Dr. Gibson ao longo de uma srie de corredores, todos pintados nos mesmos tons deprimentes de bege e hortel. O detective fica para trs e imagino-o a estudar-me a mim e ao meu pai enquanto caminhamos.

A UCI de pediatria foi concebida segundo o esquema de uma roda, em que o posto das enfermeiras o centro e cada enfermaria um dos raios. Passo por vrios pais sentados em cadeiras de plstico, a olharem para ecrs e luzes vermelhas tremeluzentes. Estou espera que algum desate aos gritos.

O Dr. Gibson conduz-nos a uma sala que parece enorme quando comparada com o beb minsculo que est metido numa caixa de plstico. D-nos mscaras e instrues para as colocarmos.

- Julgava que ela estivesse no berrio - diz o meu pai atravs do papel azulado.

- Desde que a criana tenha estado fora do hospital, no pode entrar no berrio. Pode infectar os outros bebs - explica o mdico. Debrua-se sobre o bero, ajusta um dos tubos e observa um ecr.

O beb est no interior de uma estufa de Plexiglas, aquecida. Do corpito magro sobressaem uma mo e um p enrolados em ligaduras, semelhantes aos de uma boneca.

O cabelo, preto e fofo, cobre o escalpe encarquilhado como a coroa de um pssaro. Enquanto a observamos, faz delicados movimentos de suco.

Apetece-me colar a face boca do beb para sentir o seu bafo quente na minha pele. Acho que ela a coisa mais importante que eu e o meu pai alguma vez fizemos.

- O que que lhe vai acontecer? - pergunta o meu pai.

- A Diviso de Servios de Apoio Juventude e Famlia vai tomar conta dela - diz o Dr. Gibson.

- E depois?

- Ser entregue aos servios de tutela. Se tiver sorte, poder ser adoptada.

Descemos os quatro, em silncio, no elevador. Apercebo-me de que o meu pai cheira mal. Ao sarmos, o Dr. Gibson estende a mo ao meu pai.

- Pode contar comigo. Ainda bem que a encontrou, Mr.

Dillon.

O meu pai aperta a mo do mdico

- Gostava de lhe telefonar amanh, para saber como que ela est.

- Estou c durante todo o dia - diz o Dr. Gibson. Estende um carto ao meu pai e ficamos a v-lo afastar-se.

- Onde est o seu carro? - pergunta o detective Warren ao meu pai.

O meu pai tem de pensar um minuto.

- No parque da frente.

- Gostava que me acompanhasse numa viagem curta - diz Warren. - Queria que visse uma coisa.

- A minha filha est cansada.

- Podemos deix-la aqui - diz o detective. - O senhor apanha-a quando eu o trouxer de volta. No vai demorar.

- No, pap - interrompo, rpida.

O detective abre a boca para falar, mas o meu pai corta-lhe a palavra.

- Ela vai connosco.

Warren conduz um jipe encarnado, que me parece uma escolha bizarra para um polcia estadual. Calculo que provavelmente no faz muito trabalho secreto. Se calhar precisa do jipe para perseguir criminosos que se escapam por estradas secundrias.

- Tem que me dar orientaes - diz Warren. - No frequente chamarem-me aqui.

- Para irmos aonde? - pergunta o meu pai.

- Ao motel - diz Warren.

Atravessamos a vila de Shepherd, New Hampshire, que recebeu o nome de Asa Henry Shepherd, um fazendeiro vindo do Connecticut para cultivar a terra, em 1783. Na lista telefnica local, h para cima de trinta Shepherds.

- Para amanh espera-se mau tempo - diz Warren. - Gelo, segundo ouvi na rdio. Odeio gelo.

O meu pai no diz nada. Dentro do jipe, gelamos. Vou sentada no banco de trs. O detective conduz com o casaco aberto e o cachecol vermelho solto volta do pescoo.

- O gelo preto o pior de tudo - diz Warren. - H dois anos, houve o caso daquela famlia da Carolina do Norte. Ao sarem da faixa de acesso a Grantham, derraparam e ignoravam por completo o perigo do gelo preto. O Chevrolet em que viajavam foi pelos ares.

Observo o ritmo da respirao gelada do meu pai.

- Um casal registou-se no motel que fica acima da vossa casa

- diz Warren. - A proprietria fez uma descrio do homem, mas diz que no viu a rapariga. Um indivduo do sexo masculino, caucasiano, volta de um metro e sessenta, vinte ou vinte e um anos, cabelo preto ondulado, com um casaco de marinheiro azul-marinho. Ela pensa que o rapaz conduzia um Volvo, um modelo de h uns seis ou sete anos. Em princpio, devem ter uma placa de matrcula, mas aquele no tinha.

- Um Volvo? - pergunta o meu pai, surpreendido. O detective passa a nossa estrada, dirigindo-se para leste, para o caminho que leva ao motel. Os faris permitem vislumbres fugazes da floresta, as mesmas matas que bordejam a nossa propriedade. Atravs do pra-brisas, avisto um brilho intrigante no cu nocturno, como se uma pequena povoao nos esperasse no cimo da colina.

Warren conduz sem levantar o p do acelerador. O meu pai nunca gostou de ser passageiro e h anos que no . Aspiro o cheiro do detective sentado minha frente

- uma mistura de l molhada e caf, com um leve odor a hortel.

- Vire aqui - diz o meu pai.

Warren vira para uma passagem alcatroada que sobe por uma encosta no muito alta at um motel, uma construo baixa e de ripas de madeira pintadas de vermelho. No parque esto dois carros de rdio-patrulha e mais trs carros. Por detrs do motel, as matas esto iluminadas por uma srie de holofotes potentes.

Warren apeia-se do jipe e faz sinal ao meu pai para o acompa nhar.

- Fica aqui - diz-me o meu pai.

- Tambm quero ir.

- No demoro.

A porta do vestbulo do motel est aberta e vejo dois polcias de uniforme l dentro, um dos quais o chefe Boyd. O meu pai segue o detective enquanto atravessam o parque de estacionamento.

A luz do interior do jipe apaga-se. Levanto os joelhos e passo os braos volta. A janela do meu lado est suja, mas consigo ver o meu pai transpor o limiar da porta e entrar no quarto iluminado. No percebo por que razo me deixaram sozinha no carro. E se a pessoa que abandonou o beb andar ainda a rondar por ali?

Inclino-me para um dos lados e deixo que o meu peso me faa tombar sobre o assento. Fico deitada no banco traseiro em posio fetal. Encontro-me no carro de um detective.

Sinto na nuca uma leve impresso que um misto de excitao e de medo.

Examino o cho do jipe luz da iluminao do parque de estacionamento. Uma lata vazia de Coca-Cola num dos lados, um leno de papel usado e vrias moedas espalhadas.

Na bolsa das costas do banco, um atlas e uma cassete de gravador. Mas que isto? Estendo a mo e toco numa barra de chocolate, por abrir. Retiro a mo. Debaixo do banco do passageiro est um objecto de metal comprido, que pode ser uma ferramenta. Para alm disso, o jipe est bastante limpo, no como a cabina da carrinha do meu pai, cheia de trapos, bocados de madeira, serradura, ferramentas, casacos e pegas. Tambm tem um cheiro prprio - a mas bolorentas. O meu pai jura que no h mas no camio, que o vasculhou todo procura, mas tenho a certeza que deve haver pelo menos uma ma podre algures.

