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LIVROS UNIBOLSO JEROME K. JEROME TRÊS HOMENS NUM BOTE Texto integral EDITORES ASSOCIADOS Título original THREE MEN IN A BOAT TRADUÇÃO DE RAQUEL QUEIRÓS DE BARROS CAPA DE LICÍNIO DE MELO ° MISS E. M. FRITH LIVRARIA BERTRAND, S.A.R.L. ESTA EDIÇÃO UNIBOLSO FOI REALIZADA POR ACORDO COM A LIVRARIA BERTRAND, S.A.R.L. CAPÍTULO I Éramos quatro: Jorge, Guilherme Samuel Harris, eu e Montmorency - o meu fox- terrier. Reunidos no meu quarto, fumávamos, enquanto conversávamos sobre as más condições em que nos encontrávamos. Más, sob o ponto de vista da saúde, está claro. Sentíamo-nos todos quatro bastante fatigados, o que muito nos preocupava. Harris declarou que lhe davam, por vezes, umas estranhas vertigens e quase perdia a consciência dos seus actos. Jorge disse que também sentia, alguns dias, a cabeça tonta e não sabia então, por assim dizer, o que fazia. Quanto a mim, era o fígado que funcionava mal, pois acabara justamente de ler o reclamo de uma especialidade farmacêutica para tratamento daquela víscera, no qual se discriminavam os diversos sintomas que permitem reconhecer se temos ou não o fígado escangalhado. Percorri todos, pormenorizadamente. É curioso, mas não posso ler um anúncio de qualquer medicamento sem concluir que sofro precisamente da doença em questão e logo na sua forma mais perigosa. O diagnóstico parece-me sempre corresponder, de maneira exacta, a todos os sintomas que julgo manifestar. Lembro-me de ter ido um dia ao Museu Britânico, para colher umas informações sobre o tratamento de ligeira indisposição de que me queixava ... Tratava-se, creio eu, da asma dos fenos. Trouxeram-me o livro respectivo, e eu li o artigo todo que me interessava. Em seguida, num momento de distracção, pus-me a folhear o livro e, maquinalmente, a estudar todas as doenças, umas depois das outras. Não sei já por qual comecei - era, no entanto, um flagelo devastador - mas, ainda mesmo antes de ter percorrido metade da lista dos -sintomas premonitórios,,, estava absolutamente convencido de que tinha, realmente, apanhado a doença terrível. Primeiro, senti-me gelar de puro horror. Depois, no abandono do desespero, recomecei a folhear o livro inteiro. Cheguei à febre tifóide. Li os sintomas. Descobri imediatamente que tinha uma febre tifóide e que devia já sofrer há muitos meses dessa doença, sem o saber! Pensei que mais doenças poderia ter ainda. Cheguei à página da doença de S. Vito - e verifiquei, como já esperava, que também ela me apoquentava. Era um caso deveras interessante! Resolvi esclarecer o assunto, e recomecei, desde o princípio, por ordem alfabética: li o artigo dedicado à alopecia, e persuadi-me de que já tinha sido atingido e que o

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LIVROS UNIBOLSO JEROME K. JEROME TRÊS HOMENS NUM BOTE Texto integral EDITORES ASSOCIADOS Título original THREE MEN IN A BOAT TRADUÇÃO DE RAQUEL QUEIRÓS DE BARROS CAPA DE LICÍNIO DE MELO ° MISS E. M. FRITH LIVRARIA BERTRAND, S.A.R.L. ESTA EDIÇÃO UNIBOLSO FOI REALIZADA POR ACORDO COM A LIVRARIA BERTRAND, S.A.R.L. CAPÍTULO I Éramos quatro: Jorge, Guilherme Samuel Harris, eu e Montmorency - o meu fox-terrier. Reunidos no meu quarto, fumávamos, enquanto conversávamos sobre as más condições em que nos encontrávamos. Más, sob o ponto de vista da saúde, está claro. Sentíamo-nos todos quatro bastante fatigados, o que muito nos preocupava. Harris declarou que lhe davam, por vezes, umas estranhas vertigens e quase perdia a consciência dos seus actos. Jorge disse que também sentia, alguns dias, a cabeça tonta e não sabia então, por assim dizer, o que fazia. Quanto a mim, era o fígado que funcionava mal, pois acabara justamente de ler o reclamo de uma especialidade farmacêutica para tratamento daquela víscera, no qual se discriminavam os diversos sintomas que permitem reconhecer se temos ou não o fígado escangalhado. Percorri todos, pormenorizadamente. É curioso, mas não posso ler um anúncio de qualquer medicamento sem concluir que sofro precisamente da doença em questão e logo na sua forma mais perigosa. O diagnóstico parece-me sempre corresponder, de maneira exacta, a todos os sintomas que julgo manifestar. Lembro-me de ter ido um dia ao Museu Britânico, para colher umas informações sobre o tratamento de ligeira indisposição de que me queixava ... Tratava-se, creio eu, da asma dos fenos. Trouxeram-me o livro respectivo, e eu li o artigo todo que me interessava. Em seguida, num momento de distracção, pus-me a folhear o livro e, maquinalmente, a estudar todas as doenças, umas depois das outras. Não sei já por qual comecei - era, no entanto, um flagelo devastador - mas, ainda mesmo antes de ter percorrido metade da lista dos -sintomas premonitórios,,, estava absolutamente convencido de que tinha, realmente, apanhado a doença terrível. Primeiro, senti-me gelar de puro horror. Depois, no abandono do desespero, recomecei a folhear o livro inteiro. Cheguei à febre tifóide. Li os sintomas. Descobri imediatamente que tinha uma febre tifóide e que devia já sofrer há muitos meses dessa doença, sem o saber! Pensei que mais doenças poderia ter ainda. Cheguei à página da doença de S. Vito - e verifiquei, como já esperava, que também ela me apoquentava. Era um caso deveras interessante! Resolvi esclarecer o assunto, e recomecei, desde o princípio, por ordem alfabética: li o artigo dedicado à alopecia, e persuadi-me de que já tinha sido atingido e que o

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período agudo devia declarar-se dentro de uns quinze dias. Da doença de Bright, conforme supus, com alívio, sofria apenas numa forma benigna, e, por esse lado, podia viver ainda muitos anos. Da cólera, graves complicações me apoquentavam e a difteria era mal que me não largava desde que nascera. Assim, percorri conscienciosamente, do princípio ao fim, as vinte e seis letras do alfabeto, e concluí que a única doença a que me conservava alheio era a hidrartrose das criadas de servir! Senti-me, de começo, um pouco vexado. Por que razão não tinha eu a hidrartrose das criadas de servir? Porquê esta falta estranha? Isto parecia-me quase injusto. Mas, passado um momento, reprimi as minhas aspirações demasiado exigentes. Reflecti que possuía já a colecção completa de todas as outras doenças conhecidas e, num sentimento menos egoísta, resignei-me a dispensar a hidrartrose das criadas de servir. 8 A gota, na sua forma mais perniciosa, tinha-se apoderado de mim, sem que eu o soubesse e de zimose sofria evidentemente desde a minha adolescência. Sendo a zimose a última doença do livro, concluí que não sofria de mais nada. Já não era sem tempo ... Fiquei a meditar. Que caso tão interessante eu devia ser para a medicina! Que bela aquisição para o curso de um professor! Os estudantes escusariam de «correr pelos hospitais» se me tivessem à mão! Eu valia, por mim só, um hospital! Bastar-lhes-ia virarem-me, auscultarem-me, apalparem-me de todos os lados, e em seguida poderiam tirar o seu diploma! Como é natural, quedei-me a calcular quanto tempo ainda teria de vida. Tentei fazer o meu próprio exame médico. Tomei o pulso a mim mesmo. Primeiro não consegui senti-lo bater. Depois, de repente, tudo se normalizou. Puxei do relógio e cronometrei as pulsações. Contei cento e quarenta e sete por minuto. Tentei auscultar o ritmo do coração. Impossível! Impossível! Tinha parado. Convenci-me, de então para cá, que ele devia, realmente, estar dentro do meu peito, a palpitar. Mas não o garanto. Apalpei toda a frente do meu corpo,, desde a cintura à cabeça, ambos os lados, e um pouco mais acima, nas costas. Mas não consegui sentir nem ouvir o quer que fosse. Tentei ver a minha língua. Esticando-a o mais que pude, fechei um olho e tentei examiná-la com o outro. Apenas consegui ver-lhe a ponta, e a única vantagem que daí tirei foi a de mais me persuadir de que sofria, realmente, de escarlatina. Ao entrar naquela sala de leitura, eu era um homem feliz e saudável. Saí de lá dobrado ao meio, todo curvado. Era um farrapo miserável. Fui ter com o meu médico, um dos meus velhos camaradas, que me tomou o pulso, olhou-me a língua, falou-me de chuva e de bom tempo, tudo isto grátis, quando eu imaginava 9 estar doente eu pensava então que era um serviço que lhe prestava indo ter com ele. «O que um médico precisa, dizia eu, é de prática. Para isso ofereço-lhe a minha pessoa. Terá comigo mais prática do que com cento e dezassete dos seus doentes vulgares, que não têm cada um mais do que duas doenças. » Cheguei, portanto, ao seu consultório, todo satisfeito, e, ao ver-me, ele perguntou-me: - Então que tens tu? E eu respondi-lhe: - Não te faço perder tempo, meu velho, a contar-te o que tenho. A vida é breve e corrias o risco de desaparecer antes que eu acabasse. Prefiro dizer-te o que não tenho. Não sofro da hidrartrose das criadas de servir. Porque é que a hidrartrose das criadas de servir me não atacou, não sei mas o facto é que disso não sofro. À parte esta doença, sofro de todas as outras. E contei-lhe largamente como chegara a esta conclusão. Então, mandou-me mostrar a língua e tomou-me o pulso. Quando eu menos esperava, deu-me uma pancada no peito - eu chamo a isto apanhar as pessoas à traição - e logo em seguida auscultou-me. Depois, sentou-se, escreveu uma receita, dobrou-a e entregou-ma. Eu meti-a na algibeira e saí. Nem a desdobrei. Dirigi-me à farmácia mais perto e dei a receita ao farmacêutico. Ele leu a receita e tornou a dar-ma, dizendo-me que não tinha aqueles remédios. E eu perguntei-lhe:

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- O senhor é farmacêutico? Ele respondeu-me: - De facto, sou farmacêutico. Se fosse uma cooperativa de venda e uma pensão de família, talvez me julgasse capaz de aviar a receita. Sendo apenas farmacêutico, é-me absolutamente impossível. 10 Li a receita. Dizia assim: ,,Um bife de meio quilo, mais meio litro de cerveja preta de seis em seis horas. Um passeio de quinze quilómetros todas as manhãs. Uma cama para dormir às onze horas em ponto, todas as noites. E não meta na cabeça coisas de que nada entende. 11 Segui as instruções com o feliz resultado - quer dizer, feliz para mim - de salvar a minha vida, 'que, felizmente, continua ... No caso presente, voltando ao reclamo das pílulas para o fígado, eu tinha bem evidentes os sintomas hepáticos, dos quais o principal é uma imensa aversão ao trabalho, sob qualquer forma. E o que eu cheguei a sofrer sob esse aspecto, não há palavras que o descrevam. Desde tenra idade, tem sido para mim um martírio. Quando estava na escola, nunca essa doença me abandonou um só dia. E ninguém sabia a causa: era do fígado. A medicina estava então muito menos desenvolvida do que hoje, e atribuíam isso à preguiça. Diziam-me: «Mas que diabo, pequeno mandrião, vê se espertas! Não serás homem para ganhar um dia a tua vida?» Não sabiam, é claro, que eu era doente. E, em vez de me darem pílulas, davam-me sopapos. E, embora pareça esquisito, muitas vezes esses sopapos curavam-me - por uma hora. Alguns desses socos actuaram mais no meu fígado e deram-me um maior desejo de meter mãos ao trabalho imediatamente de que o faz agora uma caixa inteira de pílulas. E é assim muitas vezes: os simples remédios caseiros são, em certos momentos, mais eficazes do que todas as drogas da farmácia. Ficámos, pois, uma boa meia hora no meu quarto a descrever uns aos outros as nossas próprias doenças. Expliquei ao Jorge e ao Guilherme Harris o mal-estar que sentia quando me levantava, pela manhã Guilherme Harris contou-nos como se sentia ao deitar, e Jorge, pondo-se de pé em frente do fogão, mostrou-nos, com mímica hábil e expressiva, o que sentia durante a noite. Jorge, diga-se de passagem, imagina que está doente. Mas, na verdade, não sofre de nada. A Sr.a Poppets - a nossa hospedeira - veio bater-nos à porta para saber se nós estávamos dispostos a cear. Trocámos um amargo sorriso e respondemos-lhe que sempre íamos ten tar engolir umas garfadas. Harris acrescentou que, às vezes, um bocadinho de pão que se meta no estômago é o bastante para afastar a doença. A Sr.a Poppets trouxe a bandeja, e nós sentámo-nos à mesa para tasquinhar um pouco de lombo com cebolas e uma torta de ruibarbo. Eu devia, nesse tempo, estar muito doente, pois lembro-me de que, passada apenas meia hora, não tinha já vontade de comer - o que não costuma acontecer-me - e nem o queijo provei. Cumprido este dever, enchemos os copos, acendemos os nossos cachimbos e retomámos a discussão sobre a nossa saúde. O que tínhamos, realmente, nenhum de nós sabia dizê-lo mas fomos unânimes em decidir que a nossa doença, qualquer que fosse a sua natureza, era resultado do trabalho excessivo. - O que nós precisamos - declarou Harris - é descan so. - Descanso e mudança absoluta de vida - afirmou Jorge. - O abuso das nossas faculdades intelectuais provocou uma depressão geral no nosso organismo. Outro meio e a au sência da necessidade de pensar hão-de restabelecer o nosso equilíbrio mental. 12 Jorge tem um primo, que assina geralmente nos registos de hotel como estudante de Medicina talvez por isso, são de família os ares doutorais com que o nosso amigo expõe as coisas. Eu pensava como Jorge, e lembrei que deveríamos escolher um cantinho muito sossegado, longe de todo o ruído que enlouquece, onde

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passássemos uns radiosos quinze dias, sonhando e passeando pelas ruas adormecidas um pequeno cantinho ignorado, protegido pelas fadas, ao abrigo do tumulto do mundo um ninho romântico de águia, alcandorado nos penhascos do tempo, onde apenas se ouvisse, ao longe, o rolar das ondas tumultuosas do século XIX. Harris declarou que, a seu ver, isso seria insuportável. Conhecia bem o género de sensaboria que eu propunha, em que cada um se vai deitar às oito horas, onde não há modo, nem a peso de oiro, de se conseguir um jornal com notícias sobre as corridas de cavalos, e onde tem que se andar quinze quilómetros a pé até se encontrar tabaco. - Não - disse Harris - para repouso e diversão, não há nada melhor do que uma viagem por mar. Opus-me energicamente à viagem por mar. Este.género de desporto faz bem à saúde quando dura um bom par de meses, mas, por uma semana só, é prejudicial. Partimos à segunda feira com a ideia firme de nos divertirmos. Dizemos adeus com ar protector aos amigos que ficam no cais. Acendemos o nosso melhor cachimbo, pavoneamo -nos na coberta com ar tão vaidoso como se fôssemos o próprio capitão Cook, Sir Francis Drake e Cristóvão Colombo reunidos numa só pessoa. Na terça-feira arrependemo-nos de ter vindo. Na quarta, quinta e sexta, desejaríamos ter morrido. Ao sábado, só nos apetece tomar umas colheres de caldo, sentarmo-nos na coberta e responder com um sorriso fraco e pálido quando as pessoas bondosas nos perguntam se estamos melhor. Ao domingo, recomeçamos a circular e a comer ali 13 mentos sólidos. E, na segunda-feira, de manhã, quando, de mala e chapéu de chuva na mão, esperamos na ponte o momento do desembarque, só então começamos, realmente, a gostar da viagem. Isto faz-me lembrar a aventura do meu cunhado, quando ele foi dar um pequeno passeio de barco, por causa da sua saúde. Comprou um bilhete de ida e volta entre Londres e Liverpool logo que chegou a Liverpool sentiu um único desejo: o de vender o seu bilhete de volta. Ofereceu o bilhete por toda a cidade com uma redução formidável e, por fim, adjudicou-o por três escudos e sessenta centavos a um rapaz de aspecto bilioso, a quem o médico recomendara o ar de mar e muito exercício. - Ar de mar - disse-lhe o meu cunhado, metendo-lhe o bilhete na mão com um gesto afectuoso -, mas, meu amigo, tê-lo-á assim para toda a vida e, quanto a exercício! ... real mente, faz mais exercício sentado e quieto no barco do que se andasse a dar saltos acrobáticos em terra firme. E ele (o meu cunhado) voltou de comboio, declarando que o caminho de ferro era bastante higiénico para ele. A um outro rapaz que eu conheço, que fez um cruzeiro de uns oito dias, ao longo da costa, o criado veio perguntar-lhe, à partida, se preferia pagar cada refeição separadamente, ou pagar adiantada a série inteira. O criado afirmou-lhe ser este segundo sistema muito mais económico. Disse que o alimentariam uma semana inteira por duas libras e cinco xelins. Acrescentou que ao pequeno almoço davam peixe e um assado. O almoço era à uma hora e compunha-se de quatro pratos. O jantar, às seis: sopa, -peixe, uma entrada, um prato de carne, uma ave, salada, um prato frio, queijo e sobremesa. Davam, ainda, uma ceia de carne até às dez horas da noite. O meu amigo, que é um grande comilão, julgou útil a 14 proposta e pagou. Serviram o almoço mesmo à hora da partida. O viajante, afinal, tinha menos apetite do que julgara, e contentou-se com uma fatia de carne cozida e morangos com leite. Meditou seriamente durante a tarde. Tão depressa lhe parecia que havia muitas semanas não tinha comido senão carne cozida, como noutros momentos lhe parecia ter comido havia muitos anos, só morangos com leite. Mas nem a vaca nem os morangos lhe permitiam uma boa digestão. Andavam-lhe aos saltos dentro do estômago. Às seis horas, preveniram o meu amigo de que o jantar estava na mesa. Esta notícia não despertou qualquer entusiasmo, mas pensou que tinha de tirar todo o proveito do seu rico dinheiro e, amparando-se aos cabos e outros engenhos,

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desceu ao restaurante. Sentiu, ao descer a escada, um cheiro agradável a cebola frita e presunto quente, a peixe frito e a legumes. Surgiu então o criado, que lhe perguntou com um sorriso velhaco: - Que hei-de trazer para o senhor? - Leve-me daqui para fora - respondeu o outro com voz sumida. Levaram-no imediatamente para cima, e deixaram-no encostado e debruçado sobre a amurada de estibordo ... Nos quatro dias imediatos adoptou a dieta inocente de bolachas e água de Seltz mas, no sábado, reagiu e pôs-se a chá fraco com torradas na segunda-feira, regalava-se com caldo de frango. Desembarcou na quarta-feira e, quando o barco se afastava do cais, lançou-lhe um olhar cheio de saudades. - Lá vai o barco - disse ele -, lá se vai, levando a bordo duas libras de comida que me pertencem, e que eu não comi. E afirmava que, se lhe tivessem dado mais um dia, teria 15 comido tudo. Opus-me, portanto, à viagem por mar. Não, como então expliquei, por minha causa - eu nunca enjoo no mar -, mas receava que não pudesse acontecer o mesmo a Jorge. Jorge assegurou que suportaria muito bem a viagem, e que muito lhe agradaria. Mas aconselhava-nos, a Harris e a mim, a nem mesmo pensarmos nisso, pois estava convencido de que ambos ficaríamos doentes. Harris declarou que nunca compreendera como é que as pessoas adoeciam a bordo - deviam fazê-lo de propósito, por pedantice - e acrescentou que muitas vezes desejaria sentir-se doente, mas que nunca tinha conseguido. Depois, contou-nos algumas anedotas sobre uma travessia do Pas-de-Calais, que fizera num dia de mar tão bravo que tinham tido de amarrar os passageiros às próprias camas. Ele e o capitão eram as duas únicas pessoas que não enjoavam. Às vezes, o capitão era substituído pelo imediato, outras vezes por um passageiro. Facto curioso, nunca ninguém sofre do enjoo de mar - em terra. A bordo encontra-se gente muito doente, às bateladas, mas nunca encontrei ninguém, em terra, que soubesse o que era um enjoo de mar. Onde se metem em terra esses milhares de maus marinheiros que abundam a bordo - eis o que é para mim um verdadeiro mistério! Se a maioria dos homens fosse como um cidadão que um dia encontrei no barco de Yarmouth, o aparente enigma resolver-se-ia facilmente. Ainda me lembro, mesmo em frente do dique de Southend, que o homem se debruçava sobre a amurada, numa posição muito perigosa. Aproximei-me para tentar salva-lo. - Cuidado! Recue um pouco pelo ombro. - Pode cair ao mar! - Oh! meu Deus! Quem me dera lá estar - foi a única - disse-lhe, puxando-o 16 resposta que obtive. E não houve remédio senão deixa-lo lá ficar. Três semanas mais tarde tornei a encontrar o cidadão na sala de café de um hotel de Bath. Falava das viagens e declarava o grande entusiasmo que sentia pelo mar. - Se sou bom marinheiro! - exclamou ele, respondendo a um rapaz tímido que o interrogava com um ar de admiração. - Realmente, confesso que já me senti ligeiramente in disposto, mas uma única vez. Foi ao largo do cabo Horn no dia seguinte, o navio naufragava. E eu disse-lhe: - Mas não foi você que eu vi um dia um pouco atrapalhado ali em frente do dique de Southend, e que dizia só desejar cair à água? - O dique de Southend! - replicou com ar admirado. - Sim, no caminho para Yarmouth, fez na sexta-feira três semanas? - Oh! ah! ... sim! - respondeu, com um sorriso -, agora me lembra. Estava eu com enxaqueca, nessa tarde. Mas, sabe, foi por causa dos pickles. Os pickles mais horrí veis que tenho comido a bordo dum navio decente. Também comeu? Por mim, descobri um excelente preventivo contra o enjôo de mar: baloiçar-me. Ponho-me de pé no meio da coberta, e, quando o barco dança, inclino o corpo de um lado para o outro, de maneira a aguentar-me sempre na posição -vertical. Quando é a proa que vai ao ar, inclino-me para a frente, até quase tocar com o

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nariz no chão quando é a popa que se eleva, inclino-me para trás. Isto vai muito bem durante uma hora ou duas mas não é possível baloiçar-me durante uma semana inteira. Jorge disse: - Vamos então subir o Tamisa! 17 Assegurou-nos que teríamos tudo o que nos faltava: ar puro, exercício e descanso a constante mudança de panorama ocupar-nos-ia o espírito, e o exercício de remar dar-nos-ia bom apetite e bom sono. Harris declarou que entendia que Jorge devia evitar tudo que o tornasse mais sonolento do que ele já era, pois isso podia até tornar-se perigoso. Não podia bem supor, de facto, como é que o Jorge conseguiria dormir mais do que já habitualmente dormia, pois que, tanto de verão como de inverno, não há mais de vinte e quatro horas por dia mas, de qualquer modo, se ele conseguisse dormir mais, então era preferível morrer. Assim, ao menos, economizava o dinheiro da pensão e do quarto. Acrescentou, todavia, que, à parte esse pormenor, o passeio no Tamisa lhe saberia <<que nem ginjas» . A mim também me saberia «que nem ginjas», e Harris e eu proclamámos ambos que o Jorge tinha tido uma excelente ideia. E não ocultámos a nossa estranheza por ver que Jorge se mostrava, enfim, tão inteligente. O único que não se entusiasmou com a proposta foi Montmorency. Montmorency nunca apreciou o Tamisa. - É muito agradável para vocês, meus amigos - resmungou ele. - Vocês gostam disso, mas eu não. Não tem para mim nenhuns encantos. A paisagem não me comove e não fumo para me distrair. Se vejo passar um rato, vocês não param, e se adormeço vocês fazem logo tolice com o barco e pregam comigo no charco. Se querem saber a minha opinião, tudo isso é para mim absolutamente idiota. Mas, .como éramos três contra um, a proposta foi aprova da. 18 CAPíTULO II Houve novo conciliábulo para discussão dos nossos planos. Resolvemos partir de Kingston, no sábado seguinte. Harris e eu iríamos logo de manhã levar o bote até Chertsey, e Jorge, que não podia sair da cidade antes da tarde (Jorge vai dormir todos os dias no Banco, das dez às quatro, excepto ao sábado, em que vão acordá-lo para o porem fora às duas horas), iria lá ter connosco. Havíamos de acampar ao ar livre ou de ir dormir ao hotel? Jorge e eu éramos pelo acampamento ao ar livre. Gozaríamos toda a beleza da liberdade primitiva. Seria patriarcal. Lentamente, a sombra vermelha do Sol moribundo apaga-se entre as nuvens cinzentas e sombrias. Silenciosos como crianças tristes, os pássaros calam o seu chilrear, e só o grito triste do galo bravo e o rouco grasnar da gralha perturbam o silêncio solene que paira sobre o rio. O dia morre num longo suspiro. Dos bosques indistintos, nas duas margens, as sombras cinzentas - hostes quiméricas da noite - saiem e avançam com passos abafados, para afastar a última claridade tardia, e deslizam com os pés invisíveis sobre as altas ervas ondulantes e os juncos murmurantes, e a noite, no seu trono sombrio, estende as asas negras sobre o mundo e do alto do seu palácio fantasma, que as pálidas estrelas iluminam, derrama o silêncio duma paz infinita. Então recolhe-se o barquinho nalgum canto tranquilo. A barraca depressa se arma cozinha-se e come-se a ceia frugal. Depois enchem-se e acendem-se os cachimbos, e, a meia voz, num murmúrio suave, trocam-se impressões. Nos intervalos da conversa, o rio, marulhando contra o barco os seus velhos 19 contos e segredos, canta em surdina a velha canção pueril que há tantos mil anos entoa e que há-de continuar a entoar por outros tantos mil anos, enquanto a sua voz se não quebrar, vencida pela velhice - uma canção que nós julgamos às vezes compreender, mas que é sempre intraduzível nas palavras em que vãmente tentamos captá-la ...

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E ali nos quedamos enquanto a Lua, que também adora o rio, se curva para o beijar, nem beijo de irmã, e o estreita nos seus braços de prata. E ali nos ficamos a vê-lo correr, sem descanso, cantando e murmurando, ao encontro do seu rei, o mar - até que as vozes se calam e os cachimbos se apagam, até que nós, banais rapazes da vida de todos os dias, nos sentimos cativos de profunda onda de ideias ignoradas, meio alegres, meios melancólicas, e em nós se extingue o desejo e a necessidade de falar ... Levantamo-nos depois, sacudimos a cinza dos cachimbos - damos as boas-noites e, embalados pelo marulhar da água e pelo murmúrio das folhas, adormecemos à luz das estrelas e sonhamos que a Terra voltou a ser nova. Nova e bela como era antes que os séculos tivessem enrugado o seu lindo rosto a ntes que os pecados e loucuras dos seus filhos tivessem envelhecido o seu coração amorável - bondosa como era nesses dias longínquos em que, mãe ainda moça, embalava os homens, seus filhos, no seio profundo antes que os encantos da civilização fictícia nos tivessem desviado dos seus braços meigos antes que os sorrisos venenosos da mentira da civilização nos tivessem feito envergonhar da vida simples que levávamos junto dela, simples e majestosa morada, onde nasceu a humanidade há tantos milhares de anos. Harris disse: - Mas, se chover? É impossível fazê-lo erguer-se um pouco acima da realidade trivial. Não há em Harris nenhuma poesia - nenhuma 20 louca aspiração de atingir o impossível. Nunca acontece ao Harris «chorar sem saber porquê-. Se algum dia virem os olhos de Harris rasos de água, podem apostar que é só porque comeu cebola crua ou porque regou com uma forte dose de molho de Worcester a costeleta do almoço. Se, por exemplo, nos encontrássemos uma noite à beira-mar com Harris e lhe disséssemos «Schiu! escuta, não ouves? Não são as sereias cantando nas suas grutas submarinas, ou as almas penadas que pranteiam a morte de quantos naufragaram, presos pelas algemas no fundo do mar?», Harris agarrava-nos pelo braço e dizia-nos: «Já sei o que isso é, meu velho apanhaste um golpe de ar e estás com febre. Vamos vem comigo. Eu conheço um café a dois passos daqui, onde poderás beber um gole do melhor whisky da Escócia ... que te põe fino num ápice.» Harris conhece sempre um café a dois passos, onde se pode beber qualquer droga excepcional. Tenho a certeza de que se o encontrásseis no Paraíso (supondo que isso era possí vel), ele recebia-vos, logo à entrada, com estas palavras: -Estou muito contente por teres vindo, meu caro irmão! Descobri, a dois passos daqui, um café estupendo, onde se pode beber um néctar de primeira ordem. No caso presente, todavia, pelo que respeita ao campismo, o seu modo prático de encarar as coisas vem muito a propósito: acampar ao ar livre com tempo de chuva não é nada agradável. Senão, vejamos. É noite. Estamos ensopados, o barco tem uma boa altura de cinco centímetros de água, e os utensílios estão todos molhados. Encontramos na margem um sítio um pouco menos lamacento do que os outros, desembarcamos para armar a barraca, e pomo-nos os dois a tentar essa empresa. A lona, encharcada, está pesada ondula, ainda assim, 21 com o vento, cai-nos em cima, enrodilha-se-nos à volta da cabeça a ponto de nos enfurecer. Entretanto, continua a chover a potes. É já bastante difícil armar uma barraca com bom tempo se chove, isso torna-se um verdadeiro trabalho de Hércules. Parece que, em vez de nos ajudar, o nosso camarada não faz senão asneiras. Justamente quando do meu lado eu acabei de assentar a barraca como deve ser, ele põe-se a puxar do seu lado e escangalha tudo. - Eh, lá! porque é que tu puxaste? - grito eu. - Foste tu! - responde ele. - Deixa vir a corda, se fazes favor. - Não puxes, meu cabeça de abóbora! - vocifero eu. - Não, não fui eu - ruge ele, por sua vez. - Larga do teu lado!

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- Repito que deitaste tudo abaixo! - grito eu, lastimando não estar mais perto dele. - E puxaste as cordas com tanta força que as estacas se voltaram todas. - Mas que idiota! - oiço-o murmurar. Depois, há um forte movimento de tracção, e lá se vai o meu lado. Largo o pano, e trato de dar uma volta para dizer duas palavras enérgicas ao camarada. Mas, no mesmo instante, ele resolve também largar tudo, para o mesmo lado, para vir expor a sua opinião. Perseguimo-nos um ao outro em volta da barraca, até que esta acaba por cair num monte fitamo-nos um ao outro com indignação e por fim rugimos ambos: - Agora! Vês! É o que te tinha dito! Entretanto o terceiro companheiro, que estava a vazar a água do'barco, e que encheu a manga de água e praguejou sozinho dez minutos seguidos, sem parar, gostava de saber - que diabo! - em que é que nós nos tínhamos entretido e por que diabo essa peste de barraca ainda não estava armada! 22, Por fim, melhor ou pior, lá se armou a tenda, e desembarcou-se o material. Não podemos sequer pensar em acender uma fogueira. Portanto, acendemos o fogareiro de álcool, e vamos com sorte! . A água da chuva é o prato sólido do nosso jantar! Do pão, -dois terços são água. A carne está impregnada de água! A compota caiu na manteiga, besuntou o sal e o café. Uma autêntica açorda! Depois do jantar, verificamos que o tabaco está húmido e que não podemos fumar. Felizmente temos uma garrafa do belo líquido que alegra e embriaga, e tomamos uma boa dose! Esse elixir dá-nos bastante apego à vida para nos sentirmos tentados a dormir um sono reparador. Então, sonhamos que, de repente, vem um elefante instalar-se em cima do nosso estômago, e que um vulcão explodiu e nos lançou no fundo do mar - onde o elefante continua a dormir tranquilamente sobre o nosso peito. Acordamos com a sensação de que se deu, realmente, uma horrível catástrofe. A nossa primeira impressão é de que se aproxima o fim do mundo depois, reflectimos que não deve ser isso, que devem ser, talvez, os ladrões e os assassinos, ou talvez fogo, e comu nicamos a nossa ideia, uns aos outros, na forma habitual, isto é, praguejando, indignados. Não aparece ninguém em nosso auxílio, claro está. Julgamos, antes, que milhares de indivíduos nos atacam a pontapé e que nos falta o ar. Dir-se-ia haver mais alguém a sofrer graves dissabores. Ouvem-se debaixo das nossas camas gritos abafados. Decididos, suceda o que suceder, a vender cara a vida, lutamos como possessos, batendo com os pés e com os punhos cerrados para a esquerda e para a direita, sem deixar de emitir desesperados berros. Por fim, há um obstáculo que cede, e encontramo-nos com a cabeça ao ar livre. A menos de 23 um metro de distância, divisamos na escuridão um bandido meio nu, que se prepara para nos matar, e dispomo-nos a sustentar um combate renhido, quando começamos a suspeitar que esse bandido não é senão o próprio Jim. - Ah!, olha, és tu? - diz ele, reconhecendo-me também nesse momento. - Sim, sou - respondo eu, esfregando os olhos. - Que foi que sucedeu? - Este diabo da barraca virou-se com o vento, parece-me - responde ele. - Onde está o Bill? Então chamamos os dois ao mesmo tempo: «Bill!» E o chão por baixo de nós treme e agita-se, e a voz abafada que havia pouco se ouvira responde de entre as ruínas: - Estão sentados em cima da minha cabeça afastem-se um pouco, se for possível. E Bill surge, arquejante, farrapo humano, enlameado e espezinhado, intempestivamente agressivo, pois está evidentemente convicto de que foi tudo grossa partida que lhe fizemos. Na manhã seguinte estamos todos três afónicos, em consequência da forte constipação que apanhámos durante a noite, e também muito peguilhentos. Passamos todo o tempo do almoço a injuriar-nos reciprocamente, por meio de resmungadelas roufenhas. Para evitar acidentes de tal calibre, resolvemos, portanto, dormir ao ar livre, quando o tempo estivesse bom, e ir para o hotel, para a hospedaria ou para a

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taberna, como pessoas respeitáveis, quando chovesse ou quando nos apetecesse variar. Montmorency manifestou repetidas vezes a sua aprovação deste plano. É que ele não aprecia a romântica solidão. Prefere os lugares barulhentos e se a paisagem e o meio são já conhecidos, tanto melhor. Ao ver Montmorency, podia supor-se que ele é um anjo que, por qualquer razão desconheci 24 da da humanidade, caiu na terra sob a forma de um cãozito. Montmorency toma uns tais ares: «Oh - como - este - mundo - - é - mau - e - como - eu - gostaria - de - fazer - qualquer - - coisa - para - o - tornar - melhor - e - mais - elevado-, que já fez arrasarem-se de lágrimas os olhos de muita gente piedosa, senhoras e senhores de idade. Quando ele começou a viver à minha custa, não me convenci, a princípio, de que o teria muito tempo junto de mim. Acontecia-me observá-lo quando o via sentado no tapete, de olhos erguidos para mim, e dizer comigo mesmo: «Oh!, este cão não há-de viver muito. Há-de ser levado pára o Empíreo num carro de fogo. É inevitável!. Mas quando paguei uma indemnização por uma dúzia de frangos que ele tinha morto quando tive de arrancá-lo, agarrando-o pela pele do pescoço, rosnando e esperneando, a cen to e catorze inimigos de batalhas nas ruas quando uma velha bruxa furiosa me apresentou, chamando-me assassino, um gato despedaçado quando fui chamado perante a justiça para responder à acusação de um meu vizinho que dizia que eu deixava em liberdade um animal feroz que o tinha mantido durante mais de duas horas duma noite glacial na sua própria casa das ferramentas, de onde ele não se atrevia a sair quando soube que o jardineiro, sem o meu consentimento, tinha ganho trinta xelins, pondo-o a caçar ratos ao desafio, então, sim, comecei a crer que, no fim de contas, Montmorency ficaria por este mundo ainda um certo tempo. Rondar em volta das cocheiras, reunir um bando de cães dos menos recomendáveis e levá-los a dar uma volta pelos bairros populares para lutar com outros cães também pouco recomendáveis, é a ideia que Montmorency faz da -boa vi'` da-. E aqui está porque ele manifestou, conforme eu já disse, a mais entusiástica aprovação à nossa proposta de nos hospedarmos nas estalagens, tabernas e hotéis. 25 Tendo assim resolvido a questão de dormir a contento de todos quatro, só nos faltava arrumar um assunto: as coisas que nos convinha levar. Tínhamos começado a falar desse assunto, quando Harris declarou que estava farto de tanto palavreado numa noite só e propôs sair e rir um pouco, acrescentando que descobrira um café ali a dois passos, onde havia um certo whisky da Irlanda que merecia a pena saborear. Jorge confessou que sentia muita sede (é o costume de Jorge desde que eu o conheço) e, como me assaltava o pressentimento de que um grogue com um pouco de whisky muito quente, com uma roda de limão, devia fazer bem à minha doença, a conclusão do debate foi de comum acordo adiada para a noite seguinte. A assembleia foi encerrada. CAPÍTULO III Portanto, na noite seguinte reunimo-nos de novo, para discutir e assentar os nossos planos. Harris disse: - Agora, a primeira coisa a assentar é o que temos de levar. Tu, Jerome, vais pegar num bocado de papel e escrever e tu, Jorge, pega na lista da mercearia, e um de vocês dê-me um lápis para eu organizar a lista. Isto é mesmo do Harris: está sempre pronto a encarregar-se ele próprio de tudo, e a mandar fazer aos outros o trabalho todo. Lembra-me constantemente o meu tio Podger,, Quando o meu tio Podger resolvia fazer fosse o que fosse, era por toda a casa um tal rebuliço que ninguém se entendia. Chegava da loja um quadro que tinha ido a emoldurar e estava na casa de jantar, à espera de ser pendurado. A minha tia perguntava o 26 que devia fazer ao quadro e o meu tio respondia:

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-- Oh!, deixa, deixa! Eu me encarrego dele, isso é comigo. Não preciso que lhe mexas, nem ninguém. Eu encarrego~me de tudo. Tirava o casaco e começava a tarefa. Mandava a criada buscar um tostão de pregos, depois mandava um dos rapazes a `correr atrás dela, para lhe dizer de que tamanho deviam ser e por este sistema punha gradualmente em desordem a casa inteira. - Vamos, Guilherme, vai buscar o meu martelo - gritava ele. - E tu, Tomás, traze-me a régua preciso do escadote_ para subir e também me faz falta um banco de cozinha. Jim! Vai numa corrida a casa do Sr. Goggles, dize-lhe que teu pai lhe manda muitos cumprimentos e deseja que ele esteja melhor da perna e se ele fazia o favor de me emprestar o seu nível de água ... E não te vás embora, Maria: preciso de alguém para me segurar no castiçal. E quando a criada voltar, terá de sair outra vez, para me trazer um bocado de cordão para pendurar os quadros e Tom!, onde está o Tom? Tom, anda cá, preciso de ti para me dares o quadro. Então pegava no quadro e deixava-o cair. O quadro separava-se da moldura. Ao tentar segurar o vidro, o meu tio cortava-se depois corria a procurar por todos os lados o lenço. E não o encontrava, evidentemente, porque o lenço ficara na algibeira do casaco que tinha despido, e que não sabia onde tinha posto. E então era preciso que todos abandonassem os apetrechos que já tinham nas mãos, para irem procurar o casaco. Entretanto o tio Podger gesticulava e vociferava: - Não há ninguém nesta casa que saiba onde está o meu casaco? Nunca vi gente tão inútil! Estão aí seis pessoas!, e nenhuma é capaz de encontrar o casaco que eu larguei ainda nem há cinco minutos! Súcia de mandriões ... Neste momento levantava-se e, verificando que estava 27 sentado em cima do casaco, exclamava: - Ah!, está bem, não procurem mais! Fui eu só, só eu que o encontrei! Tanto vale pedir ao gato que encontre qualquer coisa que se perdeu, como pedi-lo a vocês. E depois de levarmos meia hora a tratar-lhe do dedo e de comprarmos outro vidro, e de terem ido buscar de novo os apetrechos, o escadote, o banco e o castiçal, começava uma nova cena. A família toda, incluindo a criada e a mulher a dias, reunia-se à roda dele, pronta a ajudá-lo. Eram precisas duas pessoas para segurar o banco uma terceira ajudava-o a subir lá para cima e amparava-o a quarta dava-lhe um prego e a quinta estendia-lhe o martelo. O meu tio agarrava no prego e deixava-o cair. = Ora bolas! -dizia, vexado. -Lá se perdeu o prego. E tínhamos que nos pôr todos de gatas, procurando às apalpadelas o prego que tinha caído, enquanto o tio Podger ficava de pé sobre o banco, a resmungar, e perguntava se o fazíamos ficar ali toda a noite à espera. Por fim encontramos o prego, mas então falta o martelo. - Onde está o martelo? Que fiz eu ao martelo? Meu Deus! Estão aí sete pessoas a olhar para mim e não sabem onde pus o martelo! Lá lhe encontrávamos o martelo, mas então ele já não era capaz de ver a 'marca que tinha feito no sítio em que devia pregar o prego. Ia-se buscar outro banco. Subíamos para cima dele a ver se descobríamos a marca. Cada um de nós a via num sítio diferente, e ele chamava-nos a todos, sucessivamente, imbecis, parvos, idiotas, e mandava-nos descer. Pegava na régua, recomeçava a tirar medidas, e verificava que tinha de medir, a partir do canto da sala, a metade de setenta e cinco centímetros e um terço. Tentava fazer o cálculo de cabeça, e por fim desesperava-se. Tentávamos todos fazer o cálculo de cabeça, chegávamos 28 todos a conclusões diferentes, e fazíamos troça uns dos outros. E na confusão geral o meu tio Podger via-se obrigado a tirar novamente as medidas. Desta vez servia-se então dum bocado de cordel, e no momento crítico em que esse bom pateta se inclinava de sobre o banco num ângulo de quarenta e cinco graus, esforçando-se por atingir um ponto dez centímetros mais longe do que lhe era materialmente possível atingir, o cordel escorregava, e ele escorregava também,

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batendo bruscamente com o corpo e a cabeça, tudo ao mesmo tempo, em cima do teclado do piano, produzindo um efeito musical encantador. As pragas choviam. A minha tia Maria declarava logo que não podia consentir que as crianças ficassem ali a ouvir aquele palavreado. Por fim o tio Podger conseguia marcar novamente o sitio, punha-lhe em cima a ponta do prego, segurando-o com a mão esquerda, e pegava no martelo com a direita. À primeira mar telada magoava o polegar e com um grito largava o martelo, que ia cair em cima dos pés de alguém. A minha tia Maria observava então, calmamente, esperar que, para a próxima vez em que o tio tivesse algum prego a pregar na parede, a prevenisse a tempo de ela dispor as suas coisas de modo a ir passar um mês em casa da mãe, enquanto o quadro não estivesse no respectivo lugar. - Oh!, vocês, mulheres, inventam sempre complicações - respondia o meu tio Podger. - Que queres, se me diverte fazer qualquer pequeno trabalho neste género! Recomeçava novamente. E à segunda pancada, o prego, seguido de metade do martelo, furava o estuque, e o meu tio era projectado contra a parede com tal violência que quase esborrachava o nariz. Tinhamos então de encontrar novamente a régua e o cordel, e o tio Podger fazia novo buraco. Perto da meia-noite o quadro estava pendurado - completamente torto, e ameaçando 29 cair. Muitos metros quadrados em redor, a parede parecia ter sido lavrada à charrua, e estávamos todos mortos de cansaço e desânimo - excepto o meu tio Podger. - Ora bem! Já está! - dizia ele, depois de descer, pisando os pés à mulher a dias, e ficando-se a contemplar com evidente orgulho os estragos que tinha feito. - Hem! E pen sar que há pessoas que mandariam vir um operário para uma insignificância como esta! Com a idade, Harris há-de tornar-se exactamente assim, tenho a certeza, é já lho disse. Respondi-lhe, pois, que não consentia que ele se encarregasse de nenhum trabalho. E acrescentei: - Não tu é que vais procurar o papel e o lápis, Jorge escreve e eu faço a escolha. A primeira lista que fizemos teve de ser inutilizada. Era evidente que nos canais do Tamisa superior não poderia navegar um barco em que coubessem todos os objectos inscritos como indispensáveis rasgamos portanto a lista e vamos a outra. Jorge disse. --- Sabem! Vamos por mau caminho! Não devemos pensar nas coisas de que precisamos, mas sim naquelas que não podemos dispensar. O Jorge às vezes mostra realmente um certo bom senso! Até causa admiração! A isto é que pode chamar-se bom senso, não apenas no que diz respeito ao caso presente, mas, de uma maneira geral, no que diz respeito à nossa viagem no rio da vida. Quantas pessoas, para esse trajecto, sobrecarregam o seu barco, a ponto de ele correr risco de naufrágio, com uma imensa carga de vaidades que julgam indispensáveis à amenidade e bem-estar da viagem, mas que não são de facto mais do que inútil carga. Amontoam até à altura do mastro do pobre batel lindos fatos e ricas casas, com um excesso de criados inúteis, e uma hoste de pretensos amigos que não querem sa 30 ber deles para nada e acrescentam divertimentos dispendiosos, que não divertem ninguém protocolos e modas, aparências e ostentação e, principalmente a mais pesada das cargas, entre todas a carga mais inútil! -, o receio do que dirá o vizinho e os luxos que só incomodam, e os prazeres que aborrecem, e o aparato vão que, tal como a argola de ferro dantes reservada aos criminosos, aperta e faz sangrar a cabeça dorida que a suporta! Tudo isso, meu irmão, é carga inútil, e nada mais! Deita-a ao Mar! Tudo isso torna o batel tão pesado, ,que tu quase desfaleces sob o peso dos remos. Tudo isso torna a manobra tão perigosa, que o receio e a inquietação não te deixam um só minuto de liberdade, que não podes nunca ter um instante de calma para sonhar em paz - que nem tens tempo de contemplar as sombras que a brisa ligeira esparze

