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Ministério da Educação e do Desporto Secretaria de Educação Especial Instituto Nacional de Educação de Surdos Departamento de Desevolvimento Humano, Científico e Tecnológico

SEMINÁRIO DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA

EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS

21 a 23 de julho de 1997

Rio de Janeiro

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional de Livros, RJ.

S474s

Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para Surdos (1997 Rio de Janeiro, RJ)

. Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para Surdos, 21 a 23 de julho de 1997 / (organização) INES, Divisão de Estudos e Pesquisas - Rio de Janeiro: Ed. Líttera Maciel Ltda.

Inclui bibliografia

I. Surdos - Educação - Congressos: I. Instituto Nacional de Educação de Surdos (Brasil). Divisão de Estudos e Pesquisas.

II. Título.

96-2048 CDD-371.912 CDU-373.33

131296 161296 002373

ANAIS DO SEMINÁRIO DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA

EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS

Edição Instituto Nacional de Educação de

Surdos - INES

Capa/Projeto Gráfico Anna Maria Vodopivic

Produção Gráfica Editora Líttera Maciel Ltda

Tiragem 1.500 exemplares

Comissão de Publicação Cármen Sílvia Nora Dias Quintieri

Mareia Regina Gomes Maria Inês Batista Barbosa Ramos

Vera Regina Loureiro Wilma Favorito

Rua das Laranjeiras; 232 CEP: 22240-001

Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax (021) 285-7284

285-7393

Instituto Nacional de Educação de Surdos

Presidente da República Fernando Henrique Cardoso

Ministro de Estado da Educação e do Desporto Paulo Renato Souza

Secretária de Educação Especial do MEC Marilene Ribeiro dos Santos

Diretora-Geral do Instituto Nacional de Educação de Surdos

Leni de Sá Duarte Barboza

Diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano, Científico e Tecnológico

Wilma Favorito

Agradecimentos a todos os profissionais do INES que colaboraram na organização deste evento e, em especial, à direção do Colégio Imaculada Conceição

Apresentação

Palestras

Educação: Singularidade e Solidariedade

Eliana L. M. Yunes

O Dizer do Sujeito Bilíngue: aportes da Sociolinguística

Tereza Machado Maher

Língua e Escrita: uma questão de história

Tânia C. Clemente de Souza

A Educação para os Surdos entre a Pedagogia Especial e

Políticas para as Diferenças

Carlos Bernardo Skliar

A Escrita nas Diferenças:

Regina Maria de Souza

Dinamização de Leitura dentro de uma Prática Bilíngue n

Bibliotecas do INES

Regina Celeste R. B. Rodrigues

Aquisição de L1 e L2: o contexto da pessoa surda

Ronice Múller de Quadros

Uma Experiência Fonoaudiologica na Abordagem Bilíngue

Cristina B.F. Lacerda

Apresentação

Esta publicação reúne os textos relativos às palestras apresentadas por ocasião do Seminário DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA EDUCA­ÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS promovido pelo INES de 21 a 23 de julho de 1997.

Neste encontro, que contou com a participação de cerca de 600 pro­fessores e técnicos de 25 estados do Brasil, as reflexões giraram em torno das implicações sociais, culturais, linguísticas e pedagógicas inerentes a uma proposta de educação bilíngue para surdos.

Pensar a educação de surdos ultrapassa o fato de se levar em consi deração a coexistência de duas línguas no ambiente pedagógico. Há que se pensar o surdo como qualquer outro sujeito bilíngue, imerso em dife­rentes registros culturais, inscritos nas relações de poder determinadas historicamenrte na sociedade. A comunidade de surdos compartilha ques­tões semelhantes às comunidades linguísticas ditas minoritárias como os índios, ou imigrantes, ou povos colonizados que precisam lutar muito para terem afirmadas e reconhecidas sua identidade cultural e linguística no contexto sócio-polítieo em que vivem.

Em decorrência dessas considerações, é natural supor que o indiví­duo surdo apresente singularidades relevantes em seu processo de aqui­sição do conhecimento. O papel da língua de sinais como primeira língua do surdo e como língua de instrução na escola, bem como a aquisição do português como segunda língua são algumas das particularidades a se­rem estudadas e discutidas pelos profissionais da área da surdez.

Questões como estas, pensadas no âmbito de um projeto político pedagógico para surdos, precisam interagir com as discussões atuais da educação geral. Assim como as pesquisas linguísticas cada vez mais buscam entender as características linguísticas e cognitivas dos surdos. a educação especial precisa aproximar-se o mais possível dos grandes debates que hoje se realizam na educação como um todo.

Respeitar a diferença em todos os seus aspectos e simultaneamente negociar os saberes é o grande desafio da educação, e, em particular, da educação de surdos.

Educação: Singularidade e Solidariedade

Profª Drª Eliana Yunes (PUC-RJ)

A sociedade humana organizou-se sobre alguns eixos que, ao longo da história da civilização, revelaram-se constantes, mas em permanente rotação: o manejo da técnica desde o domínio do fogo; a regulação das trocas desde a proibição do incesto; a ordenação do mundo pela nomea­ção do verbo; o controle das massas pela tomada do poder. Entre eles, girando igualmente ao sabor de forças intercondicionadas, o homem -assim, grafado no singular e significando o coletivo. O homem, então. eram os homens.

A primeira notícia que temos desta noção, delineia este ser humano, menos como espécie e mais como gênero, sem qualquer traço de individu­alidade que o retirasse do todo em que se perdia, anónimo. Nomes tinham apenas os que simbolizavam este coletivo: os reis - legisladores-profe-tas, cuja vontade e palavra determinavam as fronteiras em que se moviam os demais, estes, que morrendo em seu nome, paradoxalmente, lhe permi­tiam dar vida ao nome e perpetuar-se na memória.

Mesmo quando doutrinas menos monolíticas passaram a criar dissa­bores para estas estruturas, aqui e acolá, o homem, imaginando-se como um outro, numa história de lugares marcados, desenvolveu uma percep­ção míope de sua condição pessoal, a não ser quando do "chamado" divino.

Das histórias de seres imaginários e coisas anímicas às narrativas de confissões e memórias, passam-se alguns milénios c muitos conflitos, em que as vitórias cm campo de batalha, nem sempre significaram, para os nomeados, êxito na manipulação das massas. Esta gente ignara, de difícil compreensão e muita perplexidade, antes comprometia que servia, pela ignorância, os rumos que o poder estatuía como o da história.

Desde (Santo) Agostinho até (São) Tomás de Aquino, passando em meio a Inquisição por uma mulher destemida, (Santa) Tereza d'Avila e, quando nenhum deles ainda, se invocava pelo título de santificação, emer­giram personas individuais cujo perfil singular, séculos depois, tentamos aos poucos ainda delinear.

A noção de indivíduo nos chega com o romantismo, quando o herói não mais místico ou legendário, mas navegador ou mascate, começa a fazer um nome, tirando do anonimato um Cristóvão Colombo, um Romeu, um Quixote, um Rousseau. Das confissões de Rousseau podemos puxar

dois fios que, de perto, tocam o tema que nos propuseram tratar: o da noção de individualidade e o da relevância da educação. A revolução mercantil e marinheira, que sustentou economicamente o Renascimento c o Absolutismo, já fortalecera as corporações de ofícios e as pequenas escolas monacais para tornar útil a gente miúda, despreparada para ga­rantir seu sustento c o dos reinos.