Choro durante um minuto. Faz-me bem, embora s tenha a manga para limpar o nariz. Lembro-me do meu pai a chorar no parque de estacionamento, como se ignorasse a minha presena.

Eu e o meu pai salvmos a vida a uma pessoa. Na manh seguinte, vou ser uma celebridade na escola. Espero que o meu pai no me pea para no falar do assunto. Pergunto-me se irei aparecer nos jornais. Comeo a bater os dentes e durante algum tempo no fao nada para o impedir. Recordo a nossa caminhada, a descoberta do beb no meio da floresta, do meu pai a cair de joelhos. Interrogo-me se o facto de estar completamente arrepiada de frio justificao suficiente para sair do carro e ir l dentro.

Sento-me e espreito pela janela, levemente embaciada. H quanto tempo que o meu pai saiu? Sinto os dedos frios. Que feito das minhas luvas? Morro de fome. No como nada desde o almoo na escola, s onze e meia. Lembro-me da barra de chocolate. Se eu a comer, o detective dar por isso? E se der, importar-se-? Estendo a mo para a bolsa do encosto do banco e retiro a tablete. Mantenho-a no colo durante uns instantes, com os olhos fixos na porta da entrada do motel. Tenho de a comer depressa e esconder o invlucro. No quero ser surpreendida com metade de uma barra de chocolate na boca.

Rasgo o invlucro. A barra est dura por causa do frio, mas o chocolate delicioso. Devoro-o o mais depressa que posso, limpo a boca aos dedos e enfio o papel no bolso dos meus jeans. Encosto-me para trs, ligeiramente ofegante.

Com os ombros arqueados, espera de uma reprimenda, saio do jipe e fecho a porta. Atravesso o parque de estacionamento de terra batida. Agora j ouo vozes - vozes intencionalmente calmas de tcnicos a trabalhar. Hesito nos degraus, espera de ouvir um berro.

um quarto exguo e de aspecto deprimente mesmo sem os lenis ensanguentados e as cobertas sujas. As paredes esto revestidas de painis a imitar pinheiro. O quarto tem uma secretria e um aparelho de TV e um forte cheiro a bolor. Um lenol sujo de sangue jaz por baixo da nica janela, que est aberta. Atravs dessa janela, vejo as luzes dos holofotes na neve.

Um perito est a examinar a cama.

- Uma mulher deu luz aqui - diz Warren.

Numa mesa-de-cabeceira, est um copo de gua, meio cheio. Uma pega esquecida no tapete.

- Devem ter deixado impresses digitais - diz o meu pai.

- Deve haver impresses digitais por toda a parte - diz Warren. - O que no nos servir de nada a menos que algum deles tenha cadastro. do que sinceramente duvido.

- O detective tira um leno do bolso de trs e assoa-se. - Aquela rapariguinha minscula que voc encontrou, comeou a vida neste quarto. E depois algum, muito provavelmente o pai, saltou por aquela janela e tentou mat-la. No deixaram a criana num stio aquecido onde pudesse ser encontrada. Ningum fez uma chamada annima.

Um homem pegou no beb, apenas com poucos minutos de vida, levou-o para a floresta, numa noite de Dezembro, com temperaturas negativas, e abandonou a criana, nua, dentro de um saco-cama. Se voc no a tivesse encontrado, quando que a teramos descoberto? Em Maro? Abril? Nem sei se nessa altura. Muito provavelmente, um co teria dado com ela primeiro.

Penso num co a arrastar um osso nos dentes, atravs da neve. O meu pai est parado junto do detective enquanto conferencia com um dos peritos. O chefe Boyd est encostado parede, com os lbios franzidos. Donde estou, ele no me pode ver. Tento imaginar o que se passou naquele quarto. No sei muito sobre dar luz, mas sinto a histeria nas paredes, os lenis amarrotados, as roupas abandonadas. Saberia a mulher o que o homem ia fazer com o beb? A pega cinzento-prola, talvez de angor, com cordes dos lados. Uma pega de mulher, a julgar pelo tamanho. Um dos peritos apanha-a e mete-a num saco de plstico.

- Nos meus quinze anos de trabalho na polcia estadual - diz Warren -, talvez tenha visto uns vinte e cinco casos de bebs abandonados. H trs meses, em Lebanon, uma mulher deixou um beb num caixote do lixo fora de casa. Tinha acabado com o namorado. A criana estava morta quando a encontrmos. Coberta de sopa Campbell at ao nariz.

Um perito interrompe Warren com uma pergunta.

- O ano passado - prossegue Warren -, uma rapariga de catorze anos atirou um beb pela janela de um segundo andar. Foi acusada de tentativa de homicdio. - Warren examina um copo e um saco de plstico em cima da mesa-de- cabeceira. - Em Newport, encontrmos uma menina recm-nascida, com vida, numa prateleira do Ames. L para cima, em Conway, encontraram um recm-nascido do sexo masculino num caixote do lixo nas traseiras de um restaurante. A me tinha vinte anos. As ruas estavam geladas.

Foi acusada de tentativa de homicdio. - O detective agacha-se para espreitar para debaixo da cama. - Que mais? Ah, em Manchester, uma me de dezoito anos abandonou a filha, beb, num parque. Deixou a criana dentro de um saco de plstico e duas midas de dez anos descobriram-na quando andavam de bicicleta no parque. Conseguem imaginar? A me foi acusada de tentativa de homicdio e de crueldade. - Warren levanta-se. Aponta para baixo da cama e faz uma pergunta tcnica. - E ouam mais esta: h dois anos, uma aluna finalista do liceu descobriu que estava grvida. No disse nada. Ocultou a gravidez graas a camisolas largueironas e a calas tufadas, sempre na esperana de abortar. Mas no abortou. No Outono, foi para a faculdade. Na vspera do dia de Aco de Graas, depois de todos irem para casa, deu luz uma menina no cho do seu dormitrio. Embrulhou a criana numa shirt e numa camisola, meteu-a num saco de plstico de mercearia e desceu os trs lanos de escadas. Deixou-a num caixote de lixo na rua.

Warren aproxima-se da janela e olha l para fora.

- Porm, tinha conscincia. Fez um telefonema annimo para a segurana do campus e eles encontraram o beb. Tambm no demoraram muito tempo a descobrir a me. A rapariga alegou ameaas e foi condenada a um ano de priso domiciliria.

- Como que sabe que foi um homem que fez isto? - pergunta o meu pai. - Em todos os outros exemplos que mencionou, foram mulheres a abandonar os bebs.

- Venha comigo - diz Warren ao meu pai. - Quero que veja uma coisa.

Quando os dois homens se viram, vem-me parada junto ombreira da porta.

O meu pai pe-se minha frente, como que para me impedir de ver o quarto, mas ambos sabemos que j tarde de mais. Eu vi o que havia para ver.

- Julguei que te tinha dito para ficares no carro - diz o meu pai, entre surpreendido e zangado.

- Estava com frio.

- Se te disse para ficares no carro, era para ficares no carro.

- No h problema - diz Warren, passando diante do meu pai. - Ela pode vir connosco.

O meu pai brinda-me com um olhar gelado. Manda-me caminhar sua frente, atrs do detective que contorna as traseiras do motel. A neve espessa e Warren caminha de modo a que ns avancemos sobre as pegadas lentas e precisas das suas botas. De uma janela nas traseiras do motel, outro conjunto de pegadas prolonga-se at mata. As luzes so to fortes que tenho de levantar a mo para proteger os olhos. A uns quinze metros do stio onde nos encontramos, vejo dois polcias inclinados sobre a neve.