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sobre as águas, nem os raios cintilantes do sol brincando sobre as leves ondas, .nem as árvores frondosas curvadas sobre o seu próprio reflexo, nem o verde e o ouro dos bosques, nem os lírios brancos e amarelos, nem os vimes ondulantes, os juncos, as orquídeas e as miosótis azuis ... Para o mar a carga inútil, meu irmão! Que o batel da tua vida seja ligeiro, que leve unicamente o necessário, um lar acolhedor e o prazer simples, um ou dois amigos que mereçam esse nome, alguém que tu ames e que te ame,-um gato, um cão, um ou dois cachimbos, que comer e que vestir quanto baste, e um pouco mais do que o suficiente para beber, pois a sede é coisa que se deve, evitar. Verás como o batel é então mais fácil de manobrar! Corre menos perigo de se virar e nem te fará tanta diferença que se vire - a mercadoria simples e de boa qualidade ficará à tona de água. Terás tempo para pensar, assim como para trabalhar tempo para te aqueceres ao sol generoso da vida para ouvires a música eólia, que um sopro de Deus arranca aos corações 31 sonoros dos homens terás tempo para ... Mas peço-vos desculpa. Estava distraído. Portanto, deixámos o Jorge fazer a lista, e ele começou: - Não levamos barraca - sugeriu. - Arranjamos um barco com cobertura. É muito mais simples e mais cómodo. A ideia pareceu-nos boa, adoptámo-la. Não sei se já alguma vez viram o engenho de que se trata. Adaptam-se ao barco uns arcos de ferro, e estende-se sobre estes uma lona, que se une do lado de baixo, em volta do barco, da proa à popa. Isto transforma o barco numa espécie de casinha, muito agradável e íntima, ainda que um pouco fechada de mais mas, que querem!, tudo tem os seus inconvenientes, como dizia o outro,, quando, tendo-lhe morrido a sogra, vieram apresentar-lhe a conta do enterro. Jorge resolveu que, nesse caso, cada um deveria levar um cobertor, uma lanterna, sabão, escova e pente (em comum), uma escova de dentes (uma para cada um), uma bacia de mãos, pó dentífrico, o necessário para fazer a barba, e um par de toalhas de felpa para o banho. Já notei que as pessoas fazem sempre muitos preparativos para tomarem banho, quando vão para qualquer sítio à beira da água, mas afinal quando lá chegam não tomam banho. Acontece o mesmo quando se vai para a beira-mar. Decido sempre - quando estou em Londres e penso no caso - que hei-de levantar-me todas as manhãs muito cedo, para ir dar um mergulho antes do pequeno almoço, e meto na mala, com toda a solicitude, um fato de banho e uma toalha. Escolho sempre fatos de banho encarnados. Gosto muito de me ver de fato de banho encarnado. Fica muito bem ao meu tom de pele. Mas quando chego à beira-mar, começo a reparar que o banho matinal não me seduz já, pelo menos tanto como quando estava na cidade. Até, pelo contrário, começo a sentir que tenho nçcessida 32 de de ficar deitado até o último momento, antes de descer para o almoço. Uma vez ou duas a virtude triunfou: levantei-me às seis horas, vesti-me sumariamente, peguei no fato de banho e na toalha e, um tanto contrariado, pus-me a caminho. Mas o banho não me deu o mínimo prazer. Parece que reservam especialmente para mim, quando vou tomar banho de manhã cedo, um ventinho do nordeste particularmente cortante escolhem todas as pedrinhas aguçadas, para porem ao de cima afiam as rochas e escondem-nas sob uma leve camada de areia, para que eu não as veja e fazem recuar o mar a três quilómetros de distância. De modo que me vejo obrigado a agasalhar-me com os meus próprios braços e a correr e a tremer e a chapinhar numa água de quinze centímetros de altura. Quando chego ao mar, a água está gelada e desagradável. Uma onda enorme empurra-me e atira-me com toda a força contra um rochedo que puseram ali de propósito para me magoar. E antes que eu tenha tempo de gritar: «Ai! ai!» e de verificar os estragos, a onda recua e leva-me para o largo. Começo então a nadar freneticamente para terra, perguntando a mim mesmo se tornarei a ver a minha casa e os meus amigos, e sentindo remorsos de não ter sido mais afectuoso com a minha irmãzita, quando era garoto. Acabo de perder toda a esperança quando uma onda, ao retirar-se, me deixa estendido na areia, como se eu fosse uma estrela-do-mar e, quando me levanto, reparo que estive a nadar como um louco em sessenta centímetros de

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água. Largo a correr para a praia, visto-me e volto para o hotel, onde tenho de fingir que tomei um bom banho. Naquele momento, porém, falávamos todos como se tivéssemos de nadar todas as manhãs, durante muito tempo. Jorge disse que era agradável, quando se acordava de manhã cedo, em pleno rio, mergulhar de cabeça para baixo na água clara. Harris acrescentou que não há nada melhor do que um 33 banho para abrir o apetite. O Jorge protestou, receando que o Harris comesse então mais do que já era habitual. Achava melhor proibir-lhe os banhos. Acrescentou que mesmo assim seria já uma árdua tarefa para o Harris remar contra a corrente, para fazer avançar o barco em condições normais. Demonstrei no entanto ao Jorge que nos seria muito mais agradável levarmos no barco um Harris asseado e fresco, mesmo que tivéssemos para isso de levar mais alguns quintais de provisões ele acabou por concordar e deixou de se opor ao banho do Ha ris. Decidimos finalmente levar três toalhas de banho em vez de duas, para evitar ter de estar um à espera do outro. Como vestuário, Jorge foi de opinião que nos chegavam dois fatos de flanela, pois poderíamos lavá-los nós próprios no rio, quando estivessem sujos. Perguntámos-lhe se ele já alguma vez tinha experimentado lavar fatos de flanela no rio e ele respondeu: -Não, eu propriamente não, mas conheço uns tipos que o fizeram e é bastante fácil., Harris e eu tivemos a fraqueza de admitir que ele não falava no ar e que três honestos rapazes sem posição nem influência, desprovidos de experiência em questões de lavagens, poderiam realmente lavar as suas camisas e as suas calças, nas águas do Tamisa, servindo-se de um bocado de sabão. Em breve aprendemos, tarde de mais, que o Jorge era um miserável impostor e que não percebia nada daquilo. Se vissem como os nossos fatos ficaram! ... Mas, como dizem os folhetinistas, não antecipemos. Jorge convenceu-nos a levar roupa branca para mudar, e uma porção de meias, para o caso de se virar o barco e de ser preciso mudar de roupa. E também uma porção de lenços, que poderiam servir para enxugar as coisas, e um par de sapatos, além das nossas sandálias, pois, se naufragássemos, muito nos conviria possuir calçado sobresselente. 34 CAPÍTULO IV Tratámos em seguida da questão alimentar. Jorge pontificou: - Comecemos pelo pequeno almoço. (O Jorge é muito prático.) Para o pequeno almoço, precisamos de uma frigideira - Harris protestou que os fritos eram indegestos mas nós pedimos-lhe que não se fizesse parvo e o Jorge continuou: - Um bule, uma cafeteira e uma lamparina de álcool. - Mas não de petróleo! - exclamou Jorge, com ar significativo. Harris e eu aprovámos. Tínhamos uma vez levado um fogareiro de petróleo mas, uma vez e nunca mais! Tinha sido uma semana passada num armazém de petróleo! Entranhava-se por toda a parte o cheiro do dito! Não conheço nada como o cheiro do petróleo para nos perseguir! Estava na proa do barco, mas o rico perfume chegava a toda a parte, até ao leme, impregnando todo o barco e tudo o que ele trazia dentro. Pairava sobre o rio, saturava a paisagem, infestava a atmosfera. Uma brisa de petróleo soprava, ora de Oeste, ora de Este, ora do Norte, ora ainda do Sul. Mas, quer o vento viesse das neves árcticas ou das areias do deserto, chegava-nos sempre igualmente carregado do mesmo perfume de petróleo. Mas este petróleo transpirava até ao céu, e estragava o próprio pôr do Sol. Quanto ao luar, tresandava positivamente a petróleo. 35 Em Marlow tentámos fugir-lhe. Deixámos o barco perto da ponte, e fomos passear para a cidade, mas ele correu atrás de nós. A cidade toda estava «empetrolada». Atravessámos o cemitério - dir-se-ia que os mortos tinham sido enterrados em petróleo. A rua principal tresandava a petróleo, a ponto de causar admiração

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como podia ali viver gente. Andámos uns poucos de quilómetros para além dos arredores, na estrada de Birmingham mas de nada serviu: a terra toda estava saturada de petróleo! No fim daquela viagem, reunimo-nos à meia-noite, num campo solitário, debaixo dum maldito carvalho, e jurámos solenemente uns aos outros - já tínhamos toda a semana vociferado contra o líquido ignóbil, de modo ordinário e vulgar, mas desta vez era mais sério - jurámos nunca mais levarmos petróleo connosco num barco, excepto, é claro, em caso de doença. No caso presente, portanto, limitar-nos-íamos ao álcool desnaturado. Não é mesmo assim muito bom. Têm como consequência a empada desnaturada e o bolo desnaturado. Mas o álcool desnaturado é ainda assim mais salutar para o organismo, tomado em alta dose, do que o petróleo. Jorge propôs ainda para o pequeno almoço ovos e toucinho, que são fáceis de cozinhar carne fria, chá, pão, manteiga e compota. «Para o almoço - disse ele - poderíamos levar bolachas, carne fria, pão, manteiga, compota - mas nada de queijo. O queijo, tal como o petróleo, invade tudo. Toma conta de um barco inteiro. Espalha-se na despensa e dá um gosto a queijo a tudo o que lá está. Chega-se a não saber se se está a comer torta de maçã, salsicha de Francfort ou morangos com leite. Tudo nos parece queijo. O queijo tem um cheiro forte de mais. Lembrei-me logo dum amigo meu que tinha comprado dois queijos em Liverpool. Eram uns belos queijos, moles e 36 redondos, e que espalhavam em volta um aroma da força de duzentos cavalos-vapor, a três quilómetros de distância, e deitava um homem por terra a duzentos metros. Eu estava então em Liverpool, e o meu amigo perguntou-me se não me importava levar os queijos comigo para Londres, porque ele não voltaria senão daí a um ou dois dias, e parecia-lhe que aqueles queijos não se podiam guardar muito mais tempo. - Mas com muito prazer, caro amigo, com muito prazer - respondi-lhe eu. Fui buscar os queijos e meti-me com eles num trem. Esse trem era um carro velho, puxado por uma pileca sonâmbula, esquelética e vagarosa, que o seu proprietário, no calor da conversa, chegou mesmo a qualificar de cavalo. Pôs os queijos no tejadilho, e partimos numa velocidade que teria feito honra ao mais rápido de todos os cilindros a vapor até hoje construídos e, de princípio, tudo se apresentou tão alegre como um dobrar a finados. Mas quando voltámos a esquina, o vento trouxe uma baforada do cheiro dos queijos, em cheio, sobre o nosso ginete. O odorífero bafo acordou-o bruscamente e, com um relinchar assustado, tomou balanço e largou à velocidade de cinco quilómetros à hora. O vento continuava a soprar na mesma direcção e antes de chegar ao fim da rua ele tinha já alcançado uma velocidade de sete à hora, deixando bem longe, atrás de si, os doentes e as senhoras velhas e gordas. Na chegada à estação, foram necessários dois carregadores, além do cocheiro, para aguentar o corcel duvido mesmo que o tivessem conseguido, se um dos homens não mostrasse a presença de espírito bastante para lhe atar um lenço às ventas e queimar papel-de-arménia. Tirei o meu bilhete e avancei orgulhoso no cais, com os meus queijos, enquanto as pessoas se afastavam respeitosamente de um lado e de outro. O comboio ia cheio. Tive de subir para um compartimento onde já estavam sete pessoas. Um senhor velho e rabugento protestou mas eu entrei e, pondo os meus queijos na rede, instalei-me com um amável sorriso, dizendo que estava um dia muito quente. Passados alguns minutos, o senhor de idade começou a mostrar-se agitado. - Está aqui tão abafado - disse ele. - Até falta o ar - respondeu o seu vizinho. Então puseram-se ambos a fungar. À terceira foram tomados de uma sufocação, levantaram-se sem dizer uma palavra. Depois levantou-se uma senhora gorda e disse que era vergonhoso faltar assim ao respeito a uma honesta mãe de família. Carregada com uma mala e oito embrulhos, saiu também. Os quatros viajantes restantes aguentaram-se alguns momentos mas, por fim, um senhor de ar grave, que estava sentado a um canto e que, pelo seu

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fato e aspecto geral, parecia pertencer a alguma organização de cerimónias fúnebres, disse que aquilo lhe fazia lembrar uma criancinha morta ao ouvirem isto, os outros três viajantes precipitaram-se todos ao mesmo tempo para a porta, esbarrando uns nos outros. Sorri ao senhor fúnebre e disse-lhe que, felizmente, o compartimento ficaria todo só para nós. Sorriu-se por sua vez, com ar amável, e respondeu que muita gente tomava a sério coisas sem importância. Mas no decorrer da viagem começou á mostrar-se extraordinariamente deprimido por isso, quando chegámos a Crewe, convidei-o a vir comigo ao bufete beber um copo de cerveja. Aceitou. Dirigimo-nos ao bufete, onde gritámos e vociferámos e batemos com os nossos chapéus de chuva durante um quarto de hora. Por fim apareceu uma rapariga que nos perguntou se desejávamos alguma coisa. - O que toma o senhor?! -perguntei ao meu amigo. - Tomo quatro doses de conhaque, se faz favor, menina - respondeu ele. 38 Depois de beber à farta, foi-se embora tranquilamente e subiu para outro compartimento, o que eu achei bastante reles. A partir de Crewe, apesar de o comboio ir apinhado, fiquei absolutamente só. Nas paragens das diferentes estações, os passageiros, quando viam o meu compartimento vazio, precipitavam-se para o tomarem de assalto. E eu ouvia-os gritar: «Aqui está o que nos convém, Maria anda cá, temos aqui muitos lugares! - Ora ainda bem, Tom, vamos lá!» E corriam todos, carregados com pesadas malas, empurravam-se em frente da porta para serem os primeiros a entrar. Um deles abria a porta, subia ao estribo ... e, titubeando, caía para trás nos braços daquele que o seguia vinham todos e, depois de cheirarem, largavam a fugir e iam amontoar-se noutro compartimento ou pagavam o excesso e iam para a primeira classe. Na estação de Euston desci e levei os queijos a casa do meu amigo. Ao entrar na sala, a mulher dele respirou fundo. Depois perguntou-me: - O que foi? Não me esconda a verdade, mesmo que tenha acontecido alguma,desgraça. E eu respondi: - São dois queijos. Tom comprou-os em Liverpool e pediu-me que os trouxesse para aqui. E acrescentei que certamente ela havia de compreender que eu não tinha qualquer responsabilidade naquela história. Respondeu-me que estava certa disso, mas que tinha duas palavras a dizer ao Tom, quando ele voltasse. O meu amigo ficou em Liverpool mais tempo do que contava, e três dias mais tarde, como ele não tivesse ainda voltado, a mulher veio visitar-me. Perguntou-me: - O que lhe disse o Tom a respeito dos queijos? Respondi-lhe que recomendara que os conservassem em 39 sítio fresco e que ninguém deveria tocar-lhes. Ela continuou: - Há realmente muitas probabilidades de que ninguém lhes toque. Ele tinha-os cheirado? Era, no meu entender, muito provável, e acrescentei que Tom parecia fazer muito gosto nos queijinhos. - Pensa que ele ficaria muito contrariado - perguntou ela - se eu desse vinte xelins a um homem para que mos fosse enterrar longe daqui? Respondi-lhe que, se fizesse tornaria a ver o seu marido rir. Ocorreu-lhe uma ideia. Propôs-me - Importava-se de os guardar até o meu marido vir? Eu mandava-os vir para sua casa. - Minha senhora - respondi eu -, eu próprio gosto muito do cheiro do queijo, e a viagem que fiz há dias com eles ficar-me-á sempre gravada no espírito como um feliz remate de umas férias agradáveis. Mas, neste mundo, temos que pensar também nos outros. A senhora sob cujo tecto tenho a honra de habitar é viúva e, muito possivelmente, é também órfã. Tem uma maneira forte, direi mesmo eloquente, de se. opor a que, como ela diz, «façam pouco dela.. A presença dos queijos do seu marido nesta casa, receio bem, dar-lhe-ia a impressão de que

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estavam a fazer pouco dela e eu não quero que possam dizer que abusei da viúva e da órfã. - Bem! - prosseguiu a mulher do meu amigo, levantando-se. - Só me resta pegar nas crianças e ir com elas para um hotel, enquanto os queijos não são comidos. Desisto de viver mais tempo na mesma casa com eles. Cumpriu a sua palavra e deixou a casa entregue à mulher a dias. Esta, quando lhe perguntaram como podia resistir àquele cheiro, respondeu «Qual cheiro?>> e. quando lhe puseram o nariz em cima dos queijos e lhe disseram que cheirasse, con 40 fessou que sentia um leve aroma a melão. Donde concluíram que ela não corria perigo por viver naquela atmosfera, e deixaram-na lá ficar. A conta do hotel atingiu cinquenta libras esterlinas e o meu amigo, depois de fazer os cálculos, verificou que os queijos lhe tinham saído a oito xelins e seis pence por meio quilo. Acrescentou que adorava realmente queijo, mas que as suas posses não lhe permitiam tal estravagância. Deitou os queijos à água, no canal mas foi obrigado a pesca-los, porque os donos das embarcações queixaram-se. Disseram que o cheiro quase os fazia desfalecer. Depois disso, o meu amigo levou-os uma noite escura para o cemitério da paróquia, e deixou-os lá ficar. Mas o coveiro descobriu-os é fez uma zaragata terrível. Alegou que era uma partida que lhe tinham feito para o privarem do seu ganha-pão, acordando os mortos. Por fim, o meu amigo acabou por se ver livre deles levando-os para uma terra à beira-mar e enterrando-os na praia, o que deu ao local uma fama imensa. Os banhistas diziam que nunca tinham reparado na leveza e pureza daquele ar e, durante muitos anos, encheu-se a terra de pessoas fracas e doentes dos pulmões. Embora aprecie muito queijo, concordei no entanto que o Jorge tinha razão em não o querer levar no nosso barco. - Não precisamos de tomar «chá das cinco - continuou Jorge (a fisionomia de Harris transtornou-se ao ouvir isto) -, tomaremos às sete horas uma boa e sólida refeição, que servirá ao mesmo tempo de jantar, chá e ceia. Harris serenou. Jorge propôs que levássemos conservas de carnes e de frutas, carnes frias, tomates, frutas e legumes frescos. Como bebida, uma certa mistura concentrada, maravilhosa descoberta de Harris, que se misturava com água e a que chamaram então limonada, chá em abundância, uma garrafa de whisky, para o caso, dizia o Jorge, de possível naufrá 41 gio. pareceu-me que o Jorge insistia demasiado na ideia do naufrágio ... Esta disposição de espírito parecia-me bastante importuna naquela ocasião. Mas achei muito boa a ideia de levarmos whisky ... Cerveja ou vinho não queríamos nós. São duas bebidas que não devem tomar-se quando se viaja rio acima. Tornam as pessoas pesadas e sonolentas. Um copinho de whisky, à noite, quando se dá uma volta pela cidade, para mirar as mulheres, ainda está bem mas nada de beber quando o sol bate de chapa na cabeça e se impõe qualquer exercício violento. Fizemos uma lista dos objectos que tínhamos de levar. Quando nos separámos, já ela estava do tamanho da légua-da-póvoa! No dia seguinte, sexta-feira, reunimos o material todo, e encontrámo-nos à noite para fazer as malas. Arranjámos uma mala grande para o fato, e um par de cestos para os víveres e utensílios de cozinha. Empurrámos a mesa contra a janela, pusemos tudo num monte no meio do quarto, e sentámo-nos em volta para o contemplar e admirar à vontade. Participei logo que me encarregava de todo o trabalho. Prezo-me de ter bastante jeito para fazer malas. Emalar é uma das mil e uma coisas em que me sinto superior a toda a gente. (Até eu mesmo me espanto às vezes do número dessas coisas.) Convenci o Jorge e o Harris a deixarem só por minha conta a difícil tarefa. Aceitaram o alvitre de tão boa vontade, que fiquei até suspeitoso. Jorge acendeu o seu cachimbo e repimpou-se numa poltrona. Harris estendeu as pernas em cima da mesa e acendeu um charuto.

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Não era bem aquilo o que eu queria. O que eu pretendia, naturalmente, era dirigir as operações, e Harris e Jorge manobrarem às minhas ordens, enquanto eu os estimulava de quando em quando, com um «Cuidado, meu pateta! ...>> «Espera aí, eu é que faço isso!» «Meu Deus!, que alarves!» - só para 42 os ensinar. A maneira como eles interpretaram as minhas palavras irritou-me. Não há nada que mais irrite do que ver os outros sentados e à boa vida, enquanto trabalhamos. Vivi em tempos com um tipo que tinha o dom de me irritar, usando esse processo. Madraçava estendido no sofá, a ver-me fazer várias coisas, horas a fio, seguindo-me com o olhar para qualquer lado que eu me voltasse. Dizia ele que lhe fazia bem ver-me assim em movimento. Aprendia melhor que a vida não é um sonho vão, em que se passa o tempo a sorrir aos anjinhos, mas sim uma nobre tarefa, cheia de deveres etrabalho austero. E acrescentava que, desde então, nem compreendia como pudera passar algum dia sem mim, isto é, sem ter alguém a trabalhar para ele ver. Eu não sou assim. Não posso estar quieto quando vejo os meus camaradas a trabalhar como negros. Sinto a necessidade de ser activo, de dirigir o trabalho alheio, seguindo o movimento dos outros, sempre de mãos nas algibeiras, explicando-lhes o que devem fazer. Esta virtude de energia faz parte do meu carácter. Não posso modificá-lo. No entanto, abstive-me de qualquer reflexão e comecei a emalar. Foi coisa mais demorada do que eu esperava mas finalmente acabei, e sentei-me em cima da mala para apertar as correias. - Não metes os sapatos? - perguntou Harris. Olhei em volta e vi que me tinha esquecido de meter os sapatos na mala. Harris triunfara. Segundo o seu costume, não fora capaz de dizer uma palavra enquanto não me viu fe char a mala. E Jorge pôs-se a rir - mais com um destes risos irritantes e idiotas, bulhentos e sonoros, de que tem o segredo. Tornei a abrir a mala e guardei os sapatos. Mas então, no momento preciso em que ia fechar a mala, apoderou-se de 43 mim uma dúvida terrível. Teria guardado na mala a minha escova de dentes? Não sei como isto acontece, mas nunca sou capaz de me lembrar se já guardei ou não a minha escova de dentes. Quando vou de viagem, a minha escova de dentes é um objecto que me envenena a existência. Sonho que não a meti na mala, acordo com suores frios, e salto da cama abaixo para ir procurá-la. Na manhã seguinte guardo-a na mala, antes de me ter servido dela, tenho de remexer tudo, e a escova é sempre a última coisa que encontro. Faço de novo a mala e esqueço-me da escova. À última hora tenho de subir a escada a quatro e quatro para ir buscá-la e levo-a para a estação embrulhada no meu lenço. Desta vez, bem entendido, repeti a façanha, sem conseguir, é claro, encontrar o que desejava. Desarrumei de tal modo a mala, que a pus num estado idêntico àquele em que estava o mundo antes da sua criação, durante o caos inicial. Como era de prever, encontrei dezoito vezes as escovas de dentes do Jorge e do Harris, mas foi-me impossível encontrar a minha. Coloquei novamente as coisas todas dentro da mala, sacudindo-as uma por uma. Encontrei a escova, por fim, dentro dum sapato. Quando, depois de tanta lida, me propunha descansar, o Jorge perguntou-me se tinha metido o sabão. Respondi-lhe que pouco me importava que o sabão estivesse ou não na mala bati com a tampa da mala e apertei as correias. Mas - ai de mim! - reparei então que tinha guardado na mala a minha bolsa do tabaco e tive de desapertar as correias uma vez mais. Finalmente ficou a mala fechada às dez e cinco da noite e faltava encher os cestos. Harris declarou que, como a nossa partida deveria ser dentro de menos de doze horas, achava prudente aprontar tudo. Ele e Jorge tomavam esse encargo. Aceitei, sentei-me, e a comédia começou. Puseram mãos à obra, bem dispostos, e evidentemente convencidos de que me ensinariam muita coisa. Abstive-me de qualquer comentário e esperei. Quando Jorge morrer um dia na forca, Harris ficará sendo neste mundo a pessoa com menos jeito para fazer malas. Observei as pilhas de pratos e de chávenas e as

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cafeteiras e as garrafas e os frascos e as conservas e os fogareiros e os tomates, etc., e tive o pressentimento de que em breve a manobra devia tornar-se divertida. E, realmente, eles começaram por quebrar uma chávena. Foi a primeira acção notável. Fizeram-no simplesmente para mostrar do que eram capazes e para despertar o interesse do espectador. Depois Harris pôs a compota de morango em cima dum tomate que se esborrachou e tiveram de raspar o sumo do tomate com uma colher. Em seguida coube a vez a Jorge, que pôs um pé em cima da manteiga. Continuei a não dizer nada, mas aproximei-me deles e sentei-me na borda da mesa para ver melhor. Isto irri tou-os mais do que tudo quanto eu pudesse dizer. Mostraram-se logo nervosos e inquietos, pisavam as coisas ou punham-nas atrás deles, e não as encontravam quando lhes eram precisas. Meteram os pastelões no fundo dos cestos e colocaram em cima coisas pesadas, o que reduziu os pastelões a marmelada. Espalharam sal às mãos cheias e, quanto à manteiga! ... Nunca vi ninguém conseguir tanto com dez réis de manteiga! Quando Jorge a descolou da sua pantufa, resolveu metê-la na cafeteira. Mas a manteiga recusou-se a entrar na cafeteira e a parte que tinham conseguido empurrar lá para dentro recusava-se a sair. Acabaram por tirá-la e puseram-na em cima de uma cadeira. Harris sentou-se-lhe em cima, a manteiga colou-se-lhe ao corpo, e procuraram-na ambos por toda a parte. 45 - Eu próprio te vi pô-la ali, ainda não há um minuto - afirmou Harris. Recomeçaram a procurá-la por todo o quarto de repente encontraram-se cara a cara no meio do quarto, e olharam-se espantados. - É o fenómeno mais estranho de que tenho-ouvido falar em toda a minha vida - disse o Jorge. - Verdadeiramente misterioso! - concordou Harris. Mas Jorge deu a volta cautelosamente ao corpo de Harris - e descobriu a manteiga pegada às calças. - Diabos levem a manteiga! Estava aqui e nós a procurá-la! - exclamou indignado. - Onde? -perguntou Harris, dando uma reviravolta. - Deixa-te estar quieto, com os diabos! - vociferou Jorge, precipitando-se sobre ele. Descolaram então a manteiga e meteram-na no bule. Montmorency, é claro, também tomava parte no espectáculo. A ambição de Montmorency é meter-se à frente dos pés das pessoas e conseguir que o insultem. Se consegue introduzir-se em qualquer sítio onde não deva estar, torna-se uma verdadeira calamidade se consegue fazer perder a cabeça aos desgraçados que o aturam e que tentam escorraçá-lo, considera que não perdeu de todo o seu dia. Que se tropece por causa dele e se fique uma hora seguida a amaldiçoá-lo, eis o seu fito e a sua maior aspiração e quando a realiza, a sua vaidade torna-se intolerável. Sentava-se, pois, em cima dos objectos no momento preciso em que os procurávamos para os meter no cesto parecia dominado pela ideia fixa de que, de cada vez que Jorge ou Harris estendiam a mão para qualquer coisa ... era para acariciar o seu nariz frio e húmido. Mergulhou uma pata na compota, espalhou as colheres, quis correr atrás dos limões, como se estes fossem ratos, saltou para o cesto e ... deu cabo de três 46 limões antes que Harris tivesse tempo de intervir, batendo-lhe com a frigideira. Harris afirmava que a culpa era minha. Mas um cão como aquele não precisa que o incitem e provoquem. É por índole mal comportado. Os cestos estavam prontos à meia-noite e cinquenta minutos. Harris sentou-se sobre o cesto grande, dizendo esperar que nada se tivesse quebrado. Jorge replicou que, se tinha de haver cacos, já os tinha havido, e esta observação pareceu consolá-lo. E acrescentou que lhe apetecia deitar-se e dormir. Harris ficava nessa noite em nossa casa por isso subimos todos ao andar de cima. Havia só duas camas. Tirámos à sorte e calhou a Harris dormir na minha. Perguntou-me: - Preferes ficar de dentro ou de fora, Jerome? Respondi-lhe que, em geral, preferia dormir dentro duma cama a dormir fora dela. Harris declarou que a minha graça já não era nova. Jorge perguntou-me:

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- A que horas devo acordá-los, meus amigos? Harris respondeu: - Às sete. Eu emendei: - Não, às seis. Eu tinha umas cartas a escrever. Questionámos um pouco sobre esse ponto, mas, por fim, dividimos ao meio e resolvemos todos: seis e meia. - Acorda-nos às seis horas e trinta minutos, Jorge. Jorge não respondeu, e nós verificámos, ao passar por ao pé dele, que dormia havia já um bom bocado. Colocámos o tub de forma a que o dorminhoco não deixasse de tropeçar nele quando se levantasse na manhã seguinte e deitámo-nos de alma tranquila e coração satisfeito. 47 No dia seguinte de manhã foi a Sr.a Poppets quem nos acordou, dizendo: - Sabem, meus senhores, que são quase nove horas? - Nove quê? - exclamei, num sobressalto. - Nove horas - respondeu ela pelo buraco da fechadura. - Receei que se deixassem ficar a dormir. Acordei Harris e disse-lhe as horas que eram. E ele replicou logo: - Julgava que te querias levantar às seis da manhã! - Eram essas as minhas intenções - respondi-lhe. - Porque não me acordaste? - Como poderia acordar-te sem que tu me acordasses primeiro? - replicou ele. - O pior é que já não chegamos ao rio senão passado do meio-dia. Mesmo assim, admiro-me que te tenhas resolvido a levantar-te. - Hum! - repliquei eu. - A tua sorte é que eu o tenha feito. Se eu não te acordasse, eras capaz de ficar aí quinze dias a dormir. Continuámos ainda uns minutos a peguilhar, mas fomos interrompidos por um sonoro roncar do Jorge. Só isso nos fez lembrar, pela primeira vez desde que nos tínhamos levantado, a sua existência e presença! Estava então ali, aquele grande maroto que tinha perguntado a que horas devia acordar-nos, estava ali, deitado de costas, de boca aberta e de joelhos erguidos, na cama! Não sei porquê, mas é um espectáculo que me desespera ver alguém a dormir bem deitado numa cama, estando eu a pé. Parece-me de tal modo imoral que um homem perca, 48 CAPÍTULO V Parece-me de tal modo imoral que um homem perca, dormindo como um animalzinho, as horas preciosas da vida, os momentos inestimáveis que não encontrará mais! ... Assim estava o Jorge, desperdiçando numa mandriice horrenda a inestimável dádiva do tempo, deixando fugir, sem a utilizar, esta vida de que terá de prestar contas mais tarde, até o último segundo. Quando poderia estar levantado, a empanzinar-se de ovos e presunto, a arreliar o cão ou a meter-se com a criada, em vez de estar ali refastelado, a alma mergulhada num opaco esquecimento, eis o que me indigna! Foi uma ideia terrível a que se apoderou ao mesmo tempo de Harris e de mim. Resolvemos salvar aquele desgraçado e este fito tão nobre fez-nos esquecer a nossa discussão. Precipitámo-nos para arrancar os lençóis da cama do dorminhoco e Harris aplicou-lhe uma valente palmada com o chinelo, enquanto eu lhe gritava aos ouvidos apóstrofes violentas. - O que aconteceu? - balbuciou ele, acordando e sentando-se na cama. - A pé, meu idiota! - vociferou Harris. - São dez horas menos um quarto. - O quê? ... - exclamou ele, saltando da cama e metendo os pés em cheio dentro do tub. - Com mil diabos! Quem é que pôs isto aqui? Respondemos-lhe que era preciso ser idiota para não ter visto aquele recipiente. Acabámos de nos vestir e, chegado o momento dos últimos retoques, reparámos que as escovas de dentes, a escova de cabelo e o pente, estava tudo na mala (esta escova de den tes há-de acabar por dar cabo de mim!) e tivemos de descer a escada para ir procurá-las. Mal tínhamos acabado, o Jorge veio reclamar a navalha de barba. Respondemos-lhe que podia bem passar sem fazer a barba nesse dia, pois não desmancharíamos outra vez a mala por causa dele, nem de ninguém da sua igualha. 49 - Não sejam ridículos. Acham que é decente ir para a cidade assim, com a barba por fazer? - protestou.

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Era decerto falta de respeito pela cidade, mas que nos importava o sofrimento humano? Harris, ordinário e grosseiro como sempre, declarou que a cidade e o que a cidade pudesse pensar não o interessavam ... Descemos para almoçar. Montmorency tinha convidado outros dois cães a vir assistir à sua partida, e para passar o tempo entretinham-se a lutar uns com os outros. Acalmámos a questão com os nossos guardas-chuvas e instalámo-nos à mesa, em frente das costeletas e do rosbife. - O mais importante é papar um bom almocinho - disse Harris. E começou por devorar logo duas costeletas, dizendo que devia comê-las enquanto estavam quentes, pois o rosbife podia esperar. Jorge pegou no jornal e leu em voz alta a noticia de todos os desastres de barco acontecidos na véspera e as previsões meteorológicas, que diziam o seguinte: «Tempo chuvoso e frio, enevoado, com algumas abertas, temporais locais aqui e acolá, vento leste, com depressão geral nos condados do Sul (Londres e a Mancha). O barómetro baixa.>> Acho que de todas as fantasias ridículas e irritantes que nos atormentam, esta «aldrabice» da previsão do tempo é talvez a mais irritante. Prevê exactamente o que aconteceu na véspera ou na antevéspera e exactamente o contrário do que vai acontecer no próprio dia. Isto faz-me lembrar que no Outono do ano passado estragámos positivamente as férias porque resolvemos ligar importância ao boletim meteorológico do jornal da terra: «Esperam-se para hoje fortes bátegas de água e temporais locais>> - dizia o jornal, na segunda-feira. Em consequência desistimos do piquenique e ficámos todo o dia fechados em casa à espera 50 da chuva. Sob um sol magnífico e um céu sem nuvens, passavam em frente da nossa casa carros e carros cheios de excursionistas alegres e contentes. - Ah! - dizíamos nós, ao vê-los passar -, à volta vêm todos encharcados! Antegozando a bela carga de água que iam apanhar ríamos, embora com dó deles, e íamos espevitar o fogão, ler, e arranjar as nossas colecções de algas e de conchas. Perto do meio-dia, quando o sol invadia o quarto e o calor se tornava sufocante, já perguntávamos a nós mesmos se nunca mais começariam as fortes chuvadas e a anunciada tempestade local. - Começa lá para a tarde, vão ver - dizíamos uns aos outros. - A água que toda aquela pobre gente vai apanhar! Não deixará de ser divertido! À uma, hora veio a dona da casa perguntar-nos se não pensávamos sair com um dia tão lindo. - Não, não - respondemos, com um risinho significativo. - Dessa nos livraremos nós. Não temos vontade nenhuma de apanhar uma molha! Quase no fim da tarde, sem que tivesse havido nem a mais leve amostra de chuva, tentámos consolar-nos com a ideia de que decerto começaria a chover quando aquela gente viesse já de volta, longe de qualquer abrigo, coitada! Mas nem uma gota caiu, o dia foi maravilhoso até ao fim, e a noite que se seguiu, deliciosa. No dia seguinte lemos de manhã no jornal que íamos ter um dia quente entre bom e bom fixo subida de temperatura>> vestimo-nos para sair, escolhendo fatos ligeiros. Saímos. E, mal passada meia hora, já começava a chover a cântaros e a levantar-se um vento frio. Chuva e vento duraram o dia inteiro. Regressámos a casa com uma forte constipação, cheios de reumatismo, e tivemos de nos meter na cama. 51 O tempo que faz no dia seguinte, ou no próprio dia, é uma' coisa que não consigo perceber. Nem nunca consegui. O barómetro não serve para nada engana tanto como as previsões dos jornais. avia um barómetro pendurado na parede de um hotel onde me alojei algumas semanas, na Primavera passada, Quando lá cheguei marcava «bom, fixo>>. Na rua chuvia a potes, e não parava de chover em todo o dia.

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Esta condição pareceu-me estranha dei uma,pancadinha no ba= rómetro, que deu um salto e marcou muito seco. O rapaz do hotel que passava nessa ocasião, parou disse-me que, no seu entender, o barómetro se referia ao dia seguinte. Perguntei-lhe se acaso não achava que seria antes à semana anterior mas o rapaz respondeu-me que não lhe parecia. No dia seguinte de manhã dei uma nova pancadinha no barómetro, e este subiu mais, embora chovesse cada vez mais! Na quarta-feira dei-lhe novamente uma pancadinha a agulha pôs-se a subir até «bom, fixo>>, e <<muito seco» ecalor excessivo», e não parou senão quando encontrou um parafuso que a impediu de avançar mais. Tinha muito boa vontade aquele aparelho, mas estava construído de tal forma que não podia, sem se quebrar, prever um tempo melhor ainda. A sua intenção evidente era de continuar a subir e anunciar tempo seco, falta de água, insolações, vento e outros flagelos análogos, mas o parafuso não o deixou, e teve de se contentar com um banal «muito seco>>. Entretanto, a chuva caía em torrentes caudalosas e a parte baixa da cidade estava já inundada em consequência da cheia do rio próximo. 52 Nesse Verão não chegou a haver bom tempo. Suponho que o barómetro devia referir-se à Primavera seguinte. Mas que necessidade temos nós de conhecer as previsões do tempo? É já bastante aborrecido quando o mau tempo vem, sem que tenhamos ainda a maçada de o saber antecipadamen te. O único profeta que nos satisfaz é o bom velhote que, na manhã especialmente ameaçadora dum dia ,que nós desejávamos fosse melhor do que todos os outros, observa o horizonte com um ar entendido e declara: - Ah!, não!, meu senhor, julgo que o sol não tardará. As nuvens vão desaparecer todas. - Ah! este sabe o que diz - pensamos, nós, dando-lhe os bons-dias, e metendo-nos a caminho. - É extraordinário como estes bons velhotes sabem prever o tempo. Sentimos por eles uma simpatia cada vez maior. Nem o facto de continuar a chover e a ventar a diminui. De um indivíduo que nos anuncia mau tempo sentimosamargo desejo de vingança. isto vai melhorar? - gritamos todos 53 - Creio bem que não, meu senhor. Receio muito que este tempo tenha pegado para todo o dia- responde, abanando a cabeça. -_ Velho estúpido e cretino! - murmuramos. - O que percebe ele disto? se a sua previsão se confirma, voltamos do passeio mais zangados com ele e com a ideia vaga de que terá no caso uma certa responsabilidade. Depois de acabar de comer as poucas coisas que tinham ficado sobre a mesa, Harris e eu arrastámos a nossa bagagem para ao pé da porta, esperando que passasse um trem. A bagagem depois de reunida, fazia um certo volume. Eram a mala grande e o saco de mão, dois cestos de verga, um grande fardo com os cobertores, quatro ou cinco casacos e impermeáveis, uns poucos de chapéus de chuva e, ainda, um saco com um melão, grande de mais para caber noutro sítio outro saco com um quilo ou dois de uvas, uma sombrinha japonesa de papel e uma frigideira que era difícil de meter na mala e que por isso tínhamos embrulhado em papel pardo. Isto tudo formava grosso volume, e Harris e eu começávamos a sentir-nos um pouco_ encavacados, se bem que não houvesse de quê. 54 O primeiro que apareceu foi o rapaz da casa Biggs. O talento principal de Biggs, «Frutas e Novidades», consiste em conseguir a colaboração de todos os malandretes, os mais mal-educados e.mais desprovidos de princípios que a civilização jamais eduziu. Se na nossa vizinhança se comete algum delito é certo de que foi partida do empregadito da biggs.

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quando foi do crime da Great Coram Street, depressa se chegou à conclusão, na opinião da gente da nossa rua, de que o criado da casa Biggs (o de então) estaria implicado e, se não tivesse conseguido - durante o severo interrogatório a que foi submetido, quando no dia seguinte ao do crime foi receber as encomendas, pela senhora do n.° 19, ajudada pelo do n.° 21, que nesse momento se encontrava à porta da sua casa - se não tivesse conseguido apresentar um alibi completo teria decerto passado um mau quarto de hora. Eu não conhecia o rapaz da Biggs daquela época mas, segundo o que tenho visto depois através dos seus sucessores, não teria ligado grande importância ao alibi. Então, como ia dizendo, aproximou-se o empregado da casa Biggs. Ia evidentemente muito apressado, quando surgiu no horizonte. Mas logo que nos viu, Harris e eu e Montmo rency, e a bagagem, abrandou a marcha para nos observar. Harris e eu lançámos-lhe um olhar severo, capaz de ferir uma sensibilidade mais delicada mas, em regra geral, os rapazes da Biggs não são susceptíveis. Parou a um metro de distância da nossa escada e, sem tirar os olhos de nós, encostou-se à grade, mordiscando uma palhinha. Interessava-o, evidentemente, ver o que ia sair dali. 55 O rapaz do pasteleiro atravessou a rua e tomou posição do outro lado da escada. Depois o aprendiz de sapateiro veio juntar-se ao rapaz da Biggs; entretanto, um distribuidor de telegramas ia postar-se isolado na borda do passeio. - Em todo o caso, de fome não hão-de morrer, não achas? - disse o aprendiz de sapateiro. - Ah!, é que é preciso levar bastantes coisas, quando se vai fazer a travessia do Atlântico num barquito pequeno. - Eles não vão fazer a travessia do 'Atlântico - interrompeu o rapaz da Biggs. - Vão à procura de Stanley. Formara-se já por essa altura um pequeno ajuntamento e os seus componentes perguntavam uns aos outros o que se passava. Uns - a parte nova e estouvada - afirmavam que era um casamento e apontavam Harris como sendo o noivo; enquanto que outros, mais velhos e assisados, supunham que era um enterro e viam em mim o irmão do defunto. Passou enfim um trem livre - na nossa rua passa em geral uma média de três trens livres por minuto, quando não são precisos: vão a passo e atrapalham o trânsito - e, amontoan do-nos nele, nós e o nosso material, e correndo a pontapé com dois cães amigos de Montmorency, que tinham jurado não o abandonar, afastámo-nos entre as aclamações da multidão. Chegámos à estação de Waterloo às onze horas e perguntámos qual era o cais donde partia o comboio das onze e um quarto. Naturalmente, ninguém sabia: nunca ninguém sabe, na estação de Waterloo, qual o cais donde parte um comboio, nem o destino do comboio que parte, nem nada de nada. O carregador que tomou conta da nossa bagagem disse que 'o comboio em questão devia partir do cais n.° 1. Por outro lado, o chefe da estação estava convencido de que devia ser do cais 20. Para pôr o caso a claro, subimos ao andar de cima e pedimos para falar ao director-geral dos transportes. Este afir 56 mou-nos que acabara de falar com um empregado que lhe dissera que tinha visto esse comboio no cais n.° 3. Fomos portanto ao cais n.° 3, mas os funcionários que ali estavam disseram-nos que supunham que aquele comboio era o expresso de Southampton, ou o de cintura que vai a Windsor. Mas, segundo eles, não era com certeza o comboio de Kingston. O nosso carregador declarou então que, no seu entender, esse comboio devia encontrar-se na estação do andar superior. Acrescentou que já o tinha visto lá. Fomos portanto à estação superior e, dirigindo-nos ao condutor, perguntámos-lhe se ele ia realmente para Kingston. Respondeu-nos que não podia dar-nos a certeza, naturalmente, mas que era no entanto provável que fosse. Em todo o caso, se o seu comboio não era o das 11 h. e 15 para Kingston, esperava que fosse então o das 9 e 32 para Virginia-Water, ou o expresso das 10 horas para milha de Wight, ou mais ou menos para esses lados, e que, afinal, teríamos ocasião de o verificar quando lá chegássemos. Metemos-lhe na mão uma meia coroa e pedimos-lhe que arranjasse maneira de que o dito comboio fosse o das 11 h. e 15 para Kingston.