A noção de indivíduo, todavia, se circunscreve, sociologicamente para distinguir o homem na multidão e, mesmo, quando ao cabo da revo­lução burguesa, o nome próprio ganhou foro (enquanto se vendiam títu­los), a educação se manteve como instrumento de domesticação e adap­tação dos indivíduos aos papéis sociais que lhes foram reservados pelo novo sistema.

Educar, no entanto, etimologicamente, apontava para outros proce­dimentos. De ex-dúcere - conduzir para fora, trazer à tona, à expressão, o que vive dentro do homem, pelo próprio étimo, solicitava estratégias di­versas das que então se punham em marcha, no processo de escolarização que, lentamente, se expandia. Educação presumia acompanhamento, com­panhia, diálogo, troca de olhares e de experiências, manifestação da rela­ção homem x mundo que a percepção colhia, ensaio de especulações. construção de conhecimento.

Ao contrário, um rol sistemático de conteúdos e de valores, tendo por base ideologias subliminares, desenhou o educando educável e o homem educado que a sociedade almejava conformar. Primeiro, a prevalência do caráter instrumental, depois o adestramento de habilida­des; em seguida, a assimilação da tradição e do conhecimento acumula­dos e, por fim, o treinamento técnico. E a sociedade cada vez. mais longe dos sonhos de cidadania responsável e qualidade de vida com direitos garantidos.

É com Kant, com sua teoria do conhecimento, que a noção de subje­tividade aflora - há qualidades que não são propriedades dos objetos, mas afetações dos sujeitos que as percebem: portanto, atributos que se delineiam na mente do sujeito cognoscente. Embora não reduzisse a rea­lidade ao sujeito pensante, Kant deu relevância às instruções e concei­tos, "a priori", para além da possibilidade de experiência que o homem pudesse desenvolver.

Neste binómio, sujeito que conhece / objeto observado, o mundo da experiência dependeria, essencialmente, da estrutura da consciência hu­mana. Para Kant a sensibilidade e o entendimento são fontes do conheci­mento, que combinadas, nos dão a experiência do real como fenómenos, isto é, enquanto objetos que se relacionam a nós sujeitos. Este passo importante, na explicitação do papel da razão e dos sentidos na constitui-

ção dos sujeitos e de sua relação com o conhecimento do mundo, ilumina a noção de consciência. A tomada de consciência indicaria um paulatino domínio completo da realidade experienciada pelos sujeitos.

A modernidade trouxe no seu bojo, mais que o iluminismo, o positivismo, o empirismo - trouxe a crise do conhecimento enquanto inca­paz de dar conta das práticas sociais e individuais que transformaram o final do século passado em ruína e fragmentação de todas as certezas. A celebração do saber enciclopédico excluía as diferenças, e com elas, o "gaúche" do mundo.

É com Freud que esta noção de sujeito vai se reformular. Para além da consciência humana, com controle sobre objetos e comportamentos, desvendava-se no fundo do poço das memórias pessoais, o lado oculto da mente, o inconsciente. Dele irrompiam, sob censura, desejos e recalques, todo o reprimido por conta, justamente, das imposições da ordem do simbólico, da ordem da lei, no plano social. Aflorando do inconsciente, outro sujeito carecia de resgate para harmonizar-se e às suas relações. Tem início um processo que funde, lentamente, sujeito e objeto, no pro­cesso de conhecimento.

Por outro lado, com Marx, a análise econômica e histórica denuncia o mecanismo de controle do social por interesses difusos, mas sistematica­mente, organizados, sob a forma de ideologias que disseminam determi­nadas visões de mundo, orientando, subliminarmente, as formas de ação e as práticas políticas das sociedades.

A complexidade em torno do conceito de sujeito aumenta. Por um lado, ele enriquece sua autonomia, pela descoberta do peso de suas emo­ções e sentimentos, memórias e necessidades. Construindo-se a si mes­mo, em um movimento permanente de verbalizar-se, ele se transforma em narrador de sua história. Por outro lado, vê-se coagido por valores, prin­cípios e ideias que antes lhe pareciam tão "naturais" e os descortina, agora, como produções discursivas, interessadas que submetem seu pró­prio discurso.

Vê-se, então, em situações, continuamente dramáticas, que escapam à sua compreensão, quer como parte, quer como totalidade; fragmenta-se e corre o risco de anular-se, de dissolver-se, de novo, no anonimato das massas.

Na educação, um discurso libertador e democrático toma corpo, admitindo-se que o sujeito conhece e se conhece - se reconhece - ganha identidade e se transforma permanentemente, à luz de sua historicidade, das circunstâncias que o cercam, segundo a forma como se relaciona com seu tempo e espaço, de como logra intervir no entorno. Conhecer deman­da interpretar, o que significa envolver-se com o mundo.

A noção de que o sujeito interpreta o mundo com a bagagem de vida que traz, com seu repertório cultural, pouco a pouco, alavanca a ideia de que o conhecimento e o sentido do mundo não podem ser articulados tora das linguagens. O caráter social desta e sua inexorável estruturação da mente faz com que o próprio inconsciente, sendo linguagem, não se exima da permeabilidade social, através dos traços, sinais e cenas que o impregnam.

Com isto, o peso das comunidades interpretativas se torna decisivo para que os sujeitos se construam. Dizendo de outro modo, a subjetivida­de cede passo à inter subjetividade, condição para que se compreenda, como impossível, um sujeito "puro" da razão; do mesmo modo, que inevi­tável é a existência da diferença para que se possam produzir "verdades" aceitáveis entre sujeitos de uma mesma comunidade, isto é, para que possa haver acordo (ético e estético); só entre os sujeitos estaria o con­senso inteiramente dinâmico e reajustável, segundo o processo mesmo do conhecimento que nunca é definitivo.

Se a intersubjetividade, por um lado, coloca a premência da conside­ração do mesmo e, do outro, se ela elimina parte da concepção conflitante de individualidade - o homem é com os outros - a intersubjetividade corre o risco de gerar e acomodar qual modelo, este sujeito-entre-sujeitos, desmemorizando, invalidando quaisquer gestos que não correspondam, digamos, ao societário em seu conjunto.

Mas, não é bem esta a saída: não é tanto pela similaridade que a intersubjetividade se torna possível - é também pela troca, pela diferença que ela se desaloja continuamente, permitindo que a estabilidade não se cristalize e alcance os patamares de consenso doutrinário, dogmático ou ideológico. Nestes meandros, todo o processo educativo deve-se trans­formar porque ele só pode ensinar o que, ao mesmo tempo, aprende. O saber de ontem já não é operativo, ele se move com a história dos sujeitos que interagem, entre si, e com o mundo no recorte tempo - espacial em que se inserem.

A diferença produtiva, digamos assim, no lugar da diferença conflitante, e por isso, excluível ou excludente, se consolida no que Guattari chamou de singularidade: a feliz articulação do entendimento comum com a sensibilidade particular ou da sensibilidade comum com o entendimento particular, oriundos das percepções e interações próprias de mundo, numa combinatória que se renova incansavelmente... até que o sujeito decida coincidir apenas consigo mesmo, estagnar e morrer.