- Pegadas de botas - diz Warren. - Chegam a atingir mais de meio metro de profundidade. tamanho quarenta e dois. De seis em seis metros mais ou menos, o tipo atolou-se na neve at aos joelhos. As pegadas afastam-se uns quinhentos metros e depois voltam para trs. Sabe como difcil fazer isto?

O meu pai diz que sim.

- Pode-se partir uma perna - diz Warren.

O meu pai acena com a cabea.

- Um tipo da cidade, no acha? - pergunta o detective.

- talvez.

- Uma mulher que acabou de dar luz no conseguia fazer isto.

- Tambm acho que no - diz o meu pai.

Warren vira-se para o meu pai e pousa-Lhe uma mo no ombro. O meu pai vacila.

- Apesar de no querer desabotoar o casaco, de ter sangue no colarinho, do seu nervosismo e de viver numa estrada deserta perto do motel, talvez lhe agrade saber que no penso que foi voc quem fez isto.

Voltmos para a cidade no carro do chefe Boyd. De manh, ao acordar, toda a gente ficar a saber da notcia. Tento imaginar de novo o homem e a mulher que se dirigiram ao motel para o beb nascer e depois o matarem. Onde estaro agora?

- A minha carrinha est ali - diz o meu pai quando chegamos ao parque de estacionamento do hospital. O chefe Boyd leva-nos at l e apeamo-nos.

- Obrigado pela boleia - diz o meu pai, mas Boyd, de lbios cerrados, no responde. Afasta-se do parque.

Subimos para a carrinha e o meu pai roda a chave da ignio. O motor pega primeira, pela segunda vez. Enquanto esperamos que o motor aquea, olho atravs de uma fina camada de cristais de gelo que brilha sob a luz do candeeiro do parque de estacionamento. Para l do gelo fica a porta de entrada da sala de Urgncias e, mais para l, h uma alcofa onde uma menina recm-nascida tenta comear a viver.

- No devias ter ouvido aquilo tudo - diz o meu pai.

- No isso - respondo.

- O que ento?

- Estava a pensar na Clara.

A carrinha d um saco ao arrancar. Uma lata vazia de Coca-Cola debaixo dos meus ps irrita-me. O meu pai acelera. Descreve uma curva apertada em U no parque praticamente vazio e mergulhamos na noite.

As marcas da derrapagem estendiam-se por cerca de doze metros. O reboque de tractor empurrou o VJ ao longo da estrada como se se tratasse de uma simples camada de neve que tinha de ser removida do caminho.

A minha me teve morte instantnea. Clara, que ainda estava viva quando os mdicos a retiraram do meio das chapas retorcidas, morreu antes de a ambulncia chegar ao hospital. Foi dez dias antes do Natal e a minha me tinha levado a beb ao centro comercial para fazer as compras natalcias. Por motivos que nunca saberemos

- ter a minha me virado a cabea, nem que fosse por um instante, por causa do choro ou das brincadeiras de Clara? - a minha me derrapou e foi parar faixa de sentido contrrio, na qual um carro se aproximava. O motorista, que saiu do acidente apenas com um ombro deslocado, disse que estava a conduzir a menos de cem quando o VZ verde se lhe atravessou no caminho.

O meu pai, que tinha ficado at tarde na festa de Natal do escritrio em Manhattan e que ia no seu segundo Martini enquanto a mulher e a filha eram arremessadas para o olvido, s teve conhecimento do acidente por volta da meia- noite. Quando chegou a casa e no encontrou ningum, esperou cerca de uma hora e depois comeou a telefonar s amigas da mulher, em seguida para os hospitais da rea e para a polcia at que finalmente obteve uma resposta que no conseguiu entender por completo, mesmo semanas mais tarde. Durante meses, teve a sensao de que se no tivesse feito o telefonema, nunca teria sabido da terrvel notcia.

Nessa noite, dirigiu-se para o hospital no Saab j com dez anos, que troava dele com o seu vigor e firmeza. Os internos precipitaram-se para ele ao verem-no chegar e foi com esforo que lhe desapertaram a gravata para poder respirar. Depois de identificar a minha me, o pessoal deixou-o ficar um minuto ao p de Clara, que estava estranhamente intacta parte a mancha oval cor de prpura num dos lados da testa. A extenso do desastre era insuportvel e o corpo perfeito de Clara um tormento singular que s um deus invejoso poderia ter concebido.

O acidente ocorreu numa sexta-feira noite, estava eu a dormir em casa de Tara Rice. Mrs. Rice, que no soubera da notcia, ficou surpreendida ao ver o meu pai

porta, to cedo num sbado de manh. Deram comigo no meio dos sacos-cama espalhados no cho do quarto de Tara e disseram-me para arrumar as minhas coisas. Quando entrei na cozinha e vi o meu pai, percebi que algo de terrvel tinha acontecido. O rosto dele, que at vspera era um rosto absolutamente vulgar, parecia ter sido esculpido de novo por um escultor inepto, com as feies descompostas e desalinhadas. Ajudou-me a vestir o casaco e levou-me para o carro. A meio da descida, comecei a ganir como um co atrs dele.

- O que foi, pap? O que que aconteceu?

Diz-me, pap. Porque que me vieste buscar?

Que aconteceu, pap? Que aconteceu?

Quando chegmos ao p do carro, soltei-me da mo que me segurava pelo ombro e comecei a correr para a casa. Talvez pensasse que se voltasse a entrar em casa de Tara, podia deter o tempo e nunca teria de ouvir a coisa indescritvel que ele me viera dizer. Apanhou-me sem dificuldade e apertou-me o rosto contra o sobretudo. Comecei a soluar antes de ele pronunciar qualquer palavra.

A minha dor, que no conseguia articular para alm de uma fiada de palavras desesperadas no meio de um gemido dilacerado, manifestava-se, medida que os dias iam passando, em berros curtos e violentos. Inclinava-me a esmurrar o cho ou rasgava a colcha da minha cama. Uma vez, atirei um pisa-papis contra a porta, rachando-a no meio. A dor do meu pai no se manifestava com o dramatismo da minha, era uma mgoa firme e determinada, uma entidade com peso. O seu corpo mantinha uma terrvel rigidez, com os malares tensos, as costas vergadas, os cotovelos apoiados nos joelhos, uma postura frequente, sentado numa das cadeiras da mesa da cozinha, onde lhe traziam gua ou caf e, ocasionalmente, alguma comida.

Dias a fio, o meu pai permaneceu sentado na nossa casa de WestChester, incapaz de regressar ao escritrio. Passada uma semana, obrigaram-me a voltar escola com a teoria de que me serviria de distraco. A minha av veio para tomar conta de ns, mas o meu pai no gostava de a ter l em casa: s lhe lembrava tempos felizes em que a amos visitar a Indiana, no Vero. Passmos ali manhs indolentes com Clara dentro de uma piscina de plstico e a minha me estendida num fato de banho preto e elegante. Quando o calor apertava nessas tardes, enquanto a minha av olhava por mim e por Clara, o meu pai e a minha me esgueiravam-se s vezes para o quarto de infncia do meu pai para dormirem uma sesta, e eu sentia-me feliz por ter escapado a essa sina temvel dos acampamentos.