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- Meu Deus, meus senhores, não digo que não - respondeu, magnânimo. - Afinal de contas, um dos comboios tem de ir para Kingston. Pode ser o meu. Dêem-me ainda mais meia coroa. E foi assim que nós fomos para Kingston, no comboio de Londres e do Sudoeste. Soubemos mais tarde que o comboio que tínhamos tomado era, afinal, o correio de Exeter; que tinham passado horas a procurá-lo por toda a estação de Waterloo e -que ninguém compreendeu nunca o que lhe tinha acontecido. O nosso barco esperava-nos em Kingston, mesmo ao pé da ponte. Para lá nos dirigimos e, depois de embarcarmos a nossa bagagem, embarcámos nós. 57 - Já estão instalados, meus senhores? - perguntou o dono da recolha. - Estamos instalados - respondemos. E com o Harris aos remos e eu ao leme, à proa Montmorency, atrapalhado e desconfiado, largámos a navegar sobre aquelas águas que, por uns quinze dias, seriam a nossa morada. CAPÍTULO VI Era uma radiosa manhã do fim da Primavera ou do princípio do Verão, como preferirem, da época em que a relva e as folhas das árvores se vestem dum verde mais escuro; e o tempo se assemelha a uma linda rapariga, fremente de emoção, vibrante da sua nascente feminilidade. As velhas ruas pitorescas de Kingston, que se prolongam até à beira da água, tinham um encanto especial sob o sol ardente. Uma das margens do rio brilhante, onde vogavam pequenos barcos, estava coberta de viçosa verdura, e na outra ostentavam-se as airosas moradias. Harris remava, vestido com uma camisola encarnada e cor de laranja. O velho castelo pardacento dos Tudors avistava-se ao longe. Tudo isto formava um quadro cheio de luz, deslumbrante, mas tão aprazível, tão cheio de vida, tão sereno, que, apesar da hora, me deixei embalar num sonho descuidado. Sonhei com Kingston, ou «Kiningestun», como se chamava dantes, nos tempos em que os reis saxões ali eram coroados. O grande César atravessou o rio, e as legiões de Roma acamparam nas suas margens alcantiladas. César, como a rainha Isabel, parece ter passado por toda a parte; mas era mais conformista do que a boa rainhaBess: não ia à taberna. Morria pelas tabernas, a «rainha virgem» de Inglaterra. Não há uma só taberna de qualquer importância, numa extensão de vinte quilómetros em redor de Londres, onde ela não tivesse, segundo parece, dado uma vista de olhos, ou entrado, ou ficado lá uma vez por outra. Ora, sempre gostaria de saber (supondo que Harris se tornasse em personagem importante, chegando mesmo a primeiro-ministro), sempre gostaria de saber se, mais tarde, colocariam placas comemorativas nas tabernas que ele tivesse honrado com a sua visita. «Harris tomou um aperitivo nesta casa»; «Harris tomou aqui dois whiskies, durante o Verão de 1888»; «Harris foi expulso desta casa em Dezembro de 1886». Não, tinham de se pôr muitas pláccas! Seriam então os estabelecimentos em que ele nunca tinha entrado que se tornariam célebres. «A única casa do Sul de Londres em que Harris nunca bebeu!» Toda a gente se precipitaria perguntando o motivo de tão estranha abstenção! Como o pobre rei Eduardo, com o seu espírito fraco, devia detestar «Kiningestun»! A festa da coroação tinha-o aborrecido. Talvez a cabeça de javali com ameixas não lhe tivesse feito bem (tenho a certeza de que a mim não fazia) e tivesse bebido bastante vinho de Xerez e hidromel. De qualquer modo, fugindo à bacanal desenfreada, foi passar uma hora de sossego ao luar, com a sua bem-amada Elgiva. Talvez eles se tivessem debruçado a uma janela, de mãos dadas, para contemplar o belo luar cintilando no rio, enquanto das salas longínquas lhes chegava em revoadas o eco do ruidoso festim. Então o feroz Odo e São Dunstam forçaram a entrada daquele tranquilo refúgio e, lançando horríveis insultos à rainha de meigo olhar, levaram brutalmente o pobre Eduardo para o meio da pavorosa bacanal em que se revolvia a multidão embriagada. 59

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Alguns anos mais tarde, enterraram-se lado a lado, ao som da música guerreira, os reis saxões e o desregramento saxónico. O esplendor de Kingston desapareceu por um tempo. Mas de novo brilhou quando Hampton Court se transformou no palácio dos Tudors e dos Stuarts, quando as gôndolas reais vinham atracar na margem do rio, e quando os airosos senhores-cobertos de mantos magníficos desciam os degraus do cais exclamando: «Fez boa viagem, Senhor? Deus vos proteja! grammerei! Muitas das velhas casas dos arredores são prova evidente dos tempos em que Kingston era uma povoação real, onde a nobreza e os senhores da corte moravam perto do seu rei, onde a longa avenida que segue até à porta do palácio vivia na permanente animação do tilintar das armas, do relinchar dos cavalos e do fulgor das sedas e veludos. As casas altas e espaçosas, com as suas janelas em ogiva, os seus vitrais, as suas grandes chaminés e os telhados bicudos, evocam os tempos do calção e do gibão, dos vestidos bordados a pérolas e das saias complicadas. Foram construídas no tempo em que -ainda se sabia construir». Com o tempo, os tijolos vermelhos escureceram, e as escadas de carvalho não rangem nem gemem quando alguém pretende descê-las sem ruído. Falando em escadas de carvalho, recorda-me que há umas magníficas, numa casa de Kingston. Esta casa, que fica no largo do mercado, é hoje uma loja, mas foi em tempos moradia de alguma personagem importante. Um amigo meu que vive em Kingston entrou lá um dia para comprar um chapéu e, num gesto irreflectido, meteu a mão na algibeira e pagou-o imediatamente. O lojista, que conhecia os hábitos do meu amigo, ficou naturalmente um pouco surpreendido, mas, dominando rapidamente a surpresa, e para compensar um procedimento tão louvável, perguntou ao nosso herói se lhe interessava ver uma 60 linda obra de talha em carvalho. O meu amigo aceitou, e o lojista atravessou com ele a loja e subiram a escada da casa. O corrimão era uma verdadeira obra-prima e, em toda a extensão da escada, a parede estava coberta de almofadas de carvalho, cujas esculturas honrariam qualquer palácio. Da escada passaram à sala, vasta e clara, forrada dum papel com fundo azul, um pouco vistoso mas bastante alegre. A casa não tinha no entanto nada de notável e o meu amigo começou a pensar porque o tinham levado ali. O proprietário aproximou-se de uma parede e deu-lhe uma pequena pancada. Ouviu-se um som como o de bater em madeira. - Carvalho- explicou elt. --: Carvalho esculpido até o tecto, igual ao que viu na escada. - Santo Deus! - exclamou o'meu amigo. - Não me diga que cobriu o carvalho esculpido com papel azul de forrar paredes? - Pois claro que cobri - respondeu o lojista - e custou-me bem caro esse trabalho. Imagine que tive de começar por estucar a parede toda. Mas ao menos agora a sala tem um ar alegre. Dantes era horrivelmente escura. Não posso censurar em absoluto este homem. Do seu ponto de vista, que é o do proprietário vulgar que unicamente deseja tornar a vida tão fácil quanto possível, e não a do ma níaco amador de antiguidades, tinha toda a razão. O carvalho esculpido é muito bonito para se ver e mesmo para se ter em pequena quantidade; mas deve ser um pouco deprimente viver numa casa toda forrada de carvalho, para uma pessoa que não o aprecia especialmente. Deve dar a impressão de que se vive numa igreja. Não, o que havia de mais triste no caso daquele lojista é que aquele homem, que não o apreciava nada, tinha a sala toda forrada de carvalho esculpido, enquanto que outras pessoas que apreciam esse género de trabalho pagam quantias 61 fabulosas para conseguir obtê-lo. É aliás a regra neste mundo: este possui o que não deseja, e aqueles têm o que este apetece. Os homens casados têm as suas mulheres e não as apreciam, e os celibatários novos queixam-se de não poderem alcançá-las. Os pobres, que mal têm com que viver, têm oito filhos, todos com apetite devorador. Os velhos casais ricos, que nem sabem o que hão-de fazer à sua fortuna, morrem sem filhos. Há ainda o caso das raparigas e dos seus apaixonados. As raparigas que têm namoro não se importam com ele. Dizem que o dispensavam bem, que o sujeito as aborrece, e perguntam-lhe porque não irá ele

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antes fazer a corte a Mlle. Smith ou à Mlle. Brown, que já passaram dos vinte e cinco anos sem encontrarem apaixonados. Quanto a elas, não os desejam. Não tencionam casar-se. Mas não vale a pena insistir neste assunto doloroso. Havia na nossa escola um aluno a quem nós habitualmente chamávamos Sandford e Mertonl. O seu verdadeiro nome era Stivurings. Era o rapaz mais extraordinário que eu conheci. Desconfio que gostava realmente de estudar. Era muitas vezes castigado porque tinha a mania de ficar acordado na cama, a ler grego; não havia modo de o levar a abandonar os verbos irregulares franceses. Tinha a cabeça cheia de ideias excêntricas, originais, imaginando que fazia a felicidade da sua família e que honrava a escola; ambicionava ganhar prémios, tornar-se homem ilustrado, e outras madurezas nesse gênero, dignas de um espírito fraco. Nunca vi pessoa tão esquisita, mas era, devo dizê-lo, ingênuo como um recém-nascido. Pois bem: esse aluno adoecia com regularidade pelo menos duas vezes por semana, o que o impedia de ir às aulas. 62 Nunca nenhum aluno esteve tanta vez doente como Sandford e Merton. Se havia, uma extensão de vinte quilómetros em volta dele, qualquer epidemia, contraía imediatamente a doença com enorme violência. Apanhava bronquites no tempo de maior calor e sofria da asma dos fenos no Natal. Depois de uma época de seca que durou seis semanas, ele apareceu com uma febre reumatismal; e em Novembro saiu num dia de nevoeiro e voltou para casa com uma insolação. Uma vez anestesiaram o pobre rapaz para lhe arrancarem os dentes todos, e puseram-lhe uma dentadura completa, porque sofria de horríveis dores de dentes; passou então a ter ne vralgias e dores de ouvidos. Não deixava de andar constipado, a não ser uma vez, durante as nove semanas em que teve a escarlatina; e tinha sempre frieiras` ` Quando em 1871 houve cólera, os nossos sítios escaparam por excepção. Não se verificou em toda a freguesia senão um único caso: foi o de Stivurings. Quando estava doente, metiam-no na cama, davam-lhe caldo de galinha, pudim e uvas de estufa; mas ele soluçava sem descanço, porque lhe tinham proibido fazer os exercícios de latim e lhe tinham tirado a gramática alemã! E nós, os outros alunos, que de boa vontade teríamos sacrificado dez trimestres da nossa vida escolar para obtermos a graça de estar doentes um dia só, e que não desejávamos dar aos nossos pais o mais pequeno pretexto de se orgulharem de nós - nem sequer eramos capazes de apanhar um simples torcicolo! Expúnhamo-nos a todas as correntes de ar, mas estas refrescavam-nos e até nos faziam bem. Tomávamos drogas para nos fazerem mal, e elas abriam-nos o apetite. Parecia não haver nada capaz de nos fazer adoecer antes de chegarem as férias. Então, no próprio dia em que começava a nossa liberdade, apanhávamos resfriamentos, bronquites, e toda a espécie de doenças que duravam até que as aulas abrissem de novo. Imediatamente, e apesar de tudo quanto tentássemos 63 para não melhorar, achávamo-nos curados e sãos como pêros. Que querem! É a vida! E nós somos como a erva dos campos, que é cortada e metida no forno para secar. Voltando ao carvalho esculpido, os nossos avós deviam ter uma ideia muito sublime da arte. No entanto, todos os. nossos tesouros artísticos de hoje não são mais do que os objectos de há trezentos ou quatrocentos anos atrás, Pergunto às vezes a mim mesmo se há real beleza intrínseca em todos esses velhos pratos de sopa, nessas canecas de cerveja, e nesses apagadores que nós hoje tanto apreciamos, ou se é unicamente o prestígio do que é antigo que, aureolando esses objectos, lhes confere aos nossos olhos tão extraordinário encanto. As faianças «azul antigo», que penduramos nas nossas paredes com mil cuidados, eram os vulgares utensílios caseiros de outrora; os pastores cor-de-rosa e as pastorinhas amarelas que mostramos aos nossos amigos extasiados eram os bibelots de sala, sem valor, que uma mãe do século XVIII teria dado ao seu filho para brincar, para que ele deixasse de chorar. Será assim também no futuro? Os tesouros preciosos de hoje serão sempre as bagatelas baratas de ontem? Haverá filas dos nossos pratos de flores alinhadas no mármore dos fogões de sala, em casa dos ricaços do ano 2000? E as chávenas

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brancas de barra dourada e de flor no fundo, que a nossa criada agora quebra sem cerimónia, irão figurar, depois de cuidadosamente consertadas, numa peanha onde só a dona lhes limpará o pó? Ora vejam esse cão de louça que enfeita o meu quarto de cama na pensão em que vivo. É um cãozito branco, tem os olhos azuis, e nariz dum vermelho-vivo salpicado de preto. Arrebita a custo uma orelha, o focinho amável dá-lhe um ar quase idiota. Eu, por mim, não o admiro absolutamente nada. Como objecto artístico, direi mesmo que me mete nojo. Amigos pouco delicados fazem troça dele, e até a própria dona da 64 casa fala dele sem nenhuma simpatia: diz que se ele ali está é porque a sua tia lho ofereceu. Mas, daqui a duzentos anos, é muito provável que vão desenterrar em qualquer parte este cão de louça, sem patas, a cauda partida, e que seja vendido como velha porcelana da China e colocado numa vitrina. Andarão em volta dele para melhor o admirar. Hão-de ficar encantados com o maravilhoso tom de vermelho do nariz e hão-de falar da beleza que decerto teria a ponta da cauda que falta ... Para nós essa beleza não existe. É-nos por demais familiar, como o pôr do Sol e as estrelas, cousas banalíssimas aos nossos olhos. Assim acontece com esse cão de porcelana. Em 2288 hão-de admirá-lo. A fabricação destes cães tornar-se-á uma arte cujo segredo se perdeu.`Os sobrinhos dos nossos sobrinhos hão-de admirar-se da nossa habilidade. Hão-de falar de nós com amor, chamando-nos «aqueles grandes artistas que brilhavam no século XIX e que faziam estes cães». O «modelo» que a filha mais velha bordou na escola tornar-se-á «tapeçaria do século de Vitória» e será de um valor inestimável. Os canjirões de faiança azul e branca das hospedarias campestres actuais hão-de ser procurados, mesmo rachados e esmurrados, e vendidos a peso de ouro. As pessoas ricas hão-de servir-se deles como de copos para beber Bordéus, e os viajantes vindos do Japão hão-de comprar todos os «bons-dias de Ramsgate> e as «recordações de Margate» que escaparam à destruição, e leva-los para Yedo como antiguidade britânica. Estava eu nestas conjecturas, quando Harris, largando os remos, foi projectado do banco abaixo e se estendeu ao comprido, de costas, e de pernas para o ar, Montmorency soltou um uivo, deu uma cabriola, o cesto que estava em cima voou e espalhou tudo o que tinha dentro. Fiquei um pouco surpreendido mas não perdi o sangue 65 -frio. Disse com bom modo a Harris: - Olé! Que estás tu a fazer? - O quê, o que estou afazer? Masque diabo de... Pensando bem, não quero repetir o que me respondeu, o Harris. Eu fui realmente um pouco culpado, confesso-o, mas não há no entanto nada que desculpe a violência de expressão e a linguagem grosseira, principalmente quando se trata de um homem bem-educado como era o caso de Harris. Eu ia a pensar noutra coisa, e tinha esquecido, como é fácil de compreender, que ia ao leme. Resultado: enfiei o barco mesmo junto à margem. Tivemos a princípio uma certa dificuldade em distinguir se estávamos na água ou em terra. No entanto Harris participou-me que já estava cansado de remar e convidou-me a tomar-lhe o lugar. Preferi desembarcar e reboquei o bote até passar Hampton-Court. Ah!, como eu gosto do muro velho que segue ali junto ao rio. Sinto-me remoçar cada vez que passo em frente dele. Tem uma pátina tão linda este querido muro velho! Que deli cioso quadro nos oferece, todo coberto de líquen e de musgo com a vinha virgem, que sobe timidamente para espreitar o que se passa no rio amimado, com a velha era que um pouco mais adiante o cobre. Neste muro, numa extensão de dez metros, vêem-se cinco tons diferentes da mesma terna cor. Se eu fosse capaz de desenhar, e se soubesse pintar, fazia decerto um estudo encantador com este muro. Penso muitas vezes que gostaria de viver no castelo de Hampton-Court. Parece ser um sítio muito pacífico e amorável, onde seria agradável passear de manhã cedo, enquanto não anda muita gente cá fora. Realmente não creio que, na prática, tal existência me agradasse tanto. Deve ser horrívelmente lúgubre e triste viver ali, quando à noite a luz projecta sombras

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suspeitas nas paredes e soa nas lajes frias dos corredores o eco distante dos passos que se aproximam e fogem, e tudo volta a cair no silêncio de morte em que não se ouve mais do que o pulsar do próprio coração. Homens e mulheres somos todos feitos para viver ao sol. Gostamos da luz e da vida. Por isso nos amontoamos nas vilas e cidades e por isso o campo, ano a ano, está mais despovoado. De dia, há decerto a luz do Sol, a natureza freme e palpita, e até as encostas nuas das montanhas e as florestas sombrias nos encantam. Mas de noite, quando a terra nossa mãe adormeceu, ah!, então o mundo parece bem solitário e temos medo como crianças numa casa silenciosa. Suspiramos, aspiramos a ver as ruas iluminadas pelos bicos de gás, a ouvir de novo a voz dos nossos semelhantes e a animação da vida humana. Sentimo-nos tão fracos, tão pequenos no meio do grande silêncio em que a ramaria vibra ao sopro da brisa nocturna! Rodeiam-nos tantos fantasmas, cujos suspiros abafados tanto nos entristecem! Oh!, sim, juntemo-nos todos nas grandes cidades, acendamos o grande e alegre fulgor de um milhão de bicos de gás e gritemos e cantemos juntos para nos sentirmos viver! Harris perguntou-me se eu conhecia o labirinto de Hampton-Court. Ele tinha lá ido uma vez para ensinar o caminho a pessoa amiga. Tinha estudado o plano, duma simplicidade tão irrisória que nem mesmo valia os quatro tostões da entrada. Mas, segundo ele dizia, aquele plano era uma esparrela, pois não tinha qualquer relação com a verdade e só servia para desnortear. Harris foi visitar o labirinto com um primo da província, a quem disse: - Vamos entrar aqui só para que tu possas dizer que estiveste cá, porque realmente isto é muito simples. Até é ridículo chamar a isto labirinto. Basta que se vire sempre na primei ra rua à direita. Vamos dar uma volta, cousa de dez minutos, e depois vamos almoçar. Pouco depois de entrarem, encontraram umas pessoas que 67 lhes disseram que estavam ali havia três quartos de hora e que já se sentiam fartas. Harris declarou-lhes que se quisessem podiam segui-lo, pois ia simplesmente até o interior do labirinto e voltaria logo a sair. As pessoas que se tinham perdido agradeceram-lhe a amabilidade e seguiram-no. Na passagem foram recolhendo outras pessoas que estavam já exaustas de procurar o, caminho em vão e a caravana acabou por abranger todos os visitantes do labirinto. Aqueles que já tinham desistido de encontrar ou o centro ou a saída e de tornar a ver a sua casa e os seus amigos, recobraram ânimo ao ver Hárris comandando a sua caravana. Confiados, seguiram-nos. Pelo que diz Harris, devia levar bem umas vinte pessoas de séquito; e uma mulher que levava um bebé, e que estava ali desde pela manhã, quis por força dar-lhe o braço com medo de se perder de novo. Harris andou para a direita e para a esquerda e o caminho já lhe parecia sem fim. O primo começou a dizer que lhe parecia que aquele labirinto era muito grande. - Ah!, sim, mas é um dos mais importantes de toda a Europa - respondeu Harris. - Sim, também me quer parecer - replicou o primo -, pois já andámos aqui dentro pelo menos uns três quilómetros. O próprio Harris começava a achar aquilo um pouco estranho, mas continuava sempre, até à altura em que encontraram no chão metade de um bolo que o primo dele jurava ter visto ali dez minutos antes. « Oh, é impossível!» disse Harris. Mas a mulher que levava o bebé respondeu: «Não é nada impossível!», pois ela própria tinha tirado ao miúdo aquele bocado de brioche, e deixára-o cair ali, justamente uns momentos antes de encontrar Harris. Acrescentou que lamentava sinceramente a brincadeira e acusou Harris de menos consideração pelos companheiros. Harris, furioso, tirou da algibeira o plano e 68 expôs a sua teoria. - O plano talvez nos fosse muito útil - disse alguém - se você soubesse em que ponto do labirinto nós estamos neste momento. Harris ignorava-o. Mas sugeriu a ideia, que ele julgava sensata; de voltar à entrada, e de recomeçar a viagem. A ideia de recomeçar não despertou grande entusiasmo; mas a ideia

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de voltar ao ponto de entrada foi aceite por unanimidade. Recomeçaram portanto a seguir Harris na direcção oposta. Passados dez minutos encontraram-se todos ao centro da clareira interior. A princípio, Harris ainda pensou em dizer que era ali mesmo que ele queria chegar; mas como a multidão tomasse um ar ameaçador, resolveu-se a apreciar o facto como simples incidente. Em todo o caso tinham encontrado um ponto de referên cia. Sempre sabiam onde estavam. Consultaram mais uma vez o plano e a solução pareceu-lhes mais simples do que nunca. Pela terceira vez puseram-se a caminho. E três minutos mais tarde estavam novamente no centro. Desde então foi-lhes absolutamente impossível chegar a qualquer outro ponto. Todos os caminhos que tomassem levavam-nos sempre ao centro. Isto tornou-se por fim de tal modo infalível, que uma parte das pessoas ficava ali, esperando que as outras, depois de darem uma volta, chegassem de novo ao pé delas. Passado um bocado Harris tirou novamente o plano da algibeira. Mas só de o ver a multidão enfureceu-se e pediu ao seu possuidor que o guardasse no bolso ou o rasgasse. Harris confessou-me que teve então a impressão de ter perdido um pouco da sua popularidade de início. Por fim, tomados de pavor, começaram todos a gritar ao 69 mesmo tempo para chamar o guarda. O guarda apareceu e, subindo à escada do lado exterior, gritou-lhes de lá algumas indicações. Mas nessa altura já tinham todos por tal modo perdido a cabeça que foram incapazes de perceber o que ele dizia. _O guarda recomendou-lhes então que se deixassem estar no mesmo sítio que ele ia lá buscá-los. Reuniram-se todos à porta dele ansiosamente. Como que por um capricho da sorte, o guarda era um rapaz que havia pouco tempo desempenhava aquele lugar. Quando entrou no labirinto não conseguiu juntar-se aos visitantes, e perdeu-se também. Avistavam-no de vez em quando, correndo dum lado para o outro da sebe, e ele via-os também e corria para chegar ao pé deles. Mas sumia-se de novo, e depois voltava a aparecer no mesmo ponto e perguntava-lhes por onde tinham passado. Para poderem sair tiveram de esperar que o antigo guarda acabasse de almoçar. Harris, todavia, afirmou que se tratava realmente dum belo labirinto, e combinámos que à volta havíamos de levar lá o Jorge. CAPÍTULO VII Harris contou-me a sua aventura do labirinto enquanto passávamos a represa de Moulsey. Levou-nos um certo tempo, porque a represa é muito grande e o único barco era o nosso. Nunca me lembro de ter visto a represa de Moulsey povoada de um só barco. É, segundo creio, mesmo incluindo a 70 de Boulter, a represa mais concorrida do rio. Muitas vezes fiquei a'olhá-la quando a água desaparecia inteiramente, sob o animado formigueiro dos fatos de banho de cores variadas, dos bonés claros, dos chapéus elegantes, das sombrinhas multicolores; dos véus e casacos de seda, das fitas ondulantes e dos fatos de flanela imaculada. Olhando então do alto do cais para o meio do dique, este dir-se-ia uma enorme caixa onde se misturassem flores de todas as cores e de todos os tons, oferecendo por vezes a visão encantadora do arco-íris. Quando está bom tempo, ao domingo, podemos gozar todo o dia esse aspecto, enquanto a montante e a vazante do rio, fora das portas, filas imensas de barcos esperam passa gem, outros chegam e partem a cada instante e o rio, onde brilha o sol, fica juncado e enfeitado de amarelo, azul, cor de laranja, branco, vermelho e cor-de-rosa, desde o palácio até à igreja de Hampton. Os habitantes de Hampton e de Moulsey vestem-se todos de fatos claros e vêm com os seus cães passear em

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volta do dique, para flirtar, fumar e ver os barcos. Este conjunto forma um espectáculo dos mais alegres que tenho gozado nos arredores da tristonha cidade que é Londres. O Tamisa proporciona belas ocasiões para se ostentarem lindos trajos. Graças a ele, uma vez por excepção, também nos é permitido, a nós homens, mostrar o nosso gosto em questão de cores, e creio, de facto, que nos apresentamos com certa elegância. Gosto sempre de usar coisas encarnadas. O meu fato de banho é encarnado e preto. Como sabem, tenha o cabelo dum castanho-dourado, um tom bem bonito, disse-me alguém, e o encarnado-escuro fica-me muito bem. Acho que uma gravata azul-clara também fica muito bem com o castanho-dourado, assim como um par de sapatos de couro da Rússia e uma faixa de seda vermelha à cintura; uma faixa fica muito melhor do que um cinto. 71 Harris escolhe sempre tons misturados de amarelo e cor de laranja, mas eu não acho que seja acertado. Tem a pele muito morena para usar amarelo. O amarelo não lhe fica bem. Gostaria que ele escolhesse o azul, animado com um pouco de branco ou de beje; mas, que querem, aqueles que têm menos gosto para se vestir são sempre os mais teimosos! E é pena, porque assim nunca há-de fazer sucesso, quando há uma ou duas cores que lhe permitiriam não fazer muito má figura, de chapéu na cabeça. O Jorge comprou para esta pequena viagem algumas coisas que não aprecio. O seu blazer é berrante. Não quero dizer isto ao Jorge, mas é que não há realmente outra palavra que defina uma cor destas. Na quinta-feira à noite resolveu mostrá-lo. Perguntámos-lhe como se chamava aquela cor, mas ele não sabia. Supunha que não tinha nome. O caixeiro afirmara que era um modelo oriental. Vestiu o blazer e perguntou-nos que tal o achávamos. Harris respondeu que, se na Primavera o pendurássemos por cima dum canteiro de flores para meter medo aos pardais, talvez aquele blazer não fizesse mau efeito; mas que, encarando-o como artigo de vestuário de outra pessoa que não fosse um vendedor de Margate, lhe metia nojo. Jorge ficou muito ofendido; mas, como lhe disse Harris, se a opinião lhe desagradava, porque lha tinha pedido? O que nos preocupa, ao Harris e a mim, é que receamos que este blazer atraia as atenções sobre o nosso grupo. As raparigas também não ficam mal quando se entregam ao desporto náutico, mas é preciso que saibam escolher o fato apropriado. Não há nada que lhes fique melhor, no meu en tender, do que um vestido próprio para andar de barco. Mas um vestido para andar de barco - era bom que todas as senhoras o compreendessem - deve ser um vestido com que se possa ir para o barco e não um vestido para ficar debaixo de uma redoma: É o bastante, para estragar completamente uma 72 excursão, levar no barco pessoas que vão todo o tempo a pensar mais na sua elegância do que em se divertir. Tive uma vez a pouca sorte de ir a um piquenique no rio com duas raparigas desse género. Ah!, o que nós nos divertimos! Iam ambas todas apuradas: vestidas de rendas e sedas, e arrebiques, e fitas, e sapatinhos finos, e luvas claras. Mas era realmente a toilette boa para uma câmara de fotógrafo e não para um piquenique no rio: era o «vestido para andar de barco» de um figurino francês. Até era ridículo ir passear ao ar livre, no rio, com um vestido assim. Principiaram logo por achar que o barco não estava limpo. Limpámos o barco e dissemos-lhes que se sentassem, mas elas não ficaram contentes. Uma delas esfregou com o indica dor a almofada do barco e mostrou o dedo à outra, para que ela visse o resultado. Suspiraram ambas e sentaram-se com um ar de mártires que suportam heroicamente as chamas da fogueira castigadora. Acontece às vezes, quando se rema, salpicar um pouco quem vai de barco. Parecia que aqueles lindos fatos se estragavam só com uma gota de água: a marca nunca mais desaparecia; o vestido ficaria irremediavelmente maculado. Eu ia aos remos da parte de trás e fazia os maiores esforços (mergulhava o remo bem fundo; parava no fim de cada remada) para que as pás escorressem toda a água, antes de voltar a mergulhá-las, e escolhia sempre um sítio em que a água estivesse serena. (O remador da frente disse-me, passado um momento, que não se

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sentia de força para remar comigo e que, se eu não me importasse, ia ficar um bocado quieto para observar o meu sistema de remar, que o interessava muito.) Mas, apesar disso, por mais que eu fizesse, não conseguia evitar que um salpico de água fosse, de quando em quando, borrifar os vestidos das meninas. Estas não se queixavam, mas, encolhidas uma contra a 73 outra, sempre que uma gota as atingia, recuavam, estremecendo. Era um espectáculo sublime vê-las sofrer assim em silêncio, mas que me enervava um pouco. Sou muito sensível. As minhas remadas tornaram-se incertas e sacudidas, e quanto mais esforços fazia para o evitar mais salpicava as minhas companheiras. Por fim desisti e pedi para passar à frente. O remador da frente pensou que era realmente melhor, e troquei de lugar com ele. Quando me viram levantar, as pequenas soltaram um involuntário suspiro de alívio e mostraram-se, durante um momento, muito alegres. Pobres raparigas! Tinham feito melhor se se contentassem comigo. O remador, que então ficou ao pé delas, era um rapaz alegre, folgazão e descuidado, dotado de tão pouca delicadeza como qualquer cachorro da Terra Nova. Poderíamos fitá-lo com olhar fulminante uma hora seguida sem que ele desse por isso ou sem que isso o perturbasse, se acaso o notava. Começou a remar com grande à-vontade e entusiasmo, fazendo cair sobre o barco uma torrente de espuma. Quando espalhava mais do que um meio litro de água sobre aqueles belos vestidos, dizia com um sorriso amável: - Oh!, realmente, peço desculpa! - e oferecia-lhes o próprio banco para se enxugarem. - Não é nada, isto não tem importância - respondiam as pobres raparigas, num murmúrio. E puxavam furtivamente os casacos para se resguardarem e procuravam proteger-se com sombrinhas de rendas. Chegada a hora do almoço, passaram também um mau bocado. Queríamos que elas se sentassem na erva, mas a erva tinha pó; e aqueles troncos sobre os quais as convidavam a sentar-se decerto havia muitas semanas que não eram limpos. Resolveram então estender os seus lenços no chão, e sentaram-se em cima, com ar muito digno. Um de nós, ao passar 74 junto delas com uma travessa de carne assada, tropeçou em qualquer raiz e fez voar tudo pelos ares. Felizmente, nada lhes caiu em cima, mas este acidente despertou-lhes receio- de novo perigo e desde então, cada vez que alguém se mexia, levando nas mãos qualquer coisa que pudesse cair e causar estragos, e enquanto esse alguém não tornasse a sentar-se, vigiavam-no sempre com ar de crescente inquietação. - Vamos, minhas meninas - disse-lhes o nosso amigo, quando todos acabámos de comer -, vamos a isto, compete-lhes agora lavar a louça! A princípio, elas nem compreenderam. Mas, quando compreenderam, responderam que não eram competentes. - Oh!, eu depressa as ensino! - exclamou ele. - É muito divertido! Estendem-se ao comprido ... quer dizer, deitam-se no chão, junto ao rio, e mergulham a louça na água. A irmã mais velha objectou que talvez os vestidos que tinham não fossem dos mais apropriados para aquele trabalho. - Ora! Servem muito bem - respondeu-lhes o cruel. - Basta que arregacem as mangas. E elas tiveram de obedecer, depois de se lhes afirmar que esta era a parte mais agradável do piquenique. Quando às vezes penso nisso, lembro-me se realmente aquele rapaz era tão obtuso como nós o julgávamos, ou se era? ... Mas não, é impossível! O seu rosto reflectia uma candura tão pueril! Harris estava com vontade de ir à igreja de Hampton, para ver o túmulo de M.me Thomas. - Quem é M.me Thomas? - perguntei. - Não faço ideia - respondeu Harris. - Foi uma senhora que mandou fazer, para nele se enterrar, um túmulo muito bem «caçado» e que eu gostava de ver. Protestei logo. Não sei se é porque tenho um feitio esquisito, mas nunca fui apreciador de túmulos. Sei muito bem 75

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que, quando se vai de visita a uma vila ou aldeia, a primeira coisa que há a fazer é correr ao cemitério para gozar o espectáculo dos túmulos; mas é uma .diversão a que sempre fujo. Não me dá nenhum prazer seguir lentamente atrás dum velho asmático dando a volta aos túmulos e igrejas para ler epitáfios. A vista de uma placa de cobre incrustada numa lápide não basta para eu sentir o que se chama uma felicidade imensa. Chego a escandalizar os respeitáveis sacristães pela minha imperturbabilidade perante as mais comoventes inscrições e pela minha falta de entusiasmo no que diz respeito à história dos nobres senhores da terra, enquanto lhes arranho o amor-próprio pela impaciência, que deixo transparecer, de me ver dali para fora. Estava, numa manhã de sol radioso, apoiado ao muro de pedra que rodeia a pequena igreja da aldeia e fumava o meu cachimbo, gozando a felicidade calma e profunda que este espectáculo doce e pacífico me oferecia: a velha igreja coberta de hera, com a sua porta de madeira de ingénuas esculturas; a rua branca serpeando entre duas filas de olmos imensos; os casebres com os seus telhados de colmo espreitando por sobre as sebes bem-talhadas; o Tamisa cintilante; e, mais além, os montes arborizados. . Era uma deliciosa paisagem. A sua poesia idílica inspirava-me ideias de bondade e de nobreza. Sentia-me resolvido a nunca mais pecar. Gostaria de viver ali, de nunca mais prati car o mal, de levar uma vida pura e irrepreensível, e de ter, quando fosse velho, uns lindos cabelos brancos. Nesse momento perdoei a todos os meus amigos e conhecidos as suas partidas e maroteiras, e abençoei-os. Eles nem souberam que eu os abençoei e continuaram no caminho do mal, ignorando o que eu fiz por eles na longínqua e tranquila aldeia; mas nem por isso deixei de o fazer e gostaria de os 76 prevenir para que se sentissem felizes. Estava absorto nestas ideias de amor sublime quando fui acordado do meu sonho por uma voz aguda e esganiçada que gritava: - Já aqui estou, meu senhor tenha paciência! Vi então um velhote que atravessava o cemitério e se dirigia para mim a coxear, trazendo na mão um imenso molho de chaves que tilintava a cada passo. Com muda dignidade fiz-lhe sinal para que se afastasse, mas ele continuou a avançar, gritando: - Já lá vou, meu senhor, já lá vou. Estou um pouco coxo, já não sou tão ágil como era. Por aqui, meu senhor. - Vá-se embora, velho miserável! - disse-lhe. - Vim o mais depressa que pude, meu senhor - respondeu. - A minha patroa só agora é que viu o senhor. Venha comigo, venha, meu senhor. - Vá-se embora - repeti. - Deixe-me em paz, senão ... salto o muro, e mato-o! Surpreendido, perguntou-me: - Então não quer ver os túmulos? - Não! - respondi-lhe. - Não quero. Quero ficar aqui, encostado a este velho muro decrépito. Vá-se embora e não me seque. Estou cheio de ideias belas e nobres, e quero assim ficar porque é belo e bom sentir-me assim. Não venha com parvoíces, que me enfurece com as suas histórias ridículas e absurdas de estelas e túmulos. Vá procurar quem lhe faça um enterro barato, que eu pago metade das despesas. Ficou um momento aparvalhado. Depois esfregou os olhos e fitou-me atentamente. Não me achava com cara de bruto, não sabia o que havia de pensar. Perguntou-me: - É estranho na terra? Não vive aqui? - Não - repliquei -, não vivo aqui. Nem você aqui 77 viveria se eu aqui vivesse. - Bem, mas então - insistiu ele - tem de vir ver os túmulos ... monumentos ... a gente enterrada ... percebe . . sepulcros. Subiu-me a mostarda ao nariz. - Não é verdade - protestei. - Não tenho de ir ver esses túmulos - os seus túmulos. Quem me pode obrigar? Temos os nossos próprios túmulos, os da nossa família: O meu tio Podger, por exemplo, tem no cemitério de Kensal-Green um

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túmulo que é o orgulho da terra; e na sepultura do meu avô em Bow cabem oito visitantes, e a minha tia-avó Susana tem, no cemitério da igreja de Finehley, um monumento de tijolo com uma lápide, onde se vê, em baixo-relevo, uma dessas coisas que parecem uma cafeteira, e à volta tem uma cercadura de quinze centímetros de largura, em linda pedra branca. Custou tudo isto um rico preço. Quando me apetece ver sepulturas, distraio-me a ver essas. Não preciso de ver as das outras pessoas. Quando você for enterrado vou depois lá visitá-lo. É o mais que posso fazer. O velhote largou a chorar e assegurou-me que havia uma lápide que diziam ter feito parte de uma antiga estátua, e que noutra estavam gravadas palavras que nunca ninguém conseguira decifrar. E, como eu desolado: - Vamos, morativa! - Não! Resolveu então fazer uma última tentativa e, aproximando-se de mim, disse-me, com voz persuasiva: - Tenho também, em baixo, na cripta, um par de crânios. Oh!, venha ver os meus crânios! O senhor é um rapaz que está em férias: tem de aproveitá-las. Venha ver os meus crânios. 78 crânios! Nessa altura dei meia volta e larguei a fugir e, já bem longe, ainda o ouvia gritar: - Oh, venha ver os meus crânios, venha ver os meus crânios! Harris, no entanto, é doido por túmulos, epitáfios e inscrições funerárias, e ficou furioso com a ideia de não ver a sepultura de M.me Thomas. Disse-me que desde o dia em que tí nhamos planeado a nossa viagem, ele havia logo resolvido ver esse túmulo e acrescentou que nem mesmo teria vindo connosco se não fosse para ver o túmulo de M.me Thomas. Lembrei-me de que tínhamos de ir no barco até Shepperta para lá nos encontrarmos com o Jorge às cinco horas. Então tomou o Jorge à sua conta. Porque passaria o Jorge o dia todo na brincadeira, e nos deixava a nós sozinhos a rebocar aquele bote velho e pesado, de ponta a ponta do Tamisa, para irmos ao encontro dele? O que o impedia de vir mourejar também um pouco como nós? Porque não tinha pedido férias para vir logo de princípio connosco? Diabos levem o seu banco! Para que servia ele lá no banco - Sempre que lá vou - continuou Harris - encontro-o sem fazer nada. Não escreve nem uma letra. Fica todo o dia sentado por detrás dum vidro, esforçando-se por tomar um ar atarefado. Pois eu tenho de trabalhar para ganhar a minha vida. Porque não trabalha ele também? Para que serve ele então e para que servem os bancos? Tiram-nos o nosso dinheiro, e quando vamos receber um cheque, devolvem-no-lo todo rabiscado de «Não é válido», «Devolvido ao sacador». Na semana passada fizeram-me essa partida duas vezes. Não tolero que ma tornem a fazer. Vou levantar o meu dinheiro de lá. Se o Jorge aqui estivesse, poderíamos ir ver esse túmulo. Não acredito nada que ele esteja no banco. Naturalmente foi 79 divertir-se, não sei para onde, e deixa-nos.a nós a fazer o trabalho todo. Vou desembarcar, para ir beber qualquer coisa. Fiz-lhe notar que estávamos a bastantes quilómetros de qualquer possível botequim. Então começou a bramar contra o Tamisa: que porcaria de rio, que até quando se ia para lá tinha de se morrer de sede! Quando o Harris está nesta disposição, é sempre preferível deixa-lo falar. Acaba por se cansar e então cala-se. Lembrei-lhe que tínhamos no cesto extracto de limão, e na popa do barco uma bilha com cinco litros de água, e que bastava misturar essses dois ingredientes para se obter uma bebida fresca e sã. Zangou-se então contra a limonada e contra todas as drogas «de meninos pequenos», como se lhes chamava: cerveja com gengibre, xarope de groselha, etc. Todas elas, no seu entender, provocavam a dispepsia, arrombavam o corpo e a alma e eram causa de metade dos crimes que se cometiam em Inglaterra. Queria no entanto beber alguma coisa e, subindo para o banco, inclinou-se sobre o cesto para alcançar o frasco. Como este estava no fundo, inclinava-se cada vez

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mais para o alcan çar; mas como ia ao mesmo tempo ao leme, e via as coisas às avessas, atirou com o barco em cheio contra a margem. O abalo deitou-o abaixo, e caiu de cabeça dentro do cesto, ficando de pernas para o ar, a espernear desesperadamente, agarrando-se com toda a força às bordas do barco. Não se atrevia a endireitar-se, com medo de cair à água, e teve de ficar ali até que eu pudesse liberta-lo, agarrando-o pelas pernas, coisa que o enervou mais ainda. 80 CAPÍTULO VIII Parámos para almoçar à sombra dos salgueiros, próximo de Kempton Park. Há nesse sítio um cantinho lindo, um belo relvado que acompanha o rio 'à sombra dos salgueiros. Estáva mos ainda no terceiro prato - pão e compota - quando se aproximou de nós um cidadão em mangas de camisa e com um grande cachimbo na boca, declarando que lhe parecia que nós devíamos saber que estávamos dentro duma propriedade privada. Respondemos-lhe que não tínhamos ainda examinado o caso com atenção bastante para chegarmos a qualquer conclusão sobre esse assunto mas que, se ele nos desse a palavra de honra de que realmente estávamos numa propriedade privada, nós não oporíamos qualquer dúvida às suas palavras. Fez a afirmação que lhe pedíamos e nós agradecemos-lhe; mas como ele não se fosse embora e se deixasse ali ficar com um ar pouco satisfeito; perguntámos-lhe se podíamos por qualquer modo ser-lhe úteis. Harris, com a sua franqueza habitual, ofereceu-lhe uma fatia de pão com doce. Creio que aquele homem devia pertencer a qualquer sociedade inimiga de fatias com doce; recusou-a com ar indignado, como se estivesse furioso por ter de resistir à tentação, e acrescentou que se via obrigado a expulsar-nos. Harris respondeu-lhe que, se era esse o seu dever, entendia que ele devia cumpri-lo, e perguntou-lhe qual seria o meio que julgava mais conveniente para esse fim. Harris é o que se pode chamar um senhor bem constituído, boa figura, um valente latagão. O nosso visitante mediu-o com um olhar e respondeu que ia primeiro consultar o patrão e depois viria então atirar-nos a ambos para o rio. É claro, não tornámos a vê-lo. O que ele queria, já se vê, era que lhe déssemos um xelim. Há, junto do Tamisa, um cer 81 to número de parasitas, que conseguem no Verão uma verdadeira renda, rondando nas margens e explorando por este modo os pobres patetas. Dizem que vêm mandados pelo proprietário. O sistema a seguir é declinar-lhes o nosso nome e morada e deixar o proprietário - se realmente este tomou parte na aventura - chamar-nos ao tribunal e apresentar provas do prejuízo que sofreram as suas terras pelo facto de nós nos sentarmos lá um bocadito a descansar. Mas a maioria das pessoas é tão mole e tímida que prefere ajudar a impostura, não gastando a sua energia a reprimi-la. Os casos de autêntica e indiscutível culpa dos proprietários deveriam ser apontados. O egoísmo dos proprietários das margens do rio aumenta de ano para ano. Se os deixassem, fechavam por completo as margens do Tamisa. Já o fazem nos pequenos afluentes e braços do rio. Enterram estacas, estendem correntes de uma margem para outra, e pregam enormes letreiros em cada árvore. Quando vejo aqueles letreiros, acordam em mim todos os maus instintos. Sinto um enorme desejo de os arrancar um por um e de martelar, até dar cabo dele, a cabeça do indivíduo que os mandou pregar. Depois enterrá-lo e pôr na sua sepultura a tabuleta em vez de um epitáfio. Descrevi ao Harris quais -os sentimentos de repulsa que em mim provocavam aquelas tabuletas e ele declarou-me que os seus eram ainda piores. Gostaria não somente de assassinar o miserável que tinha mandado pôr aqueles letreiros, mas ainda de massacrar a família inteira com todos os seus amigos e relações e em seguida largar fogo à casa que habitassem. A vingança parecia-me exagerada, mas Harris respondeu-me: - Não! Não! Seria um justo castigo, e ainda havia de ir sentar-me junto das ruínas da casa para cantar cançonetas cómicas. Zanguei-me ao ouvir palavras tão sanguinárias. Não deve 82 mos permitir que os nossos instintos de justiça degenerem em sentimentos de pura vingança. Custou-me um bocado a conseguir que Harris voltasse a sentimentos mais