Buscando a troca, a ampliação dos horizontes através de visões di­versas do mundo, a prática dos homens demanda uma tolerância de

ordem ética e um compromisso com a.solidariedade: o outro, diferente de mim é igual a mim, se me permitem o paradoxo: eu sou um outro. A possi­bilidade de o conhecimento, o saber, alargar-se e ir em busca de formula­ção para novas hipóteses de respostas relativas a muitas velhas ques­tões, implica na mudança de paradigma da educação: das verticalidades para as horizontalidades, do assertivo para o performativo, da subordina­ção para a coordenação.

Embora, de alguma fornia isto já esteja no discurso de um pedagogo do quilate de Paulo Freire no Brasil de 30 anos atrás, nossas práticas continuam refratárias ao diálogo, à concomitância, à simultaneidade. Tra­balhamos, ainda, com o jogo do desgosto - ou isto ou aquilo -quando isto e aquilo podem ser verdadeiros, conforme o olhar desprovido de antolhos e preconceitos que lancemos ao mundo.

Ser solidário não é ser solitário; a vida é, e portanto demanda, mais de um - da biologia genética às epistemologias ou teorias do conhecimento. A interação e a reciprocidade só estranham a quem se estranha e por conta disto não reconhece o mesmo no outro - na medida em que sua própria singularidade não lhe é familiar. A mesmice lhe embaraça a visão.

Contudo, nesta babel da sociedade urbana e de massa, neste arco de solidariedades e tolerâncias de que carecemos não se dispensa o gesto da coerência. E por ela que todo o sistema se desequilibra e reajusta, porque se arruma e reconstitui. A coerência exige um estar em caminho permanente, aberto ao diálogo, ao não visto nem entrevisto, sem sucum­bir às falácias da homogeneidade e do consenso apático que subtrai à vida sua vitalidade mesma - a perseverante busca do gozo, da harmonia, da alegria; não de um, mas de muitos; de todos quantos se descobrem sujeitos de suas paixões, conduzindo-se para fora, educando-se num pro­cesso interminável de curar-se - com todo o prazer, até que... a indesejável das gentes venha e encontre a mesa posta e cada coisa em seu lugar, como disse Bandeira.

Educar é educar-se a si enquanto companhia de um outro. Cada dife­rença a ser trabalhada é uma diferença e não uma desqualificação do sujeito. Há surdos que não ouvem e surdos que não querem ouvir. Am­bos carecem de educação. Solidária.

O Dizer do Sujeito Bilíngue: Aportes da Sociolinguística Profª. Dra Tereza Machado Maher (PUCCAMP/UNICAMP)

"Os direitos linguísticos formam parte integral dos direitos humanos fundamentais. Estes direitos se re­ferem àquelas prerrogativas que parecem atributos naturais e evidentes a todos os membros das maiori­as linguísticas dominantes: o direito a usar sua pró­pria língua em qualquer contexto cotidiano e oficial, particularmente na educação, como também o direi­to de que as opções linguísticas do sujeito sejam res­peitadas e que este não sofra discriminação alguma pela língua que fala." (Hamel, 1995)

O bilinguismo tem sido visto no mundo como algo negativo, como um problema. Embora a esmagadora maioria dos países do mundo seja multilingue, existe o mito de que o multilingúismo c um estado de exceção que deve, a todo custo, ser erradicado (cf. Calvet, 1987). A construção de tal mito está documentada na História: a Torre de Babel, um dos castigos impostos, na tradição judaico-cristã, à humanidade colocou como certe­za: muitas línguas - o caos. O conceito de Estado-Nação, legado da Revolução Francesa, estabeleceu como verdade o binômio "unidade = uniformidade": a formação de um Estado pressuporia e dependeria da existência de uma cultura, de uma língua nacional. Estes são apenas alguns dos acontecimentos históricos que, ao longo do tempo, e ideolo­gicamente, vêm imprimindo na consciência individual e coletiva a noção de que o Homem - o Cidadão - deve ser monolíngue. E é este mesmo mito do monolinguismo que tem impedido a disseminação de resultados de pesquisas que poderiam contribuir para o estabelecimento de políticas e práticas educativas mais justas e democráticas para as minorias linguísti­cas existentes no mundo.

Muito embora minha experiência profissional e meu compromisso político mais imediato seja com a educação da criança indígena, é meu objetivo neste trabalho, por tudo que afirmei acima, levantar, ainda que

de maneira extremamente suscinta, algumas informações teóricas advindas da Sociolinguística, na expectativa de que, talvez, este texto possa contri­buir para o debate sobre a educação da criança surda.

Bilinguismo Social e Conflito Diglóssico

Eram anglo-saxões os primeiros pensadores a elegerem o multilinguismo social como objeto de investigação (Weinreich, 1953, Ferguson, 1959 e Fishman, 1967)'. Diglossia, ou seja, a relação entre línguas (ou variedades linguísticas) que ocupam um mesmo espaço só-cio-geográfico, foi definida, nesta tradição de pesquisa, como sendo uma relação de dualidade funcional estável. Dentre línguas em contato have­ria uma cujo uso estaria sempre reservado para o âmbito do público e do formal (língua Alta), enquanto que a outra estaria reservada para o domí­nio privado, informal (língua Baixa). Traços distintivos como prestígio, tradição literária, modo de aquisição, estandardização e estabilidade dis­tinguiriam tais variedades sendo que normas rígidas regulariam a distri­buição funcional do uso linguístico nas comunidades de fala - cada lín­gua sendo usada exclusivamente no seu domínio, servindo sempre a uma função específica.

A partir do início da década de 70, o conceito clássico de diglossia começou a ser alvo de críticas, críticas estas originalmente levantadas no interior da chamada Sociolinguística da Periferia: a sociolinguística catalã e ocitana. Composta por investigadores "nativos", falantes de línguas minoritárias - o que, como explicam Hamel e Sierra (op.cit.), fez com que o fenômeno passasse a ser olhado de um outro lugar, o lugar da opressão sócio-econômica e cultural - a Sociolinguística da Periferia fez incidir suas críticas, principalmente, para a visão idílica de estabilidade. homogeneidade e harmonia embutida no conceito canónico de diglossia. Os acadêmicos anglo-saxões orientavam-se pelos preceitos do estrutura­lismo e do funcionalismo, c, portanto, para eles, normas, regras e consen­so eram características centrais das relações e ações sociais. Os sociolinguístas europeus, por outro lado, concebendo o conflito como parte constitutiva da dinâmica social, argumentavam que, em situações diglóssicas, não existe apenas uma diferenciação funcional, aparente­mente neutra, entre as línguas, pois o que está em jogo é que a cada função corresponde uma valoração social diferenciada. Daí terem pro­posto que a relação diglóssica não fosse mais pensada como uma relação de contato estável entre uma língua alta e uma baixa, mas, sim, como uma relação de conflito não-estável. assimétrica, entre uma língua dominante e

Kremnitz (l981) e Haminel e Sierra (1983) historicizam as diferentes conceitualização de diglossia existentes na literatura sociolinguística.

outra dominada. Entendido desta maneira, o fenômeno diglóssico se refe­re, em última instância, a um jogo de ocupação linguística.2 Neste jogo a língua dominante tenta "abocanhar" funções próprias da língua domina­da, "enfraquecendo-a ", "empurrando-a" para usos e funções cada vez mais restritos e/ou desprestigiados, a não ser que forças contrárias de resistência sociolinguística sejam acionadas.