Um dia, vrias semanas depois do acidente, ao voltar para casa de autocarro, depois da escola, encontrei o meu pai sentado na mesma cadeira em que o deixara ao pequeno-almoo, uma cadeira de madeira ao p da mesa da cozinha. Tinha a certeza que a chvena de caf em cima da mesa, com as borras depositadas no fundo, era a mesma que ele tinha enchido s oito da manh. Assustou-me pensar que durante todo o tempo que eu tinha estado na escola - durante a aula de Matemtica, de Cincias e de um filme chamado

Charlie, que vimos na aula de Ingls - ele permanecera sentado naquela cadeira, provavelmente sem se mexer.

Em Maro, o meu pai anunciou que nos amos mudar. Quando lhe perguntei para onde, respondeu para o Norte. Quando lhe perguntei para onde, no Norte, disse que no fazia a mnima ideia.

Sento-me na cama e vejo luz nas orlas das cortinas. Afasto os cobertores e piso as tbuas frias do soalho. Levanto as cortinas e levo uma mo aos olhos. Uma camada brilhante de gelo cobre todos os galhos e as poucas folhas que ainda no caram. A notcia causa-me vertigens. Mesmo em New Hampshire, os autocarros das escolas no se arriscam no gelo. Ligo o rdio e ouo o aviso do encerramento das escolas. Escolas oficiais de Grantham, fechadas. Escolas oficiais de Newport, fechadas.

Liceu regional, fechado.

Tomo um duche, seco-me com uma toalha e enfio uns jeans e uma camisola. Preparo uma chvena de chocolate quente. procura do meu pai, percorro com uma caneca na mo as vrias divises da casa, uma construo estreita e comprida, que faz um ngulo para um dos lados e que tem um alpendre virado a oeste. A casa est pintada de amarelo com vigamentos verde-escuros e, no Vero, uma trepadeira enrosca-se no gradeamento do alpendre, formando uma espcie de caniada. A pintura antiga e precisa de ser restaurada. O meu pai planeia tratar disso no Vero. No Vero passado, o segundo que passmos na casa, plantou um pequeno relvado que fiquei encarregada de aparar, periodicamente, mas descurou o resto da propriedade. Onde no h floresta, h moitas e prados, e nas noites estivais ficamos s vezes sentados no alpendre, o meu pai com uma cerveja e eu com uma limonada, a observar os pssaros que no conseguimos identificar a saltitar no cimo da erva alta. De vez em quando, um de ns l um livro.

Entro na sala da frente, que ocupa toda a largura da casa e tem duas janelas altas abertas para sul. Quando o meu pai comprou a propriedade, as janelas estavam fechadas e no abriam por causa da tinta ressequida e havia dois lustres sujos suspensos do tecto. As paredes estavam revestidas a papel, em tons de azul desbotado e descascado, e a lareira entaipada com tbuas. O que levou o meu pai a escolher a casa foi unicamente o isolamento e a promessa de anonimato, mas depois de passar duas semanas sentado numa cadeira fazendo pouco ou mais do que olhar pela janela, comeou a vaguear pelos quartos. Decidiu desmantelar a casa at estrutura.

Comeou pela sala da frente, rebocou o tecto, uma superfcie feia que fazia lembrar a cobertura seca de um bolo de aniversrio j cedio. Raspou as paredes e pintou-as de branco. Comprou uma plaina e afagou os soalhos, poliu-os e deu-Lhes uma cor quente, de mel. s vezes, pedia-me para o ajudar, mas fez sozinho a maior parte do trabalho. A sala agora no tem nada a no ser as peas de mobilirio que o meu pai tem feito nos ltimos dois anos: mesas, estantes e cadeiras de madeira com pernas e espaldares direitos. A sala asseada e simples, assemelha-se a uma sala de aula. Penso que o meu pai tentou, inconscientemente, conseguir dar-lhe esse aspecto como se desejasse regressar s salas vazias da sua infncia. s vezes usa aquele espao como sala de exposio quando Mr. Sweetser do armazm de ferragens lhe manda clientes l a casa. A marcenaria uma espcie de profisso para o meu pai, se bem que ter uma profisso fizesse parte da sua vida anterior, e no desta.

Na diviso que foi em tempos uma sala de jantar, o meu pai construiu at ao tecto estantes que encheu de livros. Mobilou-a com uma poltrona de couro, um sof, dois candeeiros e um tapete, e ali que s vezes comemos e lemos. Chamamos-lhe a nossa toca, A transformao das salas em algo diferente do que eram antes - a sala de visitas numa sala de exposio, a sala de jantar numa espcie de refgio, um velho celeiro numa oficina - constituiu para o meu pai uma espcie de prazer perverso.

Do outro lado da cozinha, fica um corredor comprido apainelado com tbuas de cor creme com uma fiada de ganchos resistentes altura do ombro. Outro corredor d acesso a uma pequena diviso a que o meu pai no sabia que utilizao dar. Limpou-a e encheu-a de caixotes que no queria abrir. Foi assim que essa sala se tornou uma espcie de santurio. Nenhum de ns l entra.

No andar de cima, h trs quartos: um para mim, um para o meu pai e um para a minha av quando nos vem visitar.

A cozinha a outra diviso que o meu pai ainda no arranjou. Tem um balco de frmica vermelha e portas de correr castanhas com armaes de metal que do para um tampo de pau-brasil. Apesar de ser a diviso que necessita de mais obras, o meu pai s entra na cozinha para preparar uma rpida chvena de caf, uma sanduche ou um jantar rudimentar para os dois. Nunca nos sentamos ali para tomar uma refeio. Trazemos a comida para a nossa toca onde comemos os dois, ou ento ele leva-a para a oficina e eu para o meu quarto, quando comemos sozinhos.

Nunca comemos uma refeio na cozinha porque a cozinha da nossa vida anterior era o centro da nossa famlia, quando vivamos em Nova Iorque. Os dois espaos no se assemelham muito, mas as recordaes dessa antiga cozinha so capazes de desencadear num pice um emaranhado de ideias em qualquer um de ns.

A mesa estava sempre meio coberta de revistas e de correio. Nem o meu pai nem a minha me eram obcecados com a arrumao da casa e, tendo Clara apenas um ano, uma ligeira desordem transformava-se constantemente num grave caos. A minha me preparava comida para beb num balco atravancado de electrodomsticos: um espremedor de sumos, um copo misturador, um microondas e um moinho de caf que fazia um chinfrim de berbequim e acabava invariavelmente por acordar Clara. Entre a mesa e uma arca havia um baloio de criana, uma geringona onde Clara, com um fio de baba a escorrer-lhe pelo queixo, se baloiava feliz o tempo suficiente para deixar que os meus pais tomassem uma refeio descansada, sentados mesa. Durante o jantar, o meu pai sentava-se com ela ao colo, iniciando-a em iguarias que ela esmagava na boca com a palma da mo rechonchuda. Quando estava irrequieta, baloiava-a em cima do joelho, e quando o jantar chegava ao fim, tinha a camisa cheia de dedadas de cenoura, de molho e de ervilhas salteadas.

Guardo no meu lbum uma fotografia da minha me a tentar comer a sua refeio no balco enquanto segura Clara, escarranchada na anca. Clara tem um dedo na boca e baba-se e a minha me est ligeiramente desfocada, de costas para mim, como se estivesse a balanar Clara para cima e para baixo para a manter sossegada. Na janela da cozinha por detrs da minha me, v-se o reflexo ofuscante de um flash. No interior do hal, consigo distinguir o meu pai, com uma cerveja na mo, de boca aberta, que se prepara para sorver um gole. No fao ideia por que razo achei necessrio tirar esta foto a meio do jantar, por que motivo achei importante captar a minha me de costas ou Clara com o dedo na boca. Talvez a mquina fosse nova e eu estivesse a experiment-la. Ou talvez quisesse aborrecer a minha me. Agora j no me lembro.