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cristãos mas, por fim, consegui: prometeu-me, pelo menos, que pouparia os amigos e relações e que não iria cantar cançonetas cómicas junto das ruínas das suas casas. Nunca ouviram Harris no exercício dessa função, senão facilmente compreenderiam o grande serviço que eu prestei à humanidade. Uma das manias de Harris é que sabe cantar cançonetas cómicas. Mas aqueles de entre os seus amigos que já o ouviram estão pelo contrário muito convencidos de que ele não sabe nem saberá nunca cantar e que nem mesmo lhe deveria ser permitido tal exercício. Quando Harris vai passar o Verão fora, e lhe pedem para cantar, "responde logo: - Pois sim, mas previno-os de que só sei cantar cançonetas cómicas. E diz isto com um ar que todos ficam julgando que ele é um artista nesse assunto e que vale a pena ouvi-lo ao menos uma vez na vida. - Mas que amável - diz a dona da casa. - Cante-nos então uma cançoneta, se faz favor. E Harris levanta-se, aproxima-se do piano com o ar radiante dum coração generoso que vai dar a alguém um belo presente. - Vamos, silêncio, se fazem favor, calem-se todos! - diz a dona da casa, dirigindo-se aos convidados. - O senhor Harris vai cantar-nos uma canção cómica. - Oh! que engraçado - murmuram todos. Vêm todos a correr apressados da varanda, sobem as escadas, correm por toda a casa e chamam-se uns aos outros, e por fim amontoam-se na sala, onde formam roda enquanto esperam que o recital comece. 83 Então Harris começa. Decerto ninguém espera uma bela voz dum cantor de canções cómicas, nem uma dicção e notas vocais impecáveis. Ninguém se importa se no meio de uma nota o cantor reparar que cantou alto de mais; e se descer bruscamente de tom. Ninguém se importa com o ritmo, não reparam se o cantor for duas notas mais adiante do que quem o acompanha ao piano, nem que pare no meio para se pôr a par com o pianista e recomeçar a estrofe. Mas esperam que ele saiba ao menos os versos. Ninguém espera que o senhor não se lembre senão dos três primeiros versos da primeira copla, e que os repita várias vezes até chegar a altura de apanhar o estribilho. Ninguém espera que ele pare no meio dum verso, e que diga com um sorriso idiota que não é capaz de se lembrar do resto da canção, e que tente improvisar. Ninguém espera. Mas acho preferível dar-lhes uma pequena ideia do que é Harris como cantor cómico e assim poderão apreciar melhor. De pé, junto do piano, Harris dirige-se à assistência ansiosa: - Receio que esta canção seja já um pouco antiga, sabem. Creio que todos a conhecem, não é verdade? Mas é a única que eu sei. É a canção do juiz de Pinafore ... Não, enganei-me, não era Pinafore que eu queria dizer ... Era ... Sabem ... aquela outra opereta. Acompanhem todos o estribilho, sim? Murmúrios de aprovação e grande impaciência para acompanharem o cantor. O pianista, nervoso, executa brilhantemente o prelúdio da canção do juiz de Tribunal Supre mo. Chega o momento da entrada de Harris, mas ele não repara. O pianista, nervoso, tenta continuar o seu prelúdio, mas desiste, e esforça-se por seguir o Harris com o acompanhamento da canção do juiz de Tribunal Supremo. Repara então 84 que a música não corresponde à letra, pergunta a si próprio em que alturas vai, o que está ali a fazer, perde a cabeça e pára bruscamente. Harris, muito amável, animando-o: - Vai muito bem. Acompanha muito bem. Peço-lhe que continue. O pianista, nervoso: - Receio que haja qualquer engano. O que está a cantar? Harris vivamente: - Mas é a canção do juiz de Tribunal Supremo! Não a conhece? Um amigo de Harris grita do fundo da sala: - Não é nada, estás distraído, és um estouvado, não foi nada disso que tu cantaste, foi a canção do almirante de Pinafore. Discussão prolongada entre Harris e o amigo sobre qual era realmente a canção que ele cantara. Por fim o amigo declarou que pouco importava a canção, contando que Harris continuasse a cantar, e este, evidentemente ofendido com tamanha

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injustiça, pede ao pianista que recomece. O pianista começa então o prelúdio da canção do almirante, e o Harris, apanhando a música no momento que julga ser o mais favorável, começa: Harris: Na minha mocidade fui chamado ao tribunal. Gargalhada geral que o Harris toma como cumprimento. O pianista, pensando na mulher e nos filhos, desiste de luta tão desigual, e retira-se. Substitui-o um senhor de nervos mais resistentes. O novo pianista com modo jovial: - Avança, meu velho, começa que eu sigo-te. Que nos importa a nós o prelúdio. Harris, que compreendeu, enfim, rindo-se: 85 - Oh!, com os diabos!, peço-vos desculpa. É verdade, confundi as duas canções. Foi o nome de Jenlsuis que me atrapalhou, sabem. E agora, continuemos ... Começa a cantar numa voz que parece vir das catacumbas e que faz lembrar o ruído abafado que se ouve antes dum tremor de terra. ,,Na minha juventude fui ao escritório dum notário .. . » À parte, para o pianista: - Isto foi muito baixo, meu velho, vamos recomeçar, se não te importas. Harris repete os dois primeiros versos numa voz de falsete esganiçada. O auditório mostra-se surpreendido. Uma senhora velha e nervosa põe-se a chorar: levam-na da sala. Harris continua: «Limpava os vidros, limpava a porta.» uma temporada ajudante no es «E - Não, não é assim. Limpava os vidros da porta de entrada, encerava o chão ... Não, diabo ... peço desculpa ... `Tem graça, não consigo lembrar-me dessa copla. E .... e ... Deixa-lo, paciência, vamos começar todos com o estribilho. «E dig, dig dig dig dig dom,» «Sou hoje o chefe da marinha real.» - Vamos, todos em coro: repitam todos só os dois últimos versos. Todos em coro: «E dig, dig dig dig dig dom,» «Ele é hoje o chefe da marinha real. » 86 E Harris não percebe que se torna ridículo e que aborrece mortalmente uma quantidade de gente que nunca lhe fez mal. Convence-se em absoluto de que eles gostam muito e promete cantar uma outra canção cómica depois do jantar. Por falar em cançoneta cómica e em serão passado com amigos, lembrei-me de um outro caso bastante curioso a que assisti uma vez. Como este caso esclarece o funcionamento íntimo do espírito humano, creio que é conveniente contá-lo aqui. Todos os que estavam nessa reunião eram gente muito bem-educada. Estávamos todos com os nossos melhores fatos, conversávamos com elevação, e estávamos todos muito bem dispostos - todos, como digo, à excepção de dois rapazes estudantes que havia pouco tinham voltado da Alemanha, rapazes grosseiros que tinham um ar enervádo e pouco à vontade, como de quem acha que o tempo custa a passar. Na verdade nós é que éramos muito superiores a eles. Não atingiam a nossa conversa brilhante e subtil, nem os nossos gostos de pessoas bem-educadas. Não se sentiam bem no meio de nós. Nunca deviam ter ali ido, foi esta a opinião geral. Tocaram-se trechos de alguns velhos compositores alemães. Discutiu-se filosofia e moral, derriçou-se com dignidade cheia de graça. Chegou mesmo a haver ditos de espírito = como na alta sociedade. Depois do jantar, alguém recitou um poema francês que todos acharam admirável. Depois uma senhora cantou uma romanza espanhola, sentimental, tão comovedora que até um ou dois de entre nós chorou. Levantaram-se então os dois rapazes e perguntaram se já tínhamos ouvido Herr Slossenn Bosebeu (que chegara nesse momento e estava em baixo na casa de jantar) cantar em alemão a sua canção cómica predilecta. Ninguém se lembrava de o ter ouvido. Os dois rapazes asseguraram-nos que era a canção mais desopilante do mundo e ofereceram-se para pedir a Herr Slossenn Bosebeu, que conheciam muito bem, que cantasse para nós ouvirmos. Era de tal modo engraçada a tal cançoneta,

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acrescentaram, que um dia o imperador da Alemanha tanto riu ao ouvi-la, que ficou doente. Ninguém era capaz, segundo eles diziam, de cantar aquela canção como Herr Slossenn Bosebeu. Conservava do princípio ao fim um ar tão sério, que parecia estar a narrar um caso trágico, e, naturalmente, isso ainda dava mais vontade de rir. Nunca se percebia, pela entoação ou pelo gesto, que se tratava duma canção cómica - o que teria estragado o efeito. E era o seu ar de seriedade, quase dolorosa, que fazia do alemão um cómico irresistível. Respondemos todos que muito gostaríamos de o ouvir e eles foram logo buscar Herr Slossenn Bosebeu. Decerto este tinha grande desejo de cantar a sua canção, pois veio imediatamente, e, sem dizer uma palavra, sentou-se ao piano. «Vão ver como é engraçado! Hão-de fartar-se de rir!. diziam os rapazes, enquanto atravessavam a sala para irem colocar-se modestamente atrás do professor ... O próprio Herr Slossenn Bosebeu tocava para se acompanhar. O prelúdio não deixava prever propriamente uma canção cómica. Era uma ária cheia de sentimento, e tão lúgubre que causava arrepios; dissemos uns para os outros que naturalmente era aquele o sistema alemão e aguardávamos todos o momento das gargalhadas. Eu, por mim, não percebo nada de alemão, aprendi-o quando andava na escola; mas dois anos depois de acabar os meus estudos não sabia já nem uma palavra, o que aliás não me fez falta e não tenho vivido pior por isso. Naquela reunião, porém, não queria mostrar a minha ignorância, e lembrei-me dum subterfúgio que então me pareceu muito bom. Não tirava os olhos de cima dos dois estudantes e imitava-os em tudo. Quando eles abafavam o riso, eu 88 abafava o meu, e quando eles soltavam uma gargalhada eu soltava outra, e de vez em quando dava ainda uma pequena risadinha, como se tivesse notado qualquer palavra espirituosa que escapara aos outros. E esta manha parecia-me especialmente engenhosa. Não tardei a notar que, enquanto o alemão cantava, muitas outras pessoas, tal como eu, tinham os olhos fitos nos dois estudantes. E como estes não deixaram nunca de soltar risinhos abafados, ou gargalhadas estrondosas, do princípio ao fim da canção, correu tudo muito bem. Mas Herr professor não estava contente. Quando começaram todos a rir, ele mostrou uma expressão de imensa surpresa, como se esperasse um outro acolhimento que não fosse o da gargalhada. Isto pareceu-nos muito divertido; a sua impertubável seriedade era o processo mais engraçado da sua arte de fazer rir. Se tivesse deixado adivinhar que o surpreendia aquele efeito burlesco, teria estragado tudo. Como continuássemos a rir, a sua expressão de surpresa deu lugar a um ar de contrariedade e irritação, e lançou-nos a todos (excepto aos dois estudantes que estavam atrás das suas costas e que ele não podia portanto ver) um olhar indignado e feroz. Isto fez-nos quase rebentar a rir. Já não podíamos rir mais. Decididamente aquele maduro queria dar cabo de nós. E dizíamos uns para os outros que as palavras só por si eram já o bastante para nos fazer estalar de riso, mas, ainda por cima, com aquele ar de fingida gravidade, então era puro delírio! Na última copla exagerou ainda mais. Lançou-nos um olhar de tão concentrada ferocidade que, se não estivéssemos prevenidos do seu sistema de cantar canções cómicas, decerto nos teríamos sentido inquietos. Dava à música lúgubre expressão de mágoa tão dilacerante, que todos teríamos chorado, se não soubéssemos que se tratava duma canção cómica. Quando o cantor emudeceu, reinava geral hilaridade:_ E 89 afirmámos todos que era o espectáculo mais engraçado que se podia imaginar. Julgámos estranho que, em presença de factos como este, ainda prevalecesse o vulgar preconceito de que os alemães não têm o sentido do cómico. Perguntámos todos ao professor porque não mandava traduzir a sua canção em inglês, para assim permitir aos profanos que apreciassem melhor toda a intensidade do seu cómico. Então foi terrível. Herr professor Slossenn Bosebeu levantou-se do piano e injuriou-nos em alemão (língua, em meu entender, muito apropriada para este

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fim), fremente de cólera, ameaçando-nos e chamando-nos todos os nomes que sabia em inglês. Nunca na vida, dizia ele, recebera tamanho insulto. Compreendemos então a verdade. Os versos que cantara não eram os de uma canção cómica. Falavam de uma rapariga que vivia nas montanhas de Ibarz e que dera a vida para salvar a alma do noivo. Depois da morte deste, as duas almas encontravam-se no espaço; mas por fim, na última copla, o noivo repudiava o espírito da sua noiva e fugia com outro espírito. Não garanto em absoluto estes pormenores mas, seja como for, a história era das mais comovedoras. Herr Bosebeu acrescentou ainda que tinha cantado um dia aquela canção diante do imperador alemão e que ele (o imperador), chorara como uma criança. E disse ainda que aqueles versos eram considerados em geral os mais trágicos e comovedores da literatura alemã. A situação era difícil para nós, muito difícil. Não sabíamos o que havíamos de responder. Todos procurámos lobrigar os dois estudantes, culpados do erro. Mas mal acabara a música, tinham ambos desaparecido sub-repticiamente. Depois disto, terminou a festa. Nunca vi uma festa findar tão discretamente e com tão pouca cerimónia. Nem demos as boas-noites. Descemos as escadas um a um, às escuras, e com passos abafados. Chegados ao vestiário, cada um pediu o seu 90 chapéu e o casaco, e depois todos se sumiram a correr, fugindo dos outros. Desde então nunca mais me interessei pelas canções alemãs. Chegámos ao dique de Sumbrory às três e meia. O rio é nesse sítio de uma beleza maravilhosa e o canal é encantador; mas nunca tentem subi-lo a remar. Tentei-o eu uma vez. Ia aos remos e perguntei ao camarada que ia ao leme se achava que fosse coisa que se pudesse fazer. Decerto que sim, nada mais fácil, respondeu, desde que eu remasse com energia. Estávamos então. mesmo por baixo da pequena ponte que atravessa o rio junto da comporta. Num gesto decidido, pus-me a remar. Remei com desembaraço num estilo ritmado e igual. Os braços, as pernas, o tronco, cooperavam no mesmo esforço. Segundo diziam os meus companheiros, dava prazer ver-me remar, num estilo tão rápido e elegante. Passados cinco minutos, convencido de que tínhamos já avançado um grande bocado, olhei em volta. Estávamos ainda debaixo da pequena ponte, exactamente no ponto de partida, e em frente de mim os camaradas idiotas riam que nem uns perdidos. Lutara desesperadamente para conseguir afinal manter o barco no mesmo sítio debaixo da ponte. Por isso agora deixo sempre para os outros o trabalho de remar contra a maré. Chegávamos enfim, remando eu sempre, a Walton, pequena vila sem grande importância. Como de todas as povoações à beira do rio não se avistam dali senão umas casinholas, nós do barco podíamos tomá-la por qualquer pequena aldeia insignificante. Windsor e Abingdon são as duas únicas povoações que realmente se avistam do Tamisa. Todas as outras se escondem em qualquer recanto e não têm vista sobre o rio. E eu aprecio que elas abandonem as margens às matas, aos campos e aos trabalhos de hidráulica. Embora Reading faça todo o possível para desonrar e desfear toda a parte do rio que pode atingir, tem 91 ainda o -bom senso de voltar para outro lado o seu rosto tão feio. César, é claro, esteve instalado em Walton: acampamento, fortaleza ou outra coisa qualquer nesse género. César nunca deixava de navegar nos rios. A rainha Isabel também ali esteve. Para qualquer sítio que se vá, é impossível vermo-nos livres daquela mulher. Cromwell e Bradshon (não o Bradshon dos guias de caminho de ferro, mas o ministro do rei Carlos) também aqui estiveram, e tiveram, creio eu, uma conversa muito agradável. Há na igreja de Walton um «freio-megera» de ferro. Em tempos usaram-se estes instrumentos para conter a loquacidade das línguas femininas. Mas depois desistiu-se do sistema. Creio que o ferro começou a rarear e não encontraram outro metal bastante resistente para esse fim. Há também na igreja uns túmulos notáveis. Receei que Harris não quisesse sair de lá, mas parece que nem deu pela sua existência, e assim seguimos o nosso caminho. A montante da ponte o rio apresenta muitas curvas e recantos, que o tornam pitoresco, mas fazem desesperar os remadores ou quem vai a sirgar, e provocam grandes discussões entre aquele que vai ao leme e o desgraçado que rema.

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Avista-se daqui, na margem direita, o velho e célebre castelo de Oatlands Parla, que Henrique VIII roubou a um dos seus fidalgos, não me lembro a quem, indo para lá viver. Há no parque uma gruta que se pode visitar pagando e que dizem ser maravilhosa, mas não é essa a minha opinião. A rainha de lorba, que vivia em Oatlands, gostava muito de cães e tinha enorme quantidade deles em casa. Mandou fazer um cemitério especial onde os enterrava quando morriam. Lá estão todos, talvez uns cinquenta, cada um com a sua lápide e o seu epitáfio. Reconheço, aliás, que os cães são-tão merecedores de tú 92 mulos como á maioria dos cristãos. No «açude de Corvay», a primeira curva depois da ponte de Walton, houve em tempos uma batalha entre César e Cassivellammes. Este tinha tapado o rio para impedir a passagem a César, mandando enterrar uma quantidade enorme de estacas (e certamente lhes pôs um letreiro). Mas César nem por isso deixou de passar, pois era impossível afastar César deste rio. Halliford e Shepperton são dois lindos lugarejos, que se avistam do Tamisa, e que não têm, nem um nem outro, nada de notável. Há todavia no cemitério de Shepperton um túmulo onde se inscreveu um poema, e eu receei muito que Harris quisesse lá ir dar uma volta. Quando o vi lançar um olhar de cobiça ao cais próximo, arranjei maneira, fazendo um movimento oportuno, de atirar o boné dele à água, e a precipitação para o pescar, junto à indignação pela minha falta de habilidade, levaram-no a esquecer os seus queridos túmulos. Em Weylerudge, o Wey (lindo ribeiro navegável para barcos ligeiros até Guilford, e que eu sempre desejei subir sem nunca o ter feito), o Bourne, e o canal de Basingstols, desaguam todos os três no Tamisa. A comporta fica antes da vila e a primeira coisa que avistámos junto a uma das portas do pontão foi o blazer de Jorge. Notámos, depois dum exame mais atento, que dentro do blazer estava o próprio Jorge. Montmorency largou a ladrar furiosamente, eu a gritar, e Harris a urrar. Jorge saudou-nos com o boné e respondeu-nos berrando. O guarda do dique apareceu imediatamente armado com uma bóia, pois se convencera que tinha caído alguém ao rio, e ficou desolado quando viu que não acontecera nada. O Jorge trazia na mão um embrulho de forma esquisita, coberto de oleado, que dum lado tinha uma forma arredondada e achatada, e do outro um cabo muito comprido. Harris perguntou logo: «O que é isso? É uma frigideira?» Jorge, com um olhar radiante, declarou: «Isto faz furor este verão, toda a gente no Tamisa tem isto, é um banjo.,> «Não sabia que tu tocavas banjo», exclamámos ao mesmo tempo Harris e eu. «Ainda não toco muito bem, mas dizem-me que é muito fácil. Comprei um método de banjo para aprender. CAPÍTULO IX Agora que já ali tinhamos o Jorge, tratava-se de o fazer trabalhar. Jorge, escusado é dizê-lo, não lhe apetecia trabalhar e clamava alto que já o tinha cansado bastante o trabalho do banco, mas Harris, que é de seu natural pouco dado a sentimentos de bondade, respondeu-lhe: «Ora; para variar cansas-te desta vez no Tamisa: a diversão há-de fazer-te bem. Vamos, marcha; pega no cabo e leva-nos um bocado a reboque.» Em consciência, Jorge não podia recusar, mas insinuou ainda que talvez fosse melhor ficar ele no barco a preparar o chá, enquanto Harris e eu o rebocávamos, pois conseguir um bom chá era uma árdua tarefa, e o Harris e eu parecíamos fatigados. Como resposta atirámos-lhe com o cabo da sirga. Este género de cabo tem umas tendências tão estranhas como inexplicáveis. Enrolámo-lo com tanta paciência e cuidado como se estivéssemos a dobrar umas calças novas e quando, cinco minutos mais tarde, vamos buscá-lo, encontramos uma baralhada de fazer perder a cabeça. Não é para dizer mal, mas tenho a firme convicção de que se pegasse em qualquer cabo ao acaso e o estendesse todo enrolado e muito direito no meio do campo, bastaria voltar as costas uns trinta se 94

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gundos para logo o ver, quando de novo o quisesse agarrar, transformado num monte de nós emaranhados. Perderia uma meia hora, sempre praguejando e resmungando, até conseguir desenrolá-lo. É esta a minha opinião em geral. Decerto, pode haver excepções: não digo que não. Pode haver cabos que façam honra à sua família de cabos, cabos conscienciosos e respeitá veis, cabos que não julguem de sua obrigação enrolar-se e emaranhar-se, mal os deixamos à vontade. É possível que haja cabos assim e desejo mesmo que eles existam. Mas, por mim, ainda não consegui encontrar nenhum. Eu próprio tinha enrolado o cabo de que falei, momentos antes de chegarmos à represa. Não consentiria que Harris o enrolasse, reconhecido à sua reconhecida falta de jeito. Dera com serena lentidão um nó ao meio, dobrando-o em dois, e pondo-o cuidadosamente no fundo do barco. Harris pegou-lhe com jeito e passou-o ao Jorge. Jorge agarrou-o com a mão firme e, afastando-se um pouco, começou a desenrolá-lo como se estivesse a desenfaixar um bebé. Ainda ele não desenrolara dez metros, e já o cabo parecia uma esteira esfarrapada. É sempre a mesma história e a conclusão é sempre a mesma. O camarada que está em terra e que se esforça por desembaraçar o cabo julga que a culpa é unicamente do colega que o enrolou. E nas margens do Tamisa, quando se pensa qualquer coisa, diz-se logo tudo o que se pensa: «O que é que tu pretendias fazer com este cabo? Uma rede de pesca? Bonito serviço! Não podias tê-lo atado convenientemente, meu azelha!», resmunga ele de quando em quando, lutando freneticamente com o cabo, estendendo-o ao comprido no chão, examinando-o por todos os lados, na esperança de encontrar o chicote. Por outro lado, aquele que enrolara o cabo pensa que o único responsável por tamanha baralhada é apenas o outro, que tenta desenrolá-lo. 95 - Pois ele estava bem direito quando tu lhe pegaste - exclama indignado. - Fazes as coisas sem pensar, mexes em tudo sem nenhum cuidado! Até eras capaz de emaranhar uma vara de madeira. Ficam os contendores tão zangados um contra o outro, que chegam quase a desejar enforcar-se reciprocamente com o próprio objecto do litígio. Passam-se dez minutos e o primeiro camarada, perdendo a cabeça, larga um berro, tropeça no cabo e pretende desembaraçá-lo depressa, agarrando no primeiro nó que encontra, e afinal aperta-o com toda' a força. Nada consegue, ou antes, consegue atrapalhar-se ainda mais. Então o outro camarada sai do barco para vir em auxílio do infeliz e o pobre cabo sofre tratos de polé, o que não deixa de ser compreensível, dadas as maldades de que foi sempre capaz um cabo. Finalmente tudo se compõe, mas nessa altura já o barco vai rio abaixo, direitinho à represa. Lembro-me agora, a propósito,, dum facto que realmente se deu. Era numa manhã de muito vento e um pouco acima do Boveneu. íamos nós descendo o rio a remos, quando, numa curva, avistámos na margem dois presumíveis passageiros de uma canoa. Olhavam um para o outro com uma tal expressão de espanto e desolação, como eu nunca tinha visto nem tornarei a ver numa fisionomia humana. Agarravam cada um por sua ponta um enorme cabo de reboque. Compreendendo que lhes acontecera qualquer desastre, parámos logo para perguntar aos nossos colegas o que lhes tinha acontecido. - Foi o nosso barco, o nosso barco que se pôs a andar - responderam furiosos. - Tínhamos justamente acabado de desembaraçar o cabo da sirga, quando se sumiu sem sabermos para onde. Estavam os dois sujeitos muito ofendidos com aquela fuga, que representava evidentemente uma vil ingratidão da parte do barco. Apanhámos o bote fugitivo, que ficara preso nos 96 juncos, uns oitocentos metros mais adiante, e levámo-lo aos seus donos. Ia apostar em como eles o trouxeram vigiado de perto, pelo menos durante oito dias. Não esquecerei nunca o espectáculo daqueles dois homens percorrendo de cabo na mão a margem do rio e procurando em vão o seu barco.

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Os reboques no Tamisa oferecem sempre o ensejo de assistir a muitos incidentes cómicos. Um dos mais frequentes é o de dois sirgadores que avançam rápidos, mergulhados em animada discussão, enquanto o colega que ficou no barco, uns cem metros atrás, lhes grita em vão que parem, e faz, com os remos, frenéticos sinais de aflição. Aconteceu-lhes algum desastre: ou o leme se soltou, ou o croque caiu no fundo do rio, ou o chapéu naufragou e foge levado pela corrente. Pede aos outros que parem, a princípio com ar amável é bem-educado: - Olá. Alto aí. Um minuto só, se fazem favor - diz em tom prazenteiro - Deixei cair o meu chapéu. Depois num tom já um pouco menos afável: - Eh lá, Tom. Dick. Então não ouvem o que eu eu digo? E logo em seguida: - Eh lá, meus grandes idiotas. Olé! Alto. Parem. Oh que súcia de ... E então, salta, pula, fica encarnado de tanto gritar, e os insultos chovem. Na margem os garotos riem-se dele e atiram-lhe pedras. No entanto, o barco navega, rebocado, à velocidade de seis quilómetros à hora. A maior parte destes incidentes nunca se dariam se o sirgador, não se esquecendo que vai a sirgar, se voltasse de vez em quando para ver o que sucede a quem vai a reboque. É sempre preferível levar uma pessoa só à sirga, porque se são dois distraem-se a conversar; e a fraca resistência oposta pela canoa não é suficiente para os fazer voltar à realidade. Nessa tarde, quando depois do jantar conversávamos sobre o assunto, Jorge contou-nos uma anedota curiosa, exem 97 plo do total esquecimento a que chegam por vezes dois sirgadores. , Uma noite, iam, ele e mais três camaradas, remando contra a maré, numa canoa muito carregada. Tinham passado Maidenhead quando, um pouco acima da comporta de Cook ham, encontraram, seguindo pelo caminho da sirga, um rapaz e uma rapariga aparentemente muito entretidos num diálogo de interesse cativante. Seguravam os dois pombinhos o croque dum barco e, preso ao croque com o chicote dentro de água, levavam um cabo. Não se avistava nenhum barco ou canoa ali perto. Era eviden te que em determinada altura devia ter havido qualquer embarcação presa àquele cabo. Que lhe tinha acontecido, que destino sombrio a tinha arrebatado, a ela e aos seus passageiros? Tenebroso mistério! ... O acidente, qualquer que fosse a sua gravidade, não perturbara os dois conscienciosos sirgadores. Ainda lhes ficava o croque e o cabo, e era isto, ao que parece, o que eles julgavam indispensável ao seu trabalho. Jorge preparava-se para os despertar daquele sonho, quando, de súbito, lhe ocorreu uma ideia luminosa. Com um gancho agarrou o cabo, atou-o à volta do mastro, recolheu os remos, e foi sentar-se tranquilamente com os companheiros, à popa, fumando todos os seus cachimbos. E assim o rapaz e a rapariga rebocaram aqueles quatro mandriões e mais o seu barco, até Marlow. Jorge disse-nos que nunca vira concentrado num só olhar tanta desolação como no momento em que, chegados ao dique, o rapaz e a rapariga repararam que tinham vindo durante três quilómetros a rebocar um outro barco que não era o deles. Estava convencido de que, se não fosse a presença pacificadora da rapariga, decerto o rapaz teria chegado a grande violência de palavras. 98 A rapariga foi a primeira a voltar a si de tamanha surpresa e, juntando as mãos, exclamou, aflita: - Oh Joe, onde estará a minha tia? - E encontraram a pobre senhora? - perguntou Harris. Jorge respondeu-lhe que não sabia. Uma outra prova de como é perigoso o desentendimento entre os que vão a sirgar e os que são rebocados, é o de um desastre que se deu uma vez mesmo à nossa vista, um pouco acima de Walton. Era no sítio em que a margem desce em declive até a beira da água. Jorge e eu estávamos na margem oposta. Não perdemos. portanto nada do espectáculo. A certa altura avistámos, vogando a grande velocidade, uma pequena canoa puxada por possante cavalo, montado por um garoto pequeno.

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Espalhados pelo barco, em atitudes descuidadas e sonhadoras, iam cinco homens, e aquele que empunhava o leme manifestava singular indolência. - Muito gostava eu que ele se enganasse na direcção - murmurou Jorge quando os viu passar. E nesse mesmo momento o timoneiro enganou-se e a canoa precipitou-se, com um ruído semelhante ao de quarenta mil peças de lona que se rasgassem ao mesmo tempo. Dois homens, um cesto e três remos saltaram de súbito pela borda fora e foram estatelar-se na margem. Um segundo mais tarde, entre fateixas, velas, sacos e garrafas, entornavam-se outros dois homens. O quinto passageiro desembarcou de cabeça para baixo uns vinte metros mais adiante. Tornado mais leve com este desastre, o barco fugiu em corrida louca, e o garoto, gritando cada vez mais alto, meteu o cavalo a galope. Os homens, sentados no chão, olhavam uns para os outros estupefactos, e levaram muito tempo antes que compreendessem o que lhes tinha acontecido. Gritaram então ao garoto para que parasse. Mas este ia muito entretido 99 com o seu cavalo para poder ouvi-los. Ainda lobrigámos os homens a correr atrás dele, mas logo desapareceram da nossa vista. Confesso que não tive pena nenhuma dos sujeitos. Antes pelo contrário. Gostaria mesmo que acontecesse esta partida a todos os imbecis que se fazem assim rebocar. E são em número respeitável. Independentemente do risco que correm, constituem um perigo e um tormento para qualquer barco que encontrem. À velocidade em que navegam é-lhes impossível evitar os outros. E que sucede? Sucede que a amarra do seu barco se prende ao mastro de outro e vira-o, ou apanha alguma das pessoas que vão a bordo e deita-a à água, ou magoa-a de grande. O melhor processo a seguir é, sem vacilar, agarrar num croque e afastá-los à má cara. De todas as aventuras sucedidas por causa do reboque de barcos, as mais divertidas acontecem quando são raparigas que vão à sirga. Não se faz ideia, senão por experiência própria ... Sirga a preceito requer sempre três raparigas: duas seguram o cabo a a terceira corre de um lado para outro, soltando risadinhas. Em geral começam por, se enrodilhar todas no cabo, que logo se lhes prende às pernas. Têm de se sentar no chão para se desembaraçarem melhor. Mas o cabo trepa-lhes até ao pescoço e correm o risco de morrer enforcadas. Por fim, quando se libertam do teimoso abraço, largam a toda a brida, levando o barco numa veloci dade positivamente perigosa. Percorridos cem metros, estão, é claro, todas três esfalfadas. E, rindo, sentam-se na relva, enquanto o barco foge para o meio do rio, onde a corrente o faz girar sobre si mesmo, antes que haja tempo de reparar no que se passa e de pegar num remo. Só então elas se levantam 100 e dizem muito surpreendidas: - Olhem! Olhem! O barco fugiu para o meio do rio! Puxam então com força alguns minutos; mas em breve uma delas repara que tem a saia a cair e param todas. Imediatamente o barco encalha. Num pulo, quem vai no barco levanta-se para afastar o perigo e grita-lhes que não se detenham. - Hem? Que aconteceu? - perguntam elas. - Não tornem a parar! - berram-lhes os prováveis sinistrados. Não quê? - Não tornem a parar! ... Andem! ... Avancem! ... - Volta atrás, Emília, e vai ver o que é que eles querem - diz uma delas. E a Emília voltou atrás para saber o que eles querem. - O que é que vocês querem? Aconteceu alguma coisa? - Não, está tudo bem; mas andem sempre: não devem parar. - Porquê? - Porque nós não podemos dirigir o barco se vocês param. O barco tem de conservar sempre um pouco de movimento. - Tem de conservar sempre um pouco de quê?

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- Um pouco de movimento, de impulso. Vocês têm de . aguentar sempre o barco em marcha. - Ah!, está bem! Vou repetir-lhes isso. Acha que sabemos rebocar bem? - Sim, sirgam muito bem, mas o que é preciso é não parar. - Não é nada difícil levar um barco à sirga. Julgava que fosse muito pior. - Não, é realmente muito fácil. O que é preciso é seguir sempre. - Já percebi! Faça favor de me dar o meu casaco. Está debaixo da almofada. Lá descobrimos o casaco e damos-lho. Mas vem logo outra que volta atrás para pedir também o dela e damos-lhe o da Maria, que não o quer, e elas tornam a trazê-lo e pedem antes um pente. Passam-se bem uns vinte minutos antes que recomecem a puxar; e logo na primeira volta encontram uma vaca e temos nós que sair do barco para ir enxotar a vaca. Nunca, nunca nos aborrecemos de facto, quando vamos num barco rebocado por amáveis raparigas! ... O Jorge acabou finalmente por desembaraçar o cabo e levou-nos até a represa Penton. Chegados aí, discutimos a questão, importantíssima, do acampamento. Estava decidido dormir essa noite a bordo e, para isso, ou tínhamos de atracar já, ou seguir até Staines. Mas era cedo ainda. O Sol ia muito alto. Resolvemos parar uns cinco quilómetros mais acima, em Runnymead, onde a mata oferecia um abrigo agradável à beira do rio. Mas depois arrependemo-nos de não ter ficado em Penton Hook. Légua ou légua e meia contra a corrente é coisa que não custa nada a fazer pela manhã, mas é tarefa um tanto pesada quando se levou já um dia inteiro a remar. Deixa de se tomar interesse pela paisagem e não há vontade de conversar nem de rir: cada centena de metros que se percorre parece tão comprida como dois quilómetros inteiros. Custa-nos a crer que não, avançamos e convencemo-nos de. que o mapa está errado. Quando nos esfalfámos a correr uma distância que nos parece pelo menos de quinze quilómetros e não avistamos o dique, começamos a recear seriamente que alguém o tenha roubado e fugido com ele ... Ainda me lembro de uma vez em que passeava no Tamisa e me afligi deveras. Ia num barco para Goring, com uma rapariguita minha 102 prima. Começava a fazer-se tarde e nós tínhamos pressa (ela pelo menos) de chegar. Às seis e meia, passámos a comporta de Benson. Começava a anoitecer e a minha companheira mostrava-se inquieta. Declarou que tinha forçosamente de estar em casa à hora do jantar. E eu afirmei que era também esse o meu desejo e tirei da algibeira um mapa para ver a distância a que estávamos do ponto de chegada. Verifiquei que nos faltavam dois quilómetros até Wallingford, que era a próxima represa, e mais algumas centenas de metros até Cleeve. - Ora! Temos muito tempo; antes das sete horas estamos em Wallingford e depois falta-nos pouco. E pus-me a remar energicamente. Pouco depois de passarmos a ponte perguntei à minha companheira se ela já avistava o dique, mas ela respondeu-me que não. Contentei-me em proferir um ah de espanto, e remei com mais força. Passados cinco minutos pedi-lhe que olhasse de novo. - Não-respondeu-me ela-, ainda não vejo nada. - Tem a certeza, minha prima, de ser capaz de reconhecer um dique assim à primeira vista? - perguntei não sem hesitar, receando ofendê-la. Mas a minha pergunta não a ofendeu nada e ela até me propôs que olhasse eu próprio. Larguei os remos para lançar uma vista de olhos no rio, que se estendia na luz crepuscular em linha recta, à nossa frente, numa extensão de quinhentos metros. Não se avistava nem a sombra da sombra dum dique! - Não lhe parece que nos perdemos? - perguntou a minha companheira. Não me parecia possível, mas lembrei que talvez sem dar por isso tivéssemos metido por um dos canais de derivação, que nos levariam direitos às quedas de água ...

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Como esta perspectiva não a acalmasse muito, largou a 103 chorar, dizendo que íamos morrer os dois afogados e que era esse o castigo que merecia por ter vindo passear de barco comigo. O castigo pareceu-me um pouco excessivo, mas a minha prima não era da mesma opinião e esperava que ao menos tivéssemos uma morte rápida. Tentei sossegá-la levando o caso para a brincadeira. Era evidente, disse, que eu não remava tão depressa como julgava, mas que muito breve estaríamos ao pé do dique: e avancei mais quinhentos metros-. Então comecei eu próprio a sentir-me inquieto e consultei novamente o mapa. Lá estava marcada a represa de Wallingford, dois quilómetros abaixo de Benson. O mapa era bom, não havia dúvida, e além disso eu lembrava-me muito bem desse dique: já lá passara duas vezes. Onde estávamos? O que nos acontecera? Começava a crer que tudo aquilo era um pesadelo, um sonho mau, que estava de facto a dormir na minha cama e que de um momento para outro acordaria, ouvindo dizer que já passava das dez. Perguntei a minha prima se-ela julgava que estávamos realmente sonhando e ela disse que ia justamente fazer-me essa mesma pergunta. Invadiu-nos então a ambos essa dúvida: estaríamos de facto a dormir? E, se estávamos a dormir, qual de nós, qual de nós adormecera primeiro? O caso tornava-se pitoresco ... No entanto, eu continuava a remar e nada de avistar o dique. O rio estava cada vez mais sombrio e misterioso na escuridão crescente da noite e as coisas ganhavam um aspecto estranho e sobrenatural. Lembrei-me dos duendes, e das fadas, e dessas feiticeiras terríveis que passam a noite nos rochedos à espera dos viajantes para seduzi-los e afogá-los. Arrependi 104 -me de não ter levado uma vida de maior virtude e de não saber rezar melhor as minhas orações. Estava absorto nestes pensamentos tristes quando ouvi os compassos abençoados do estribilho: «Quanto mais depressa melhor», muito mal tocados num harmónio - e compreendi então que estávamos salvos. - Não admiro em geral o som do harmónio, mas, oh, como essa música nos pareceu a ambos tão bela! Infinitamente mais bela do que a voz de Orfeu, a cítara de Apolo, ou qualquer outro instrumento desse género. Uma melodia celestial, no nosso estado de espírito, não teria servido senão para nos afligir mais. Um cântico emocionante, executado correctamente, tê-lo-íamos tomado pela voz dum fantasma e incitar-nos-ia só a perder toda a esperança. Mas havia qualquer coisa de animador nos acordes do «Quanto mais depressa melhor», desafinados e roufenhos com variações dissonantes ao máximo e tocadas num harmónio estafado! A doce canção aproximou-se e o barco de que emanava esse apelo de coragem chegou junto do nosso. Levava a bordo uma alegre mocidade de provincianos que iam para um passeio ao luar! (Não havia luar, mas disso não tinham eles a culpa.) Nunca vi na minha vida gente tão amável e simpática. Interpelei-os e pedi-lhes que me indicassem o caminho para o dique de Wallingford, que em vão procurava havia duas horas. - O dique de Wallingford! - responderam eles. - Deus o abençoe, meu senhor! Já não existe! Há mais de um ano que o suprimiram! Estão quase a chegar a Cleeve ... Ora vê lá, Bill, isto é de rebentar a rir: um pacato cidadão que procurava o dique de Wallingford! Não tinha pensado nessa hipótese. De boa vontade lhes teria saltado ao pescoço tal era a minha alegria; mas a corrente 105 nesse sítio era muito forte para me permitir tais manifestações e tive de me contentar com simples palavras de gratidão que me pareceram bem frias. Agradecemos-lhes umas poucas de vezes, acrescentando que a noite estava linda e que desejávamos que dessem um belo passeio. Creio mesmo que até os convidei todos para passar uma semana em minha casa e a priminha disse-lhes que a mãe dela havia de gostar muito de os conhecer. Cantamos todos juntos o Coro dos soldados do Fausto e, no fim de contas, chegámos a casa a horas de jantar. CAPÍTULO X

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Já começava também a acreditar, como Harris, que a represa de Bell Weir desaparecera igualmente. Jorge tinha-nos rebocado até Staines. Daí para diante fomos nós substituí-lo, mas parecia-nos que levávamos cinquenta toneladas a reboque e que tínhamos andado pelo menos cinquenta quilómetros. Só às sete e meia é que chegámos ao canal superior. Embarcámos todos de novo e continuámos o caminho a remos, procurando na margem esquerda um sítio bom para atracar. A nossa primeira ideia era ficar na ilha da Magna Carta, esse canto delicioso onde o rio serpeia através do vale verdejante, e acampar numa das múltiplas e pitorescas enseadas que recortam essa terra minúscula. Mas, realmente, não nos sentíamos já tão interessados pelo pitoresco como no princípio do dia. O pequeno espaço que fica entre uma bateira de carvão e uma fábrica de gás seria o suficiente para nos contentar naquela noite. Quanto à paisagem, nem a olhávamos! O 106 que nós queríamos era unicamente jantar e dormir. Apesar de tudo, parámos na ponta da ilha a que chamam o cabo do Piquenique, e desembarcámos num lindo cantinho, sob um enorme ulmeiro de raízes salientes a que prendemos o barco. Contávamos jantar então - não tínhamos tomado chá para poupar tempo - mas Jorge dissuadiu-nos disso. Achava que era melhor tratar de armar a barraca antes que anoitecesse completamente, para podermos ver o que estávamos a fazer. Acabada essa tarefa, poderíamos ir jantar com o espírito sossegado. A instalação da barraca deu-nos mais trabalho do que supúnhamos. Em teoria, tudo é muito simples. Pega-se em cinco semicírculos de ferro, semelhantes a gigantescos arcos de arame, acertam-se sobre o barco, cobrem-se de lona, e prende-se a lona ao chão. Pensávamos nós que isso devia levar uns dez minutos, quanto muito. Estávamos longe de calcular bem. Pegámos nos arcos para os enfiar nos encaixes que lhes eram destinados. Ninguém imagina que isto possa ser um trabalho perigoso. Mas quando o recordo, vejo afinal que só por milagre estamos ainda vivos! Aquilo não eram arcos! Eram uns verdadeiros demónios! Começaram por se recusar terminantemente a entrar nos encaixes. Tivemos de metê-los à força, à custa de pancadas com os pés e com a fateixa. Depois, mal os tínhamos enterrado, descobrimos que não correspondiam aos encaixes e tivemos de tornar a tira-los. Mas os teimosos não queriam sair! Por fim, depois de termos lutado, dois homens contra um arco, durante cinco minutos, resolveram saltar de repente, na intenção evidente de nos lançarem à água para nos afogar. Eram articulados pelo meio e, quando nos distraíamos, beliscavam com as suas dobradiças as partes mais sensíveis do corpo; enquanto empunhávamos um dos 107 lados do arco, tentando convencê-lo a cumprir o seu dever, a outra metade vinha pelo lado de trás e, à traição, batia-nos na cabeça. Um inferno! Conseguimos finalmente segura-los. Só faltava pôr a lona. Jorge desenrolou-a e prendeu uma das pontas na parte da frente do barco. Harris ficou ao meio para a passar das mãos do Jorge para as minhas, pois eu ficara na parte de trás para recebê-la. Levou um certo tempo antes que ela me chegasse às mãos. Jorge desempenhava o seu papel correctamente, mas Harris, para quem este trabalho era novidade, só fez asneiras. Como ele se arranjou não sei, e nunca Harris foi capaz de se explicar a tal respeito. Mas, por qualquer processo misterioso, conseguiu, depois de dez minutos de esforços sobre-humanos, enrodilhar-se todo na lona. E estava tão bem embrulhado, tão bem enrodilhado, que não havia modo de desenvencilhar-se. É claro que se fartou de espernear e esbracejar tentando recuperar a sua liberdade (segundo o direito imprescindível de todo o bom inglês) e ao mesmo tempo (soube isto mais tarde) espancava Jorge. Então Jorge, insultando Harris, pôs-se também a dar socos à toa e ficou igualmente envolvido e preso na lona. Eu, como ignorava tudo daquelas manobras, não reparei a princípio no que se passava. Tinham-me dito que ficasse ali quieto à espera que me passassem a lona, e eu lá fiquei, acom panhado por Montmorency, ambos imóveis como estátuas. Nós

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bem notávamos que a lona saltava e se agitava com violência. Pensámos, porém, que isso fazia parte das manobras necessárias e não nos atrevíamos a intervir. Ouviam-se, vindos de sob a lona, muitas pragas e gritos. Mas era normal atribuí-los a legítimo desabafo. Resolvemos, pois, esperar que as coisas corressem um pouco melhor para irmos lá meter o nosso bedelho. As complicações, todavia, 108 eram cada vez maiores. Por fim apareceu, acima da borda do barco, de cabelos em pé, a cabeça do Jorge, que me disse: - Vem daí dar-nos uma ajuda, meu grande madraço! Ficas parado como um boneco de palha enquanto nós estamos aqui a morrer abafados. Não vês nada, cabeça oca! Nunca fui capaz de resistir a um apelo de socorro. Corri a liberta-los, e já era tempo, pois Harris começava a ficar com a cara roxa. Levámos ainda uma meia hora de trabalho árduo para conseguir pôr a barraca de pé. Depois arrumámo-la e fomos jantar. Pusemos a chaleira a aquecer na popa do barco e retiramo-nos todos para a proa, fingindo que não víamos e que estávamos muito ocupados a tirar do cesto todos os outros acessórios. Só deste modo se consegue, no Tamisa, que uma chaleira se resolva a ferver. Se ela percebe que se deseja com impaciência que ela ferva, nunca mais se resolve a isso. Temos de nos afastar e começar a nossa refeição como se, não quiséssemos tomar chá. Nem mesmo devemos olhar para o lado em que a chaleira está. Só assim ouviremos, momentos depois, a água ferver em cachão, ansiosa por se transformar em chá. Também é um bom sistema, quando se está com muita pressa, dizer uns aos outros em voz bem alta que não se quer chá. Aproximamo-nos da chaleira de modo que ela possa ou vir-nos, gritando muito alto: -Eu não quero chá. E tu, Jorge?» Ao que Jorge logo responde: «Não, eu não gosto de chá. Vamos beber antes uma limonada. O chá é muito indigesto.>> Imediatamente a chaleira transborda e apaga o fogareiro. Graças a esta astúcia inocente, mal tínhamos acabado de pôr a mesa já o chá estava pronto. Acendendo a lanterna, sentámo-nos no chão, de pernas 109 cruzadas, para jantar. E estávamos bem necessitados de comer! Durante trinta e cinco minutos não se ouviu no nosso barco outro barulho que não fosse o tilintar de facas e de loiça e o ruído incessante de quatro bocas a mastigar. Passados trinta e cinco minutos Harris disse: «Ah! » - e mudou de posição. Passados mais cinco minutos, foi Jorge quem disse: Ah!» e afastou o prato para longe. Passados mais três minutos Montmorency, pela primeira vez desde que saíra de casa, mostrou-se contente: rebolou-se no chão de patas para o ar. Depois coube-me a vez de dar um «Ah» e deitando a cabeça para trás bati com ela contra um dos arcos: mas não me importei, nem praguejei. Meu Deus!, como nos sentimos bem quando estamos saciados! Como nos sentimos em paz com a nossa consciência e com os nossos semelhantes! Aqueles que já experimentaram a sensação deliciosa de praticar o bem asseguram-nos que uma alma pura dá uma grande felicidade e contentamento. Mas um estômago bem cheio faz o mesmo efeito e é coisa muito mais fácil de alcançar. Invade-nos um sentimento de generosidade que tudo perdoa, se a refeição foi copiosa e se se digere bem. Adeja em nós um espírito nobre e o coração irradia benevolência. É muito estranho este domínio exercido pelos nossos órgãos digestivos sobre o intelecto. Só trabalhamos, só pensamos, se o estômago o permite. Dita-nos os nossos sentimentos, as nossas paixões. Depois duns ovos com toucinho, murmura: «Trabalha!» Depois de um bife regado com cerveja, decreta: «Dorme!» Depois de uma chávena de chá (duas colherinhas para cada chávena e não deixar as folhas em infusão mais de dois ou três minutos), ordena ao cérebro: «Vamos, de pé, e patenteia a tua energia! Mostra-te eloquente, profundo, emocionante, penetra com um lúcido olhar a natureza e a vida.