Sabemos que a política linguística no Brasil elegeu a língua portugue­sa como "língua nacional", língua de prestígio. Historicamente, tem sido ela a língua da escola. A literatura nela produzida tem sido incentivada e cuidadosamente documentada. Exclusivamente dela sempre se utilizaram o discurso legal, os meios de comunicação de massa. A língua portugue­sa impera, portanto, no âmbito do formal, do oficial, do público e, por isso, é ela a língua dominante no país. Desprestigiadas, às demais línguas brasileiras restou o papel de línguas subalternas.1

A importância de atentarmos para a existência de conflito diglóssico reside no fato de que este, quando presente, afeta atitudes e tomadas de decisões em todas as esferas sociais, na escola inclusive já que, como é sabido, esta não opera num vácuo social (cf. Poche, 1989 ou Maher, 1996). Logo, o modelo de educação adotado nas escolas para crianças surdas irá refletir o posicionamento de seus agentes educativos, frente ao con­flito diglóssico, vivenciado por seus alunos. Sem que a Língua de Sinais ofereça, agressivamente, resistência ao português, sem que ela tente pe­netrar nos domínios da língua dominante, esta língua minoritária não terá chances de se firmar no embate diglóssico. Cabem, então, as perguntas: qual é o lugar e o peso dado à Lingua de Sinais no currículo? Que terrenos comunicativos/discursivos estão por ela sendo conquistados no cotidiano da sala de aula? A escola visa promover a estandardização da Língua de Sinais, incentivando, por exemplo, a criação de neologismos? Que esforços estão sendo feitos no sentido de se documentar a produção literária feita nesta língua? Estas são algumas questões com as quais educadores comprometidos com os direitos linguísticos da criança surda teriam, a meu ver, que se preocupar.

! Convém não nos esquecermos de que, qualquer que seja o nosso posicionamento sobre o que constitui o fenômeno diglóssico, a maneira como a questão é definida é sempre metonímica, uma vez que as línguas como tais não podem participar de "jogo" algum. Seus usuários, estes sim, enquanto membros de grupos sociais é que, a depender do enfoque teórico, estariam em contato ou em conflito (cf. Hamel, 1988)

' Nunca é demais lembrar que são faladas no país, hoje, por cidadãos brasileiros natos, cerca de 203 línguas, a saber: pelo menos 170 línguas indígenas, 30 línguas de imigrantes, 2 línguas de sinais (Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS - e Língua de Sinais dos Urubu-Kaapor), e evidentemente, a língua portuguesa.

Bilinguismo Individual e um Universo Discursivo Diferenciado

Se deixarmos de lado a macro-análise do bilinguismo c nos debruçar­mos sobre o fenômeno ao nível do indivíduo, iremos, novamente, nos deparar com a existência de mitos. Vejamos apenas duas das definições de bilinguismo compiladas por Baetens Beardmore (1982), definições es­tas muito semelhantes àquelas ditadas pelo "senso comum":

"Bilinguismo é o controle de duas línguas equivalente ao controle do falante nativo destas línguas." Bloomfield, 1933.(grifo meu)

"O sujeito bilíngue é aquele que funciona em duas línguas em todos os domínios, sem apresentar interferência de uma língua na outra " Halliday, 1984. (grifos meus)

Qualquer indivíduo que esteja em contato efetivo com comunidades bilíngues, ou que seja, ele mesmo, um de seus membros, ao contrapor as práticas comunicativas que testemunha ou vivência com as definições acima irá perceber os equívocos contidos nestas últimas. Em primeiro lugar, há que se considerar que tais definições pressupõem a possibilida­de de existência de "bilíngues equilibrados", ou seja, de falantes com idêntica competência comunicativa cm ambas as línguas de seu repertó­rio. Ora, a noção, inicialmente utilizada pelos sociolinguistas, de bilinguismo equilibrado, teve que ser posta de lado à medida que observações da realidade comprovaram ser este conceito apenas uma idealização. O bilíngue, nos dizem os dados empíricos, é sempre capaz de desempenhar-se melhor numa língua do que na outra a depender do gênero/tipo de discurso e do seu estado emocional no momento da comunicação. Sabe­mos, ademais, que questões que envolvem a necessidade ou o desejo de reafirmação de identidade étnica ou social, frequentemente, afetam o grau de competência exibida pelo bilíngue. O surdo, por exemplo, querendo, ou precisando, marcar-se ou não se marcar, discursivamente, como "surdo" tenderá a exibir uma competência ora mais, ora menos, distante da compe­tência comumente exibida por sujeitos monolíngues em língua de sinais ou em língua portuguesa. As competências do sujeito bilíngue não são, portanto, fixas, estáveis como sugerem as definições sob análise.

Um segundo problema embutido nestas definições refere-se à nega­ção de um comportamento discursivo no qual haveria uma suposta "con-

laminação perniciosa" entre as línguas utilizadas pelos falantes. Ora, o funcionamento discursivo do sujeito bilíngue prevê a utilização de mu­dança de código (code-switching) e empréstimos linguísticos (borrowings) em sua gramática.4 Um bom bilíngue transita de uma língua para outra justamente porque, diferente do monolíngue, tem competência para tanto. A mudança de código e os empréstimos linguísticos são recursos comunicativos poderosos dos quais ele lança mão com frequên­cia, para, pragmaticamente, atribuir sentidos vários aos seus enunciados: para expressar afetividade, relações de poder, mudanças de tópico, iden­tidade social/étnica, etc... Não se trata, portanto, de um deficit, mas, sim, é preciso insistir, de um recurso estrategicamente utilizado. Sendo assim, todo o cuidado deve ser tomado para que a escola não "problematize' aspectos do desempenho da criança bilíngue que, na verdade, são constitutivos do seu discurso, são uma de suas riquezas, uma de suas especificidades.

Além das considerações acima, creio que nossas ações educativas serão mais justas se nos convencermos de que o sujeito bilíngue funcio­na num universo discursivo próprio, específico, que não é nem o univer­so discursivo do falante monolíngiie em L1, nem o do falante monolíngue em L2. O sujeito bilíngue não é produto da somatória de competências equivalentes às competências dos sujeitos monolíngues e, portanto, não deve ser assim avaliado. Sua competência comunicativa só pode e deve ser totalmente avaliada com referênciaa ambas as línguas de seu repertó­rio e em termos das funções exercidas por cada língua no interior da comunidade de fala. Em suma, é preciso, abandonando idealizações, ado-tarmos uma visão sócio-funcional de bilinguismo (cf. Grosjean, 1982, Romaine, 1989).

Por último, é preciso atentarmos para a alta possibilidade de ocorrên­cia de conflitos escolares devido à existência de culturas interacionais5

incongruentes na sala de aula bilíngue/' Uma vez que falantes de línguas diferentes utilizam não apenas "códigos", sistemas linguísticos diferen­tes, mas, também, observam padrões interacionais diferenciados, padrões estes culturalmente determinados, é de se supor a possibilidade de que

Ver a este respeito. Zentella, 1981. Baker. 1993, Romaine, 1995.