Tambm tenho uma fotografia da minha me comigo ao colo, ainda beb, debaixo de uma roseira de Guldria, no quintal das traseiras. A minha me tem o cabelo castanho claro, comprido e espesso, com uma ondulao que deve ter estado na moda em 1972 quando eu tinha um ano. Veste uma blusa axadrezada, aberta no colarinho e um casaco de camura cor de ferrugem, e calculo que devia ser o ms de Setembro. Parece presente na foto, sorrindo levemente para o meu pai que devia estar por detrs da mquina.

Eu tenho na cabea um ridculo chapu cor-de-rosa e pareo estar a roer os ns dos dedos. Herdei a cabeleira e a boca rasgada da minha me e os olhos do meu pai.

Pouco tempo depois da foto ter sido tirada, a minha me cortou o cabelo e nunca mais voltei a v-la com ele comprido.

Saio e vou at ao celeiro, onde encontro o meu pai sentado na cadeira junto ao fogo, a beber caf. No cho h montculos de serradura e nos cantos sacos de plstico com aparas de madeira. O ar est impregnado de partculas finas, como um nevoeiro que se dissipa num dia de Vero. Observo-o quando pousa a caneca no peitoril e inclina a cabea. Faz isto muitas vezes quando no sabe que estou ali. Cruza as mos, com os cotovelos apoiados nas coxas e as pernas afastadas. Agora, a sua dor

desprovida de textura - sem lgrimas, sem dor na garganta, sem raiva. Mera escurido, creio, uma capa que s vezes lhe dificulta a respirao.

- Pap! - chamo.

- Ol! - diz, levantando a cabea e virando-se para mim.

- Hoje no h escola.

- Que horas so

- Quase dez.

- Dormiste at tarde.

- Pois dormi.

Atravs da janela da oficina e para l dos pinheiros, avisto uma nesga do lago - um espelho verde no Vero, azul no Outono, e, no Inverno, um mero fiapo esbranquiado.

esquerda do lago fica uma estncia de esqui abandonada com apenas trs pistas. Ainda h restos de um telefrico de cadeirinhas e um barraco pequeno l em cima. Consta que h anos atrs, o dono, um tipo bem-disposto e jovial chamado Al, vinha saudar cada esquiador sempre que saltavam da cadeirinha.

A partir da orla da clareira que o meu pai abriu, a floresta cresce densa e cerrada. No Vero, est cheia de mosquitos e de moscas pretas e tenho sempre de me proteger com repelente. O meu pai est a pensar em colocar telas de rede no alpendre e calculo que talvez se decida daqui a um ou dois anos.

- Tomaste o pequeno-almoo? - pergunta-me.

- Ainda no.

- H muffins e compota.

- s vezes prefiro com manteiga de amendoim.

- A tua me costumava misturar manteiga de amendoim com requeijo numa tigela. A mim dava-me vmitos, mas ela gostava tanto que nunca lhe disse que achava aquela mistela horrvel.

Retenho a respirao e baixo os olhos para a minha chvena. O meu pai quase nunca fala da minha me a no ser em resposta a qualquer pergunta directa que eu Lhe faa.

Cerro os dentes e cravo as unhas nas palmas das mos. Sei que se as lgrimas me assomarem aos olhos, essa ser a ltima recordao que ele partilhar comigo durante algum tempo.

Vejo uma pequena pedra deslocada numa das paredes, uma pedra prestes a desprender-se. As outras pedras deslocam-se, assentam e tentam ocupar o espao, mas mesmo assim h um buraco atravs do qual a gua, sob a forma de recordaes, comea a infiltrar-se.

Infiltrao.

Em Setembro, saiu-me essa palavra num jogo de soletrar. Uma palavra simples, mas soletrei-a mal, infiltrao, que, se pensarem bem, no totalmente ilgica.

- Aposto que ramos capazes de descobrir o stio - digo, anunciando a razo por que vim sua procura. - Quando chegarmos perto, as fitas cor de laranja indicaro o lugar.

Vem-me memria a imagem do beb imvel no saco-cama. Que teria acontecido se no tivssemos dado aquele passeio na vspera? Se no a tivssemos descoberto? Comeo a perceber que a sorte to aleatria como o azar. Parece nunca haver uma razo no h qualquer sentido de recompensa ou de castigo. Acontece muito simplesmente

- no h ideia mais incompreensvel.

Interrogo-me se ainda haver polcias a vigiarem o local. Calculo que no. Que motivos teriam para continuarem ali? O crime foi consumado e certamente recolhidas todas as provas. Imagino o saco-cama e a toalha suja de sangue guardados em segurana, dentro de sacos de plstico, numa prateleira da esquadra da polcia. Penso no detective e nas suas cicatrizes. O detective deve estar agora ocupado com outro crime.

O meu pai permanece silencioso.

- Pronto, est bem - digo. - Ento, vou eu.

No vestbulo das traseiras, tiro do cabide o casaco e enfio o gorro e as luvas. J fora da porta de trs, ato as correias das raquetes de neve e dou um passo em frente. As raquetes no fazem qualquer atrito no gelo. Desequilibro-me e estrebucho de braos abertos procura de qualquer coisa onde me agarrar. Depois de uma dezena de passos e de um bom trambolho, volto para casa, agarrada parede, tentando que as raquetes no escorreguem debaixo dos meus ps. Desato as correias. Se o meu pai me viu escorregar e cair e se soltou uma risadinha trocista, nunca mo disse.

Volto a entrar em casa. Barro um muffin com manteiga de amendoim e penso na minha me e no seu requeijo. Subo as escadas para o meu quarto, decorado com um galhardete dos Yankees e um poster do Garfield. Numa das paredes, tenho andado a pintar um mural multicolor de todas as estncias de esqui de New England - Sunday River, Attitash,

Loon Mountain, Bromley, Killington, King Ridge, Sunapee e outras. Passei todas as frias do Natal do ano passado a fazer o esboo, e acho que um bom mapa de relevo geogrfico. Todas as montanhas onde j esquiei tm os cumes cobertos de neve; aquelas onde ainda me falta esquiar continuam verdes. O nico rdio autorizado em casa tambm est no meu quarto. A combinao que eu e o meu pai fizemos foi de que posso ouvir tudo o que quiser, desde que no se oua fora do meu quarto. s vezes, o meu pai pede-me para ir l acima, ao meu quarto, ouvir o boletim meteorolgico, mas tudo o que ele quer saber pela rdio.

No temos televiso nem recebemos o jornal. Quando nos mudmos para New Hampshire, o meu pai ainda tentou o jornal local. Uma manh, vinha na primeira pgina a histria de uma mulher que tinha passado com o carro por cima do filho de catorze meses. O meu pai abandonou a nossa toca, dirigiu-se cozinha e meteu o jornal no caixote do lixo. E acabaram-se os jornais.

Tenho um cavalete e tintas no meu quarto e um sof que se transforma em cama nas raras ocasies em que recebo a visita de uma amiga. Na minha secretria, fao colares, pulseiras e anis de contas e missangas e na cama, leio. O meu pai costumava pedir-me que fizesse a cama at ao dia em que lhe respondi que ele nunca fazia a dele.

Desde a, deixou de falar no assunto. Detesto ir lavandaria e gostava de ter uma mquina de lavar. Pedi uma para o Natal.