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Alarga as brancas asas da imaginação palpitante que domina de alto o turbilhão do mundo; ergue-te, mente divina, e avança nas longas avenidas de astros cintilantes, que levam às portas da Eternidade!» Depois duns pãezinhos bem quentes: «Mostra-te rude e sem inteligência como o gado que pasta nos campos; sê um animal de olhar vago, que nenhum deslize de imaginação ilumina, nem a esperança, nem o medo, nem o amor conduzem!>> E depois de uma dose razoável de conhaque, pronuncia: «Vamos, anda, louco, agita-te, dá cabriolas, faz rir os teus irmãos, divaga e espalha palavras sem nexo! Demonstra que fantoche impotente é o pobre ser humano, cuja inteligência e vontade se afogaram, como gatos recém-nascidos, em dois dedos de álcool! Não somos mais do que autênticos e humildes escravos do nosso estômago. É inútil a aspiração de seguir o caminho da rectidão e da moralidade por pedregosos atalhos, meus ami gos: observem cuidadosamente o vosso estômago e regulem o seu regime com tacto. E então a serenidade da virtude há-de reinar no vosso coração, serão bons cidadãos, maridos amáveis, pais carinhosos, homens piedosos e nobres. Antes do jantar, Harris, Jorge e eu estávamos irritados, rabugentos e peguilhentos; depois do jantar, transbordávamos de mútua cordialidade, que se reflectia até no próprio cão. Amávamo-nos uns aos outros; amávamos o mundo intei ro. Harris, ao levantar-se, pisou os pés de Jorge. Se isto acontecesse antes do jantar, Jorge teria desejado a Harris, neste mundo e no outro, coisas capazes de fazer tremer o homem mais valente. Mas nessa ocasião Jorge observou, apenas: - Devagar, meu velho: toma cuidado com os meus calos. E Harris, em vez de gritar, com modo desagradável, que era sempre difícil não encontrar debaixo dos nossos os pés de Jorge, e de acrescentar que devia ser terminantemente proibi da ao Jorge a entrada num barco de dimensões normais em vista do comprimento dos seus pés, e que ele talvez fizesse melhor se os deixasse ficar pendurados do lado de fora do barco (como decerto teria feito antes de jantar), respondeu sòmente: «Oh! desculpa, velho amigo; espero não te ter magoado!» E Jorge respondeu: «Não, nada», acrescentando que a culpa era dele; Harris protestou que, pelo contrário, a culpa sua. Realmente encantador ouvi-los! Acendendo os nossos cachimbos e conversando, ficámo-nos a contemplar a noite cintilante de estrelas. - Ah! - disse Jorge. - Porque não havemos de poder viver sempre como neste momento, longe do mundo, dos seus pecados e tentações, levando uma vida frugal e pacífica e espalhando o bem à nossa volta? Repliquei que era esse precisamente o género de vida a que sempre aspirara e falámos então na possibilidade de fugirmos os quatro para uma ilha deserta, onde viveríamos nos bosques. Harris objectou que as ilhas desertas tinham sempre o inconveniente de ser excessivamente húmidas. Mas Jorge respondeu que, fazendo-lhe uma drenagem bem feita, desapareceria esse inconveniente. Discutindo a questão da drenagem, Jorge lembrou-se de uma aventura extraordinária que em tempos acontecera a seu pai. Andava a viajar com um amigo no País de Gales e, uma noite, reuniram-se para passar o serão numa estalagem em que se tinham alojado, ele e outros viajantes. O serão, que foi muito alegre, prolongou-se até uma hora era avançada. Quando foram para a cama, o pai de Jorge - que era então um rapaz muito novo - e o seu amigo estavam muito bem dispostos. Dormiram ambos no mesmo quarto, cada um na sua cama. Pegaram no castiçal e subiram mas, ao entrar no quarto, apagou-se-lhes a vela: tiveram de se despir às escuras e procurar as camas às apalpadelas. Mas em vez de se meter cada um em sua cama, como tencionavam, sem o saberem meteram-se ambos na mesma, um com a cabeça para a cabeceira e outro para os pés. Passado um momento de silêncio o pai de Jorge chamou o amigo: - Joe! - O que é, Tom? - respondeu da outra ponta da cama a voz de Joe.

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- Ouve lá, está alguém aqui na minha cama - continuou o pai de Jorge -, alguém deitado com os pés em cima do meu travesseiro. - Mas é extraordinário, Tom - replicou o outro. - Macacos me mordam se não está também alguém aqui na minha cama. - Que havemos de fazer? - perguntou o pai de Jorge. - Ora essa, pôr os atrevidos daqui para fora e já - respondeu Joe. - Apoiado! - disse o pai de Jorge. Houve uma luta rápida, o barulho de dois corpos pesados caindo no chão e uma voz dolente chamando: - Eh! Tom! - O que é? - Conseguiste? - Olha, para dizer a verdade, foi o outro que me pôs fora a mim. - O meu também! Olha lá, parece-me que não gosto muito desta hospedaria. E tu? 113 - Como se chamava essa estalagem? - perguntou Harris. - O Porco e o Apito - respondeu Jorge. - Porquê? - Ah! não, então não é a mesma. - disse Harris. - Que queres dizer com isso? - É curioso - murmurou Harris - mas aconteceu essa mesma aventura ao meu próprio pai, numa hospedaria de aldeia. Ouvi-lhe muitas vezes contar essa história. Pensei que talvez fosse a mesma hospedaria. Nessa noite deitámo-nos às dez horas. Como estava muito cansado esperava dormir bem, mas enganei-me. Em geral, dispo-me e deito a cabeça na almofada; imediatamente ba tem-me à porta prevenindo-me de que são oito e meia. Mas nessa noite tudo me era desfavorável: a diferença da cama, a dureza do barco, a posição incómoda - tinha a cabeça debaixo dum banco e os pés debaixo de outro -, o barulho da água batendo no costado, e o ruído do vento nas folhas das árvores perturbavam-me e não me deixaram dormir à vontade. Consegui no entanto passar pelo sono e então uma parte do barco - que parecia ter crescido durante a noite, pois não era tão grande à partida, e na manhã seguinte a parte a mais tinha desaparecido - pôs-se a penetrar na minha espinha. Apesar desta tortura continuei a dormir, e sonhei que tinha engolido uma moeda de ouro, e que tentavam tirá-la, fazendo-me com uma broca um buraco nas costas. O processo pareceu-me desleal. Assegurei aos meus carrascos que lhes devia realmente essa soma e que havia de pagá-la no fim do mês. Mas eles não me deram ouvidos; responderam-me que queriam recebê-la imediatamente, para não deixar acumular os juros. Não tardou que eu me zangasse e lhes dissesse todo o mal que pensava deles. Nessa altura enterravam a broca de tal modo que acordei com a força da dor. Não se respirava bem dentro do barco, o que me provocou uma enxaqueca. E senti vontade de andar um pouco sob a doce protecção da noite. Enfiei as primeiras peças de roupa que me vieram à mão - umas eram minhas, outras de Jorge e outras de Harris - e saltei para a margem. Estava uma noite magnífica. A Lua desaparecera no horizonte, e a Terra dialogava só com as estrelas. O silêncio e a paz infinitas davam a ilusão de que, enquanto os homens dormiam, os astros conversavam com a Terra sua irmã - falando de mistérios grandiosos em voz grave e profunda de mais para ser perceptível aos nossos sentidos rudimentares. Inspiram-nos com a sua luz fria e pura um respeitoso terror, essas estrelas longínquas! Somos semelhantes às crianças a quem os pequeninos pés levaram à escuridão dum templo cuja divindade lhes ensinaram a adorar, mas que não conhecem. Como elas, sobre a penumbra da abóbada sombria, erguemos o olhar, esperando e receando ao mesmo tempo divisar os espectáculos interditos escondidos na sua profundeza Apesar de tudo, difunde em nós consolação e força, a noite magnífica! Na sua presença sublime as nossas pequenas contrariedades dissipam-se. O dia foi tão cheio de pressa e de cuidados, os nossos corações viveram tão cheios de maus pensamentos e de amarguras, o mundo pareceu-nos tão duro e injusto ...

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Mas a noite imensa, qual mãe amorável, poisa a meiga mão sobre o nosso peito febril e inclina-se sobre o nosso rosto inundado de lágrimas. Sorrimos e, ainda que tudo se cale, compreendemos a muda linguagem dos astros. A noite bafeja-nos o rosto afogueado e a nossa dor desvanece-se. Por vezes, quando a mágoa é muito aguda, nem uma palavra de queixa nos pode sair dos lábios, perante o silêncio nocturno. Ele possui um coração cheio de piedade e só quer mi 115 norar o nosso mal. Toma carinhosamente as nossas mãos nas suas. E este mundo, tão pequeno, mais pequeno se torna e mais longínquo nos parece. Levados nas asas sombrias da noite, chegamos junto duma presença mais grandiosa do que a sua, e na luz maravilhosa dessa presença sublime abre-se sob o nosso olhar a vida humana, como se fora um livro, e então compreendemos que a tristeza e a dor são apenas enviadas de Deus. Só aqueles que sentiram os espinhos cruciantes do sofrimento, só a esses é dado ver essa luz maravilhosa; mas, quando voltam de novo ao mundo, não lhes é permitido descrevê-la, nem evocar o mistério que por momentos penetraram. Havia uma vez, em tempos que já lá vão, uma companhia de bons cavaleiros que viajava num país distante. A estrada que seguiam levou-os a uma espessa floresta, onde os arbus tos espinhosos e muito densos rasgavam, com os ramos ásperos, o corpo de quem ali se perdia. As árvores desse bosque tinham uma folhagem muito densa e sombria. Nenhum raio de luz penetrava entre os ramos para iluminar aquela lúgubre tristeza. Quando os cavaleiros atravessavam a negra floresta, um deles afastou-se dos seus companheiros e perdeu-se; os outros, muito tristes, continuaram o seu caminho, chorando-o como se tivesse morrido. Mas quando chegaram ao lindo castelo que era o fim daquela viagem, passaram aí longos dias de festas e divertimentos. Uma noite em que estavam todos alegremente reunidos na imensa sala, conversando em frente do fogão, onde ardiam achas enormes, e bebendo à saúde das damas, o companheiro que eles julgavam perdido entrou e cumprimentou-os. Trazia o fato esfarrapado como o de um mendigo e a sua carne delicada apresentava muitos e horríveis ferimentos. Mas no seu rosto brilhava umá alegria infinita. Perguntaram-lhe o que lhe tinha acontecido e ele contou como, depois de ter errado na floresta muitos dias e muitas noites, se deitara aguardando a morte. E então, quando se sentia já quase moribundo - oh! maravilha! -, do fundo da terrível escuridão viu avançar uma radiosa e majestosa rapariga que', pegando-lhe na mão, o conduziu, por caminhos ocultos e desconhecidos dos homens, a um lugar onde brilhara de súbito uma luz tão resplandecente que ofuscaria a luz do dia como o sol ofusca a luz dos archotes. Nessa luz maravilhosa o nosso cavaleiro viu aparecer, como em sonho, uma visão tão bela e magnífica que, sem de mais nada se lembrar, ficara preso no êxtase de tão profunda alegria, que nem o abismo do mar o envolveria de igual modo ... A visão desvaneceu-se e, ajoelhando-se, o cavaleiro agradeceu ao seu anjo bom, que o tinha feito enganar-se no caminho, só para lhe mostrar a visão deliciosa que se escondia naquela floresta sinistra. E o nome da floresta sombria era a dor. Mas, da visão que o bom cavaleiro teve, não nos é permitido balbuciar sequer o nome CAPÍTULO XI Na manhã seguinte, Jorge e eu acordámos ambos às seis horas em ponto. Voltámo-nos ambos para o outro lado, na esperança de tornar a adormecer, mas em vão. Se houvesse qualquer motivo que nos obrigasse a ficar acordados, a levantarmo-nos e vestirmo-nos imediatamente, decerto, depois de olhar para o relógio, teríamos ficado a dormir dum sono só até às dez horas. Mas, como não tínhamos necessidade de nos levantar antes de, pelo menos, duas horas, e por absurdo tínhamos acordado tão cedo, era fatal que o espírito de contradição, inerente a todas as gentes e coisas em geral, nos obrigaria, sob pena de morte, a não ficar deitados nem um minuto mais.

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Tinha-se dado um caso idêntico com Jorge, mas de consequências mais graves, uns dezoito meses antes, quando ele vivia em casa de uma tal Sr.a Gippings. Um dia o relógio dele avariou-se e parou por volta das oito e um quarto. Na ocasião Jorge não reparou nisso e quando à noite se foi deitar, esquecendo-se de dar corda ao relógio, agarrou e pendurou-o sobre o travesseiro, como de costume, sem mesmo olhar para ele. Isto passava-se no inverno, na época dos dias curtos, e, além disso, numa semana de grandes nevoeiros, de modo que na manhã seguinte, quando Jorge acordou, não pôde saber se era cedo ou tarde. Levantou o braço para pegar no relógio e viu que marcava oito e um quarto. - Valham-me todos os santos e anjos do céu! - exclamou Jorge. - E eu que tenho de estar às nove horas no Banco! Porque é que não me acordaram? Mas que maçada! E, atirando o relógio para cima da cama, num salto levantou-se, tomou um duche frio, vestiu-se, fez a barba com água também fria por não ter tempo para a aquecer e, sempre a correr, olhou para o relógio. Talvez em consequência do abalo que sofreu quando o Jorge o atirou para cima da cama, ou por qualquer outro motivo, o relógio recomeçara a andar; marcava então nove menos vinte. Pegando no relógio, Jorge largou a correr pela escada abaixo. Na casa de jantar, tudo era escuridão e silêncio: nem lume nem almoço. Jorge viu nisso um descuido imperdoável da parte da Sr.a Gippings e resolveu dizer-lhe duas palavras a esse respeito quando voltasse à noite. Num salto agarrou o chapéu, o sobretudo e o chapéu de chuva, e precipitou-se para a porta da rua. Esta ainda estava fechada à chave. Jorge pensou logo que a Sr.a Gippings era uma velha madraça, e achando extraordinário que as pessoas não fossem capazes de se levantar a horas razoáveis, abriu a porta e saiu de corrida. Depois de ter andado uns quinhentos metros, começou a achar estranho ver tão pouca gente na rua e as lojas todas fechadas. Estava realmente uma manhã muito escura e de muito nevoeiro, mas isso não era razão para o comércio paralisar assim. Pois se ele ia para o seu trabalho, por que razão os outros ficariam na cama, só por causa do nevoeiro espesso? Chegou por fim a Holbom. Nem uma janela aberta, nem um ónibus em circulação! Só se viam na rua três homens, um polícia, outro a guiar uma carroça cheia de couves, e o cocheiro de um trem de aspecto miserável. Jorge puxou do relógio e viu que eram nove menos cinco! Parou, desconfiado de que estava doente. Apalpou o corpo, os braços e as pernas. Tudo óptimo! De relógio na mão, aproximou-se do polícia e perguntou-lhe se ele sabia que horas eram. - Que horas são? - volveu o polícia, fitando o Jorge com evidente malevolência. - Preste atenção que as ouvirá soar. Jorge pôs-se à escuta e um relógio na vizinhança logo o elucidou. - Mas o relógio deu só três badaladas! - disse Jorge em tom escandalizado, logo que o relógio se calou. - Então, e quantas queria que ele batesse? - retorquiu o agente. - Ora essa, nove - disse Jorge, mostrando-lhe o seu relógio. - Sabe onde mora? - perguntou-lhe com severidade o agente da ordem pública. Jorge reflectiu um momento e deu a sua direcção. - Ah!, sim, mora aí, não é verdade? - replicou o polícia. - Pois, então, siga o meu conselho: volte tranquilamente para casa e leve o seu relógio. E trate de não tornar a meter-se comigo. Jorge voltou para casa muito meditativo e meteu-se no quarto. Resolveu despir-se e tornar a deitar-se, mas a perspectiva de ter se se vestir e lavar de novo fê-lo desistir da ideia e julgou preferível estender-se no sofá para dormir. Mas não conseguiu adormecer. Nunca se sentira tão esperto. Acendeu a luz, foi buscar o jogo de xadrez, e pôs-se a jogar uma partida sozinho. Mas esta distracção não o divertia: era muito monótono. Tentou ler um bocado. Mas foi-lhe igualmente impossível interessar-se pelo livro que lia. Então resolveu vestir o sobretudo e dar uma volta. As ruas estavam horrivelmente solitárias e lúgubres. Todos os polícias que encontrava o olhavam com desconfiança mal disfarçada, dirigiam sobre ele a luz das suas lanternas e seguiam-no com o olhar.

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Esta insistência policial acabou por impressiona-lo tanto, que tinha quase a sensação de que praticara algum acto criminoso; e deslizava furtivamente pelas ruas estreitas, esconden do-se na sombra das portas quando ouvia aproximarem-se os passos cadenciados do polícia de giro. Naturalmente, este procedimento ainda o tornou mais suspeito aos representantes da força pública, que o lobrigavam sempre e lhe perguntavam o que fazia ali; e quando lhes respondia «Nada», acrescentando que andava simplesmente a dar uma volta (eram então quatro horas da manhã), todos eles se mostravam incrédulos. Dois polícias à paisana acompanharam-no a casa para verificar se morava realmente onde lhes tinha dito. E depois de o verem meter a chave à fechadura, e 120 entrar, foram postar-se no passeio em frente para vigiar a casa. Quando chegou ao quarto pensou em acender o lume e fazer o seu almoço, só para passar o tempo; mas era-lhe impossível tocar no quer que fosse, desde a pá de carvão até à colher de chá, sem a deixar cair ou tropeçar. Fazia um tal alarido, que receava acordar a Sra.a Gippings e se ela, supondo que eram ladrões, abrisse a janela para chamar a polícia, o que sucederia? Logo entravam os dois agentes de segurança que lhe punham algemas e o levavam para o segredo. O seu nervosismo atingia proporções imensas: via-se já num tribunal, esforçando-se por explicar o seu caso ao juiz, mas ninguém o acreditava, e no fim era condenado a vinte anos de trabalhos forçados, o que dava à sua velha mãe um desgosto mortal. Desistiu portanto de preparar o almoço e, embrulhando-se no sobretudo, deixou-se ficar deitado no sofá à espera que a Sr.a Gippings aparecesse às sete e meia. E jurou que nunca mais tornaria a levantar-se cedo de mais! Enquanto o Jorge me contava esta história verídica, estávamos ambos embrulhados nas nossas mantas. Quando acabou, com a ajuda de um remo, tratei de acordar Harris. A terceira tentativa foi eficaz; voltou-se para o lado, dizendo que ia já levantar-se e calçar os sapatos citadinos. Mas, manejando a fateixa, depressa lhe fizemos compreender onde estava. Levantando-se de repente atirou com o Montmorency, que dormia um sono regalado em cima do peito dele, para a outra extremidade do barco. O nosso plano, na véspera à noite, era de nos levantarmos cedo, de tirar a lona do barco, e de saltar, entre gritos de alegria, para dentro da água, entregando-nos às delícias da natação. Mas quando veio a manhã, a perspectiva não era tão tentadora. A temperatura da água parecia de arrepiar e o vento estava glacial. - Então quem é que vai primeiro? - disse por fim Harris. O convite não tentou ninguém. Jorge resolveu a questão, voltando para o barco, e calçou as meias. Montmórency soltou um uivo involuntário, como se a simples ideia de tomar banho o apavorasse; e Harris, sob pretexto de que era depois muito difícil tornar a subir para o barco, tratou de procurar as calças para as vestir. Era desagradável recuar, mas realmente o mergulho não me despertava o mínimo entusiasmo. Podia às vezes haver ramos de árvores ou ervas no fundo do rio. Resolvi portanto ir até à beira da água e borrifar-me, simplesmente. Peguei numa toalha, saltei para a margem, e segui até um ramo de árvore que estava meio dentro de água. A água estava pavorosamente fria. O vento cortava como se fosse o gume duma faca. Perdi toda a vontade de me borrifar com,água. Preferia regressar ao barco e vestir-me. Nessa ideia dei meia volta, mas o idiota do ramo partiu-se, e caí, sem largar a toalha, dando um formidável mergulho. Subi à tona já no meio do rio e com dois ou três litros de água do Tamisa dentro do estômago. Quando voltei à superfície ouvi Harris a dizer ao Jorge: - Com mil bombas! O valente do Jerome sempre lá foi! Nunca julguei que tivesse tanta coragem. E tu? - Está boa a água? - gritou-me, Jorge. - Deliciosa! - bufei eu. - Vocês sempre são uns maricas! Eu não me consolava se não desse este mergulho. Venham experimentar! Basta um pouco de boa vontade! Mas não consegui, convencê-los.

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Nessa manhã, enquanto nos vestíamos, houve um incidente muito divertido. Quando voltei para o barco ia cheio de frio e, na precipitação de me vestir, deixei cair a camisa à á 122 gua. Jorge largou a rir e eu fiquei furioso. Não me parecia o caso muito engraçado, mas quando lhe disse isto, Jorge riu-se ainda mais. Por fim, perdi a paciência, e chamei-lhe, porque ele o merecia, estúpido e imbecil; mas Jorge ria cada vez mais. Então, no momento em que consegui apanhar a camisa, reparei que por engano tinha pegado na camisa do Jorge e não na minha. Nesse momento compreendi o que havia de cómico na aventura e pus-me também a rir. Quanto mais olhava, ora para a camisa encharcada, ora para o Jorge, que se rebolava a rir, mais eu ria também. E ri tanto que deixei cair outra vez a camisa dentro de água. - Então ... Então não vais ... apanha-la? - ofegou Jorge entre duas gargalhadas. Ria tanto, que não pude responder-lhe logo, mas, por fim, consegui dizer-lhe entre dois ataques de riso: - Não é a minha camisa, é a tua! Nunca vi uma expressão humana mudar tão bruscamente da alegria para a indignação. - O quê! - berrou ele levantando-se num pulo. - Meu grande idiota! Não podias tomar cuidado! Porque é que não vais para a margem vestir-te? O teu lugar não é dentro do barco! Passa-me a fateixa. Tentei fazer-lhe ver o lado divertido da aventura, mas não consegui. Jorge é às vezes muito lento de compreensão ... Harris ofereceu-se para cozinhar uns ovos mexidos destinados ao pequeno almoço, afirmando que estava prático no assunto, pois muitas vezes, em piqueniques a bordo dos iates em que viajara, tinha feito ovos mexidos. Tornara-se célebre essa sua habilidade. Todo aquele que provava os seus ovos mexidos, era sabido que recusava qualquer outra comida, e antes queria morrer à fome do que provar outro prato. Crescia-nos a água na boca só de o ouvir. Demos-lhe o 123 fogareiro, a frigideira e todos os ovos que não se tinham esborrachado dentro do cesto, e pedimos-lhe que tratasse do almoço. Teve uma certa dificuldade em partir os ovos - ou antes, em colocá-los dentro da frigideira depois de partidos, em não deixar que eles se entornassem no fato e lhe escorregassem pelas mangas dentro. Por fim lá pôs uma boa meia dúzia de ovos dentro da frigideira, acocorando-se junto do fogareiro para os mexer com um garfo. Tanto quanto o Jorge e eu podíamos apreciar, era realmente um trabalho extenuante. De cada vez que o operador se chegava à frigideira queimava-se e, furioso, largava tudo, corria em roda do fogareiro, dando estalos com os dedos e praguejando furiosamente. Quando Jorge e eu olhávamos, víamo-lo sempre aos pulos e aos gritos. Julgámos a princípio que tais manigâncias faziam parte integrante dos ritos culinários. Ignorando o que eram ovos mexidos, nós imaginávamos que devia tratar-se de qualquer prato dos peles-vermelhas ou dos habitantes da Polinésia, cujo preparo exigia danças e feiti ços particulares. Montmorency aventurou-se uma vez a ir lá meter o nariz. Mas a gordura quente espirrou da frigideira e queimou-o, e o cão pôs-se também aos saltos e a resmungar. Foi uma das operações mais curiosas e interessantes a que tenho assistido. Jorge e eu ficámos desolados que tão depressa acabasse. o resultado não correspondeu de qualquer modo às promessas maravilhosas de Harris. Pareceu-nos ínfimo demais para tanto trabalho. Harris tinha deitado seis ovos dentro da frigideira e apresentou-nos no fim uma massa amarela, queimada e bem pouco apetitosa. Harris deitou logo as culpas para a frigideira: teria sido bem sucedido se tivesse uma caçarola e um fogareiro de gás! 124

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Decidimos então não repetir a experiência sem ter à mão os utensílios necessários. Quando acabámos de almoçar, o sol estava quente, o vento caíra, e a manhã estava linda. Nada na paisagem nos fazia lembrar que vivíamos no século XIX. Olhando o rio, que brilhava ao sol matinal, quase nos convencíamos de que se tinham apagado os séculos que nos separavam da manhã sempre memorável de Junho de 1215, e que nós, ainda os milicianos da velha Inglaterra, vestidos do rude tecido caseiro e de punhal à cinta, esperávamos realizar essa prodigiosa página da história, cujo sentido o povo só devia entender quatrocentos anos mais tarde por intermédio de Olivier Cromwell, que o estudaria a fundo. Uma linda manhã de verão, clara, calma e serena. Mas no ar passava uma emoção precursora. O rei João dormiu em Duncroft Hall, e na pequena vila Staines soara na véspera o tilintar das armas, os passos dos grandes cavalos de batalha, as ordens dos chefes, pragas terríveis e gracejos grosseiros dos archeiros ferozes, dos alabardeiros e dos lanceiros de estranha linguagem. Chegaram tropas de cavaleiros e de senhores da corte, com os seus lindos fatos cobertos do pó da viagem. Toda a noite, as portas dos tímidos burgueses tiveram de se abrir apressadas para dar entrada a esquadrões de velhos soldados brutais que exigiam mesa e sustento, e sustento do melhor que houvesse, quando não, ai da casa e dos seus habitantes! Pois, nestes tempos tempestuosos, a espada é juiz e testemunha, queixoso e executante, e paga o que leva, poupando, se assim lhe apetecer, aqueles a quem despoja. Em volta da fogueira, que arde na praça do mercado, reúnem-se os barões. Comem e bebem com avidez, e gritam em voz alta canções alegres, jogam e discutem, prolongando-se o serão pela noite adiante. A claridade do lume projecta som 125 bras grotescas sobre os feixes de armas de formas assustadoras. As crianças da aldeia rondam em volta das armas e admiram-nas. E, nas proximidades das tabernas de má fama, vêem-se as robustas camponesas conversando com os joviais soldados, tão diferentes dos camponeses da sua aldeia, que, desprezados, se mantêm a distância, com um sorriso amarelo nas fisionomias alvares. Brilham ao longe as luzes de outras fogueiras, que revelam, aqui, o séquito numeroso de qualquer senhor nobre, e, além, os mercenários franceses do traidor rei João, semelhantes aos lobos que se escondem e já farejam nos arredores da vila. Assim, com uma sentinela em cada rua sombria e o brilho das almenaras em cada ponto alto, a noite passou, e sobre o lindo vale do milenário Tamisa ergueu-se a manhã do grande dia que havia de influir poderosamente no destino dos séculos vindouros. Logo de madrugada, na ilha que fica do lado de baixo, exactamente no sítio onde estamos hoje, elevou-se o vasto clamor de numerosos operários. Constrói-se o grande pavilhão, cujas pranchas tinham vindo na noite antecedente, e os carpinteiros atarefados pregam as fileiras de bancadas, enquanto os aprendizes da cidade de Londres estendem sobre elas os tecidos de seda multicolor e os panos de ouro e prata. Agora, atenção! Ao longe, na estrada de Staines que acompanha o rio nas suas curvas, avançam, rindo e conversando com as suas fortes vozes guturais, uma dúzia de homens de armas - homens do séquito dos barões -, que param uma centena de metros mais acima na margem oposta e esperam empunhando as armas. E assim, hora a hora, avançam na estrada novos destacamentos e novos grupos de homens armados, em cujos capacetes e couraças refulgem os raios oblíquos do sol, enquanto es trada fora brilham aços cintilantes e os arreios de nervosos 126 cavalos. Cavaleiros correm de um lado para outro dando ordens rápidas. As bandeiras ondulam brandamente à aragem tépida; e, por vezes, percorre as fileiras um rumor mais intenso e as tropas afastam-se para abrir caminho a algum fidalgo que passa, montado no seu cavalo, rodeado da sua guarda e de muitos nobres, e que vai tomar lugar à frente dos servos e vassalos. Na encosta de Coopers's Hill, mesmo em frente, reúnem-se os rústicos embasbacados e os curiosos da,cidade que acorreram a Staines.

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Ninguém sabe ao certo qual é o motivo de todo este rebuliço, mas cada um espalha uma versão diferente do grande acontecimento que vai realizar-se: uns dizem que desse dia há-de resultar grande bem para toda a gente; mas os velhos, incrédulos, abanam a cabeça, pois já ouviram muitas profecias deste género. Até Staines o rio está todo coberto de barcos, canoas, minúsculas pirogas - mas estas começam a passar de moda, são usadas apenas pelos mais pobres. No sítio em que viria a construir-se a linda represa de Weir Bell, remadores teimosos levaram aquelas embarcações, que se aproximam o mais que podem das grandes bateiras de toldos flamantes, prontas a levarem o rei João ao sítio onde a carta fatídica espera a sua assinatura. É meio-dia e o povo quedou-se todo pacientemente, durante horas. Corre o rumor de que o rei João escapou mais uma vez aos barões, fugiu'de Duncroft Hall, escoltado pelos seus mercenários, e que em breve estará a fazer coisa muito diversa da prometida assinatura da carta de alforria do seu povo. Mas não! Desta vez é uma mão de ferro que o segura, e a resistência seria vã. Ao longe, na estrada, ergueu-se uma pequenina nuvem de poeira que se aproxima e aumenta. Ou 127 ve-se o barulho de numerosas patas de cavalo e vê-se avançar uma cavalgada brilhante de senhores e cavaleiros ricamente vestidos. Rodeando-a por todos os lados, eis os barões, o seu séquito e, no meio, o rei João. O rei aproxima-se das bateiras que o esperam e os grandes senhores saem das fileiras e vêm ao seu encontro. Ele acolhe-os com um sorriso e palavras melífluas, como se se tratasse de uma festa em sua honra, para a qual o tivessem convidado. Mas antes de deixar o seu cavalo, lança um olhar furtivo aos mercenários franceses, que ficaram à retaguarda, e, depois, às fileiras ameaçadoras dos homens dos barões, que o rodeiam. Será tarde de mais? Um golpe audacioso que aniquilasse o cavaleiro que está sereno e sem desconfiança a seu lado, um apelo aos franceses, uma descarga furiosa e imprevista contra as fileiras na sua frente, e os barões rebeldes bem se poderiam arrepender de terem contrariado a sua vontade! Um espírito mais audacioso poderia mesmo então ter forçado a sorte. Se Ricardo estivesse no seu lugar, quem sabe se a taça da liberdade se não teria afastado por mais cem anos dos lábios ingleses? Mas o rei João perdeu a coragem perante aqueles rostos severos de homens de armas. A sua mão deixou cair as rédeas, e ele desceu do cavalo e tomou lugar na bateira mais afastada. Os barões seguem-no, apertam nas suas mãos fortes as espadas firmes e dão ordem de partida. Lentamente, as bateiras pesadas afastam-se da margem. Lentamente sobem o rio e vão enfim tocar na pequena ilha que terá daí por diante o nome de «Ilha da Magna Carta>,. O rei João desembarcou. Fica-se na expectativa, num silêncio absoluto. Depois eleva-se uma imensa aclamação que nos assegura que foi enfim colocada a pedra angular do tem 128 plo, da liberdade inglesa e, sabemo-lo hoje, com inabalável solidez! CAPITULO XII Estava sentado à beira do rio, evocando risonhamente estas cenas, quando Jorge veio perguntar-me se por acaso, depois de ter descansado, me custaria muito ir ajuda-lo a lavar a loiça. Chamado assim do passado glorioso à actualidade prosaica com todas as suas misérias, voltei para o barco e, com ajuda dum bocado de pau e dum punhado de ervas, limpei a frigi deira, dando-lhe um último retoque com a camisa molhada do Jorge. Fomos à ilha da Magna Carta para ver a pedra sobre a qual se diz ter sido assinado o famoso documento. Mas quanto a afirmar se ele foi realmente ali assinado ou se foi, como querem certas pessoas, na outra margem, em

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Runningsmede, livro daí a minha responsabilidade. Sinto-me, no entanto, tentado a admitir a crença popular de que foi na ilha. Decerto, se eu fosse um barão dos desse tempo, teria feito notar aos meus companheiros a necessidade de guardar na ilha, onde havia menos probabilidades de surpresas e traições, um sujeito tão pouco digno de confiança como o rei João. Próximo do cabo do Piquenique, em terras de Ankerwyke House, vêem-se as ruínas dum velho presbitério, em cujos arredores - conta a lenda - Henrique VIII se encontrava com Ana Bolena. Também se encontravam com frequência no castelo de Hover, do condado de Kent, e também em qualquer outro sítio para os lados de Saint-Albans. Raro seria, nesse tempo, haver região inglesa onde esses 129 dois pombinhos não fossem arrulhar! ... Já alguma vez viveram numa casa onde há um par de noivos? É fatigante! Lembramo-nos de ir um bocado à sala e dirigimo-nos para lá. Ao abrir a porta ouve-se um ruído semelhante ao de um estalido da língua dum senhor que de repente se lembrasse de qualquer coisa e, quando entramos, a Emília está à janela observando muito atenta o que se passa na rua, e o nosso amigo João Eduardo, na outra ponta da sala, contempla pasmado os retratos duns antepassados desconhecidos. - Oh! - dizemos nós, parando à entrada. - Não sabia que estava aqui alguém. - Ah sim? - respondeu Emília friamente, num tom que mostra bem que não acreditou no que nós dissemos. Hesitamos um minuto antes de acrescentar: - Está aqui tão escuro. Porque não acendem a luz? - Nem tinha reparado! - respondeu João Eduardo. E Emília declara que o seu pai não gosta que acendam a luz de dia. Damos-lhes duas ou três novidades, expomos-lhes a nossa maneira de ver sobre a questão da Irlanda, mas nada parece interessá-los. Qualquer que seja o assunto, as respostas são sempre: «Ah! ... Realmente ... Vejam lá ... Não é possível!» Depois de dez minutos de semelhante conversa largamos a fugir e mal saímos ouve-se bater a porta, que imediatamente se fecha, e não se adivinha quem a fechou ... Passada meia hora, apetece-nos ir até à varanda para fumar o nosso cachimbo. Na única poltrona que ali existe está sentada Emília; e, se se pode prestar ouvidos à linguagem dos factos, João Eduardo esteve evidentemente sentado no chão. Ficam ambos calados, mas lançam-nos um olhar que diz tudo o que pode ser dito entre gente bem educada. Retiramo-nos imediatamente, fechando a porta de vidro. 130 Depois disto, nem nos atrevemos a meter o nariz em mais nenhum quarto da casa. Descemos e subimos umas poucas de vezes a escada, refugiamo-nos no nosso quarto. Mas depressa vem o tédio. Pegando no chapéu, vamos dar uma volta pelo jardim. Descemos a avenida e deitando, ao passar, um rápido olhar para a estufa, reparamos que aqueles dois idiotas estão lá escondidos a um canto. Eles por sua vez vêem-nos também e imaginam que andamos de propósito a persegui-los. Furioso, corro ao vestíbulo a buscar o chapéu de chuva, e saio resmungando: - Devia haver um quarto especial para os que se dedicam a este género de desporto. Certamente se davam cenas análogas quando esse pateta de Henrique VIII fazia a corte à sua querida Ana. A gente do condado de Buckingham estava farta de encontrá-los a acari nharem-se mutuamente, beijocando-se, nos arredores de Windsor e de Wraylsburg, e sem dúvida exclamava: «Olha, estão aqui!,, E, provavelmente, Henrique VIII respondia corando: «Pois estou, vim justamente visitar uma pessoa amiga. » E Ana respondia talvez: «Oh! Encontrei agora mesmo o Sr. Henrique VIII que andava aqui de passeio e vai para os mesmos lados que eu. Então, afastando-se, a boa gente da época dizia: «Ah! Não! É melhor fugir daqui enquanto durar o derriço. Vamos para Kent! Iam para Kent, e a primeira coisa que viam ao chegar lá era Henrique e Ana passeando junto ao castelo de Hever. «Ora bolas! - exclamavam. - Vamos embora! Vamos para Saint-Albans. É um cantinho lindo e tranquilo, Saint-Albans! Mas lá estavam outra vez os rolinhos a debicar-se junto ao muro do convento! Nada mais restava àquela boa

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gente senão ir para o mar, e fazer-se pirata, enquanto se não celebrasse o casamento., 131 No espaço que vai do Velho Windsor até ao cabo do Piquenique, a paisagem é lindíssima. É um caminho cheio de sombra, semeado aqui e acolá de lindas moradias, que segue ao longo do rio até à pitoresca hospedaria (como a maior parte das hospedarias do alto Tamisa) dos Sinos de Ouseley, onde, segundo o nosso Harris, se bebe uma óptima cerveja branca. Em tais assuntos podemos fiar-nos na opinião de Harris. O Velho Windsor é no seu género um lugar célebre. Eduardo, o Confessor, tinha lá um palácio, e o famoso conde de Godwin ali foi condenado pela justiça do tempo, por ter conspirado contra a vida do irmão do rei. O conde Godwin partiu um bocado de pão, e, erguendo-o nos dedos, disse: - Que este bocado de pão me sufoque, se eu for realmente culpado! Levou o pão à boca e engoliu-o; o pão sufocou-o e Godwin morreu! ... Passado o Velho Windsor, o rio perde muito do seu interesse, e só nas proximidades de Boveney volta a ser bonito. Jorge e eu sirgamos para Home-Park, que se prolonga na margem direita da ponte do rei Alberto até à da rainha Vitória. Ao passar em Datchet, Jorge perguntou-me se eu me lembrava ainda da excursão que tínhamos feito no Tamisa, daquela vez em que, depois de desembarcar em Datchet às dez da noite, tínhamos andado à procura de quarto para dormir. Respondi que ainda me lembrava do aborrecido caso e que havia de levar muito tempo a esquecê-lo. Era num sábado antes das férias grandes. Estávamos todos três (os mesmos, sempre) cansados e cheios de fome e, chegados a Datchet, desembarcámos, levando o cesto, as duas malas, os sobretudos e cobertores, etc., para ir em busca de pousada. Passámos em frente dum pequeno hotel de aspec 132 to agradável, com a sua porta enfeitada de clematite e de vinha virgem; mas não tinha madressilva e, por qualquer razão que já não recordo, eu queria por. força que houvesse madressilva. Exclamei logo: Não, não quero ficar neste hotel! Fomos um )pouco mais adiante ver se encontrávamos outro onde houvesse madressilva Continuando o nosso caminho surgiu, realmente, outro hotel, que tinha também um aspecto agradável e madressilva no muro do jardim. Mas Harris não gostou da cara do indivíduo que estava encostado à ombreira da porta. Achou que era muito feio e que tinha umas botas horrendas. Andámos mais uns minutos sem descobrir outro albergue e, como passasse por nós um habitante do lugar, pedimos-lhe que nos indicasse qualquer pousada cómoda. - Mas os senhores tinham Veado! - Já lá estivemos, mas não silva. - E o que fica mesmo em frente? Já foram ver esse? Harris explicou que nós não queríamos ir para lá, porque havia aí um indivíduo que tinha uma cara que não nos agradava; a cor de cabelo e a das botas eram detestáveis. - Então não sei o que hão-de fazer - disse o nosso homem -, pois são as duas únicas hospedarias que há nestes sítios. - Não há mais nenhuma? - exclamou Harris. - Nem mais uma! - Que há-de ser de nós! - lamentou-se Harris. Jorge tomou então a palavra, dizendo-nos que Harris e eu estávamos no nosso direito, se quiséssemos, de mandar construir um hotel só para nós e de mandar fazer gente de enco menda para lá meter dentro. Mas ele voltava para o Hotel do 133 Veado. Os espíritos superiores não conseguem nunca realizar os seus ideais. Chorando sobre a vanidade de todo o desejo terreno, Harris e eu seguimos o Jorge.