5 Empresto a expressão "cultura internacional" de Leavitt e Stairs, 1988.

Cf. Maher, 1994.

professores ouvintes e alunos surdos estejam, cm suas interações transculturais, guiando-se por regras de apropriabilidadc e etiquetas conversacionais antagônicas. Cabe, então, a pergunta aos especialistas da área: que esforços estão sendo feitos para a compreensão da cultura interacional do surdo?

Espero que as reflexões contidas neste texto possam, ainda que mini­mamente, contribuir para que as crianças surdas tenham a educação específica e de alta qualidade a que têm direito enquanto membros de uma das minorias linguísticas brasileiras, de modo que elas, exercendo ampla­mente sua cidadania, tenham condições de, em contrapartida, também contribuir para a melhoria deste país.

Referências Bibliográficas:

BAETENS BEARDMORE.H. Bilingualism: Basic Principies. Clevedon: Multilingual Mattters, 1982.

BAKER, C. Foundations of Bilingual Education and Bilingualism. Clevcdon:Mullilingual Matters, 1993.

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GROSJEAN, F. Life with Two Languages - An Introduction lo Bilingualism. Cambridge: Harvard University Press, 1982.

KREMNITZ,G."Du Bilinguismc'au 'ConflictLinguistique'-Cheminement de Termes et de Concepts" in Languages, 61:63-73,1981.

HAMEL, R.E. e SIERRA, M.T. "Diglossiay Conflicto Intercultural: La Lucha por un Concepto o la Danza de los .Significantes" in Bolctin de Antropologia Americana, 8:98-110, 1983.

HAMEL, R.E. "Dercchos Linguísticos como Derechos Humanos: Deba tesy Perspectivas" inAltcridades. 5(10): 11-23, 1995.

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Língua e Escrita: uma questão de história

Profª. Drª. Tânia Conceição Clemente de Souza (Universidade Federal Fluminense)

Nosso objetivo é recuperar que o desenvolvimento da escrita pelo homem se deu de forma diferenciada nas diferentes sociedades. Por ou­tro lado, apontar que nas sociedades, onde não se atesta o advento da escrita, a materialidade da língua, traz em si, a sua especificidade de língua de oralidade, dado fundamental na constituição da relação homem/cultu­ra/mundo e na constituição da identidade do povo.

Em sua maioria, as sociedades buscam uma relação simbólica e abs­traía entre língua e escrita, quando se criam símbolos convencionais para o registro da oralidade.

Algumas outras sociedades buscam essa mesma relação, trabalhan­do, porém, com outras formas de escrita, melhor dizendo, formas de escri­tura, nas quais se apreende uma dimensão analógica no registro da oralidade. Ou seja, a escritura se constitui numa relação direta com a imagem do real ou do abstrato, base de construção do arquivo da história das sociedades de oralidade.

A relação língua e escrita é, pois, uma relação histórica, construída em lugar e épocas determinadas. Quando se procura recuperar de que forma se deu o desenvolvimento das sociedades, descobrem-se duas formas de Arquivo dessa história: uma através da escrita, no caso, a que trabalha com símbolos convencionais e abstratos; outra através de ou­tras formas de escritura, em que se apreende que o Arquivo de uma soci­edade pode ser guardado em imagens, em coreografias, cantos, no artesa­nato1, etc.

Para falar um pouco mais explicitamente dessa relação eu vou focali­zar aqui três fatores: a história da escrita de sociedades como a nossa e a história de outras formas de escritura; a proposta de ortografias despro­vidas de historicidade e a questão da materialidade discursiva.

Vamos começar pela questão: O que é a escrita?

'Em Souza, 1997 (no prelo), discute-se como a imagem, entendida, no caso, como forma de escritura, é peça fundamental na preservação da história e da cultura das sociedades de oralidade, tendo, por uma questão de história, preponderância sobre outras formas de escrita.

Trata-se de um objeto cultural e simbólico, elaborado historicamente por alguns povos, cujo fim é registrar fatos de oralidade.

Segundo algumas vertentes teóricas como no âmbito da Linguística, por exemplo, a primeira expressão de escrita pelo homem teria ocorrido em forma de desenho. O desenho, a princípio, teria a função de relatar, de nomear as coisas numa fornia direta e "literal". Mais tarde, o desenho, gradativamente, torna-se abstrato, e passa a corresponder à expressão de conceitos, ideias e, com isso, é definido como um ideograma. Em outro momento, inventam-se símbolos que, convencionalmente, passam a ser associados às sílabas, dando lugar à escrita silábica, ou aos sons indivi­dualmente, dando lugar à escrita alfabética.

Hoje em dia, percebe-se que muitas sociedades se destacam entre si pelo tipo de escrita desenvolvido. Há, entretanto, sociedades em cuja história não se desenvolveu a escrita; são as chamadas sociedades de oralidade.

Pressupor, do ponto de vista evolucionista, o desenho, a imagem, como uma forma primeira de escrita é um fato passível de discussão. Pesquisas arqueológicas têm revelado a existência de sociedades con­temporâneas entre si que apresentavam, cada uma individualmente, tanto a imagem quanto o ideograma, como formas de escrita. Logo, é um equí­voco pensar na evolução do desenho para o ideograma, já que ambos coexisliram numa mesma época. Ou seja, o desenho não deu origem à escrita, como se diz.

Um outro dado que contribui para a não associação do desenho à evolução da escrita se fundamenta nas diferenças existentes entre as duas expressões da linguagem: a verbal e não-verbal. Diferenças que não só colocam as duas dimensões da linguagem em planos diametralmente opostos, como aniquilam qualquer perspectiva de evolução entre ambas.

Linguagem verbal/escrita X Linguagem não-verbal/formas de escritura

• ideograma • mitograma • sílaba • imagem • albabelo

• não-linearidade (depende do olhar) • multidirecionalidade • não-segmentação (quando se

destaca um elemento da imagem, cria-se uma outra imagem; um outro texto)

• linearidade • direcionalidade • segmentação: palavra

sílaba fonema sintagma

O outro fator, além da história das escritas, diz respeito a proposta de ortografias para línguas em cuja história não se registra o advento da escrita. Nessas propostas, percebe-se a total falta de um caminho histó­rico, no caso, pensado pelo próprio índio. A escrita de sua língua lhe é trazida pelo outro (o não-índio) que entende das regras de escrita, mas nem sempre tem o cuidado de apreender a dimensão social e ideológica desse processo. Orlandi (1990) aponta, dentre muitos aspectos, o modo caricatural como têm sido escritas as palavras em língua indígena. Diz a autora que "escrever as palavras como elas soam é trabalhar uma sua imagem fora de sua história, de seu modo de existência".

Recorrer ao trabalho com um monitor (um falante nativo) nem sempre garante a eficácia do processo. Porque, a todo tempo, estamos impondo uma realidade - no caso, a escrita ortográfica - que não tem um elo histórico, nem com a sua forma de sociedade, nem portanto, com a sua identidade. Assim, ao se propor a essas sociedades um trabalho com a escrita ortográfica é preciso se pensar de que forma se dará essa passa­gem do mundo da oralidade ao mundo da escrita:.