Durante a tarde, enquanto estou a ler, ouo um gotejar que soa como um chuvisco de Vero. Aproximo-me da janela e espreito l para fora. O gelo comeou a derreter.

O mundo volta da casa suaviza-se e amolece, a crosta torna-se menos spera.

Saio e dirijo-me ao celeiro.

- Est bem! - diz o meu pai, levantando os olhos. - Vamos l. Porm, caminhar na neve que se derrete com raquetes de neve quase to difcil como caminhar no gelo.

A cada passo enterramo-nos na crosta derretida, perdendo o equilbrio. Comeam a doer-me as pernas antes de termos avanado uma centena de metros. A luz crua e rasa, a pior luz para caminhar ou esquiar. No vejo as lombas nem os trilhos, e s vezes temos a sensao de navegar no meio do nevoeiro. Atravessamos uma extenso que no Vero relvada e s depois entramos na floresta.

Semicerro os olhos na luz inspita, tentando seguir as marcas tnues deixadas na neve pela caminhada da vspera. De quando em quando, temos de adivinhar o caminho porque uma camada de neve arremessada pelo vento cobriu as pegadas antes de gelar. Observo as pegadas do caminho de volta e lembro-me da nossa corrida frentica com o beb nos braos do meu pai, no dia anterior. A minha respirao ofegante e vejo que o meu pai tambm estugou o passo. Procuramos o stio onde interrompemos a subida e mudmos de rumo, contornando a encosta, atrados pelo choro do beb. No consigo afastar a ideia de que a criana nos estava a chamar, a ns concretamente.

Venham buscar-me.

Por cima de ns, uma aragem branda comea a gemer atravs dos pinheiros, vergando as copas e arremessando para o cho pequenos torres de neve, pontilhando a superfcie do solo com bolas de beisebol.

Estou encharcada em suor dentro da parka. Corro o fecho clair e deixo que o ar glido me refresque a pele. Tiro o gorro e enfio-o num dos bolsos. Afasto com as mos os ramos baixos. Acho que perdemos a pista, mas o meu pai continua a avanar.

O meu pai possui uns dez hectares de terrenos rochosos, arbo rizados e acidentados. Toda a madeira para os mveis vem da sua propriedade: nogueira, carvalho, cer, pinho, cerejeira e lario. A serrao local serrou e aplanou os toros, entregando uma proviso de pranchas lisas e macias que o meu pai no vai esgotar durante anos.

Passado algum tempo, o meu pai descobre as nossas pegadas anteriores, que seguimos mais devagar. Depois de caminharmos cerca de quinze minutos, avisto, ao longe, uma nesga de fita cor de laranj a.

- Est ali - digo.

Dirigimo-nos para o stio vedado. Um crculo de fita adesiva cerca as rvores e converge para um trilho em direco ao motel, como que a indicar o caminho a uma noiva depois de um casamento ao ar livre. No interior do crculo, v-se o local onde estava o saco-cama, uma pegada da raquete de neve do meu pai contornada a tinta vermelha e, igualmente contornada, a marca de uma bota de tamanho quarenta e dois. Nenhum de ns tinha reparado na pegada da bota na noite anterior. Interrogo-me se a polcia teria encontrado a lanterna do meu pai, se valer a pena tentar recuper-la. O meu pai falou da lanterna ao detective Warren? Tento lembrar-me. Vo julgar que era do outro tipo e vo perder uma data de tempo a tentar descobrir-lhe o rasto?

Contornamos o crculo, de costas viradas para o motel. Examino o local onde esteve o saco-cama.

- Pap, porque que ele deixou a beb num saco-cama se a queria matar

O meu pai olha para cima, para os ramos despidos das rvores.

- No sei. Acho que no queria que ela tivesse frio.

- Isso no faz sentido.

- Nada disto faz sentido.

Puxo a fita plstica, a ver se estica.

- Como que achas que lhe vo chamar?

- No sei.

- Talvez lhe dem o nosso ltimo nome. Talvez lhe chamem Beb Dillon. Lembras-te de que chamaram a Clara Beb Baker-Dillon?

Permanecemos uns minutos em silncio e sei que o meu pai est a pensar na Beb Baker-Dillon, como se as recordaes dimanassem dele em vagas sucessivas. Tenho agora a fita adesiva enrolada nas luvas.

- Pap.

- Diz.

- Porque que havia tanto sangue e tanta confuso no quarto do motel?

O meu pai apanha um pedao de neve macia e molhada e comea a moldar uma bola.

- H sempre sangue quando uma mulher d luz. E h uma coisa chamada placenta, cheia de sangue, que o que alimenta o beb e expulsa depois do parto.

- Eu sei.

- Portanto, todo aquele sangue era natural. No significa que a mulher tenha sido ferida ou maltratada.

- Mas di, no di?

Na luz crua, o meu pai parece envelhecido. A pele sob as plpebras inferiores tem um tom arroxeado de alfazema e est lassa e enrugada.

- Di - responde, cauteloso. - Mas todos os partos so diferentes.

- A mam teve dores quando eu nasci?

O meu pai atira a bola com fora contra a rvore.

- Teve, sim. Mas se ela estivesse aqui, dir-te-ia que cada minuto valeu a pena.

Atrs de ns, um galho estala e assusta-nos. Viramo-nos e de paramos com o detective Warren, com o cachecol vermelho enrolado ao pescoo, a menos de seis metros de distncia.

- No vos queria assustar - diz.

- Mas assustou! - diz o meu pai, arquejante.

Warren est parado, com as mos enfiadas nos bolsos do sobretudo, numa pouco convincente atitude de quem estava a dar um passeio, nas traseiras de um motel, no rigor do Inverno.

- Fui at sua casa, mas ningum atendeu. Foi um palpite que me trouxe aqui. - Avana mais um passo. - Tinha de ver outra vez o stio, no tinha?

Caminha nas pegadas deixadas pelos peritos na noite anterior, colocando cada bota Timberland numa das cavidades.

- As pessoas so previsveis, Mr. Dillon. Voltamos sempre aos locais que nos impressionaram. Os apaixonados fazem-no constantemente.

Continua a aproximar-se, numa passada cautelosa.

- Hoje, o senhor aparece em todos os jornais, Mr. Dillon. Surpreende-me no ter encontrado uma equipa do Canal 5 em sua casa. A propsito, a sua porta est completamente escancarada.

- E o senhor entrou - diz o meu pai.

- Andava sua procura para lhe dar notcias da mida. Fiz todo o percurso de carro at l e no me ia embora sem ver se estava. J agora aproveito para lhe dizer que faz uns belos mveis.

O meu pai permanece calado, recusando-se a reagir aos elogios.

- A beb est a portar-se bem - diz Warren.

O meu pai desfere um pontap num montculo de neve dura.

- Estamos ambos do mesmo lado neste caso, Mr. Dillondiz Warren.

- E que lado esse?

- O senhor encontrou a beb e salvou-lhe a vida - diz Warren, puxando um cigarro de um mao de Camels, que acende com o isqueiro. - Fuma?

O meu pai abana a cabea, apesar de fumar.

- Eu tenho de descobrir o tipo que fez isto - continua Warren. - , assim que as coisas funcionam. Somos uma equipa.

- No somos uma equipa - diz o meu pai.

- Telefonei para Westehester e falei com um tipo chamado Thibodeau. Lembra-se de Thibodeau?