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Levámos toda a nossa tralha até o Hotel do Veado e largámo-la no vestíbulo. Nessa altura chegou o patrão. - Boas noites, meus senhores! - Ah!, boa noite, faça favor de nos arranjar três camas - disse logo Jorge. - Tenho muita pena, meu senhor - respondeu o dono do hotel - mas receio muito não poder contentá-lo. - Ah! Sabe, nós não somos esquisitos - replicou Jorge - contentamo-nos só com duas camas. Dois de nós podem bem dormir na mesma cama - prosseguiu ele, dirigindo-se a Harris e a mim. - Decerto - disse Harris, pensando que o Jorge e eu podíamos muito bem dormir juntos. - Tenho muita pena, meu senhor - repetiu o homem - mas não temos em casa uma única, cama disponível. Até já temos dois e mesmo três senhores na mesma cama ... Imaginem! Esta resposta deixou-nos um pouco embaraçados. Mas Harris, que é um homem prático, disse com um sorriso cândido: - Bem! Não há outro remédio! Paciência! Em tempo de guerra não se limpam armas! Arranje-nos uma cama improvisada na sala de bilhar. - Tenho muita pena, meu senhor, mas já dormem três pessoas na sala de bilhar e duas na sala do café. Realmente esta noite é-me impossível recebê-los. Pegando na bagagem, dirigimo-nos ao outro hotel. Era pequeno e agradável. Por mim, preferia-o ao outro, e Harris 134 pensava como eu. Aqui tudo havia de correr bem; bastava que não olhássemos para o homem do cabelo ruivo; e, afinal, coitado do homem, ele não tinha a culpa de ser ruivo. Harris falava com muito senso e bondade. Mas nem mesmo nos deram tempo de abrir a boca. A patroa recebeu-nos no limiar da porta, anunciando-nos que éramos nós o décimo quarto grupo a que ela recusava abrigo no espaço de hora e meia. As nossas modestas propostas de dormir na cocheira, na sala de bilhar, ou na casa do carvão, provocaram a sua desdenhosa hilaridade: todos esses cantos estavam tomados havia já muito tempo. Não conheceria ela, ao menos, alguma casa onde pudéssemos ficar essa noite? - Se não são muito esquisitos ... notem que eu não recomendo o estabelecimento ... mas há aqui a meio quilómetro de distância, na estrada de Eton, uma casa de pasto ... Sem ouvir mais nada, pegámos no cesto, sacos, sobretudos, embrulhos e largámos a andar. A distância pareceu-nos ser o dobro da anunciada, mas por fim chegámos à tal tasca e, esfalfados, precipitámo-nos todos na sala. Os donos da tasca, muito grosseiros, riram-se de nós. Em casa havia apenas três camas, e já lá tinham três homens e três casais. Mas um barqueiro amável, que por sorte estava ali, aconselhou-nos a casa do pasteleiro que era a porta ao lado do Veado. Voltámos então ao ponto de partida. Estava tudo cheio em casa do pasteleiro. Uma boa velhota, que encontrámos na loja, teve a amabilidade de nos levar com ela a casa de uma senhora sua amiga, que às vezes alugava quartos. Essa boa velhota andava muito devagar. Levámos uns vinte minutos a chegar a casa da senhora amiga dela. Para nos distrair, enquanto andávamos, foi contando as dores variadas que sentia nas costas. 135 Os quartos da tal senhora já estavam alugados. Daí mandaram-nos ao n.° 27. O n.° 27 estava cheio. Mandaram-nos ao 32. O 32 também estava cheio. Ficámos portanto na rua. Harris, sentando-se em cima do cesto, declarou que não ia mais longe. O lugar parecia tão tranquilo quanto podia desejar-se para morrer em paz. Pediu -nos, ao Jorge e a mim, que déssemos muitas saudades à mãe e que disséssemos a todos os seus amigos que ao morrer lhes perdoara tudo. Nesse momento apareceu, disfarçado de rapaz, um anjo - e duvido que um anjo pudesse encontrar melhor disfarce - que levava numa das mãos uma caneca de cerveja e na outra um objecto pendurado num cordel, que punha sobre cada pedra

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lisa que encontrava, retirando-o logo em seguida, o que produzia um barulho particularmente desagradável, irritante o mais possível. Perguntámos a esse enviado celeste se não conhecia qualquer casa isolada onde habitasse gente pouco numerosa - de preferência senhoras de idade ou senhores paralíticos - que se deixassem facilmente convencer pelo medo e que cedessem por uma noite as suas camas a três rapazes robustos e decididos a tudo; ou então, se nos podia indicar um curral vazio, ou um forno de cal abandonado, ou qualquer coisa nesse género. O rapaz não sabia de nada desse género, pelo menos ali perto, mas disse-nos que, se quiséssemos ir com ele, a mãe tinha um quarto disponível onde poderíamos passar a noite. Saltámos-lhe todos ao pescoço, ali, ao luar, abençoando-o. Quadro porventura encantador, se o garoto, vergando sob o peso da nossa emoção, não caísse por terra quando lhe saltámos os três em cima. A alegria de Harris foi tão forte que qua se desmaiou e, para se reanimar, teve de se agarrar à caneca de cerveja do garoto, e depois de beber metade, largou a cor 136 rer, deixando-nos ao Jorge e a mim todo o peso da bagagem. O garoto vivia numa choupana com quatro divisões; e a sua mãe - alma generosa! - deu-nos à ceia um presunto quente de dois quilos, que nós comemos todo - seguido de uma torta com doce, tudo regado com uma boa dose de chá. Bem alimentados, fomo-nos deitar; o quarto tinha duas camas, das quais uma era de campanha, de setenta e cinco centímetros de largo, onde dormimos eu e o Jorge, tendo, para não cair, de nos atar um ao outro com um lençol. A outra cama era a do garoto. No dia seguinte, vimos os pés de. Harris, que ficara só na outra cama, pendurados fora da roupa. Aproveitámos logo para lhe pendurar nos pés, enquanto tomávamos banho, as nossas toalhas. Na próxima vez que voltámos a Datchet, não nos mostrámos já tão difíceis na escolha do hotel. Mas regressemos à nossa viagem actual. Nada se passou então de interessante, aliás seguimos tranquilamente até um pouco acima da ilha dos Macacos, onde desembarcámos para almoçar. Quando começámos a comer a carne fria, reparámos que não tínhamos trazido mostarda. Creio que a mostarda nunca me fez tanta falta como nesse dia. Em geral, não a aprecio nada, é mesmo raro servir-me dela, mas nesse dia teria dado mundos para consegui.-la. Ignoro quantos mundos- podem existir no Universo, mas quem nesse momento me apresentasse uma colher de mostarda tê-los-ia obtido todos de mim, De tal modo eu sou pródigo quando desejo uma coisa que não tenho. Harris declarou também que daria mundos para conseguir um pouco de mostarda. Teria sido um bom negócio para um vendedor de mostarda que aparecesse ali naquele momento. Ficaria fornecido de mundos para o resto dos seus dias. Mas, sabem, receio muito que Harris e eu, uma vez de posse da mostarda, nos recusássemos a realizar o negócio. 137 Fazem-se às vezes ofertas extravagantes em momentos de entusiasmo. Mas, quando se começa a pensar, repara-se que são de valor absurdamente desproporcionado em relação ao do artigo desejado. Ouvi uma vez dizer a um amigo que ia subindo uma montanha da Suíça que daria mundos em troca de uma caneca de cerveja e, uma vez chegado ao pequeno restaurante onde a havia, berrou como um possesso porque lhe pediam cinco francos por uma garrafa de stout. Declarou que era um abuso escandaloso e que havia de escrever para o Times sobre esse caso. Esta ausência de mostarda causou uma certa frieza a bordo. Comemos a carne fria sem dizer uma palavra. A existência parecia-nos monótona e sem interesse. Pensávamos, com saudade, nos dias felizes da nossa infância. No entanto, a torta de maçã animou-nos um pouco, e quando Jorge tirou do fundo do cesto uma lata de conserva de ananás, fazendo-a rebolar no meio do barco, a existência apareceu-nos, no fim de contas, como digna de ser vivida. Todos três gostamos muito de ananás. Olhámos para a etiqueta e, pensando no sumo tão agradável, trocámos um sorriso e Harris aprontou acolher.

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Procurámos então o abre-latas. Virámos o cesto de pernas para o ar, remexemos as malas, levantámos as tábuas do fundo do barco, pusemos todos os objectos na margem do rio e sacudimo-los um por um. O abre-latas não aparecia. Harris tentou abrir a lata com o canivete, mas a lâmina partiu-se e fez-lhe um golpe profundo. Jorge experimentou com uma tesoura, mas a tesoura escorregou e quase lhe ia ti rando um olho. Enquanto tratavam ambos dos seus ferimentos, eu procurava fazer um buraco na lata com a ponta aguçada da fateixa, mas esta, escorregando, atirou comigo para um charco de água lodosa que havia entre o barco e a margem, e a lata rebolou, intacta, para cima de uma chávena de chá, que 138 se partiu. Ficámos todos de cabeça perdida 'e levámos a lata diabólica para terra. Harris foi buscar ao campo uma grande pedra; eu voltei ao barco para trazer o mastro; em seguida, o Jorge segurou na lata, Harris apoiou na tampa o bico aguçado da pedra, e eu, com quanta. força tinha, levantei o mastro ao ar e bati. O que valeu ao Jorge neste dia foi o chapéu de palha. Guardou-o cuidadosamente - a parte que ficou inteira - e quando nas noites de inverno, fumando os seus cachimbos, os camaradas contam balelas sobre os perigos que correram, o Jorge vai buscar ao prego em que está pendurado o resto do chapéu e mostra-o a todos, contando a terrível história, a que acrescenta de cada vez pormenores inéditos. Na verdade a única consequência foi um leve arranhão. Depois peguei eu na lata e bati-lhe com o pau do mastro até não poder mais. A seguir coube a vez a Jorge. Achatámos a lata, demos-lhe a forma de cubo, transformámo-la em todas as figuras conhecidas da geometria ... Mas sem conseguir fazer-lhe um buraco. Jorge atirou-se a ela com toda a energia e deu-lhe uma forma tão estranha, tão bizarra, tão repugnante na sua monstruosa fealdade, que deitou para longe o mastro, apavorado. Depois sentámo-nos todos três em volta da lata a olhar para ela. Uma amolgadela do lado de cima dava-lhe um aspecto semelhante ao de um ricto de troça. Ao olhá-la, sentimos-nos de tal modo irritados que, saltando sobre a caixa, Harris bran diu-a no ar e atirou-a para o meio do rio, onde ela se afundou sob um chuveiro de maldições. Voltando para o barco, remámos com toda a força, para nos afastarmos daquele lugar maldito, e só parámos em Maidenhead. Esta terra é elegante de mais para o nosso gosto. É o ponto de reunião dos pedantes do Tamisa e das suas companheiras 139 muito aperaltadas. É a terra dos hotéis de luxo, frequentados principalmente pelas raparigas de teatro. É a caldeira embruxada de onde saem esses demónios do rio, os barcos a vapor. O duque cujo nome aparece no London-Journal é frequentador assíduo de Maidenhead; e é infalivelmente ali que almoça a heroína do romance em voga, quando foge com o amante da sua maior amiga. Atravessámos rapidadmente Maidenhead e depois fizemos lentamente o trajecto grandioso que segue para além dos diques de Boulter e Cookham. As matas de Clieveden osten tavam ainda os tons delicados da Primavera e debruçavam-se à beira da água, confundindo os tons de um verde enfeitiçante. É talvez este canto, na sua beleza tão pura, o lugar mais agradável do rio, e passaram-se longas horas antes que abandonássemos a sua paz profunda. Entrámos no canal para tomar chá, antes de chegar a Cookham. Quando passámos o dique era noite escura. Levantara-se uma brisa agradável, que por milagre corria a nosso favor, pois é inevitável, no Tamisa, em qualquer direcção que se ande, termos sempre o vento contra. Está contra quando partimos pela manhã para um passeio de um dia, e remamos então para longe com a agradável perspectiva de voltar à vela. Mas, depois do chá, o vento vira para o lado oposto, e à volta temos de remar energicamente contra ele. Se acaso nos esquecemos de levar a vela, então o vento não deixa de nos favorecer à ida e à volta. A vida é assim, e o homem nasceu para sofrer, tanto como a luz da centelha para brilhar e desaparecer.

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Nessa noite, no entanto, decerto os deuses do rio se tinham enganado quando nos puseram o vento a soprar pelas costas em'vez de soprar de frente. Nós ficámos muito calados e tratámos de içar a vela antes que eles dessem pelo engano. Instalámo-nos em atitudes contemplativas. A vela enfunou 140 -se, esticou, gemeu contra o mastro e o barco voou sobre o rio. Eu ia ao leme. Não conheço sensação mais agradável do que andar à vela. Não há nada, a não ser em sonho, que tanto se aproxime do voo. O vento, na carreira, leva-nos nas suas asas. Não somos mais o ser pesado, tirado do barro, que se arrasta com dificuldade no chão. Fazemos parte da natureza! O nosso coração bate junto do seu! Os seus braços maravilhosos.erguem-nos e estreitam-nos contra o peito. A nossa alma une-se à sua; os nossos membros tornam-se mais leves. As vozes do ar cantam em volta de nós. A terra parece-nos longínqua e minúscula; e as nuvens que quase tocam a nossa fronte são irmãos a quem estendemos os braços. O rio era todo nosso. Só se avistava ,ao longe um barquito de pesca ancorado e lá dentro três pescadores. O nosso barco voava sobre a água, as margens arborizadas fugiam e nós calávamo-nos. Eu ia ao leme. Quando nos aproximámos do outro barco, vimos que os três pescadores eram uns velhotes de ar grave e solene, que vigiavam atentamente as suas linhas. A luz vermelha do poen te espalhava sobre a água uma claridade mística e aureolava de ouro as nuvens distantes. Era uma hora de êxtase encantado, de esperanças e aspirações sem limite. A nossa pequenina vela destacava-se sobre o céu avermelhado, a neblina vestia as sombras da paisagem e, por trás de nós, avançava a noite. Semelhantes aos cavaleiros da velha lenda, vogávamos num lago de mistério para o reino desconhecido do crepúsculo, o país grandioso do poente. Mas não chegámos ao reino do crepúsculo. Fomos dar em cheio no barco onde os três velhos estavam a pescar. Não compreendemos a princípio o que se estava passando, porque a vela tapava-nos a vista, mas, pela natureza da linguagem que ouvíamos, compreendemos que estávamos próximo de seres humanos nada contentes com a nossa presença. Harris, arreou a vela, e vimos então o que se passava. Com o encontrão tínhamos feito cair os três pescadores, que se amontoavam no fundo do barco. Estavam misturados com o peixe já pescado. Enquanto lutavam para se desembaraçar do viscoso cardume rogavam-nos pragas, usando, não as injúrias banais e correntes, mas longas blasfémias complicadas, meditadas e significativas, que atingiam toda a nossa existência e alcançavam o futuro mais longínquo, abrangendo todos os nossos parentes, amigos e conhecidos. Eram pragas fortes e substanciais. Harris observou-lhes que deviam antes agradecer-nos, por lhes termos proporcionado um pequeno divertimento no seu longo dia passado a pescar e acrescentou que se sentia sur preendido e penalizado por ver homens de avançada idade assim dominados pela cólera. Mas esta exortação não serviu absolutamente de nada. Depois deste incidente, Jorge quis tomar conta do leme. Um espírito como o meu, dizia ele, não podia descer a guiar um barco: era melhor que o timoneiro fosse de espírito menos poético para evitar desgraças maiores. Pegou então na cana do leme e guiou-nos até Marlow. Em Marlow deixámos o barco ao pé da ponte e fomos passar a noite ao Café da Coroa. CAPÍTULO XIII Marlow é um dos burgos mais agradáveis que eu conheço, uma pequena cidade viva e animada. Não possui grande pitoresco no seu conjunto, é verdade, mas ainda tem alguns re 142 cantos agradáveis: sobretudo o arco dum viaduto que resistiu ao tempo e graças ao qual a nossa imaginação revive os tempos em que o castelo de Marlow tinha por senhor o saxão Algar, antes que Guilherme, o Conquistador, se apoderasse dele

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para o dar à rainha Matilde, antes que depois passasse para a posse do conde de Warwich ou de lord Paget, o sábio e justo conselheiro de quatro reis. Tem também bonitos arredores para quem gostar de passear depois de andar de barco. O rio expande-se aí no máximo da sua beleza. Para baixo, ao longo dos prados e dos bosques da Carreira, o trajecto até Cookham é encantador. Queridos, velhos bosques da Carreira com as suas ladeiras e os caminhos sinuosos! Que recordações perfumadas evocam para mim, ainda hoje, os dias claros de verão! A visão de rostos risonhos anima aos meus olhos as vossas sombrias perspectivas, e- dos vossos ramos murmurantes brotam docemente as vozes de outrora! O caminho de Marlow a Sonning é ainda mais belo. Na margem direita, um quilómetro acima da ponte de Marlow, fica o velho convento de Bisham, cujas paredes vibraram ao som das vozes dos Templários, e que foi algum tempo morada de Ana de Clèves e depois da rainha Isabel. No convento de Bisham vivem bastas recordações melodramáticas. Lá dentro há um quarto forrado de ricas tapeçarias e um gabinete secreto que se esconde na espessura das paredes. Por lá erra de noite o fantasma daquela Senhora Santa, que matou o seu rapazinho à pancada, esforçando-se por lavar a sombra das suas mãos na sombra duma bacia de prata. Ali repousa Warwich, o fazedor de reis, hoje indiferente a essas vaidades banais; e também Salisbury, que tanta actividade desenvolveu em Poitiers. Um momento antes de se che gar ao convento, e mesmo à beira do rio, encontra-se a igreja de Bis'ham, onde há túmulos dignos de serem vistos. Foi sob 143 as faias de Bisham, embalando-se no seu barco, que Shelley, que vivia então em Marlow - lá se pode ver ainda a sua casa em West Street - compôs a Revolta do Islão. Muitas vezes imaginei que era capaz de passar um mês ali, próximo da represa de Hurley, sem nunca me cansar da sua beleza. O burgo de Hurley, que fica a cinco minutos da represa, é um dos mais velhos encantos do Tamisa, pois data, para usar a fraseologia desses tempos distantes, dos dias do rei Seberto e do rei Offa. Logo acima da represa, encontra-se o campo dos Dinamarqueses, onde acamparam um dia os invasores dinamarqueses quando avançavam sobre o condado de Gloucester, e um pouco mais acima, num sítio delicioso, as ruínas do convento de Medmenham. Os célebres monges de Medmenham, ou o Clube do Fogo do Inferno, como vulgarmente lhes chamavam, e de que fazia parte o ilustre Wilkes, era uma confraria que tinha como divisa: Faz o que te aprouver, exortação que ainda hoje se pode ler no pórtico desconjuntado do mosteiro. Muito antes de a sua congregação de farsantes irreverentes o ter fundado, houve nesse mesmo lugar um mosteiro de um género mais sério, cujos monges diferiam em absoluto dos libertinos que lhes sucederam quinhentos anos mais tarde. Os religiosos de Cister, cujo convento existia ali no século XII, usavam apenas um hábito de burel grosseiro e não comiam nem carne, nem peixe, nem ovos, dormiam na palha e levantavam-se à meia-noite para rezaras suas orações. Passavam os dias entregues ao trabalho manual, à leitura, à oração, e a vida toda num silêncio de morte, pois nenhum deles tinha o direito de falar. Que fúnebre comunidade, que existência austera, nesse abrigo tão agradável, que Deus criou tão risonho! É extraordinário que as vozes da natureza que os rodeavam - o doce murmúrio do rio, o sussurrar dos canaviais, a harmonia do 144 vento na folhagem - não tivessem conseguido ensinar-lhes uma melhor concepção da vida! Ali ficavam todo o dia à escuta, esperando uma voz que viesse do céu; e todos os dias e noites, essa voz falava-lhes suavemente de mil formas diversas, e eles não a ouviam! De Medmenham até à linda represa de Hambledon, o rio é belo e tranquilo. Mas depois de passar Greenlands, propriedade modesta do meu vendedor de jornais - senhor velho, tran quilo e sem pretensões, que muitas vezes se encontra por ali no Verão, remando sozinho, ágil e vigoroso, ou conversando alegremente com algum velho guarda da represa -, até acima de Henley, a paisagem torna-se monótona e sem interesse. Na segunda-feira de manhã, em Marlow, levantámo-nos cedo e fomos tomar banho antes do pequeno almoço. À volta, Montmorency portou-se como um verdadeiro

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idiota. Os gatos são o único ponto em que as minhas opiniões divergem das de Montmorency, porque eu gosto de gatos e Montmorency detesta-os. Quando encontro um gato, abaixo-me para lhe fazer uma festinha na cabeça e chamo-lhe -Meu lindo tareco!-; o gato ergue a cauda, põe as costas em arco e esfrega o focinho nas minhas pernas; passa-se tudo calmamente e de modo agradável. Quando 'o Montmorency encontra um gato, toda a gente da rua o fica sabendo. Desperdiçam-se em dez segundos tantas palavras feias que chegariam para a vida inteira de um homem bem educado, se ele as empregasse com discernimento. Não censuro o cão - contento-me em dar-lhe uma palmada ou atirar-lhe uma pedra - pois ele procede, é certo, segundo as suas exigências íntimas. Os fox-terriers nascem todos com uma dose de pecado original, quatro vezes maior do que a dos outros cães, e são precisos anos e anos de esforços pacientes primeiro que nós, os cristãos, cheguemos a corrigir de 145 modo apreciável o espírito refilão dos fox-terriers. Ainda me lembra um dia em que eu estava na sala de espera dos grandes armazéns Haymarket e em volta pululavam os cães aguardando os donos, que tinham ido fazer compras. Havia um cão grande de guarda, um ou dois galgos da Escócia, um são-bernardo, uns poucos de setters, um terra-nova, um cão de caça ao javali, um caniche francês com o seu pêlo comprido e abundante na cabeça e o lombo rapado, um buldogue, alguns desses animaizinhos que se vendem em Lowther e que não são maiores do que um rato, e dois cães de Yorkshire. Esperavam todos pacientemente, muito tranquilos e ajuizados. Reinava uma paz solene naquela sala de espera, uma atmosfera calma, de resignação e doce melancolia. Entrou então uma senhora muito gentil, trazendo consigo um lindo cãozinho fox-terrier, com um ar humilde. A senhora foi-se embora e deixou o cãozito entre o buldogue e o cani che. O cãozito ficou um minuto a olhar em volta para ver onde estava, depois ergueu o olhar para o tecto, com ar de quem estava a pensar em qualquer assunto grave. Em seguida bocejou e por fim passou em revista os outros cães, todos silenciosos, graves e dignos. Olhou para o buldogue, que dormia a seu lado um sono profundo. Observou o caniche, muito altivo, sentado à sua esquerda. Em seguida, sem avisar, mordeu a pata dianteira do caniche, e ouviu-se, na penumbra tranquila da sala de espera, um uivo de dor. Como o resultado da sua experiência lhe parecesse dos mais satisfatórios, o cãozito resolveu continuar a espalhar a animação em volta de si. Saltando por cima do caniche, atacou violentamente um galgo, e este, acordando, começou em luta renhida com o caniche. O nosso cãozito voltou para o seu lugar e, ao passar, agarrou no buldogue por uma orelha, tentando atira-lo para longe. O buldogue, que é um animal de uma curiosa imparcialidade, atirou-se a tudo o 146 que estava ao seu alcance, incluindo o próprio guarda da sala de espera, a que proporcionou ao nosso adorável cãozito a ocasião de sustentar uma luta épica com o cão de Yorkshire, que mostrava igual boa vontade. A todos os que conhecem a natureza canina, é inútil dizer que nesse momento já todos os outros cães ali presentes se tinham consagrado a uma luta impiedosa, como se do resulta do final dependesse a estabilidade dos seus lares. Os cães grandes combatiam uns com os outros. Os pequenos lutavam também entre si e aproveitavam todas as oportunidades para morder as.patas dos grandes. A sala de espera tornou-se em breve num verdadeiro pandemónio; a confusão era tremenda. Formou-se um ajuntamento à entrada. Perguntávamos uns aos outros se era a reunião do Conselho ou, então, se estavam a matar alguém e porquê. Apareceram homens armados de paus e cordas, que tentaram separar os cães, e chamaram a polícia. Quando a confusão era maior, apareceu a senhora muito gentil. Pegou no seu querido pequenino ao colo (o Yorkshire ficara amolgado para três meses e agora o fox-terrier apresen tava a expressão inocente do cordeirinho recém-nascido), apertou-o nos braços, cobriu-o de beijos, perguntando-lhe se aqueles bichos maus não o tinham morto. E ele, aconchegando-se todo no colo da dona, olhava-a como

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quisesse dizer: «Ai!, minha querida e adorada dona, ainda bem que vieste arrancar-me à convivência desta raça odiosa! - A senhora declarou que a direcção dos armazéns não tinha o direito de misturar aqueles animais ferozes com os cães da gente que se preza e que se sentia muito tentada a instaurar-lhe um processo. Os fox-terriers são assim. Por isso eu não censuro o Montmorency pela mania que tem de bulhar com os gatos; mas, nessa manhã, não pôde ele gabar-se de o ter feito. 147 íamos nós na rua principal, de volta do nosso banho, quando surgiu de uma casa um gato que, saltitando, se pôs a atravessar a rua. Montmorency soltou um grito de alegria - grito do valoroso guerreiro que vê o inimigo cair-lhe nas mãos; grito igual ao que deve ter dado Cromwell quando os escoceses desceram das suas colunas - e lançou-se sobre a presa. A vítima era um enorme gato preto. Nunca vi um gato tão grande nem de aspecto tão pouco recomendável. Já lhe faltavam uma parte da cauda, uma orelha e grande parte do nariz. Era um animal sólido e robusto, com um ar calmo e satisfeito. Montmorency precipitou-se sobre o gato numa velocidade de trinta quilómetros à hora, mas o gato não apressou o passo: parecia não compreender que a sua vida corria perigo. Conti nuou, saltitante, pacífico, até que o seu presuntivo assassino chegou a um metro de distância. Nesse momento voltou-se, sentou-se no meio da rua e olhou Montmorency com um ar de amável interrogação que dizia: «É comigo que deseja falar?» Montmorency parou e observou o tareco. Não é que seja medroso, mas a expressão daquele gato era de fazer gelar de horror o cão mais valente. Nem um nem outro falaram, mas a conversa que poderíamos imaginar entre eles seria evidentemente esta: O gato - Posso ser-lhe útil? Montmorency - Não ... Obrigado, não ... 148 O gato - Não faça cerimónia se realmente quer alguma coisa. Montmorency, recuando um pouco - Oh!, não, não quero ... Asseguro-lhe que não ... Não se incomode, eu ... eu ... parece que me enganei. Pensei que o conhecia. Desculpe tê-lo incomodado. O gato - Não tem nada que pedir desculpa. Tinha o maior prazer em ser-lhe agradável. Realmente, não deseja nada de mim? Montmorency, continuando a recuar - Não, nada, muito obrigado. É muito amável. Adeus, e desejo-lhe muita saúde. O gato - Muito obrigado. Igualmente. O gato levantou-se e, saltitando, seguiu o seu caminho. Montmorency, com a cauda entre as pernas e o ar infeliz de uma raposa que tivesse sido apanhada por uma galinha, veio colocar-se modestamente atrás de nós. Desde então, basta pronunciar estas duas palavras: ,Um gato!» para Montmorency, estremecendo, nos lançar um olhar que parece querer dizer: ,Peço mais respeito pela minha sensibilidade. Depois do pequeno almoço fomos às compras, fornecen 149 do o barco para mais três dias. Jorge insistiu em que levássemos legumes, porque era prejudicial para a saúde não os comer. - São fáceis acrescentou. Comprámos portanto cinco quilos de batatas, um alqueire de ervilhas e algumas couves. Levámos do hotel um pastelão de carne, duas tortas de groselha e uma perna de carneiro, fru tas, bolos, pão e manteiga, presunto, toucinho e ovos, e outros víveres, comprados em várias lojas.

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A nossa partida de Marlow, digna e impressionante na sua simplicidade, foi a meu ver um dos nossos maiores triunfos. Exigimos de todas as lojas onde fomos que fizessem logo a entrega das nossas compras. Não nos servia a habitual impostura de: «Sim, meu senhor, vou mandar isto tudo já; o rapaz ainda lá chega antes do senhor», resposta que nos obrigaria a ficar imenso tempo à espera no cais e a voltar duas ou três vezes às lojas para apressar os lojistas. Esperávamos que nos enchessem o cesto e levávamos o rapaz connosco, o caixeiro. Fomos a numerosas lojas e em todas adoptámos este sistema, de modo que, quando acabámos, íamos escoltados por uma bela colecção de caixeiros. A caminhada da rua principal até ao rio deve ter sido o espectáculo mais imponente de todos quantos Marlow tem visto! A ordem do cortejo era a seguinte: à frente Montmorency, levando nos dentes uma varinha; a seguir, dois cãezitos de aspecto pouco recomendável, amigos de Montmorency. Jorge levava o sobretudo e as mantas; e fumando o seu cachimbo, esforçando-se por andar com elegância, segue Harris, carregado com uma mala cheia a transbordar numa mão e na outra uma garrafa de limonada. Depois, por ordem: o rapaz da hortaliça e o do padeiro, cada um com o seu cabaz; o rapaz do 150 hotel, carregado com uma canastra; o rapaz do pasteleiro, com um cesto; o rapaz da mercearia com uma alcofa; um cão de pêlo comprido; o rapaz da loja dos queijos com um cabazinho; um figurante com uma bolsa; um amigo íntimo do figurante, fumando cachimbo, de mãos nas algibeiras; o rapaz da fruta com um cabaz; eu, levando três chapéus e um par de botas, e esforçando-me por tomar um ar despreocupado; seis garotitos, e quatro cães vadios. Ufa! Quando chegámos ao cais perguntou-nos um barqueiro: - Digam-me uma coisa, meus senhores, vão para o barco a vapor ou para o batel maior? E ficou muito admirado quando lhe dissemos que íamos para um bote de quatro remos. Os barcos a vapor perseguiram-nos toda essa manhã. Era justamente a semana anterior às das regatas e os barcos evolucionavam em grande número, uns isolados, outros levando a reboque bateiras de recreio. Detesto os barcos a vapor, como todo o bom amigo dos barcos a remos, creio eu. Não os posso ver sem sentir o desejo de os levar para um recanto isolado do rio e, ali, a ocultas, no silêncio e no mistério, estrangulá-los. O barco a vapor tem um tal ar de presunçosa arrogância que desperta em mim todos os maus instintos. Tenho saudades dos bons tempos em que podia ajustar contas com as pes soas, munido de um machado, de um arco e de flechas. A expressão do indivíduo, que, de mãos nas algibeiras, fica à popa a fumar o seu cigarro, bastaria para justificar quebra de relações diplomáticas. O apito imperioso que nos convida a afastar-nos do seu caminho assegurava, estou certo, uma sentença absolutória de homicídio perante qualquer júri de amadores de canoa. E é que se julgam na obrigação de apitar a cada passo, para nós nos afastarmos do caminho! Não é para me gabar, mas tenho a certeza de que a nossa canoa deu nessa semana mais cuidado, mais atraso e mais arrelias aos barcos a vapor, do que as outras embarcações do Tamisa todas juntas. - Vem lá um barco a vapor! - gritava um de nós, avistando ao longe o inimigo. Eu largava a cana do leme voltando todos três as costas ao vapor, e a nossa canoa seguia tranquilamente à deriva no meio do rio. Aproximava-se o vapor, assobiando, e nós continuávamos à deriva. A cem metros de distância, punha-se a apitar como doido, e os passageiros vinham todos debruçar-se sobre a amurada, gritando como possessos. Mas nós não ouvíamos nada! Harris contava-nos nesse momento uma anedota' a respeito da sua mãe e nós não queríamos de modo algum perder uma só palavra. O vapor soltava então um apito supremo, muito capaz de fazer rebentar a caldeira, depois fazia marcha atrás, desviava-se e avançava. A bordo precipitavam-se todos para nos avisar; as pessoas na margem paravam e juntavam os seus gritos aos de bordo e todos os outros barcos que passavam paravam,e faziam coro, de tal modo que por todo o Tamisa, numa extensão de alguns

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quilómetros, verificava-se um indizível estado de confusão. Então Harris interrompia a história, no seu ponto culminante, e, erguendo o olhar, dizia com uma doce expressão de surpresa: Mas que diabo, Jorge, É algum vapor? E Jorge respondia: - Sim, realmente, parece-me ouvir qualquer ruído suspeito! . Corríamos para todos os lados numa agitação vertiginosa 152 e nem sabíamos, tal era a confusão, como libertar o barco do aperto. Os passageiros do vapor aconselhavam-nos: - Reme para a direita ... você, seu imbecil! Desvie para a esquerda. Não, você não!, o outro ... largue a cana do leme. Agora os dois ao mesmo tempo, vá lá. Não!, não é para esse lado! Oh! grandes ... Resolviam então lançar um barco à água para vir em nosso auxílio; depois de um quarto de hora de esforços aturados, conseguiam afastar-nos e seguiam o seu caminho. Nessa altu ra nós, agradecendo-lhes, pedíamos que nos rebocassem, mas eles recusavam. Descobrimos ainda um outro processo de arreliar os vapores; este é o do género aristocrático. Consiste em fingir que julgamos os seus passageiros gente elegante, perguntando-lhes se são o grupo de M. M. Cublit ou os Francos-Templários de Bermondsey e se eram capazes de nos emprestar um tacho. As senhoras de idade, pouco habituadas a andar no Tamisa, sentem-se sempre muito perturbadas com os barcos a vapor. Lembro-me de ter ido um dia de Staines a Windsor - o rio nessas paragens é muito frequentado por esses monstros mecânicos - com um grupo em que iam três senhoras desse género. Foi muito divertido. Logo que avistavam ao longe um vapor queriam por força desembarcar e esperar, sentadas na relva, que ele passasse. Diziam que tinham muita pena, mas que na família todos eram pouco destemidos ... Ao chegar à represa de Hambledon, como não tivéssemos água de beber, pegámos no garrafão e fomos pedi-la a casa do guarda. Jorge foi o nosso delegado. Com um sorriso amável falou assim: - Se faz favor, pode dar-nos um pouco de água? - Pois não - replicou o homenzinho -, levem a que quiserem e deixem o resto. 153 - Muito obrigado - disse o Jorge olhando em volta =, mas onde ... onde está ela? - Está sempre no mesmo sítio, o homem. - Não vejo - disse Jorge. - Ah!, não! Onde é que tem os olhos? - replicou o guarda, mostrando-lhe o rio em toda a sua extensão. - Pois é fácil de ver, não é? - Oh! - exclamou Jorge, que enfim compreendera. - Mas nós não havemos de beber o Tamisa! - Não, mas podem beber uma gota. Eu há quinze anos que não bebo outra coisa . Jorge assegurou-lhe que a cara dele não era um bom reclamo para a qualidade da água e que preferia ir buscá-la a qualquer fonte. Um pouco mais adiante deram-nos a água que desejávamos. Creio que era igualmente água do rio mas, como nós não sabíamos, não tinha importância. Aquilo que os olhos não vêem não repugna ao estômago. Uma outra vez provámos realmente a água do Tamisa, mas não gostámos. Descendo o rio, tínhamos ancorado perto de Windsor para tomar chá. O garrafão estava vazio; por isso tínhamos de escolher entre passar sem chá ou fazê-lo com água do rio. Harris achou que devíamos experimentar, dizendo que, desde que se deixasse ferver a água, não havia perigo, pois morriam os micróbios todos. Enchemos então a chaleira com água do Tamisa, fervendo-a cuidadosamente. Estávamos comodamente instalados para beber o nosso chá, quando Jorge, que ia a beber o primeiro gole, suspendendo, exclamou: - O que é aquilo? - O quê? - perguntámos Harris e eu. - Aquilo, ali? - disse o Jorge, apontando para o lado de cima. 154

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Seguindo a direcção do seu olhar avistámos o cadáver dum cão que descia o rio direito a nós. Nunca tinha visto um cão tão pacífico, nem com um ar tão satisfeito e despreocupa do. Vogava lentamente, deitado de costas, as quatro pernas hirtas, viradas para o ar. Era o que se podia chamar um cão rechonchudo, com o tórax bem desenvolvido. Navegava calmo, digno e sereno. Chegado à altura do nosso barco, aí parou, instalando-se nos juncos para passar a noite. Jorge declarou que já não queria chá e despejou a chávena no rio; Harris, dizendo que também não tinha sede, seguiu-lhe o exemplo. Eu, que já tinha bebido meia chávena, só Deus sabe quanto daria para não ter bebido nem uma gota. Perguntei se haveria perigo de apanhar uma febre tifóide. - Não, não! - respondeu Jorge. - Acho que tens muitas probabilidades de escapar. Em todo o caso, daqui por uns quinze dias, já saberás o que te acontece. Subimos o canal de derivação até Wargrax. Vale a pena seguir por esse pequeno troço do rio, que parte da margem direita, um pouco acima da represa de Marsh. Além de pou par um quilómetro de caminho, é um trecho de paisagem realmente encantador. É claro que a entrada está tapada com estacas, correntes, tabuletas e letreiros, prevenindo e ameaçando de toda a espécie de torturas, prisão e morte, àquele que se atrever a mergu lhar um só remo nas suas águas (só me admira como certos proprietários das margens não guardam também o ar do rio, aplicando quatro xelins de multa a quem o respire). Mas os postes e as correntes são fáceis de evitar, usando de certa habilidade. Quanto às tabuletas, se não estiver ninguém ali próximo a ver, em cinco minutos arrancam-se uma ou duas e deitam-se à água. A meio do canal, desembarcámos para almoçar. Foi durante essa refeição que Jorge e eu sofremos uma triste surpresa. 155 Harris também sentiu um certo sobressalto, mas duvido que se aproximasse sequer do nosso. O caso foi o seguinte. Tínhamo-nos instalado comodamente para comer, num campo a uns dez metros de distância do rio. Enquanto Harris trinchava empadão de carne, o Jorge e eu preparávamos os pratos. - Têm aí uma colher? - perguntou Harris. - Preciso de uma colher para servir o molho. O cesto estava mesmo por detrás de nós. O Jorge e eu voltámo-nos para procurar a colher. Quando passados cinco segundos nos virámos de novo, Harris e o pastelão tinham desaparecido! O campo em que estávamos era vasto e plano. Não havia nem árvores nem sebe ali perto. O nosso amigo não podia ter caído à água, pois nós estávamos entre o rio e ele. Jorge e eu, depois de observarmos os arredores, olhámos um para o outro. - Seria algum anjo que o levou para o céu? - perguntei. - Decerto não levaram também o pastelão - objectou Jorge. O argumento era de peso; desistimos da hipótese celeste. - A verdadeira explicação, no meu entender - continuou Jorge olhando as possibilidades práticas e quotidianas -, é que houve um tremor de terra - e acrescentou em tom melodramático. - Que pena ter-se perdido também o pastelão! Com um longo suspiro, volvemos' de novo o olhar para o ponto em que Harris e o pastelão tinham sido vistos pela última vez. De repente sentimos gelar o sangue nas veias. Eriça ram-se-nos os cabelos, ao ver aparecer a cabeça de Harris - só a cabeça - a erguer-se entre a erva alta, vermelho de cólera e indignação. O Jorge foi quem primeiro recuperou a presença de espíri to: 156 - Fala! Diz-nos se estás morto ou vivo, e onde está o resto do teu corpo! - Ah!, não te faças idiota! - respondeu a cabeça de Harris. - Tenho a certeza de que vocês fizeram isto de propósito. - Mas fizemos de propósito o quê? - exclamámos ao mesmo tempo o Jorge e eu. - Obrigaram-me a sentar neste sítio ... Que partida tão parva! Andem, tomem lá o pastelão! Das profundidades da terra surgiu, e em muito mau estado, o pastelão. Em seguida ergue-se a muito custo o Harris, transtornado e molhado.

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Sem raparar, tinha-se sentado à beira de uma vala que a erva alta escondia e, inclinando-se um pouco para trás, ele e o pastelão tinham caído ambos lá dentro. Disse-nos que nunca tinha tido surpresa maior do que no momento em que se sentira escorregar, sem poder supor o que o esperava. A sua primeira ideia foi de que era o fim do mun do. Ainda hoje Harris está convencido de que foi uma partida que o Jorge e eu lhe pregámos! A calúnia persegue até o mais inocente. Mas lá diz o poeta: - Quem pode fugir à calúnia? Quem, de facto? CAPÍTULO XIV Depois do almoço levantou-se uma aragem que nos levou mansamente para além de Wargrave e Shiplake. Wargrave, aconchegado numa curva do Tamisa, aparece-nos sob o sol 157 ardente de uma tarde de Verão como um quadro antigo que a memória não esquece facilmente. O S. Jorge e o Dragão de Wargrave ostenta um estandarte pintado de um lado por Leslie, da Real Academia, e do outro por Hodgson, da mesma casa. Leslie compôs a luta; Hodgson imaginou a cena Depois do Combate: Jorge, acabado o seu trabalho, bebe uma caneca de cerveja. Day, o autor de Sandford e Merton, viveu em Wargrave - facto de que a terra muito se orgulha - e foi ali assassinado. Vê-se na igreja o monumento de M.me Sarah Hill, que legou uma libra esterlina anual, «para repartir, ao Domingo de Páscoa, entre dois rapazes e duas raparigas que nunca tivessem desobedecido aos seus pais, que nunca fossem apanhados a mentir ou a dizer palavras feias, a roubar ou a partir vidros». Imaginem, tudo isto por cinco xelins por ano! É muito mal pago. Reza a história que nessa terra houve uma vez, há muitos anos, um rapaz que realmente nunca tinha cometido esses crimes - ou, pelo menos, e era o mais que exigiam e que se podia esperar, nunca tinha sido apanhado em flagrante - e que assim ganhou a coroa de glória. Puseram-no em exposição debaixo de uma redoma, na sala da câmara. O que fizeram daí por diante a esse dinheiro ninguém o sabe. Dizem que o entregam todos os anos a um museu de figuras de cera que há ali perto. Shiplake é uma linda aldeia que pela sua situação não se avista do Tamisa. Na sua igreja casou o poeta Tennyson. Daqui até Sonnings, o rio corre calmo e solitário por entre numerosas ilhas. Quase ninguém passeia nas suas margens, a não ser às vezes, ao anoitecer, dois ou três casais de namorados. É um lugar propício para evocar coisas e pessoas que 158 desapareceram, para imaginar tudo o que poderia ter existido e que afinal nunca existiu! Desembarcámos em Sonnings para dar uma volta pela aldeia. É um dos sítios mais maravilhosos que se escondem nas margens do Tamisa. Assemelha-se mais a uma aldeia de teatro do que a uma povoação verídica, construída de pedra e cal. Cada casita se esconde entre um monte de rosas, que nesta época, em Junho, desabrocham em todo o seu esplendor. Se algum dia forem a Sonnings parem no Toiro, que fica detrás da igreja. É a verdadeira hospedaria clássica de aldeia, rodeada por um jardim florido, onde, nos bancos à sombra das árvores, se reúnem à tarde os velhos, conversando de política local, enquanto bebem a sua caneca de cerveja, hospedaria com os quartos de tectos baixos, as janelas de vidros pequenos, as escadas de caracol e os corredores complicados. Passámos uma hora na pitoresca Sonnings, e como se fosse já tarde para ir além de Reading, decidimos voltar para trás e passar a noite numa das ilhas de Shiplake. Instalámo-nos ainda muito cedo e Jorge lembrou que era uma ocasião óptima para comer uma boa refeição, acrescentando que gostaria de nos mostrar as possibilidades que havia de se arranjar um bom repasto à beira do Tamisa. Propôs então um guisado Irish stew, com algumas batatas, restos de carne fria e todos os outros sobejos.