Muitos são os aspectos que merecem ser levados em conta, a come­çar pela própria noção de palavra. Em muitas línguas indígenas brasilei­ras, são comuns os processos de incorporação de vocábulos, segundo os quais um núcleo verbal ou nominal pode incorporar, no interior de seu radical, vários outros radicais. Dessa incorporação, resultam não só alte­rações morfonêmicas, como se apagam as fronteiras entre as palavras. A ortografia que se propõe para as línguas indígenas segue os mesmos princípios adotados para a ortografia das línguas ocidentais e, nestas, não são previstas palavras decorrentes de incorporação.

O último fator que vou abordar se refere à discursividade.

A escrita de uma língua não se resume apenas a uma proposta de ortografia para a palavra. A escrita tem que pressupor a estrutura textual,

;Ao trabalhar com propostas de ortografias para grupos indígenas brasileiros, tenho observado fatos interessantes que ilustram posições diferentes do índio, ao ter que lidar tanto com a escrita do português, quanto com a escrita do seu idioma. Ao aprenderem a escrita do português, uma escrita que já vem pronta, cristalizada, não registro nenhum dado que possa revelar a interferência do índio no processo de construção dessa escrita. Ao contrário do que observo, quando o que está em jogo é a linguagem indígena. Quando estive entre os Tapirapé (índios Tupi), trabalhando na organização de cartilhas em língua Tapirapé, me chamou a atenção a insistência de um dos nossos monitores índios em dar à palavra ?poko 'comprido' a seguinte representação ?po?ko?, na qual o símbolo ['.'], que traduzia na escrita o fonema descrito como oclusão glotal, foi inserido aleatoriamente na extensão da palavra. Essa escrita particular, em nada, do ponto de vista linguístico, traduz a relação letra/ fonema prevista para a ortografia. Entretanto, ela traduz um gesto de apropriação do índio, pela escrita de uma língua que í sua e de cuja história, ele faz parte. Como lhe é abstraia - a-histórica - a relação letra/fonema, ele cunha a palavra com uma relação que é sua, particular, imprimindo à mesma a identidade indígena, histórica.

a materialidade discursiva da língua, muitas vez.es, só dominada pelo fa­lante nativo, já que essa quase sempre escapa ao linguista preocupado em aprisionar a língua indígena dentro de um sistema, e despreocupado com a textualidade, a dimensão discursiva da língua, lugar onde se cons­titui uma relação mútua, tanto a identidade da língua, quanto a do seu falante.

No caso das línguas indígenas, esse problema se torna mais comple­xo, pois, em termos discursivos a estrutura dessas línguas é muito dife­rente da nossa. E a nossa tendência é simplificar essa estrutura num trabalho de disciplinação dessas línguas. O resultado é que o material que é produzido em língua indígena acaba ilustrando textos com a mesma estrutura do português, mas ditos em língua indígena. Textos sem historicidade, sem materialidade discursiva.

Inúmeros são os exemplos que eu poderia arrolar aqui no intuito de ilustrar como o material para alfabetização indígena, quase sempre elabo­rado com critérios pertinentes e com a ajuda de monitores indígenas, frustra os nossos objetivos - a alfabetização - quando ganha inserção na realidade do grupo. (Cf.: Leite et allii, 1987 e Souza, 1993)

Destacarei apenas, à guisa de ilustração, a impossibilidade (nossa ou do índio?) de utilizar uma frase como 'A Mangaba madura se espalha no chão' numa cartilha Tapirapé. Diante da dificuldade de nosso monitor traduzir uma frase - aparentemente simples para nós - para a sua língua materna, passei a indagar a diversas pessoas, na Aldeia, a versão da mesma, em Tapirapé. A reação era uma só: estranhamento, confusão e, por fim, a resposta 'não sei'. Até que uma índia - considerada por mim como linguista nata - depois de dar boas risadas, retrucou:

"Tori (não-índio) é burro mesmo, hein. Tapirapé não diz desse jeito porque se a mangaba está no chão é porque ela já está madura."

Como se pode ver, assim como as palavras são escritas independen­tes do seu modo de existência, a língua nas cartilhas (e em outros materi­ais) parece desprovida da materialidade que a constitui como espaço de representação e de identificação. É a representação da identidade própria da língua que se perde, que é apagada. É a representação própria do índio que também se apaga, e o seu estranhamento diante do que lhe é apresen­tado como escrita (?), escritura (?) de sua língua nada mais é do que o reflexo dessa falta de reconhecimento do índio, na e pela língua, agora com uma forma escrita. Ou seja, apaga-se a língua, o discurso, o índio e, por consequência, a singularidade.

Uma singularidade que se revela na estrutura textual, discursiva. E que estrutura discursiva, textual é essa? É a mesma que não permite que

um texto como 'A mangaba madura se espalha no chão' (e tantos outros) seja intraduzível para o Tapirapé, já que não descreve a sua dimensão de mundo. É a mesma que não permite textos ditos com palavras do índio, mas que sua estrutura espelha a língua do outro: falta a incorporação, falta a sintaxe que, quase sempre, está distante da relação sujeito/ predicado3.

Para concluir, eu diria que o problema principal num projeto de educa­ção bilíngue, reside aí: o excesso de preocupação com aspectos formais e de conteúdo, e o pouco cuidado com o cultural, o social, o discurso, enfim, com a diferença. E a diferença é uma questão de história.

Bibliografia

• LEITE, Y. et alii. "O papel do aluno na alfabetização de grupos indíge­nas: a realidade psicológica das descrições linguísticas", Boletim do Museu Nacional, 53,1985.

• ORLANDI, E. Terra à Vista - Discurso do Confronto: velho e novo mundo, São Paulo. Cortez, 1990.

• SOUZA, T.C.C. de. "A questão discursiva e a elaboração de cartilhas em línguas indígenas" in: Seki, L. (Org.) Linguística Indígenae Educação na América Latina", Campinas, Editora UNICAMP, 1993.

• . "'Gestos de Leitura em Sociedades de Oralidade", in: Orlandi, E. (Org.) Que é leitor? São Paulo, Pontes, (no prelo)

' Confiram-se, por exemplo, a sintaxe das línguas ergalivas ou das línguas de tópico-comentario.

A Educação para os Surdos entre a Pedagogia Especial e as Políticas para as Diferenças

Prof. Dr. Carlos Skliar (UFRGS)

Trajetórias Ideológicas e Pedagógicas atuais na Educação dos Surdos.