At eu me lembrava de Thibodeau. O agente Thibodeau tinha vindo a nossa casa na manh depois do acidente para nos dar as notcias que j conhecamos. O meu pai gritou-lhe para nos deixar em paz e se ir embora.

- Uma coisa terrvel - diz Warren. - Eu provavelmente teria feito o mesmo que o senhor fez. mudava-me, iniciava uma vida nova. Mas no sei para onde iria. Talvez para o Canad, ou para a cidade. procura do anonimato da cidade.

Tenho a fita cor de laranja enrolada nas luvas. Dou-lhe outro estico.

- Tenho dois rapazes, de oito e dez anos - continua Warren.

- Vamos embora, Nicky - diz o meu pai.

- Quero apanhar este tipo - diz Warren.

- Acho que j no temos nada a fazer aqui - diz o meu pai.

O detective atira para a neve a ponta do cigarro quase intacto Tira as luvas da algibeira e cala-as.

- Ningum tem nada a fazer aqui - diz Warren. epois de regressarmos a casa, o meu pai telefona ao Dr. Gibson. Deixo-me ficar a rondar na toca para o poder ouvir na cozinha.

- Queria saber como est a beb - ouo o meu pai dizer ao telefone.

- Est bem, ento

Onde est ela agora?

Vai l ficar quanto tempo?

J lhe deram um nome?

Beb Doris, repete o meu pai. Parece surpreendido, quase perplexo.

- Est a dizer-me que vai ser entregue a uma instituio de acolhimento Parece to.

O Dr. Gibson deve ter feito qualquer comentrio acerca das instituies de acolhimento e de adopo, porque o meu pai comenta:

- Sim, muito frio.

Ouo o meu pai servir-se de uma chvena de caf.

- Quando o sistema no funciona, o que acontece? Nesse caso instaurado um processo.

Obrigado. S queria saber se a beb estava bem. " O meu pai pousa o auscultador. Entro na cozinha. Ele bebe em pequenos goles o caf morno e tem os olhos fixos para l da janela da cozinha.

- Ol - diz ao ouvir-me entrar.

- Ela est bem? - pergunto.

- Est ptima.

- Chamaram-Lhe Beb Doris?

- Parece que sim. - Pousa a caneca. - Vou loja do Sweetser. Queres vir?

Nunca preciso que me perguntem duas vezes para acompanhar o meu pai numa ida cidade.

O meu pai segura a porta do armazm de ferragens para eu entrar. Sweetser levanta os olhos do jornal aberto em cima do balco ao lado da mquina registadora.

- C temos o nosso heri - sada.

- Ento, j sabe da notcia - diz o meu pai.

- Vem na primeira pgina. Veja.

Eu e o meu pai aproximamo-nos do balco. Num jornal conhecido pelas notcias desportivas do liceu, pelas bandas desenhadas de domingo e pelos cupes, vejo um ttulo em grandes parangonas que diz BEB ENCONTRADO NA NEVE. Por baixo, outro em letras mais pequenas: Carpinteiro Local Encontra Beb Com Vida num Saco-Cama Nlanchado de Sangue. Inclino-me mais sobre o balco e leio a notcia ao mesmo tempo que o meu pai. O reprter relata a histria com bastante preciso. H uma referncia ao motel, ao Volvo e ao casaco de marinheiro azul-marinho. Eu no sou mencionada.

- O seu nome est mal escrito - diz Sweetser.

- Bem vi - diz o meu pai.

Dylan. Est sempre a acontecer.

- Quer que recorte a notcia para ficar com ela?

O meu pai abana a cabea.

- Ento conte-me l o que que aconteceu? - quer saber

Sweetser

O meu pai desabotoa o casaco. O armazm aquecido por um caprichoso fogo a lenha, num dos cantos, que faz a temperatura flutuar entre os trinta e dois e os dezasseis graus. Hoje devem estar uns vinte e sete.

- Eu e a Nicky andvamos a dar um passeio quando ouvimos um choro - diz o meu pai. - Primeiro, pensmos que fosse um animal. Depois, ouvimos bater a porta de um carro.

- O beb estava num saco-cama? - pergunta Sweetser. O meu pai confirma com um aceno de cabea.

- Que coisa mais estranha! - diz Sweetser, alisando os fios rosados do cabelo no alto da cabea. Cortou recentemente a barba, revelando um queixo encovado e uma pele singularmente plida semelhante a um animal que acabasse de mudar de pele. - uma coisa inimaginvel.

- Sim, inimaginvel - corrobora o meu pai.

- Parece um daqueles contos de fadas que a minha mulher costumava ler aos midos - diz Sweetser. - O carpinteiro entra na floresta e encontra um beb.

- Num conto de fadas, seria uma princesa - diz o meu pai.

- Isso que era ter sorte - responde Sweetser.

Para um armazm de ferragens perdido numa terra-de-ningum entre Hanover e Concord, Sweetser possui uma impressionante variedade de produtos. Diz ele que gosta do peso e das formas das ferramentas, tal como o meu pai. Para alm das prateleiras de ferramentas h outras prateleiras com tabuleiros de Pyrex, caixas de fertilizante

Nliracle Gro (agora, fora de poca, cobertas de p) e latas de tinta Sberman-illiams. Anexa ao armazm h uma construo mais pequena, tipo telheiro, onde Sweetser vende velharias. A palavra velharias usada num sentido muito amplo, pois a maior parte do mobilirio dos anos 60.

- Aquele casal conseguiu dar com a sua casa na sexta-feira passada? - pergunta Sweetser.

- Qual casal

- Indiquei a sua casa a uns turistas, que vinham procura de uma mesa estilo Shaker. Disse-lhes que o senhor fazia uns mveis parecidos.

- Nunca os vi - disse o meu pai.

- A sua estrada uma lstima.

Sweetser andava a dizer que a nossa estrada era uma lstima desde que nos tnhamos mudado para a cidade. H mais de um ano que mandava gente oficina do meu pai, mas at data s uma dezena que se tinha aventurado pela estrada miservel. Porm, quando conseguem ultrapassar as dificuldades do percurso, compram quase sempre qualquer coisa.

- Preciso de um nvel de bolha de ar - diz o meu pai.

- O que aconteceu ao antigo?

- Parti o tubo de vidro.

- obra!

- Sim. Acontece.

O meu pai dirige-se prateleira dos nveis de bolha de ar. O antigo, que funcionava na perfeio at rachar o tubo de vidro contra a porta do frigorfico, tinha barras de metal. Escolhe um nvel de madeira. Reparo que alguns dos tubos de vidro so ovais, ao passo que outros so curvos. O meu pai indica-me um nvel com uma graduao de 360 graus.

- Vou at ao Remy tomar um caf - diz Sweetser, enfiando o brao num bluso de xadrez amarelo. - Quer um?

- No, obrigado - diz o meu pai.

- E um queque

- No, nada. J tomei o pequeno-almoo.

- E tu, Nicky? Queres um bolo?

- Um queque de caf? - pergunto.

- J vi que queres - diz Sweetser.

Depois de Sweetser sair da loja, digo ao meu pai que preciso de tinta branca.

- Depois do Natal, vou esquiar para Gunstock com a Jo.

- Quantos faltam agora? - pergunta ele.

- Sete - respondo, referindo-me aos picos brancos do meu mural.

- Quando vais

- No dia a seguir ao Natal.

- J disseste definitivamente que sim?

- Porqu? No posso ir?

- A av ainda c est nessa altura.

- Ento, no posso ir esquiar? - pergunto em tom de desafio. Sou capaz de passar da calma absoluta a uma fria desenfreada em menos de cinco segundos.