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A ideia pareceu-nos maravilhosa. Enquanto Jorge foi apanhar a lenha e acender o lume, Harris e eu descascámos as batatas. Nunca pensei que fosse coisa tão difícil. Um verdadeiro trabalho de Hércules. Começámos de boa vontade, direi 159 mesmo com entusiasmo, mas, ainda não tínhamos acabado a primeira batata, já desaparecera a nossa boa disposição. Quanto mais casca tirávamos, mais casca parecia haver. Uma vez tirada toda a pele ficava uma dose tão reduzida de batata, que mais parecia uma amêndoa. Quando o Jorge viu isto, protestou logo: - Isto assim não pode ser. Dão cabo das batatas. Raspem-nas. É melhor. Mas eram tão esquisitas, todas aos altos e às covas, que foi bem difícil raspá-las. Trabalhámos activamente durante vinte e cinco minutos e só raspámos quatro batatas. Então resolvemos declarar greve. Jorge protestou que achava ridículo pôr só quatro batatas no guisado. Resolvemos a questão lavando uma meia dúzia delas e ! metendo-as na panela com a casca: acrescentámos uma couve e uma porção de ervilhas. Depois de misturar tudo, o Jorge declarou que ainda havia lugar para mais coisas. Explorámos os dois cestos, donde extraímos ainda diversos artigos comestíveis, que acrescentámos ao guisado. Entre elas, uma empada de porco, um bocado de toucinho e meia lata de salmão em conserva. Tudo isto foi para dentro da panela. A vantagem do Irish stew é que nos livra de uma quantidade de restos inúteis. Descobri ainda dois ovos partidos e atirei-os para a panela. O molho ficava mais grosso. Já não me lembro quais eram os outros ingredientes, só me lembro que aproveitámos tudo. Por fim, Montmorency, que seguira com evidente interesse as nossas manobras, afas tou-se com ar grave e pensativo, aparecendo, uns minutos mais tarde, com um rato morto na boca. Era este o tributo que decidira trazer para o nosso guisado. Ironia, ou simplicidade de coração? Ignoro! Ignoro! Discutimos se deveríamos ou não aproveitar o rato. Harris disse que sim, que muito convinha aproveitar tudo. Mas Jorge I' invocou precedentes vários. Nunca, segundo ele, se ouviu dizer de ninguém que incorporasse ratos num Irish stew e achava que era melhor não fazer a experiência. Harris protestou: - Se nunca fizeres a experiência, como podes saber se é ' bom ou não? As pessoas como tu é que retardam o progresso. Lembra-te daquele que primeiro provou a salsicha de Franc i fort! Depois de pronto, o Irish stew fez um verdadeiro sucesso. Creio que nunca comi nada que me soubesse tão bem. O nosso guisado tinha um gosto especialmente fresco e estimulante. O paladar cansa-se depressa das comidas habituais. Este prato, ao menos, tinha um sabor novo, um gosto que não se assemelhava a nenhum outro. E, além de tudo, era substancial. Como dizia Jorge, era '; feito unicamente de coisas sólidas. Decerto, as ervilhas e as batatas podiam ter ficado mais macias, mas, como todos tínhamos bons dentes, pouco importava. O molho era um ver dadeiro poema; um pouco forte, talvez, para um estômago delicado, mas muito nutritivo. Como sobremesa tomámos chá e torta de cerejas. Enquanto se fazia o chá, Montmorency meteu-se a lutar com a chaleira e ficou vencido. Desde o princípio que ele mostrava a mais viva curiosidade perante a chaleira. Ficava-se a contemplá-la enquanto fervia com ar intrigado e rosnando de vez em vez. Quando a água fervia e deitava fumo, Montmorency, pensava que era um desafio, queria medir forças com ela. Mas, justamente nesse momento, intervinha sempre alguém que lhe levava a apeteci' da presa, sem que ele tivesse tempo de atacar. Desta vez, resolveu anticipar-se. Ao primeiro ruído que a chaleira fez, levantou-se, e, rosnando, precipitou-se sobre ela em atitude ameaçadora. Era

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apenas uma pequena chaleira, sem importância, mas era enérgica e, refilando, começou a cuspir para cima dele. - Ah! queres brincadeira - rosnou Montmorency mostrando os dentes. - Vais saber quanto custa insultar um cão de boa família, miserável nariguda, inútil e nojenta! Vamos a isso! . E precipitou-se sobre a pobre chaleira, agarrando-a pelo bico. Elevou-se na serenidade da tarde um uivo tremendo e Montmorency, saltando do barco, deu em volta da ilha um passeio à velocidade de trinta quilómetros à hora, parando a cada momento para esfregar o nariz em todas as poças de lodo. Desde esse dia Montmorency passou a olhar a chaleira com um misto de respeito e de terror, de desconfiança e de ódio. Logo que a avistava resmungava e desaparecia com o rabinho entre as pernas. E assim que colocávamos a sua inimiga em cima do fogareiro, saía prontamente do barco e ia sentar-se na margem, até que nós acabássemos de tomar chá. Depois do jantar Jorge foi buscar o banjo para tocar um bocado, mas Harris não o deixou. Disse que estava com enxaqueca e que não tinha disposição para ouvir música. Jorge achava que até devia fazer-lhe bem: a música acalma os nervos e cura a enxaqueca. Tangeu duas ou três cordas só para ' Harris apreciar; Mas o Harris garantiu-lhe que preferia a enxaqueca. Até agora Jorge ainda não conseguiu aprender a tocar banjo. Ninguém o quer ouvir. Durante as nossas férias no Tamisa, ainda tentou duas ou três vezes exercitar-se, mas nunca conseguiu. Harris repelia-o, usando um palavreado capaz de desanimar o mais valente, e além disso Montmorency punha-se a uivar furiosamente. - Mas que mania de uivar assim quando eu toco! - exclamou Jorge indignado, preparando-se para lhe atirar com 162 um sapato! - E que mania é essa de tocar quando ele uiva assim! - protestava Harris, tirando-lhe o sapato da mão. - Deixa-o em paz. Ele não se calará mais. Tem bom ouvido e a tua maneira de tocar é que o faz uivar! Jorge acabou por deixar o estudo do banjo para quando regressasse a Londres. Mas nem mesmo então teve facilidade nisso. A Sr.a Poppets afirmava-lhe que muito gostava de o ouvir, mas a senhora que ficava por baixo estava no seu estado interessante e o médico receava que a música fizesse mal à futura criança. Jorge ainda tentou ir a altas horas exercitar-se para o jardim Mas os vizinhos queixavam-se à Polícia, que passou a esperá-lo, até que uma noite o apanhou. O flagrante delito era inegável. Obrigaram-no a não tocar durante seis meses. Esta aventura desanimou-o. Passados os seis meses, ainda tentou uma ou duas vezes recomeçar, mas encontrava sempre a mesma frieza, a mesma universal desaprovação. Passado algum tempo, desistiu definitivamente e pôs um anúncio oferecendo o instrumento por baixo preço, e substituiu a música pelo jogo das paciências. Deve ser desanimador aprender a tocar qualquer instrumento. Imagina-se encontrar ouvintes às dúzias e afinal não é assim. Conheci em tempos um rapaz que queria aprender a tocar gaita de foles. Só encontrou oposição, mesmo da parte da família. O pai, desde o princípio, desaprovou tenazmente a inofensiva aspiração. O meu amigo levantava-se de manhã cedo para estudar, mas depressa teve de mudar de sistema por causa da irmã. Esta, que era muito devota, achava mal começar o dia a tocar música. 163 O rapaz resolveu então esperar que a família toda se fosse deitar. Mas este sistema também não deu resultado, a casa começou a ter má fama. Gente que passava na rua parava a ouvir e, no dia seguinte, espalhava-se na cidade o boato de que tinha havido um horrível crime em casa do Sr. Jefferson. Contavam que tinham ouvido os gritos dilacerantes da vítima, as blasfémias e maldições do

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feroz assassino, às quais sucederam as súplicas vãs e os soluços supremos do agonizante. Consentiram-lhe então que tocasse de dia, na copa, com as portas todas fechadas. Mas, apesar de todas estas precauções, ainda se ouviam na sala os acordes mais agudos, e a mãe chorava de comoção. Dizia que se recordava então do seu pobre pai que tinha sido comido por um tubarão um dia em que tomava banho na costa da Nova Guiné, mas como e porquê nunca o soube explicar). Mandaram então construir um pequeno pavilhão ao fundo do jardim, a quatrocentos metros da casa. Ali o deixavam à vontade. Mas acontecia às vezes haver uma visita que, não estando prevenida, ia dar uma volta pelo jardim; chegada ao campo acústico da gaita de foles, a desgraçada, se tinha uma alma forte, apenas estremecia. Em geral, porém, as pessoas de intelecto mediano fugiam desvairadas. Devemos concordar que são de certo modo lúgubres as primeiras tentativas do amador de gaita de foles. Ainda me lembro de quando vivia o meu amigo. Tocar gaita de foles é fatigante. Antes de começar, tem de se tomar fôlego às carradas. Convenci-me disso quando observei Jefferson. Começava numa nota enérgica, vigorosa, verdadeiramente encantadora. Mas à medida que avançava, enfraquecia e o último acorde acabava numa fífia e num sopro. É preciso uma saúde de ferro para tocar gaita de foles. Jefferson só aprendera uma música; mas eu nunca ouvi ninguém queixar-se por ter um repertório reduzido. Essa ária 164 era, segundo ele: Aí vêm os Campbell! Hurra! Mas o pai teimava sempre que era Os sinos da Escócia. Ninguém sabia ao certo o que era aquela música, mas todos concordavam que parecia escocesa. Depois de jantar, Harris mostrou-se mal disposto - creio que o Irish stew lhe fez mal: não estava habituado a comidas tão suculentas. Jorge e eu resolvemos deixá-lo a bordo e dar um passeio a Henley, e ele disse-nos que ia fumar um cachimbo, beber um copo de whisky e arrumar tudo para a noite. À volta bastava que o chamássemos, que ele iria logo no barco buscar-nos. Não há perigo. Com este guisado não durmo - resmungou ele, remando para a ilha. Em Henley havia grande animação com os preparativos para as próximas regatas. Encontrámos na cidade muita gente conhecida, passando-se o tempo depressa e em agradável companhia. Eram perto de onze horas quando voltámos para o barco. Estava uma noite desagradável, um pouco fresca, e caía uma chuva miudinha. Enquanto -avançávamos no caminho escuro e só, íamos pensando no abrigo do nosso barco, na luz que filtrava pelas juntas da cobertura, em -Harris, Montmorency e no whisky, e desejávamos já ter chegado. Imaginávamo-nos a bordo, cansados e cheios de apetite. Na nossa frente, o rio escuro e a folhagem vaga; e sob as árvores, qual bicho reluzente, o nosso querido e velho barco, íntimo e familiar. Víamo-nos a cear carne fria e pão; julgávamos ouvir o harmonioso tilintar das facas, as vozes risonhas enchendo o espaço e ecoando na escuridão. Apressámos por isso o andar no desejo de transformar esta visão em realidade. Chegámos enfim à margem, o que nos deu grande alegria, pois até aí não tínhamos a certeza se nos dirigíamos para o rio 165 ou pára o lado oposto, e quando se está cansado e com vontade de dormir, semelhante incerteza -é um tormento. Era meia-noite menos um quarto quando passámos em Shiplake, dizendo-me Jorge em ar pensativo: - Ouve lá, lembras-te de qual das ilhas era? - Não - respondi, ficando também pensativo. - Quantas são elas? - São só quatro. É fácil acertar se ele estiver acordado. - E se não estiver? - perguntei eu. Afastámos logo essa suposição. Chegados à altura da primeira ilha, chamámos, sem obter resposta. Passámos à segunda e o resultado foi o mesmo. - Ah! agora já me lembro - disse o Jorge. - É a terceira! Corremos cheios de esperança à terceira ilha, mas Não obtivemos resposta. A situação tornava-se grave. Já passava da meia-noite, os hotéis de Shiplake e de Henley deviam estar cheios e não podíamos, noite alta, acordar os habitantes

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para saber se eles tinham quartos para alugar. Jorge propôs voltarmos a Henley e interpelar violentamente um polícia para assim obter quarto na esquadra. Mas ocorreu-nos logo esta hipótese: «E se ele nos dá uma tareia e não nos leva para a esquadra?» Não podíamos levar a noite inteira à pancada aos polícias. E além disso, se exagerássemos, eramos capazes de apanhar seis meses de prisão. Como último recurso, fizemos ainda uma tentativa junto da ilha, que julgávamos ser a quarta, mas com a mesma sorte. A chuva caía agora pesada, estávamos ensopados, gelados e mal dispostos. Começámos a pensar se as ilhas seriam realmente só quatro, e até mesmo se estaríamos ao pé delas, ou em qualquer sítio absolutamente oposto, pois na escuridão não reconhecíamos o lugar. Como compreendíamos bem as 166 aflições do garoto perdido na floresta! Perdia-se toda a esperança! ... Sim, bem sei, é sempre em tal momento que as coisas mais extraordinárias acontecem nos contos e nos romances; mas não é culpa minha se a vida é também um romance. Resolvi, quando comecei a escrever este livro, ser em tudo absolutamente verdadeiro, e hei-de sê-lo, nem que para isso tenha de fazer uso de expressões gastas e bafientas. Repito, perdera-se toda a esperança, quando de repente eu avistei, na outra margem, um pouco mais acima, uma estranha luz trémula. A luz era tão vaga e misteriosa que, durante um segundo, lembrei-me de almas do outro mundo. Mas imedíatamente compreendi que era o nosso barco e lancei um tal berro que a própria noite pareceu estremecer. Ficámos um minuto na expectativa; e então - qual música divina na escuridão! - respondeu um latido de Montmorency. Lançámos novos berros, capazes de acordar os Sete Adormecidos (nunca compreendi porque é preciso mais barulho para acordar sete dorminhocos do que um só) e depois de um intervalo que nos pareceu durar uma hora, mas que não deve na realidade ter passado de cinco minutos, vimos o barco avançar lentamente e ouvimos a voz sonolenta de Harris perguntar-nos onde estávamos. Havia não sei que tonalidade estranha na voz de Harris, mais do que simples cansaço. Empurrou primeiro o barco contra um ponto da margem onde nos era absolutamente im possível chegar. Esfalfámo-nos a gritar e berrar antes que ele acordasse melhor e percebesse o que dizíamos. Por fim lá entendeu e embarcámos sem mais trabalhos. Uma vez a bordo, reparámos que Harris tinha um ar triste. Dava a impressão dum homem que sofrera qualquer aborrecimento grande. Perguntando-lhe se lhe tinha acontecido alguma coisa, disse-nos apenas: 167 - Os cisnes! Ao que parece tínhamos atracado mesmo junto dum ninho de cisnes e, logo depois de o Jorge e eu nos irmos embora, aparecera a fêmea protestando energicamente., Harris enxotara-a e ela partira em busca do senhor seu esposo. Contou-nos que tivera então de sustentar uma verdadeira luta com os dois bichos; mas, graças à sua coragem e perícia, conseguira vencê-los e afastá-los. Passada meia hora, voltaram com mais dezoito. Segundo conta Harris, foi uma batalha épica. Os cisnes tentaram arrancá-los do barco, ele e o Montmorency, e afogá-los a ambos. Depois de se defender como um herói durante quatro horas, matara-os a todos e a corrente levara os cadáveres para longe. - Quantos disseste que eram? - perguntou o Jorge. - Trinta e dois - respondeu Harris meio a dormir. - Mas tu acabaste de dizer que eram dezoito - replicou o Jorge. - Não, não disse nada - resmungou Harris. - Disse doze. Julgas que eu não sei contar? Nunca chegámos a saber a verdade sobre este caso. Quando na manhã seguinte interrogámos Harris, ele respondeu: «Quais cisnes?», como quem imaginava que o Jorge e eu estávamos ambos a sonhar. Ah!, que delícia encontrarmo-nos de novo no barco, em segurança depois de tantas lutas e receios.

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Jorge e eu comemos com apetite, e ainda queríamos tomar um grogue, mas quando procurámos o whisky não o encontrámos. Interrogando Harris sobre o inesperado desaparecimen to, pareceu-nos nem conhecer o significado da palavra whisky, nem compreender do que falávamos. Montmorency sabia qualquer coisa, mas não disse nada. Dormi muito bem nessa noite e melhor teria dormido se não fosse Harris. Tenho uma vaga ideia de ele me ter acorda 168 do pelo menos uma dúzia de vezes nessa noite. Andava de lanterna em punho, procurando por todo o barco o próprio fato. Creio bem que passou toda a noite nessa faina. Fez-nos levantar duas vezes, ao Jorge- e a mim, para ver se estávamos deitados em cima das calças dele. À segunda vez, Jorge enfureceu-se: - Mas, que diabo!, para que precisas tu das calças no meio da noite? Não podes deitar-te e dormir sossegado? Quando acordei de novo, andava ele desolado por não saber onde tinha as meias. E como última recordação, lembro-me ainda de que me empurrou violentamente, murmurando numa voz sonolenta que não sabia onde tinha deixado o chapéu de chuva. CAPÍTULO XV Na manhã seguinte levantámo-nos tarde e, satisfazendo um pedido de Harris, o almoço foi simples e sem extras. Depois pusemos tudo em ordem (este trabalho continuado come çava a esclarecer um problema que há muito me preocupava; e que era o seguinte: em que passa o tempo uma mulher que tem como única ocupação o trabalho da sua casa?) e pelas dez horas pusemo-nos a caminho, resolvidos a avançar um bom bocado. Nessa manhã, para variar, resolvemos remar. Harris lembrou que era melhor Jorge e eu remarmos, e ele ir ao leme. Não concordei. Declarei que achava que ele teria dado maior prova de juízo se se oferecesse para trabalhar com o Jorge, deixando-me descansar um pouco. Eu tinha já trabalhado mais do que me competia e começava a achar a tarefa pesada. 169 Tenho sempre a impressão de que faço mais do que devia. Não é que eu me furte ao trabalho, notem bem; acho-o até uma coisa encantadora. Era capaz de ficar horas em contemplação diante dele. Adoro ver trabalhar. A ideia de me separar dele desola-me. Nunca é de mais aquele que me dão; acumula-lo é o meu ideal; o meu escritório está cheio de trabalho por fazer, não cabe lá mais fiada. Dentro em pouco tenho de mandar construir um anexo. E sou também muito zeloso. Uma parte do trabalho que tenho actualmente em casa está sob minha guarda há anos e não se lhe vê a menor poeira. Tenho orgulho no meu trabalho; de tempos a tempos pego-lhe e limpo-lhe o pó! Ninguém oconserva em melhor estado do que eu. Apesar de apreciar muito o trabalho, gosto de ser justo e só desejo o que me compete. Infelizmente, vêm dar-me trabalho sem que eu o peça - e isto arrelia-me. Jorge afirma que não devo preocupar-me com o caso. Só o meu temperramento excessivamente escrupuloso é que me leva a recear que me dêem mais trabalho do que o que me é devido e que, na realidade, não tenho nem metade do que me compete. Mas eu acho que ele diz isto para me consolar. Já reparei que, quando se vai num barco, cada membro da equipagem se convence de que é o único que trabalha. Na opinião de Harris só ele é que tinha feito alguma coisa e Jorge e eu tínhamos abusado da sua generosidade. Por outro lado, o Jorge acha ridículo admitir que Harris tenha feito outra coisa que não seja comer e dormir, e está convencido de que só ele, ele, Jorge, fez tudo quanto foi necessário. Segundo dizia, nunca tinha andado em excursão nenhuma com dois mandriões maiores do que o Harris e eu. Esta mentira provocou a ironia de Harris. 170

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- Não vês o Jorge a falar de trabalho! Se trabalhasse, morria ao fim de meia hora! Já alguma vez o viste fazer qualquer coisa? - disse, voltando-se para mim. Eu concordei que nunca vira - pelo menos desde o princípio do nosso passeio. - Essa é boa! Não vejo bem como é que tu podes dizer uma palavra a esse respeito - observou Jorge ao Harris. - Diabos me levem se tu não tens vindo a dormir mais de metade do caminho! Viste alguma vez Harris bem acordado, sem ser à hora das refeições? - perguntou-me Jorge. A verdade obrigou-me a confirmar as suas palavras. Desde o princípio, Harris não se tornara útil uma única vez. - Ora! Apesar de tudo, sempre fiz alguma coisa mais do que o nosso amigo Jerome - protestou Harris. - Lá isso é verdade. Também era difícil fazer menos. - Quer-me parecer que o Jerome julga que é um passageiro - continuou Harris. Era essa a gratidão que sentiam por mim, depois de eu os ter conduzido todo o caminho desde Kingston, depois de ter dirigido e preparado tudo para eles, de ter tomado conta deles, e de me ter esfalfado como um escravo. A vida é assim. Para resolver a dificuldade de momento, decidimos que Harris e Jorge remariam até acima de Reading, e a partir daí levaria eu o barco à sirga. Remar num barco pesado, contra uma forte corrente, é coisa que já não me interessa. Houve um tempo, há muitos anos, em que eu reclamava que me dessem esse árduo trabalho; mas, agora, acho que isso é bom para a gente nova. Verifiquei que os velhos barqueiros do Tamisa, quando se trata de remar forte, também pedem que os reformem. Conhece-se logo o velho frequentador do Tamisa, pela maneira como ele se repimpa nas almofadas do fundo do barco e como anima os remadores contando-lhes anedotas sobre os altos feitos por ele realizados no ano anterior. - Vocês chamam a isto um trabalho pesado - diz em ar de desprezo aos dois novatos que, suando, vêm a remar há hora e meia, contra a corrente. - Pois olhem, Jim Biffles, Jack e eu, subimos o ano passado, a remo, desde Marlow até Goring, numa tarde só, sem parar uma única vez. Lembras-te, Jack? Jack, que arranjou na frente do barco uma cama com todas as mantas e almofadas que pôde apanhar e que há duas horas não faz outra coisa senão dormir, acorda ao ser interpelado e recorda a história toda. Lembra-se ainda de que tinham tido todo o caminho, contra eles, uma forte corrente e um vento muito violento. - Fizemos bem uns cinquenta e cinco quilómetros, não foi? - acrescenta o primeiro entre duas fumaças, puxando mais um almofada para debaixo da cabeça. - Não, não exageres, Tom - diz o outro em tom de censura. - Foram cinquenta e quatro quilómetros, quando muito. Jack e Tom, exaustos do grande esforço de falar, caem de novo na mesma sonolência. E os dois ingénuos, julgando-se muito felizes por levarem o barco em que vão dois remadores tão formidáveis como Jack e Tom, entregam-se com mais entusiasmo à sua tarefa. Quando eu era novo, ouvia atentamente as histórias que me contavam os mais velhos, aceitava-as, engolia-as, digeria-as até ao fim, e pedia mais. Mas parece-me que a nova gera ção não tem já a confiança ingénua de outros tempos. No ano passado, nós - quer dizer, Jorge, Harris e eu = levámos uma vez no nosso barco um «noviço» e fomos todo o caminho a contar-lhe as histórias habituais sobre os feitos maravilhosos que tínhamos realizado. Mimoseámo-lo com toda a série da praxe = todas essas 172 petas clássicas, que há tantos anos vêm sendo repetidas a todos quantos vogam no Tamisa, e acrescentámos sete histórias da nossa lavra, absolutamente originais. Uma delas, muito bem imaginada, baseava-se num caso mais ou menos verdadeiro que tinha acontecido a um amigo nosso. Uma criança tragá-la-ia sem grande dificuldade. Pois o rapaz-riu-se das nossas histórias e pediu-nos que lhas repetíssemos, apostando em como não seríamos capazes de as contar todas. Nessa tal manhã, recordámos as nossas aventuras todas, com evidente complacência. A minha recordação mais antiga era de uma vez em que nos quotizáramos, a cinco ou seis tos tões por cabeça, para andar no lago de

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Regent's Park numa jangada manhosa, passeio que teve como consequência irmos todos secar os fatos para casa do guarda do parque. Daí por diante, tomei gosto à navegação, e exercitava-me a andar de jangada nos pátios inundados dos arredores - exercícios de um interesse mais palpitante do que se julga, principalmente quando, estando-se no meio do tanque, aparece subitamente em terra, com um grande pau na mão, o dono do material de que é feita a jangada. Perante esta personagem, a nossa primeira impressão é de que não estamos por qualquer modo à altura de sustentar uma conversa com ele e que talvez seja melhor, se for possível, evi tar aproximações. Procuramos então alcançar a borda oposta àquela em que ele está e voltar para casa depressa e sem barulho, fazendo de conta que não o vimos. Mas ele é que está, pelo contrário, desejoso de nos apertar a mão e de dar dois dedos de conversa. Até parece que conhece a nossa família, e que é das nossas relações mais íntimas. Nem isso, no entanto, nos faz aproximar. Diz então que vai ensinar-nos a roubar-lhe as próprias tábuas para fazer jangadas. Mas como nós já sabemos muito 173 bem como isso se faz, a oferta, ainda que muito amável, parece-nos inútil, e poupamos-lhe essa maçada, não a aceitando. O desejo enorme que mostra em vir ter connosco resiste à nossa frieza e o desembaraço com que corre em volta do tanque, de modo a estar ali quando desembarcamos, é realmente lisonjeiro. Se é pesado e não é novo, é fácil fugir-lhe; mas se é novo e ágil, é inevitável um encontro. No entanto a entrevista é das mais rápidas, pois só ele é que fala, limitando-nos nós a soltar umas exclamações monossilábicas e a fugir logo que nos é possível. Durante três meses exercitei-me na arte da jangada. Depois, tendo já os conhecimentos necessários, resolvi inscrever-me como sócio dum clube náutico. Andando de canoa no rio, especialmente ao sábado à tarde, adquire-se depressa agilidade e jeito para fugir aos palermas que nos metem no fundo, ou para evitar os outros barqui tos. Este modo de navegação oferece ainda muitas ocasiões de nos precipitarmos, rápidos e com elegância, no fundo do barco, para evitar cair à água, empurrados pelos cabos de sirgar que vão passando. Só o que não se adquire é o «estilo» da minha remada, que me dizem agora ser dos mais elegantes. O Jorge só aos dezasseis anos andou pela primeira vez de barco. Juntando-se a oito rapazes da mesma idade, foram num sábado a Kew, na intenção de alugarem uma canoa para irem a Richmond e voltarem, sempre a remar. Um deles, um vaidoso chamado Joskins, que andara uma vez ou duas de barquito na -Serpentina,>', assegurou-lhes que era muito divertido andar de canoa. A maré estava a descer quando chegaram ao cais, e sopra 174 va um vento forte. Mas eles não se importaram com essas ninharias e escolheram um barco. Estava a secar em terra um «charuto» de corridas, de quatro remos; foi o que eles escolheram. O dono dos barcos não estava presente; só estava um empregado, que, tentando esfriar-lhes o entusiasmo pelo «charuto», mostrou-lhes duas ou três canoas mais confortáveis. Mas eles não quiseram; só queriam o -charuto>>. O rapaz deitou-o à água e eles, tirando os casacos, preparam-se para tomar os seus lugares. Como já nesse tempo o Jorge era o peso-pesado de todas as sociedades em que se encontrava, o empregado aconselhou-o a que tivesse cuidado. Jorge, cheio de boa vontade, foi sentar-se no banco de vante, de costas para os outros. Em seguida entraram os companheiros. Mandaram um deles, que era muito nervoso, para o leme, e Joskins explicou-lhe como devia, manobrar. O próprio Joskins pegou então num remo, afirmando aos outros que era muito fácil; bastava que fizessem como ele. - Estão prontos? - perguntou o empregado. - Estamos - responderam todos. Largando a boça, o rapaz empurrou-os para o largo.

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O Jorge não é capaz de explicar o que então se passou. Tem uma vaga ideia de ter apanhado uma pancada violenta, no meio das costas, com o punho do remo n.° 5, ao mesmo tempo que o banco fugia debaixo dele, deixando-o sentado no fundo. Notou também que ao mesmo tempo o n.° 2, tomado talvez de um ataque, caía de costas e pernas para o ar. Passaram debaixo da ponte de Kew, com o barco de lado, numa velocidade de quinze quilómetros á hora. Ia só o Joskins a remar. Jorge, voltando a sentar-se no seu banco, tentou ajudá-lo mas, mal meteu o remo na água, logo este fugiu para debaixo da quilha, pouco faltando que o arrastasse para a água. O timoneiro, largando os cabos do leme, desatou a chorar. 175 Jorge nunca soube como tinham voltado! Só sabe que a manobra lhes levou quarenta minutos. Uma multidão observava com o maior interesse, do alto da ponte de Kew, as difí ceis manobras, dando cada um o seu conselho. Por três vezes os marinheiros valentes foram arrastados para debaixo da ponte. De cada vez o timoneiro, erguendo o olhar e vendo a ponte por cima, redobrava o choro. Jorge confessa que nesse dia imaginou que nunca seria capaz de andar bem de canoa. Harris está mais habituado a remar no mar e diz que gosta mais desse exercício do que de andar no rio. Eu não. Lembro-me de uma vez que me meti num barquito em Eastbourne, no verão passado. Tinha andado bastante no mar uns anos atrás; por isso não tinha o menor receio. Mas convenci-me nesse momento de que esquecera por completo essa arte. Enquanto um remo mergulhava profundamente na água, o outro agitava-se desesperado no ar. Para conseguir mergulhar os dois ao mesmo tempo, tive de me pôr de pé! A praia estava cheia de gente chique. Tive de passar em frente de todos nessa figura grotesca! Desembarquei corrido, pedindo logo a um velho barqueiro que me ajudasse. Gosto de ver remar um velho barqueiro, principalmente quando o barco é alugado à hora. Há na sua atitude uma soberba e calma dignidade. Não mostra essa pressa frenética, essa ânsia de velocidade que é o flagelo cada vez maior do século XIX. Não tem o menor empenho em ultrapassar os outros barcos. Se um barco o apanha e lhe passa à frente, ele não se importa; e, realmente, todos lhe passam à frente - todos os que vão na mesma direcção. Há pessoas a quem isto irrita e arrelia; a sublime magnanimidade do barqueiro de aluguer, submetido a tal prova, dá-nos uma bela lição que nos previne 176 contra a ambição e a vaidade. A remada vulgar que faz avançar um barco à toa não é difícil de aprender, mas é preciso ter muita prática para nos sentirmos à vontade diante de senhoras. A dificuldade, ao princípio, é obedecer ao conjunto. - É esquisito - diz um principiante admirado, desembaraçando pela vigésima vez os seus remos dos nossos -, já remo tão bem quando ando só! Dois «noviços», exercitando-se a remar juntos, é um espectáculo divertido. O de vante declara que é impossível acertar com o seu companheiro, porque ele rema de uma maneira estranha. O de ré insurge-se contra esta acusação e diz que há cinco minutos que procura adaptar a sua remada às capacidades medíocres do de vante. O de vante irrita-se e pede ao de ré que não se preocupe tanto com ele, mas que procure remar com mais inteligência. - Ou queres então que eu tome o teu lugar? - acrescenta, evidentemente convencido de que vai pôr as coisas a direito. Continuam a patinhar uns cem metros; depois, num vislumbre de inspiração, ocorre ao de ré qual o motivo de tantos dissabores. - Sabes o que é? Temos os remos trocados. Dá cá os teus, que eu dou-te os meus. - Realmente, eu não me ajeitava com estes - responde o de vante, serenando e fazendo a troca. - Agora é que isto vai bem. Mas por mais que façam continua tudo na mesma. O de ré tem agora de esticar os braços para remar; o de vante, a cada remada que dá, bate com os remos em cheio no peito. Trocam

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de novo e acabam por concluir que o dono do barco lhes deu uns remos que não servem, e nesta convicção fazem as pazes. Jorge contou-nos que tinha experimentado andar de chata 177 para variar. Não é tão fácil como parece, governar uma chata à vara. Como com os remos numa canoa, aprende-se depressa a fazer avançar o barco, mas leva certo tempo para se fazer com habilidade e sem encher as mangas de água. Aconteceu um incidente muito desagradável a um rapaz meu amigo, da primeira vez que conduziu uma chata à vara. Graças aos rápidos progressos que fizera, sentia uma confian ça excessiva na sua habilidade, e manobrava com desembaraço e agilidade. Ia até à proa da chata, espetava a vara no fundo, e depois voltava até à outra ponta do barco, como se fosse um velho marinheiro. Teria continuado tudo a ser muito lindo se, por pouca sorte, distraindo-se a contemplar a paisagem, não desse um passo mais do que devia, pondo o pé fora da chata. A vara estava solidamente presa no lodo e o. meu amigo ficou pendurado, enquanto a chata fugia água abaixo. A sua posição era bem pouco decorativa. Um rapazito que estava na margem pôs-se logo a chamar um companheiro, dizendo-lhe que viesse depressa para ver «um macaco pendurado num pau». Foi-me impossível socorrê-lo, pois quis a nossa pouco sorte que não tivéssemos levado outra vara. Tive de me ficar a contemplá-lo sem lhe poder valer. Nunca hei-de esquecer a expressão dele enquanto a vara cedia sob o seu peso: parecia infinitamente pensativo. Vi-o afundar-se mansamente e depois nadar para terra, com um ar infeliz. Não pude deixar de me rir. E só parei quando notei que havia bem pouca razão para rir. Ali estava eu, sozinho numa chata, no meio do rio, levado pela corrente que me arrastava, talvez, para algum dos desaguadouros da represa. Apoderou-se de mim uma grande indignação contra o amigo que se lembrara de saltar borda fora, abandonando-me assim. Ao menos podia ter-me deixado a vara. 178 Depois de andar à deriva talvez um quilómetro, avistei na minha frente, ancorado no meio do rio, um barquito com dois velhos pescadores. Quando me viram, gritaram-me que me afastasse. - Não posso - respondi eu. - Pois se nem sequer tenta! - protestaram os pescadores. Quando cheguei perto deles expliquei a minha situação. Agarrando o barco, emprestaram-me uma vara. Foi a minha sorte tê-los encontrado ali. O desaguadouro ficava uns cinquenta metros mais abaixo. A primeira vez que resolvi andar de chata ia com mais três camaradas; queriam ensinar-me a maneira de a conduzir. Por qualquer circunstância não pudemos ir juntos e eu ofereci-me para ir à frente e alugar a chata para me exercitar até eles chegarem. Não consegui nessa tarde arranjar uma. Estavam todas tomadas. A única coisa que me restava era sentar-me na margem esperando pelos meus amigos. Estava ali havia um bocado, quando reparei, surpreendido, no passageiro de uma chata que levava um casaco e um boné exactamente iguais aos meus. Pela maneira curiosa como manobrava, era evidentemente um novato. Era impossível imaginar o que ia passar-se quando ele mergulhava a vara na água, e nem ele próprio decerto sabia. Tão depressa alteava o corpo como o abaixava, ou então ficava no mesmo sítio, girando em volta da vara. O resultado de cada uma das suas experiências parecia causar-lhe tanta surpresa como desagrado. Em breve se reuniu gente na margem, interessando-se nas suas manobras e fazendo apostas sobre o resultado da próxima tentativa. Entretanto, apareceram os meus amigos e pararam, como toda a gente, para ver. O principiante estava de costas para eles, que só podiam ver o casaco e o boné. Concluíram imediatamente que era eu que estava a dar aquele espectáculo; e, radiantes, começaram a fazer troça sem piedade. 179 A princípio, não compreendi o engano, e disse comigo mesmo: «Mas que grosseiros, a procederem assim com um estranho!». Mas imediatamente me ocorreu a explicação da

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quele erro, e escondi-me atrás de uma árvore. Que prazer eles mostravam em tornar ridículo o pobre rapaz! Durante cinco. minutos ficaram ali a dizer-lhe grosserias, gracejos e insultos. Atacaram-no com graçolas banais e inventaram mesmo algumas novas para lhe lançar. Atiraram-lhe com todas as blagues em uso no nosso grupo, e que deviam ser para ele absolutamente incompreensíveis. Incapaz de suportar por mais tempo tão ferozes dichotes, o rapaz voltou-se e só então eles lhe viram a cara. Verifiquei com prazer que tinham ainda o pudor bastante para ficar com ar de parvos. Desculparam-se, dizendo que lhes tinha parecido ser uma pessoa do seu conhecimento. Acrescentaram ainda que esperavam que ele os julgasse incapazes de zombar daquele modo de pessoa que não fosse um amigo pessoal. Evidentemente, o facto de o terem tomado por um amigo desculpava tudo. Isto faz-me lembrar uma aventura que Harris me contou e que lhe aconteceu um dia em Boulogne. Passeava próximo da praia, quando sentiu que o agarravam pelo pescoço, obrigando-o a mergulhar. Lutou com energia, mas aquele que o agarrava devia ser um verdadeiro Hércules. Todas as tentativas que fez para lhe escapar foram vãs. Já desistira de lutar e pensava no fim tão próximo que o esperava, quando o seu carrasco o largou. Voltando ao de cima de água, procurou com um olhar aquele que quase o matara. O assassino estava mesmo ao seu lado, rindo contente, mas no momento em que viu surgir da água a cara de Harris, ficou desolado. - Oh! Peço muita desculpa - balbuciou atrapalhado - tomei-o por um amigo meu! Harris ainda se deu por muito feliz por o engraçado não o 180 ter tomado por algum parente, porque, nesse caso, decerto o teria afogado a valer. Navegar à vela é uma coisa que exige ciência e prática; mas quando era novo eu não queria acreditar. Convencia-me de que era uma coisa que se fazia naturalmente e por intuição. Conheci um outro rapaz que pensava como eu, o que deu em resultado irmos os dois, num dia de muito vento, experimentar esse desporto. Estávamos a férias em Yarmouth e resolvemos ir dar um passeio no estuário do Yare. Alugámos um barco à vela e metemo-nos a caminho! - O tempo não está lá muito bom - disse-nos o homem, soltando a amarra. - Faziam melhor em meter as velas nos rizes e virar por davante ao voltar da curva. Respondemos-lhe que não deixaríamos de o fazer e dissemos-lhe um «adeus» alegre, perguntando a nós mesmos o que era virar por davante, e o que eram rizes e para que serviam. Remámos para longe da cidade e quando descobrimos na nossa frente aquela vasta extensão de água, sobre a qual soprava um vento tempestuoso, julgámos que chegava a ocasião de começar as manobras. Heitor.- era esse, creio eu, o seu nome - continuou a remar enquanto eu desfraldava a vela. Apesar de a tarefa ser complicada, levei-a a cabo, mas então surgiu este problema: em que direcção deveria colocar a vela? Por uma espécie de instinto natural, resolvemos, é claro, que a parte de baixo era a de cima, e tratámos de colocar a vela às avessas. Mas, bem ou mal, levou-nos muito tempo a colocar. A vela parecia intimamente convencida de que estávamos a simular um enterro e que eu era o cadáver e ela a mortalha. Quando se convenceu de que se tratava de outra coisa, deu-me uma forte pancada com a verga e não quis saber de mais nada. 181 - Molha-a - disse-me Heitor, -, mete-a dentro de água. E assegurou-me que nos navios molhavam sempre as velas antes de as içar. Molhei-a, mas ainda foi pior. Uma vela seca a enrodilhar-se na nossa cabeça e a bater-nos nas pernas, não é nada divertido, mas com o pano a escorrer água, ainda é mais desagradável. Por fim, os dois juntos, lá conseguimos içar a vela. Não a pusemos bem de pernas ao ar, ficou antes um pouco de lado, e cortámos a amarra do barco para atar.

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Só me admiro como -o barco não se virou. Não consigo perceber por que motivo não o fez. Desde então, tenho pensado muito neste fenómeno, mas nunca descobri uma explicação satisfatória. Talvez esse resultado fosse devido ao espírito de contradição inerente às coisas deste mundo. Quem sabe se o barco, convencido, pelo nosso procedimento, de que nós queríamos suicidar-nos, resolveu impedir-nos de o fazermos? É a única suposição razoável que encontro. Mal conseguimos aguentar-nos dentro do barco, agarrando-nos energicamente à borda. Heitor lembrou que os piratas e toda a gente do mar, em geral, prendiam o leme e amaina vam a verga maior, e achava que nós devíamos tentar qualquer coisa nesse género, mas eu disse que era melhor deixar o barco fazer frente ao vento. Como a minha ideia era de mais fácil realização, adoptámo-la, e, agarrando-nos cada vez mais à borda, abandonámos o barco a si próprio. Este subiu o rio numa extensão de um quilómetro, numa velocidade em que eu nunca desde então naveguei, nem mesmo desejo repetir. Depois, numa curva, adornou de tal, modo, que metade da vela ficou debaixo de água. Como que por milagre, endireitou-se e foi encalhar num banco de lodo. 182 Este obstáculo salvou-nos. Depois de o atravessar até meio, o barco parou. Vendo que tínhamos de novo a possibilidade de andar à nossa vontade em vez de sermos sacudidos e baloiçados como ervilhas num saco, fomos à proa para arriar a vela. Já estávamos fartos de navegar à vela, não queríamos exagerar. Tinha sido muito agradável aquele bocado, mas já era tempo de remar um pouco para variar. Pegando nos remos, tentámos sair do lodo, mas nesta operação partiu-se um. Continuámos com prudência, mas aqueles remos pareciam feitos de cera, e partiu-se também o segundo. Ficamos desolados. O lodo estendia-se numa centena de metros na nossa frente; por detrás ficava a água. A única coisa que havia a fazer era esperar pacientemente que aparecesse alguém. O tempo não estava muito agradável no rio, para passear; esperámos três horas sem ver ninguém. Por fim apareceu um velho pescador que com grande dificuldade nos livrou do lodo, levando-nos depois a reboque até à recolha dos barcos. Tanto para recompensar o homem que nos levou a porto de salvamento, como para pagar os remos quebrados e as quatro horas e meia que tínhamos andado no barco, este passeio à vela custou-nos bom dinheiro. Mas tínhamos adquirido experiência, e dizem que a experiência nunca se paga caro de mais. CAPÍTULO XVI Eram onze horas quando chegámos a Reading. O Tamisa é nesse lugar feio e triste. Não é trecho de paisagem em que valha a pena parar. 183 A própria povoação é uma velha cidade célebre, datando dos dias longínquos do rei Ethebred, quando os dinamarqueses atracavam os seus navios de guerra em Kennet e partiam de Reading para irem devastar terras de Wessex. Foi aí que Ethebred e o seu irmão Alberto os venceram e desbarataram. Desde então, 'Reading parece ter sido considerado como um refúgio cómodo, quando as coisas correm mal em Londres. Quando alastrava a peste em Westminster, o Parlamento fugia sempre para Reading; em 1625, a justiça seguia-lhe o exemplo, e desde então os tribunais reuniram-se em Reading. Na verdade, valia a pena ter de quando em quando uma epidemiazita de peste em Londres, para ficarmos livres da gente de leis e do Parlamento. Durante a guerra parlamentar, Reading foi cercado pelas tropas do conde de Essex, e um quarto de século mais tarde o príncipe de Orange venceu aí o rei Jaime. Henrique I foi enterrado em Reading, no convento por ele fundado, cujas ruínas ainda hoje existem, dos frades Beneditinos. Foi nesse mesmo convento que se realizou o casamento do famoso João de Gand com a Sr.a Branca. Na represa de Reading encontrámos o barco a vapor de um amigo meu, que nos rebocou até perto de Streatley. É muito agradável ser rebocado por um vapor.