Nos últimos tempos, houve uma significativa transformação, tanto no que se refere a concepções ideológicas, como na vida escolar cotidia-na na educação dos surdos. Das múltiplas contribuições para essa mu­dança, os aspectos mais relevantes se constituem na difusão dos mode­los denominados bilíngues/biculturais e o aprofundamento nas concep­ções sociais, culturais e antropológicas da surdez. Sem dúvida, o abando­no progressivo da ideologia clínica dominante no último século e a apro­ximação a paradigmas sócio-culturais não podem ser considerados, total­mente suficientes, para se poder afirmar a existência de um novo olhar educacional. Existem muitas dificuldades na organização dos projetos-político educacionais específicos e muitas são as limitações que, ainda hoje, dominam a prática pedagógica cotidiana nas escolas. Hoje em dia, ainda se percebe a necessidade de uma transformação radical, nas atitu­des, nos estereótipos e nos imaginários sociais que constituem o poder e o saber clínico/terapêutico: uma transformação que implica numa análise profunda sobre as grandes metas-narrativas e os contrastes binários (por exemplo. Bauman 1991: Silva 1995) enraizados na educação dos surdos; uma trajetória que deveria implicar, também, numa revisão sobre a ques­tão das identidades, das línguas, e das culturas dos surdos. Neste senti­do é possível definira existência, ou melhor, a potencialidade da existên­cia de dois movimentos educacionais, movimentos que estão surgindo, explícita ou implicitamente, dentro ou fora das escolas para surdos. Por um lado, é possível definir um movimento de tensão e de ruptura, entre a educação de surdos e a educação especial: por outro lado, e não sempre, como consequência do fato anterior, também pode-se falar de um movi­mento de aproximação da educação dos surdos às discussões, aos dis­cursos e às práticas educacionais próprias de outras linhas de estudo, em educação (Skliar, 1997 a)

O primeiro movimento se justifica por 3 razões, aparentemente inde­pendentes entre si:

Coloca-se cm julgamento que a educação especial seja o contexto obrigatório e apropriado para um debate significativo sobre a educação dos surdos, pelo menos, nos termos e nas concepções habitualmente simplificadas que ela promove.

> Discute-se a funcionalidade daquela linha contínua de sujeitos de­ficientes, dentro da qual, os surdos estão forçados a existir, na educação especial (Skliar, 1997 b): um anacronismo que consiste em situar os sur­dos, os deficientes mentais, os cegos, etc. em uma continuidade que, na verdade, é descontínua, isto é, grupos de indivíduos juntos, mas também separados entre eles, e separados de outros sujeitos. Por outro lado, devido a esta segunda razão, fica exposta com clareza, a oposição conceituai, entre indivíduo deficiente auditivo - na educação especial - e comunidade surda - na definição dos modelos sócio-antropológicos.

> Adverte-se que não são reconhecidos os diferentes e múltiplos recortes de identidade, linguagem, raça, cognição, gênero, idade, comuni­dade, culturas, etc. dos surdos. Neste contexto, os surdos, tanto como os outros grupos, são definidos só a partir de seus supostos traços negati­vos, percebidos como um desvio da normalidade. A construção das iden­tidades não depende da maior ou da menor limitação biológica e sim de complexas relações linguísticas, históricas, sociais e culturais. Neste sentido, não haveria nada em comum, por exemplo, entre um surdo c um deficiente mental, que separe esse surdo ou esse deficiente mental - de um menino de rua, de uma indígena ou de um trabalhador rural.

E evidente, mesmo que não seja o tema desse trabalho, que o conjun­to de razões aqui expostas constituem, além disso, um olhar crítico, em direção às antigas e novas políticas de integração dos surdos, na escola comum, que entre outros fatos, nega aos surdos, o encontro com sua identidade, com sua língua, com sua comunidade e sua cultura (Skliar, 1997 c)

O movimento de aproximação da educação dos surdos a outras li­nhas de estudos em educação possibilita uma discussão dentro de um contexto ideológico, teórico e discursivo mais apropriado e profundo. O fato de que os surdos também possam ser considerados pela diferença1

não supõe igualá-los a outros grupos, para posteriormente, normalizar o contexto histórico e cultural da sua origem. Não se trata, então, de dizer que os surdos padecem dos mesmos problemas que todos os demais grupos minoritários, excluídos, marginalizados e dominados. Pelo contrá-

'É possível que ao falar das diferenças, elas sejam consideradas como totalidades fixas ou estáticas. Mas neste trabalho, utilizo o termo diferença como um produto social, histórico e culturalmente relacionado de forma variável com outras diferen­ças.

rio, compreender a surdez, como uma diferença significa, como para toda diferença, um reconhecimento político (McLaren. 1995).

As consequências educacionais possíveis para a educação dos sur­dos, a partir dos movimentos educativos, antes descritos, seriam múlti­plas: entre essas consequências, destaco as seguintes:

> Um maior aprofundamento nas análises dos mecanismos de poder e de saber da ideologia dominante na educação dos surdos - o oralismo -desde suas origens, sua atualidade e seu futuro.

> Uma redefinição dos problemas que governam a educação para os surdos, ou melhor, um olhar completamente novo para o que é realmente determinante e/ou variável nela.

> Um consenso sobre as potencialidades educacionais dos surdos, descentralizando-se dos imperativos curriculares dos ouvintes - quer dizer, do oral, do escutar, do ler e do escrever e centrando-se nas especificidades linguísticas, cognitivas, comunitárias, culturais, de identidade e de participação educativa dos surdos.

> Uma ampliação do sentido e do significado sobre o papel que cabe à escola de surdos na educação de surdos, a partir de uma definição mais extensa e crítica de um campo para a educação de surdos, que compreen­da as diferentes relações existentes, não só dentro da escola como tam­bém, fora dela.

> Uma ampliação e uma multiplicação dos espaços conquistados pe­los surdos, dentro de sua educação, em oposição às típicas concessões fragmentadas e descontínuas que propõem, tradicionalmente os ouvin­tes.

Proponho-me nas páginas seguintes, analisar, detalhadamente, so­mente algumas destas questões.

O oralismo como ideologia dominante

O oralismo foi e continua sendo hoje, em boa parte do mundo, a ideologia dominante dentro da educação dos surdos. A concepção de indivíduo surdo refere-se, unicamente, a uma dimensão clínica - a surdez como deficiência, os surdos como doentes - dentro de uma perspectiva terapêutica, os surdos devem ser reeducados e/ou curados. A conjunção de ideias clínicas e terapêuticas levou a uma transformação progressiva e sistemática do contexto escolar e de suas discussões e enunciados peda­gógicos, em mecanismos de natureza médico -hospitalar (Lane, 1993).

É uma tradição, criticar o oralismo, considerando-o, somente, como um poder vertical, absoluto, onipresente; tal simplificação deriva, entre

outras questões, de uma leitura legalista de suas estratégias negativas mais explicitas - por exemplo a proibição do uso da língua de sinais, o controle, a disciplina c o castigo corporal, etc. Sem dúvida, a questão do oralismo, como ideologia dominante, excede por completo à instituição escolar e requer uma análise mais detalhada do sentido comum e dos estereótipos difundidos, em vários níveis, das sociedades que legitimam a ideia de que os surdos têm que aprender a falar. Neste sentido o oralismo não deve ser compreendido somente como um poder exercido, através de leis e seria uma ingenuidade pensar que surgiu, simplesmente, graças a um decreto, em um momento preciso da história.2