- No, podes ir. O que estou a dizer que devias perguntar primeiro. Eu podia ter planos para irmos a qualquer parte.

- Pap, ns nunca vamos a parte nenhuma - a minha voz deixa transparecer incredulidade.

Escolho uma lata de meio litro de tinta branco-linho e vou dar uma vista de olhos s velharias. H uma moblia de quarto de cer e um sof forrado de xadrez verde, sujo e roto. Num dos cantos, uma caixa de msica. Interrogo-me se funcionar.

Sweetser empurra a porta com o ombro e entra com uma chvena de caf e um queque. O meu pai escolhe o nvel de bolha de ar com o tubo de vidro fixo. Tr-lo para o balco e paga. Com o troco, Sweetser entrega ao meu pai um pequeno rectngulo de jornal.

- De qualquer modo, a tem o recorte.

O meu pai arranca do parque de estacionamento do armazm de Sweetser e eu levo ao colo o nvel de bolha de ar e o recorte de jornal. Dirige-se para casa. Dou uma dentada no queque e algumas migalhas caem na parte da frente da minhaparka.

- Pap, precisamos de comida.

- Fizeste a lista?

- No, mas precisamos de leite e de cereais, e de po para as sanduches. Tambm precisamos de molhos para as saladas e de comida para o jantar.

- No me apetece ir loja do Remy. J chega de conversa sobre o heri da terra.

O meu pai faz uma inverso de 180 graus e dirige-se ao supermercado de Butson, um armazm fora da cidade onde s vezes consegue entrar e sair sem encontrar ningum conhecido.

Passamos pela estao da Mobil e pela Shepherd Village School, uma escola com uma nica sala, construda em 1780. l que est instalada a escola primria da terra e o recreio um ptio de cascalho. Os alunos mais velhos so transportados de autocarro at escola regional, um percurso que, no meu caso, demora quarenta minutos, ida e volta.

Ao lado da escola fica a igreja congregacional, um edifcio de madeira branca com janelas rasgadas e portadas pretas. A igreja tem um telhado em declive e uma torre com um sino. Tanto eu como o meu pai nunca l entrmos.

Passamos pelas trs imponentes manses da terra, uma a seguir outra, numa encosta, mas duas delas j conheceram melhores dias. Passamos por Serenity Carpets, por uma rulote bege, pelo quartel dos bombeiros voluntrios e pela Croydon Realty, onde fizemos uma curta paragem a primeira vez que viemos cidade. - Croydon Realty, onde ainda possvel comprar uma casa por vinte seis mil dlares, no ser uma grande casa, mas uma casa para todos os efeitos. No Vero, eu e o meu pai s vezes costumamos fazer exploraes pelo campo e metemos por estradas secundrias, descobrindo pequenas bolsas de casas surpreendentemente bem conservadas.

- De que que esta gente vive? - a pergunta inevitvel do meu pai.

Certa vez, deparmos com um alce, que caminhava num passo lento nossa frente, obstruindo o caminho estreito. Tivemos de ir atrs dele uns vinte minutos a menos de dez quilmetros hora, sem nos atrevermos a ultrapass-lo, deliciados com o suave trote da garupa do animal.

A seguir a Croydon Realty, so cerca de sete quilmetros sem nada - apenas matas com um ribeiro que corre paralelo estrada. O meu pai abranda ao atravessar Mercy, o primeiro conjunto de casas depois do ermo, cujo hospital ocupa o que foi outrora um hotel de tijolo, de quatro pisos, remodelado nos anos 30. Embora tenham sido acrescentadas alas novas, as palavras De Wolfe Hotel ainda esto gravadas sobre a porta principal do edifcio original.

- Pap, pra! Deixa-me ir v-la.

O meu pai olha para o hospital. Sei que ele tambm gostava de ver a beb, mas passados poucos segundos, abana a cabea.

- Demasiadas burocracias - responde, acelerando. Depois do hospital, o meu pai mete por uma alameda arborizada. Pra em frente de uma tabuleta que diz Venda de Bebidas

Alcolicas, Mercado de Butson, Family Dollar, Frank Renata D. D. S.

Fao mentalmente a lista: leite, cereais, caf, frango, queijo, carne picada para hambrgueres e talvez um pacote de caramelos.

Com provises para uma semana, o meu pai retoma o caminho de regresso - o hospital, o ermo, a imobiliria, as trs manses imponentes e as lojas de Remy e de Sweetser, uma em frente da outra. A nossa estrada fica a cerca de dez quilmetros da cidade. Ao longo do percurso, passamos por uma srie de casas com alpendres juncados de canaps, brinquedos de plstico e botijas de gs vazias. Uma dessas casas uma vivenda pequena de madeira pintada de branco com um jardinzinho nas traseiras rodeado por uma sebe. O alpendre da entrada est atravancado de bicicletas e de triciclos, de bastes de beisebol e de hquei.

A marca dos rapazes tambm evidente na roupa pendurada na corda: shirts de vrios tamanhos, calas de ganga, camisas de hquei ou fatos de banho, consoante a estao.

No meio da roupa estendida, vejo s vezes, um soutien, umas cuequinhas ou uma camisa de noite bonita. Quando passamos por ali no Inverno, vemos uma vez por outra a me a debater-se com os lenis enormes, difceis de dobrar por causa do gelo. Parecem cartazes e sibilam quando o vento lhes bate. Fao sempre adeus senhora, que sorri e acena com a mo. Outras vezes, no Vero, sinto um impulso irreprimvel de parar a bicicleta, dizer ol, entrar naquela casa, conhecer os rapazes e ver o caos que imagino que ali reina.

O meu pai dirige a carrinha para a nossa estrada.

- Compraste esparguete?

- Comprei. E molho de tomate.

Estaciona no lugar habitual ao lado do celeiro. Desliga o motor.

- Que tal para o jantar?

- ptimo.

- Comprei gelado.

- Eu vi.

- De nozes de pec, os teus preferidos.

- Pap?

- Diz.

- Porque que deram beb o nome de Doris?

O meu pai procura os cigarros, num gesto nervoso, mas desiste por eu estar dentro do carro.

- No sei. Talvez fosse o nome de uma das enfermeiras.

- Parece mais o nome de um furaco.

- Se calhar eles tm um esquema qualquer.

- Achas que recebem assim tantos bebs?

- Acho que no. Espero bem que no.

- um nome antiquado. - Estou encostada porta do meu lado. O meu pai tem a mo no puxador da porta, como se estivesse ansioso por sair do carro.

- Nos dias de hoje estranho que dem esse nome a um beb

- concorda.

- O que vai acontecer-lhe? O Dr. Gibson disse-te?

- Vai ser entregue aos servios sociais. - Apoia a mo no puxador da porta e entreabre-a.

- Ela vai ter uma me e um pai, e irmos e irms

- Muito provavelmente.

- No parece certo.

- O que que no parece certo?

- Ns no sabermos onde ela est.

- assim que tem de ser, Nicky. - Abre a porta, pondo fim conversa.

- Pap?

- O que ?

- Porque que no ficamos com ela? Podamos ir busc-la para ficar connosco.

A ideia ao mesmo tempo temvel e sublime. Na minha mente de rapariguinha de doze anos, concebi a ideia de substituir um beb por outro. Mal acabo de proferir estas palavras e vejo a expresso do rosto do meu pai, compreendo o que fiz. Mas, exactamente como uma rapariga de doze anos faria, assu