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Gosto muito mais disso do que de ter de remar. O passeio ainda teria sido mais agradável se não fosse uma quantidade de barquitos que se metiam constantemente à frente do nosso vapor, obrigando-o a abrandar ou a parar para não os afundar. É realmente muito desagradável esta mania que têm os barcos de remos de atrapalhar a passagem dos vapores do Tamisa; deviam ser tomadas medidas para acabar com isso. E ainda por cima são de uma impertinência fantástica. 184 Podemos rebentar as caldeiras a apitar sem que eles se dêem ao trabalho de andar mais depressa. Se me deixassem, metia no fundo um ou dois, só para os ensinar. Um pouco acima de Reading, o Tamisa volta a ser encantador. O caminho de ferro prejudica-o um pouco, próximo de Tilehurst, mas de Mapledurham a Streatley a paisagem é ma ravilhosa. Um pouco acima de Mapledurham, passa-se no castelo de Harduvieh, onde Carlos I jogava à bola. Os arredores de Pangbourne, onde fica a pitoresca e pequena hospedaria do Cisne, que vos recomendo, devem ser tão familiares para os frequentadores de exposições de pintura como para os próprios habitantes. O vapor dos meus amigos deixou-nos mesmo em frente da gruta e Harris julgou útil recordar que era a minha vez de remar. Esta pretensão pareceu-me abusiva. Tínhamos combi nado pela manhã que eu levaria o barco a cinco quilómetros de Reading. Ora nós já estávamos a dezasseis quilómetros dessa terra. Evidentemente era agora a vez de eles remarem. Mas foi-me absolutamente impossível levar o Jorge ou o Harris a concordar com este ponto de vista. Por isso, e para evitar discussões, peguei nos remos. Remava havia dez minutos, quando Jorge reparou numa coisa preta que boiava à tona de água. Aproximámo-nos para ver o que era. Jorge inclinou-se para agarrar o objecto mas,fazendo-se muito pálido, recuou, soltando um grito. Era o cadáver de uma mulher. Flutuava rapidamente, com uma expressão calma e serena. Não era bonita. O seu rosto estava muito envelhecido, emagrecido e transtornado, para merecer esse qualificativo, mas era no entanto agradável apesar dos sinais de desgosto e de miséria, e.apresentava aquele 185 ar de repouso e calma que se vê às vezes na fisionomia dos doentes que deixaram enfim de sofrer. Felizmente para nós, pois não nos interessava perder o nosso tempo no tribunal - a gente que estava na margem também tinha visto o cadáver, e tomou conta dele. Soubemos mais tarde a história dessa mulher. Era o velho drama clássico. Amara e fora enganada, ou tinha enganado. De qualquer modo tinha pecado - pode acontecer a qualquer pessoa - e a família e os amigos, como é lógico, tinham-lhe fechado as portas de suas casas. Ficara só a lutar contra o mundo, aguentando o peso da sua vergonha, e caíra sempre mais baixo. Vivera algum tempo, com o filho, com doze xelins que ganhava por semana, numa escravidão de doze horas quotidianas, pagando daí seis xelins para a criança e vivendo do resto. Não se vai longe com seis xelins por semana. Em condições semelhantes a vida só pede que a deixem fugir. Um dia, creio eu, apresentaram-se, aos olhos da pobre mãe, a miséria e a monotonia da sua sinistra existência, perseguindo-a 'o espectro angustioso da morte. Lançou um último apelo aos seus amigos, mas a voz da infeliz esbarrou no muro glacial da sua honorabilidade. Foi então ver o filho, tomou-o nos braços, e depois de um último beijo triste e melancólico, e sem deixar transparecer a sua perturbação, deixou-o dando-lhe um chocolate barato. Depois gastou os xelins que lhe restavam em comprar um bilhete para Goring. Às recordações mais amargas da sua existência associavam-se talvez aquelas encostas arborizadas e aqueles prados verdejantes dos arredores; mas as mulheres têm uma estranha afeição ao punhal que as fere e quem sabe se, à sua aflição, não vinha misturar-se a visão alegre de horas muito doces, passadas naquelas águas que as árvores frondosas encobrem? Errou todo o dia nas matas em volta do rio e depois, logo 186

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que veio a noite e o crepúsculo desenrolou o seu véu pardacento sobre as águas, estendeu as mãos para o rio silencioso, testemunha das suas tristezas e alegrias. E o velho Tamisa recebeu-a nos braços acolhedores e apoiou no seu seio a pobre cabeça cuja dor apaziguara. E assim pecou sempre, na vida e na morte! Que Deus a ampare assim como a todos os outros pecadores se os houver! Goring na margem esquerda e Streatley na direita, são dois lugares encantadores e convidativos., Tencionávamos seguir nesse dia até Wellingporth, mas o aspecto agradável do rio nesse lugar prendeu-nos ali por mais algum tempo. Deixando o barco ao pé da ponte, fomos almoçar em Streatley ao Hotel do Toiro. Parece que em tempo os montes situados de cada lado do rio se reuniram nesse ponto, fechando o vale onde hoje corre o Tamisa, e que o rio acabava então acima de Goring, for mando um lago imenso. Não tenho autoridade para combater ou defender esta afirmação. Limito-me a contar: Streatley é um burgo muito antigo que data, como a maior parte das vilas e aldeias marginais, do tempo dos Bretões e dos Saxónios. Tendo de escolher entre os dois sítios, Goring não é realmente tão agradável como Streatley, mas também tem os seus encantos e fica mais perto do caminho de ferro - isto é, permite-nos fugir sem pagar a conta do hotel ... CAPÍTULO XVII Nos dois dias que passámos em Streatley, mandámos lavar a nossa roupa. Tínhamos experimentado nós mesmos no rio, sob a direcção do Jorge, mas sem resultado. Foi um ver 187 dadeiro fiasco: os fatos- ficaram piores depois de lavados do que antes. Antes estavam sujíssimos, é verdade, mas ainda se podiam usar em caso de necessidade. Depois ... até o Tamisa entre Reading e Henley ficou muito mais limpo do que estava, desde que nós lá metemos os nossos fatos. Toda a porcaria contida nesse espaço do rio se entranhou na nossa roupa quando tentámos lavá-la. A lavadeira de Streatley declarou que tinha de levar três vezes mais do que o preço habitual pois os fatos estavam impregnados de porcaria. Pagámos a conta sem protestar. Os arredores de Streatley e de Goring são um grande centro de pesca, devido ao peixe excelente que aí se encontra. O rio abunda em lúcios, cadozés, barbos e enguias, podendo-se ficar ali todo o dia a pescar. E há pessoas que o fazem e nunca apanham nada. Nunca vi ninguém pescar alguma coisa no Tamisa superior, a não ser gatos mortos, o que não tem, é claro, nada que ver com a pes ca. O guia do pescador não diz que se apanhe qualquer coisa nessa região. Contenta-se em afirmar que o sítio é bom para a pesca, e, pelo que vi, acredito que seja verdade. Não há no mundo outro sítio onde se encontrem mais pescadores, nem onde se possa estar mais tempo a pescar. Há quem venha para ali por um dia, outros vêm por todo um mês. Podem lá ficar um ano inteiro: o resultado é o mesmo. O «Guia do Pescador à Linha no Tamisa» diz que «também se encontra lúcio e peixe-pérsico». Há realmente lúcios e peixe-pérsico, posso afirmá-lo; vêem-se aos cardumes, quan do se passeia na margem; deitam a cabeça fora da água e abrem a boca à espera que lhes deitem um bocado de bolacha. E se vamos tomar banho no rio, giram em volta de nós de maneira irritante. Mas quanto a apanhá-los com uma isca na ponta de um 188 anzol, isso nunca se consegue. Eu não sou um bom pescador. Houve um tempo em que me dedicava a esse exercício e em que julgava fazer grandes progressos, mas os entendidos acharam que eu nunca chegaria a fazer nada e aconselharam-me a desistir. Segundo diziam, eu deitava muito bem a linha, e parecia ter certo jeito e a preguiça necessária. Mas asseguravam que eu nunca havia de ser bom pescador; faltava-me a imprescindível imaginação. Como poeta, romancista, repórter, ou qualquer coisa nesse género, tinha talvez suficiente imaginação, mas para alcançar uma boa posição entre os pescadores à linha do Tamisa era preciso mais fantasia, mais poder inventivo do que eu tinha.

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Há pessoas que imaginam que para se ser bom pescador basta saber dizer mentiras com facilidade e sem corar; mas é um erro. A invenção pura e simples não serve de nada, qual quer garoto é capaz disso. É no pormenor minucioso, no tom de pitoresca verosimilhança, no todo de verdade escrupulosa e quase exagerada, que se conhece o pescador à linha experiente. Qualquer pessoa pode vir dizer-nos: «sim, ontem à tarde apanhei quinze dúzias de lúcios., ou « na segunda-feira passada apanhei um cadoz que pesava nove quilos e que media noventa centímetros da cabeça até ao rabo». Esta espécie de mentira não exige arte nem talento, apenas revela um certo descaramento. Não: um pescador perfeito teria vergonha de contar uma mentira desse género. Vale a pena expor aqui qual o método que ele adopta. Entra tranquilamente no café, de chapéu na cabeça, senta-se na cadeira mais cómoda, acende o cachimbo e começa a fumar, em silêncio. Deixa primeiro os novos expandir o seu entusiasmo; depois, aproveitando um momento de serenida 189 de, tira o cachimbo da boca, sacode-lhe a cinza e diz com ar desprendido: - Ora, pois eu, fiz na quarta-feira à tarde uma pesca de que nem vale a pena falar. - Mas então porquê? - perguntam todos. - Ora, porque ninguém acreditava, se eu a contasse - responde o nosso homem calmamente. E sem o menor vislumbre de amargura na voz, torna a encher o cachimbo e pede que lhe tragam um whisky da Escócia, seco. Segue-se um silêncio, ninguém se sente bastante seguro de si para contradizer o velho pescador. E este recomeça então sem que a isso o convidem. - Não, nem eu mesmo acreditava se mo contassem e no entanto é um facto. Depois de ficar toda a tarde no mesmo sítio sem apanhar nada, a não ser umas dúzias de barbos e de pequenos cadozes, estava já para desistir, quando de repente senti morder a isca. Pensando que se tratava de mais algum peixito, preparava-me para o atirar ao ar num golpe. Mas quem é que diz que eu conseguia levantar a cana; levei meia hora - sim senhores, meia hora - para puxar o peixe, receando a cada momento ver a linha quebrar-se. Consegui enfim apanhá-lo,'e o que julgam que era? ... Era um esturjão, um esturjão que pesava vinte quilos - e que eu tinha apanhado à linha. Sim, até chega a enjoar ... Dê-me mais um whisky grande da Escócia, patrão, se faz favor. E continua, referindo-se ao espanto de todos os que viram o bicho, contando o que disse sua mulher quando ele voltou para casa e o que pensava Joe Buggles. Perguntei ao dono da hospedaria se não se maçava às vezes de ouvir as histórias que os pescadores seus clientes lhe contavam, e ele respondeu-me: - Ah não, agora já não custa. Ao princípio aborrecia-me 190 um pouco, mas então que quer? À força de as ouvir todo o dia, eu e a patroa acabámos por não nos importar. É uma questão de hábito. Conheci um rapaz que era muito consciencioso; quando começou a pescar, resolveu nunca exagerar mais de vinte e cinco por cento a importância dos seus feitos. - Se apanho quarenta peixes - dizia ele -, conto cinquenta, e sempre nesta proporção, mas não quero mentir mais, a mentira é um pecado. Não lhe deu resultado a mentira dos vinte e cinco por cento. Não teve ocasião de a pôr em prática. O maior número de peixes que pescou num dia foi três, e é impossível acrescentar vinte e cinco por cento a três, pelo menos quando se trata de peixes. Elevou a tabela para trinta e três por cento, mas isso também não dava resultado quando apanhava só um ou dois peixes; então, para simplificar as coisas, resolveu dobrar as doses. Aguentou esse sistema durante dois meses, mas não o satisfazia. Ninguém acreditava quando ele confessava que só duplicava e ele por seu lado não ganhava nada com tal declaração, pois essa modéstia só o prejudicava perante os outros pescadores. Quando apanhava na realidade três peixitos, e dizia que tinham sido seis, sofria o desgosto de ouvir outro indivíduo contar que tinha pescado duas dúzias quando na realidade ele sabia muito bem que tinha sido só uma.

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Acabou por prometer a si mesmo, e manteve sempre essa promessa, contar por dez cada peixe que apanhava, e de pôr dez para começar. Por exemplo: se não pescava nada, dizia que tinha apanhado dez peixes. Com este sistema nunca podia haver menos de dez; era número basilar. Depois, se por acaso agarrava um peixe, contava-o como sendo vinte; e assim por diante, dois peixes valiam trinta; três quarenta, etc. O método é simples e fácil e dizem que foi adoptado por toda a confraria de pescadores à linha. Efectivamente, aqui há dois anos, a comissão da <<Associação dos pescadores à Linha do Tamisa» votou a sua aprovação, mas alguns dos seus membros mais antigos opuseram-se. Diziam eles que o processo só tinha interesse se se duplicassem os números e cada peixe se contasse por vinte. Se alguma vez tiverem uma noite disponível, perto do Tamisa, aconselho-os a que entrem numa pequena hospedaria da aldeia e se sentem na sala. É quase certo que aí encontram um ou dois velhos apreciadores da cana de pesca, bebendo o seu grogue. É certo também que em hora e meia hão-de contar tantas histórias de pesca, que nos chegam para um mês inteiro. No segundo dia, Jorge e eu (não sei onde estava o Harris, tinha ido cedo fazer a barba e voltara, passando depois quarenta minutos a limpar os sapatos com alvaiade, e nunca mais o tínhamos visto), o Jorge e eu e mais o cão fomos dar uma volta em Wallingford; à vinda, descobrimos no caminho à beira de água uma pequena hospedaria e, com pretexto de descansar, entrámos. Fomo-nos sentar na sala onde estava um velhote, fumando um grande cachimbo de barro. Metemos conversa com ele. Declarou-nos que o dia estivera lindo, dissemos-lhe que na véspera fizera bom tempo. Em seguida anunciámos reciprocamente uns aos outros que no dia seguinte íamos ter sol, e o Jorge acrescentou que as colheitas estavam prometedoras. Por acaso, no meio da conversa dissemos que éramos estranhos na terra e que nos íamos embora na manhã seguinte. Houve então um silêncio de que nos aproveitávamos para lançar um olhar em volta. Reparámos numa caixa de vidro, 192 coberta de pó, que estava pendurada muito alto, muito alto, sobre o fogão, e que tinha dentro uma truta. Fiquei pasmado em frente daquela truta. Era de tal maneira grande que à primeira vista tomei-a por um bacalhau. - Hem! - disse o nosso velhote, seguindo a direcção do meu olhar. - É um lindo bicho, não é? - Verdadeiramente formidável - murmurei eu. Jorge perguntou ao velho que peso tinha a truta. - Nove quilos e meio - respondeu o nosso novo amigo, levantando-se para despir o casaco. - Sim - prosseguiu - vai fazer dezasseis anos no dia 3 do mês que vem que eu a pesquei. Apanhei-a mesmo debaixo da ponte, com uma minhoca do lodo. Quando me disseram que ela andava no rio, jurei a mim mesmo que havia de apanha-la. E apanhei. Agora já não há por aqui muitas deste tamanho. Boas noites, meus senhores, muito boas noites. Saiu, deixando-nos sós. Não podíamos despregar os olhos daquele peixe. Era realmente um bicho magnífico. Estávamos ainda a olhar para ele, quando o cocheiro daqueles sítios, que parara na hospedaria, entrando com a sua caneca de cerveja na mão, se pôs também a observa-lo. - Tem uma belas dimensões, esta truta - disse .Jorge, voltando-se para ele. - Ora, a quem o senhor o diz-retorquiu o homem. E depois de beber um gole continuou: - Talvez não estivessem cá, quando este peixe foi apanhado? Respondemos-lhe que não, dizendo que não éramos da terra. - Ah! - exclamou o cocheiro. - Nesse caso é 'claro que não podiam estar. Está quase a fazer cinco anos que eu apanhei esta truta. 193 - Olha! Então foi o senhor que a apanhou? - perguntei eu.

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- Pois fui, sim, meu senhor - continuou o cocheiro afável. - Apanhei-a mesmo acima da represa, numa sexta-feira à tarde; e o mais curioso é que a apanhei com uma mos ca artificial. Tinha ido à pesca ao lúcio; não esperava nada uma truta, e quando vi aquele monstro preso na linha, quase caí de pasmo. Imaginem: uma truta com treze quilos e meio! Muito boa noite, meus senhores, boas noites. Passados cinco minutos entrou um terceiro indivíduo, que nos contou como tinha apanhado a truta, um dia de manhã cedo. Quando este saiu, entrou um homem grave, dos seus cinquenta anos, que se foi sentar ao pé da janela. A princípio ninguém disse uma palavra; mas por fim Jorge, voltando-se para o homem, disse-lhe: - Peço desculpa, espero que nos perdoe a liberdade que nós - estranhos nesta terra - tomamos, mas gostávamos muito, eu e o meu amigo, que nos contasse como pescou esta truta. - Tem graça! Quem lhes disse que eu a tinha apanhado? - exclamou ele, surpreendido. Respondemos-lhe que ninguém nos tinha dito, mas que, por instinto, pressentíramos que devia ser ele. - Ora esta! É curioso ... muito curioso - disse, rindo - porque, realmente, acertaram: fui eu que a pesquei. Não percebo como adivinharam. É extraordinário! Contou-nos então como levara meia hora a puxa-la para terra, tendo-se partido a cana de pesca. Acrescentou que, ao chegar a casa, tinha ido pesa-la, e que a balança acusara dezassete quilos! Foi-se embora, e depois de ele sair apareceu o dono da hospedaria. Contámos-lhe as diversas histórias que tínhamos ouvido sobre a sua truta. Ficou muito divertido, e rimo-nos 194 todos com gosto. - São impagáveis, esse Jim Pates, e esse Joe Buggles, e o mestre Jones, e o velho Billy Maunders, a virem contar que foram eles que a apanharam! Ah! Ah! Ah!, que boa graça - exclamou o bom velhote, rindo como um perdido. - Como se eles fossem capazes de ma oferecerem para eu a expor na minha sala, se acaso a tivessem pescado. Ah! Ah! Ah! ... Contou-nos então a verdadeira história do peixe. Ele próprio é que o tinha apanhado, havia uns anos, era ainda muito novo. Não fora por habilidade, mas apenas por essa inexplicá vel sorte que parece favorecer todo o garoto que falta à escola, para ir, uma bela tarde, pescar, com um cordel atado a um ramo de árvore. Disse-nos que aquela truta lhe valera não apanhar uma boa sova.e que o próprio mestre-escola tinha declarado que ela valia bem a exposição da regra de três e o ditado ao mesmo tempo. Nessa ocasião chamaram o velhote fora da sala. Jorge e eu olhámos de novo para o peixe. Era realmente uma truta muito extraordinária. Quanto mais a olhávamos, mais nos maravilhava. Jorge estava de tal maneira interessado que trepou às costas de uma poltrona para ver melhor. Mas a poltrona tombou e Jorge, procurando aguentar-se, agarrou-se à caixa de vidro, que caiu com estrondo, e a cadeira por cima dele. - Não estragaste o peixe, hem? - exclamei, precipitando-me. - Espero que não - respondeu Jorge, erguendo-se com cuidado. A truta jazia feita em mil bocados ... digo mil, mas talvez fossem apenas novecentos e noventa e nove. Não os contei ... Achámos estranho que _uma truta empalhada pudesse es 195 migalhar-se em tantos bocadinhos. E de facto seria estranho e inexplicável se fosse uma truta empalhada, mas na realidade não era. Essa famosa truta era de gesso ... CAPÍTULO XVIII

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Partimos de Streatley de manhã cedo e subimos a remos até Culham, onde dormimos no barco, num afluente que há nesse sítio. Entre Streatley e Walling o Tamisa não tem interesse. Acima de Eleeve encontra-se um canal de-catorze quilómetros sem nenhuma represa. É o trajecto maior que há acima de Teddington e que o Clube de Oxford utiliza para os seus treinos de «oito -Por muito agradável que seja aos barqueiros a ausência de dique, para um simples amador de sensações estes fazem falta. Eu, por mim, aprecio muito as represas. Quebram a monotonia de remar. Gosto de ir sentado no barco, erguendo-me lentamente de um canal para o outro, para uma nova paisagem, ou de mergulhar por assim dizer para fora do mundo, e depois espero que as portas negras ranjam, divisando-se pela greta uma estreita tira de água, até que enfim se abrange todo o rio risonho; e uma vez mais lançamos o nosso barquinho nas águas que já conhecemos. Estas represas são uns cantinhos pitorescos. O guarda, que é um bom velhote, com a sua mulher, tão afável, ou a filha, de rosto vivo, são interlocutores agradáveis para dois dedos de conversa. Aí se encontram outros barcos, e trocam-se impressões sobre o rio. Sem estas represas floridas o Tamisa não seria o país de sonho que é. 196 A propósito de represas, lembro-me de um desastre que nos ia acontecendo, ao Jorge e a mim, numa manhã de Julho, em Hampton-Court. Estava um dia magnífico, o rio completamente cheio e, como de costume, andava um fotógrafo a tirar vistas dos barcos que se amontoavam. Não reparei a princípio no que se passava e fiquei muito admirado de ver o Jorge endireitar o vinco das calças, alisar o cabelo e pôr o boné com certa elegância deitado para trás, e depois, tomando um ar meio afável, meio melancólico, sentar-se numa atitude elegante, procurando esconder os pés. A minha primeira ïdeia foi de que ele tinha descoberto entre a multidão alguma rapariga das suas relações e pus-me a `procurar para ver quem era. Todas as pessoas que ali estavam pareciam ter ficado subitamente petrificadas. Estavam de pé ou sentadas, em atitudes tão forçadas como eu nunca vi num leque japonês. As raparigas sorriam todas. Oh, como estavam bonitas! E todos os rapazes franziam o sobrolho, numa expressão severa e nobre. Mas, por fim, compreendi a verdade e receei não estar pronto a tempo. O nosso barco estava no primeiro plano e não era amável, pensei eu, estragar o conjunto da fotografia. Dei meia volta rapidamente e tomei posição à proa do barco, apoiando-me na fateixa num gesto encantador de força e agili dade. Arranjei o cabelo a tufar na testa e tomei uma expressão -que dizem que me fica muito bem - de langorosa afabilidade com uma pontinha de céptica ironia. Estavam todos imóveis, na expectativa do momento psicológico, quando ouvi alguém gritar por detrás de mim: - Eh! Cuidado com o teu nariz!'. Não podia voltar-me para ver de que se tratava e quem era Em inglês rose, nariz, também significa a proa de um barco. - (N. do T.). 197 que devia tomar cuidado com o nariz. Lancei um olhar oblíquo a Jorge. Estava absolutamente normal - o que nele pecava não era susceptível de rectificação. Olhei de revés para o meu, que me pareceu em tão bom estado quanto possível. - Dá atenção ao teu nariz, grande idiota! - repetiu mais alto a mesma voz. E outra gritou: - Soltem o vosso levam o cão! Nem o Jorge nem eu nos atrevemos a voltar-nos. O fotógrafo estava com a mão na máquina, pronto a tirar o retrato. O que tinham os nossos narizes? Porque era preciso soltá-los? Mas então a multidão começou toda a gritar e uma voz enérgica berrou por detrás de nós: - Tomem cuidado com o vosso barco, vocês dois do boné vermelho e do boné preto. Se não se despacham, ficam na fotografia apenas dois cadáveres!

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Olhámos então e vimos que a frente do nosso barco estava presa num esteio do dique, enquanto a água, que ia subindo, o fazia inclinar. Um instante mais e íamos para o fundo. Rápidos como o pensamento, pegámos cada um num remo e, com uma pancada vigorosa na parede do dique, soltámos o barco e caímos de pernas ao ar. Não ficámos muito bem nesse grupo, o Jorge e eu. É claro, como era de esperar, o operador descarregou a máquina no momento preciso em que estávamos ambos de costas no chão, com ar de quem pergunta: - Onde estou? O que me aconteceu? - enquanto os nossos pés se agitavam desesperados no ar. É indiscutível que os nossos pés formavam o interesse principal dessa fotografia. Não se via quase mais nada. Ocupavam todo o primeiro plano. Por detrás deles viam-se boca 198 dinhos dos outros barcos e cantos de paisagem. Tudo o mais que havia na fotografia parecia tão insignificante comparado aos nossos pés que os outros figurantes do grupo, envergonhados, recusaram-se a contribuir para a compra do retrato. O proprietário de um barco a vapor que tinha encomendado seis provas desistiu da encomenda quando viu o negativo. Declarou que de boa vontade ficaria com elas se alguém pu desse mostrar-lhe o seu barco, mas ninguém foi capaz. Estava em qualquer sítio, por detrás do pé direito do Jorge. O fotógrafo pretendia obrigar-nos a ficar cada um com uma dúzia de exemplares, visto que nós sós formávamos os nove décimos do grupo. Mas nós recusámo-nos, dizendo que não nos importávamos que nos tirassem o retrato aos pés mas que preferíamos que nos fotografassem antes a cabeça. Wallingford, que fica a dez quilómetros de Streatley, é uma vila muito antiga e que desempenhou papel importante na origem da história de Inglaterra. Na época em que os bretões ali acampavam era um amontoado de grosseiras cabanas de adobe. Depois vieram os romanos, que substituíram os muros de argila por poderosas for tificações, cujos vestígios os séculos não conseguiram apagar. Os pedreiros antigos construíam solidamente. Mas o tempo, que respeitou as paredes romanas, depressa reduziu os romanos a pó, e nesses terrenos, no decorrer dos 'anos, combateram os ferozes saxões e os dinamarqueses gi gantes até a chegada dos normandos. Foi uma vila murada e fortificada até à época da Guerra Parlamentar, em que Fairfax lhe fez um cerco prolongado. Rendendo-se finalmente, as suas muralhas foram derrubadas. De Wallingford a Dorchester as margens do rio tornam-se mais acidentadas, variadas, e pitorescas. Dorchestèr fica a um quilómetro do rio. Pode ir-se até lá subindo o Tamisa, se se 199 tem um barquito; mas é preferível deixar o rio em Day e ir a pé atravessando os campos. Dorchester é uma velha povoação, de uma paz deliciosa, muda e sonolenta. Dorchester, como Wallingford, foi uma cidade nos velhos tempos dos bretões; chamava-se então Caer Doren, « a cidade à beira da água.. Em tempos mais recentes, os romanos instalaram ali um vasto acampamento, cujo recinto fortificado ainda hoje existe, sob a forma de pequenos outeiros. Na época dos saxões, foi a capital de Wessex. Hoje, está afastada da agitação do mundo e sonha, melancólica, com o passado. Dos arredores de Clifton Hampden, pequena e velha aldeia encantadora, pacífica e florida, goza-se de uma vista magnífica sobre o Tamisa. Quem passar a noite em terra, em Clifton, o melhor que tem a fazer é ir para o Moinho. É, na minha opinião, de todas as hospedarias do Tamisa superior a mais curiosa e a mais an tiga. Fica à direita da ponte, fora da povoação. O seu telhado de colmo as suas janelas de vidrinhos pequenos dão-lhe o ar de estampa de livro e o interior é ainda mais característico dos tempos antigos. Não foi feita para abrigar uma heroína do romance moderno. Esta é sempre «divinamente alta» e «ergue-se em toda a sua estatura». No Moinho, de cada vez que ela fizesse esse gesto, batia com a cabeça no tecto.

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Também não é casa para bêbados. Esperam-nos muitas surpresas ao longo dos corredores, muito degrau a subir ou a descer. Chegar ao quarto e encontrar a cama seriam para eles operações impossíveis de realizar. No dia seguinte levantámo-nos cedo, porque queríamos estar em Oxford à tarde. É espantoso como as pessoas podem levantar-se cedo quando dormem ao ar livre. Embrulhado numa manta, deitado nas tábuas dum barco e com uma mala 200 por almofada pensa-se muito menos em ficar deitado «só mais cinco minutos» do que quando se dorme numa cama de penas. Às oito e meia já tínhamos almoçado e metemo-nos ao caminho. De Clifton a Culham, as margens do rio não têm interesse, são monótonas e sombrias, mas logo que se passa a represa de Culham, de todas a mais fria e profunda do Tamisa, a paisagem modifica-se. Em Abingdon, o rio atravessa as ruas. Abingdon é uma pequena cidade de província, tranquila, perfeitamente respeitável, asseada e desesperadamente silenciosa. Orgulha-se da sua antiguidade, mas creio que não pode, nesse ponto, comparar-se a Wallingford ou a Dorchester. Havia aqui em tempos um célebre convento e no que resta das suas paredes santificadas fabrica-se hoje cerveja. De Abingdon a Muneham Courtnay, o caminho é encantador. O parque de Muneham merece ser visitado; está aberto às quartas e quintas. No palácio há uma bela colecção de quadros e curiosidades. O lugar da recolha de Sandford, logo a seguir à represa, é um sítio bom para as pessoas se afogarem. Há ali um remoinho de uma força terrível; uma vez que se caia lá é morte cer ta. Uma coluna marca o sítio em que morreram dois homens afogados. O pé dessa coluna serve habitualmente de trampolim aos rapazes que querem mergulhar para saber se o lugar é realmente tão perigoso como dizem. Passámos a represa de Iffley, próximo do meio-dia e meia hora, e em seguida, depois de pormos o barco em ordem e de fazermos os preparativos para desembarcar, começámos a nossa última tirada de quinhentos metros. O trajecto de Iffley a Oxford é o percurso mais difícil que eu conheço no Tamisa. Só quem ali nasceu é que o conhece 201 bem. Já por lá passei inúmeras vezes mas ainda não sou capaz de compreender a sua configuração. Primeiro a corrente empurra-nos para a margem direita, em seguida para a esquerda, depois arremessa-nos para o centro, obriga-nos a dar três voltas e atira-nos para cima, acaban do por tentar esborrachar-nos contra um pontilhão da universidade. Isto, tem como consequência que nesse espaço de quinhentos metros esbarramos com uma quantidade de barcos e eles com o nosso, o que provoca um palavreado pouco ameno. Não sei por que motivo, mas andando no Tamisa toda a gente se mostra muito irritável. A mais pequena dificuldade, que em terra nos passava despercebida, enfurece-nos quando andamos na água. Quando o Jorge ou o Harris fazem uma asneira, em terra, sorrio com indulgência; no rio, coma tolice mais insignificante, enfureço-me e insulto-os. Quando outro barco se atravessa no meu caminho, sinto-me tentado a pegar num remo e a desancar todos os seus passageiros. As pessoas que em terra têm um feitio amável, no barco tornam-se ferozes e sanguinárias. Aconteceu-me uma vez ir no barco com uma rapariga que era de seu natural meiga e suave. Mas quando ia para o rio metia medo ouvi-la. - Oh!, diabos levem aquele homem! - berrava ela, quando um infeliz se atravessava no seu caminho. - Não sabe olhar para onde vai! Ou então: - Ah! Bolas para o diabo desta coisa! - dizia revoltada, quando a vela não se içava à vontade dela. E agarrava-a e sacudia-a com verdadeira brutalidade. E no entanto, como já disse, era, em terra, meiga e encantadora. O ar fluvial tem sobre o carácter das pessoas uma 202

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influência desmoralizante, o que faz com que os barqueiros sejam às vezes tão grosseiros entre si, servindo-se de um palavreado de que depois sem dúvida se arrependem, quando recuperam a calma. CAPÍTULO XIX Passámos em Oxford dois dias muito agradáveis. Como há muitos cães na cidade de Oxford, Montmorency teve ocasião de lutar onze vezes. Foi para ele um céu aberto. As pessoas de constituição fraca e naturalmente preguiçosas gostam em geral de alugar um barco em Oxford e de descer o rio a remos. Mas para os corajosos, a viagem a montante é decerto preferível. Não tem interesse ser levado na corrente. Dá mais prazer retesar os músculos, lutar contra a corrente e singrar o nosso caminho ... É esta a minha opinião, pelo menos quando vão o Jorge e o Harris a remar e eu ao leme. Àqueles que estejam tentados a -escolher Oxford como ponto de partida direi: metam-se no vosso barco ... a não ser, é claro, que possam meter-se no de outra pessoa sem perigo de serem descobertos. Os barcos de aluguer que se encontram no Tamisa acima de Marlow são, em geral, excelentes. Estão bem secos e, desde que sejam manobrados com cuidado, é raro vê-los abrir ao meio e irem para o fundo. Encontram-se nesses barcos assentos e tudo o que é necessário - ou quase tudo - para se remar e governar o barco. Mas não são decorativos. O barco alugado acima de Marlow não é desses que nos permitem mostrar as nossas habilidades. Corta cerce todas as veleidades desse género que os seus 203 passageiros possam manifestar. E é esse o seu principal, para não dizer único, mérito. O passageiro do barco alugado nessas paragens é modesto e discreto. Escolhe de preferência a sombra das árvores e faz a maior parte do caminho de manhã cedo ou à tarde, quando já anda pouca gente no rio. Quando vê alguém do seu conhecimento, corre para a margem e esconde-se por detrás de uma árvore. Uma vez, no Verão, eu e uns camaradas alugámos um barco na parte de cima do rio, para dar um passeio de alguns dias. Nenhum de nós conhecia ainda essa espécie de barco, ignorando absolutamente o que poderia ser quando travámos relações com ele. Tínhamos escrito para nos reservarem um barco de quatro remos. Quando, ao chegar à recolha com as malas, dissemos os nossos nomes, o dono exclamou: - Ah!, sim, foram os senhores que mandaram reservar um barco de quatro remos. Muito bem! Jim, vai buscar a Glória do Tamisa. O rapaz afastou-se e apareceu, passados cinco minutos, lutando com um montão de tábuas, antediluviano, que parecia ter sido recentemente desenterrado e tratado sem cuidado, o que o estragara ainda mais. A minha primeira ideia, ao ver aquele objecto, foi que se tratava de qualquer destroço do tempo dos romanos ... Destroço de quê, ignorava-o; talvez de algum sarcófago. A região do Tamisa superior abunda em ruínas dos romanos; a minha suposição parecia-me das mais verosímeis. Mas o sábio do nosso grupo, vago geólogo, afastou desdenhoso a minha hipótese e declarou que era evidente até mesmo à inteligência mais mesquinha (categoria em que ele parecia lamentar não me poder colocar) que o achado era um fóssil de baleia; e demonstrou-nos por a + b que esse animal devia ter 204 pertencido ao período pré-glacial. Para resolver a questão recorremos ao rapaz. Pedimos-lhe que falasse sem receio e que nos dissesse a absoluta verdade. Era um fóssil de baleia antediluviana ou um sarcófago romano? O rapaz respondeu que era' a Glória do Tamisa. Ao princípio achámos a resposta muito espirituosa e um de nós deu-lhe dois tostões pela réplica tão pronta. Mas, como teimasse sempre na mesma, a graça pareceu-nos já demorada, e zangámo-nos.

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- Vamos, vamos, meu amigo - disse o nosso capitão com severidade -, basta de gracejos! Leve essa selha de lavar roupa à sua mãe e traga-nos o nosso barco. Apareceu então o próprio construtor de barcos que nos assegurou, sob palavra de honra, que o objecto era realmente um barco, o próprio barco de quatro remos, destinado a levar-nos na nossa excursão. Protestámos violentamente. Dissemos que ao menos podia tê-lo mandado caiar ou pintar, ou qualquer coisa, fosse o que fosse, que o distinguisse de um barco naufragado. Mas ele recusava-se a encontrar qual quer defeito e mostrou-se ofendido com as nossas observações. Assegurou-nos que tinha escolhido o melhor dos seus barcos e achava que lhe devíamos estar muito gratos. Acrescentou ainda que a Glória do Tamisa, tal como ali estava, havia já quarenta anos que andava em serviço: nunca ninguém se queixara dela e não via porque havíamos de ser nós os primeiros a queixarmo-nos. Não discutimos mais. Depois de remendar o pretenso barco com bocados de cordel e um pouco de papel de forrar paredes, nos sítios mais avariados, encomendando a alma a Deus, embarcámos. 205 Levaram-nos trinta e cinco xelins pelo aluguer daquele resto de barco durante seis dias, quando por quatro xelins e meio teríamos comprado aquilo mesmo em qualquer venda de barcos naufragados realizada na costa. No terceiro dia o tempo mudou ... Atenção!, estou agora a falar da nossa actual viagem ... e partimos de Oxford debaixo de uma chuva torrencial. O Tamisa ... quando o sol brilha nas suas ondas irrequietas, fazendo brilhar reflexos doirados nos troncos acinzentados das faias, infiltrando-se nos bosques frescos e sombrios, projectando diamantes nas mós dos moinhos, irisando as águas agitadas das represas, lançando beijos aos lírios, prateando muros e pontes cobertas de musgos, alegrando o mais pequeno casal, dando um certo encanto a cada caminho, a cada prado, prendendo-se em cada moita, sorrindo em cada enseada, iluminando as brancas velas longínquas, impregnando o ar de esplendor ... o Tamisa é um magnífico rio doirado! Mas o Tamisa ... triste e gelado, quando as gotas da chuva incessante caem nas águas pardas e silenciosas, como as lágrimas de uma mulher que chora só na escuridão, quando os bosques frios e escuros, envoltos na bruma vaporosa, formam nas margens como que fantasmas mudos de olhar carregado de censuras, como se fossem más acções praticadas, ou amigos esquecidos ... o Tamisa não é mais do que uma água povoada de espectros que voltam ao país dos vãos queixumes. A luz do sol é a própria vida da natureza. Quando o sol se retira, a terra nossa mãe olha-nos com uns olhos tão tristes e sem alma que a sua presença é então para nós desoladora. Dir-se-ia que já não nos conhece nem ama. Parece uma viúva que perdeu o seu marido querido e a quem os filhos, pegando-lhe na mão, procuram encontrar o olhar sem que ela se digne sequer sorrir-lhes. Todo o dia remámos debaixo de chuva, o que foi para nós 206 um trabalho maçador. A princípio dizíamos que até nos divertia; era uma variante, dizíamos nós, e gostávamos de ver o rio sob os seus aspectos diferentes. Não podíamos esperar ter sempre sol. A natureza não é bela, mesmo quando chora? E de facto, nas primeiras horas, Harris e eu mostrámo-nos cheios de entusiasmo, e cantámos uma romanza, celebrando a vida de boémia, essa deliciosa existência, sujeita à tempestade e ao sol, e a todos os ventos - e assegurando que adora a chuva, a bela chuva, e que se ri daqueles que não a apreciam. Jorge não se mostrou divertido e abriu o chapéu de chuva. Armámos a barraca antes do almoço, deixando-a ficar toda a tarde. Tínhamos só um pequeno espaço à frente, para que um de nós pudesse remar e vigiar o caminho. Fizemos quinze quilómetros assim, e por fim parámos um pouco acima da represa de Day, para passar a noite. Em boa verdade, não posso dizer que o nosso serão fosse alegre. A chuva caía tranquila e teimosa. Tudo o que havia no barco estava húmido e viscoso. O jantar foi tristíssimo. Quando não temos apetite, a carne fria parece que nos fica atravessada na garganta.

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Lamentei a ausência de costeletas; Harris, falando-nos de linguados com molho de bechamel, passou o resto da sua carne a Montmorency, que a recusou e, aparentemente ofendido com aquela oferta, foi sentar-se sozinho na outra ponta do barco. Jorge pediu-nos que falássemos de outra coisa, pelo menos até que ele tivesse acabado de comer a carne fria e sem mostarda. Depois do jantar jogámos uma partida de écarté a dois tostões a parada. Jogámos durante duas - horas, no fim das quais o Jorge tinha ganho oito tostões (o Jorge tem sempre 207 muita sorte ao jogo) e Harris e eu tínhamos perdido cada um quatro tostões. Depois disto, desistimos do jogo, pois, como diz Harris, quando se exagera, provoca uma comoção prejudicial. Jorge ofereceu-nos a desforra, mas Harris e eu recusámo-nos a lutar mais tempo contra o destino. Fizemos em seguida um grogue para conversar. Jorge contou a história de um homem que ele conhecia e que tinha dormido, numa noite como aquela, num barco húmido. Daí resultara uma pleurisia, de que tinha morrido passados dez dias e apesar de todos os tratamentos. Era, disse-nos o Jorge, um homem novo e que, pormenor comovedor, estava noivo. Harris lembrou-se logo de um amigo dele que se tinha alistado como voluntário e que dormira debaixo de uma barraca numa noite de chuva, como aquela, num campo de Aldershot. Na manhã seguinte tinha-se levantado doente, para toda a vida. Prometeu que no-lo havia de mostrar quando voltássemos para a cidade: fazia pena vê-lo. Seguiu-se uma conversa encantadora sobre a ciática, as febres, gripes, pneumonias e bronquites. Harris disse que era realmente pena se algum de nós adoecesse durante a noite, porque estávamos muito longe de um médico. - Depois de tais conversas desejámos tratar de qualquer coisa um pouco mais alegre e por uma estranha aberração propus ao Jorge que fosse buscar o banjo e que tocasse uma cançoneta cómica. Devo dizer, em louvor do Jorge, que ele não se fez rogado. Não fingiu ter deixado a música em casa, nem recorreu a qualquer subterfúgio desse género. Foi logo buscar o banjo e pôs-se a cantar Dois lindos olhos negros. Até esse dia, eu tivera sempre essa música na conta de 208 uma ária bastante banal. A nota de acentuada tristeza que o Jorge soube imprimir-lhe surpreendeu-me muito. Enquanto soavam os fúnebres compassos, cresceu em nós, no Harris e em mim, o desejo de cair nos braços um do outro, desatando a chorar. Mas, com energia, reprimimos as nossas lágrimas e escutámos em silêncio a melodia triste e nostálgica. Mesmo quando chegou à altura do estribilho, fizemos um esforço para nos mostrarmos alegres. Enchendo os corpos, unimos as vozes. A do Harris, trémula de emoção, guiava-nos; a do Jorge e a minha seguiam-na imediatamente: Dois lindos olhos negros; Oh!, que surpresa! Não sei que hei-de dizer-vos: Senhor, estais enganado. Dois ... Ficámos por aí. Jorge tinha posto naquele «Dois» um acompanhamento de uma tão triste desolação, que foi impossível, na aflição de momento, suportá-la; Harris soluçava como uma criança e Montmorency uivava que até cortava o coração ouvi-lo. Jorge queria cantar ainda mais uma copla. Assegurava-nos que com um pouco mais de harmonia no compasso e de à-vontade na interpretação, não ia lá muito mal. A opinião da maioria, no entanto, pronunciou-se contra a experiência. Só nos restava irmo-nos deitar - quer dizer, despirmo-nos e passar três ou quatro horas às voltas no fundo do barco. Lá conseguimos dormir um sono agitado até as cinco da manhã, quando nos levantámos para almoçar. O segundo dia foi exactamente igual ao primeiro. Continuou a chover torrencialmente e nós, embrulhados nos nossos 209 impermeáveis, encolhidos no fundo do barco, descíamos lentamente o rio. Nessa manhã, um de nós (já não me lembro qual, mas creio que fui eu) tentou recomeçar

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aquela velha lengalenga do boémio, filho da natureza, que adora a chuva, mas não pegou. O verso: A chuva? Que me importa a mim! estava tão tristemente apropriado aos sentimentos de nós todos, que nos pareceu inútil cantá-lo. Estávamos todos de acordo num ponto, que era: acontecesse o que acontecesse, havíamos de beber o cálice até a última gota. Tínhamos ido passar quinze dias no Tamisa e havíamos de ter os nossos quinze dias de férias, nem que daí resultasse a morte! ... o que seria na verdade muito triste para os nossos pais, mas não havia outro remédio. Ceder ao mau tempo num país com um clima como o nosso era um precedente deplorável. - Faltam só dois dias - disse Harris - e nós somos novos e fortes. Podemos aguentar até ao fim! Pelas quatro horas, começámos a tomar as nossas disposições para a noite. Estávamos um pouco acima de Goring: decidimos remar até Pangbourne, onde passaríamos a noite. - Mais um serão delicioso! - resmungou Jorge. Meditámos nessa perspectiva. Não estaríamos em Pangbourne antes das cinco horas. Só acabaríamos de jantar pelas seis e meia. Depois restava-nos dar uma volta pela vila, debaixo de chuva, até à hora da ceia, ou então entrar em qualquer botequim para ler uma revista. - Ora! Quase me tentava mais ir para o Alhambra - disse Harris, deitando um minuto a cabeça de fora da barraca para observar o céu. 210 - Com uma ceiazinha num Magnífico restaurante pequeno. muito pouco conhecido, nos arredores de... onde servem uma dessas refeiçõezinhas cozinhadas à francesa e do menos caro que eu conheço, com uma garrafa de excelente vinho, tudo por três xelins. Não sou tão tolo que diga exactamente onde é ... para terminar - acrescentei quase sem pensar. - Pois é, é pena termos resolvido ficar no barco - respondeu Harris. Houve um silêncio. - Que nós resolvêssemos encontrar uma morte certa neste velho caixão maldito! - retorquiu o Jorge, lançando sobre o barco um olhar de ódio feroz. - Talvez seja útil fa zer-lhes notar que parte um comboio de Pangbourne, pouco depois das cinco, que nos transportaria até à cidade a tempo de comer qualquer coisa e de ir depois ao estabelecimento de que falaram. Ninguém disse uma palavra. Olhámos uns para os outros e cada um parecia ver o seu próprio pensamento, vil e criminoso, reflectir-se nos rostos dos outros. Em silêncio, fomos buscar a mala e enchemo-la. Inspeccionámos o rio, para cima e para baixo: ninguém à vista. Vinte minutos mais tarde, três vultos humanos, acompanhados por um cão de ar infeliz, saíam furtivamente da recolha de barcos do Cisne e dirigiam-se à estação do caminho de ferro. Iam vestidos do seguinte modo, tão incorrecto como deselegante: Sapatos pretos, sujos; fatos de flanela, claros, muito sujos; chapéu mole castanho, muito velho; impermeável, muito encharcado; chapéu de chuva. Tínhamos intrujado o guarda dos barcos de Pangbourne. Não tínhamos tido cara para lhe confessar que íamos fugidos à chuva. Deixáramos o barco com tudo o que tinha dentro à sua guarda, com ordem de o ter pronto para as nove horas da manhã seguinte. Acrescentámos que, se acaso surgisse um contratempo que nos impedisse de voltar, escrevíamos-lhe. As sete horas, estávamos em Londres. Um trem levou-nos ao restaurante atrás mencionado. Aí, tomámos uma refeição ligeira e deixámos lá o Montmorency, ao mesmo tempo que dávamos instruções para que nos tivessem pronta para as dez e meia uma ceia e continuámos o nosso caminho para Leicester Square. No Alhambra, atraímos todas as atenções. Quando nos apresentámos na bilheteira disseram-nos com modos grosseiros que déssemos a volta pela entrada dos artistas, prevenindo-nos de que levávamos meia hora de atraso. Tivemos um certo trabalho para convencer a menina da bilheteira de que não éramos uns «famosos acrobatas dos montes Himalaias- mas, por fim, acabou por aceitar o nosso dinheiro e deixou-nos entrar.

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Lá dentro ainda fizemos maior sucesso. Olhares de admiração seguiam, na sala, os nossos rostos bronzeados e a nossa indumentária pitoresca. Éramos o ponto de mira de todos os olhares. Foi para nós três um momento glorioso. Saímos logo depois do primeiro bailado, seguindo para o restaurante onde nos esperava a ceia. Durante dez dias, quase só nos tínhamos alimentado de carnes frias, bolos e pão com compota: regime frugal e substancial, mas muito monótono. O perfume do Borgonha, o cheiro dos molhos franceses, o aspecto dos guardanapos muito brancos e dos pãezinhos vienenses, foram uma alegria imensa para o nosso íntimo. Um momento devorámos em silêncio, depois chegou a ocasião de, em vez de nos sentarmos muito direitos, brandindo energicamente facas e garfos, nos encostarmos às cadeiras para melhor os gozarmos. As pernas estenderam-se por debaixo da mesa, escorregaram os guardanapos para o chão sem que os apanhássemos, pousávamos os copos em cima da me 212 sa, com os braços estendidos. Sentíamo-nos felizes, sonhadores e esquecidos das provações passadas. Então Harris, que estava sentado ao pé da janela, afastando a cortina, olhou para fora. A rua brilhava na escuridão, toda molhada, sob as luzes que tremiam com as fortes rajadas; a chuva que caía sem cessar escorria das goteiras, as regueiras transbordavam. De quando em quando passava um homem apressado, encharcado, curvado sob o chapéu de chuva, e as mulheres arregaçavam bem alto as saias. - Ora bem - disse Harris estendendo a mão para a taça de champanhe -, demos um lindo passeio, devemos agradecê-lo à ninfa do Tamisa; mas fizemos bem em aproveitar o nosso tempo enquanto lá estivemos. Bebo à saúde dos três camaradas libertos do barco! E Montmorency, apoiando-se à janela, olhou para a rua e, lançando um rápido latido, associou-se resoluto ao nosso brinde. FIM DO LIVRO