Como ideologia dominante, o oralismo gerou determinados efeitos, pois contou -seguindo o raciocínio de Moreira e Silva ( 1994)- com a cumplicidade da medicina e dos médicos, dos profissionais para-médicos, dos pais e familiares dos surdos, dos professores ouvintes c inclusive, de alguns surdos, aqueles que representavam, naquele momento, e repre­sentam agora, os progressos inevitáveis da terapêutica (o surdo que fala) e da tecnologia (o surdo que escuta). E o oralismo não pode ser definido, somente, como um conjunto de ideias e práticas institucionais coerentes e homogéneas, desenvolvidas exclusivamente para que os surdos falem, porque convivem junto a essas ideias e essas práticas algumas concep­ções filosóficas, religiosas e políticas já dominantes no século XIX (Skliar, Massone e Veimberg, 1995)

Por último, a ideologia dominante não é hegemônica e gera interpreta­ções diferentes. Entre essas interpretações aparecem algumas formas de resistência que, no caso dos surdos, se expressam de múltiplas maneiras. A criação de associações de surdos é so um exemplo disso, c todas elas surgiram, curiosamente, depois da imposição.da oralidade nas escolas. E resulta, ainda que paradoxalmente, que se continue considerando-as guetos e não como seria razoável, espaços liberados do controle da defi­ciência. Na atualidade, as lutas pelos direitos humanos e pelo direito específico da aquisição da língua de sinais, constituem, somente o retrato formal dessa resistência. Talvez os casamentos entre surdos, as produ­ções artísticas, culturalmente diferenciadas, o refúgio das crianças sur-

Mesmo que seja uma tradição mencionai' seu caráter decisivo, o Congresso de Milão de 1880 -onde os diretores das escolas para surdos, mais famosas da Europa propuse­ram acabar com o gestualismo e dar lugar à palavra viva, a palavra falada - não foi a primeira, nem a última oportunidade, em que se decidiram políticas similares. Essa decisão já havia sido escrita anteriormente, e era aceita em grande parte do mundo. Apesar de algumas oposições individuais e isoladas, o Congresso constituiu, não o começo da ideologia oralista dominante mas sim, sua legitimação oficial (Skliar. 1997 d).

das nos banheiros das escolas oralistas, para comunicarem-se, sejam ex­pressões mais genuínas desse processo.

Redefinir ou criar um novo olhar na educação dos surdos

Uma análise limitada da ideologia dominante pode originar, também, uma resumida explicação sobre os problemas cruciais que caracterizam a educação dos surdos. Assim, as causas e as consequências do fracasso parecem inverter-se. O fracasso na educação dos surdos, com seus múl­tiplos e variados sintomas, foram e são hoje, motivo para dois tipos de justificativas, igualmente inapropriados; por um lado, que os surdos são os responsáveis diretos desse fracasso-fracasso então, da surdez, dos dons biológicos naturais - e por outro lado, que o fracasso obedece a um certo tipo de dificuldade metodológica, o que reforça a necessidade de purificar e sistematizar, ainda mais os métodos. Nos dois tipos de justifi­cativas mencionadas, quis-se evitar toda denuncia sobre o fracasso da escola e/ou das políticas educacionais e/ou do estado (Arroyo, 1991).

A educação dos surdos se encontra, portanto, não à frente de um único problema e sim, à frente de duas formas independentes de problematizar sua própria realidade. A primeira delas, poderia ser defini­da, como o problema dos poderes e saberes dos ouvintes, ao redor das modalidades de comunicação e de linguagem adequada para os surdos. Ainda que, aparentemente incluam posições antagónicas, todas elas conservam e reproduzem um círculo de baixas expectativas pedagógicas. A segunda, por outro lado, poderia ser entendida como a existência de múltiplas variáveis que, efetivamente, intervêm na construção de uma educação significativa para os surdos; variáveis que estão atravessadas por fatores históricos, políticos regionais e culturais específicos, relati­vos a cada uma das situações pedagógicas concretas e que portanto, não permitem reduzir a educação dos surdos a uma simples questão de ordem metodológica.

A proposta atual para a análise das construções educacionais possí­veis para os surdos poderia estar determinada por um conjunto das variáveis interdependentes (Skliar, 1996 a e b): o reconhecimento do fracasso educativo, nas suas raízes e em suas consequências pessoais, sociais, cognitivas, linguísticas, comunicativas, de cidadania, de formação acadêmica e de trabalho; a natureza e tipo das atitudes, os estereótipos, as representações c o imaginário social sobre os surdos e a surdez, pre­sentes dentro e fora da escola; as políticas e a situação linguística concreta da comunidade educativa; a participação da comunidade de surdos no debate linguístico e pedagógico e sua participação efetiva no projeto escolar, as bases ideológicas e arquitetônicas para a estruturação e a sequência de objetivos pedagógicos: a continuidade institucional do pro-

jeto educativo; e, por último, as pressões geradas pelas políticas de integração social e escolar.

As grandes narrativas e os contrastes binários na educação dos surdos

No processo de aproximação a outras linhas de estudo em educação é possível que seja importante que a educação de surdos abandone e critique suas grandes metas-narrativas, quer dizer, o oralismo, a comuni­cação total, e o bilinguismo - e, também, seus típicos contrastes e oposi­ções binárias: normalidade/anormalidade, ouvinle/surdo, maioria/ouvinte)/ minoria (surda), oralidade/gestualidadc, etc. Tais oposições sugerem sem­pre o privilégio do primeiro termo da oposição, termo que define o signi­ficado da norma cultural. O termo secundário, nesta dependência hierár­quica não existe fora do primeiro e sim dentro dele. Assim se estabelece um exercício de poder e uma divisão do mundo que organiza e pontualiza o ideal, deixando no outro mundo, tudo aquilo que e incontrolável e/ou ambivalente.

A oposição ouvinte/surdo

O fato de que os surdos não possam, nem queiram em sua maioria, ser ouvintes ou ser como os ouvintes não parece constituir um obstáculo para as ideias dominantes na educação dos surdos. Os únicos modelos ou os modelos fundamentais nas escolas para surdos são os ouvintes; o tempo de interação e de identificação, entre alunos surdos de diferentes idades, é suficientemente escasso, como que para evitar que existam "con­tágios gestuais entre os alunos" - quer dizer que as crianças se conhe­çam, entre outros surdos, e que adquiram a linguagem de sinais, através de uma transmissão comunitária e cultural. Quando se programa a presen­ça de adultos surdos, em geral não como comunidade, mas sim, como indivíduos isolados, ela se limita a encontros reduzidos e para tarefas determinadas; muitas das crianças' surdas, ainda passam seu escasso tempo livre entre hospitais, clínicas e consultórios; por último, permane­cem o resto do dia dentro de um ambiente familiar, que desconhece ou nega a potencialidade da identidade linguística e cultural dos surdos, o que gera um mecanismo de controle familiar sobre a criança.

A intenção de que as crianças surdas fossem em um hipotético futuro adultos ouvintes, originou um doloroso jogo de ficção de identidades. Neste jogo, os surdos levam a pior parte, porque acabam sofrendo e sentindo-se forasteiros, porque são catalogados, não só como não-ouvinles, mas também, como autistas, psicóticos, deficientes men­tais, afásicos e esquizofrênicos. Estes estereótipos não são inocentes nem ingénuos, c seguindo a concepção de Stam e Shohat (1995), revelam formas opressivas que, somente em um começo, podem parecer inócuas,

são uma forma de controle social e determinam, justamente, uma devasta­ção psíquica causada por retratos, sistematicamente negativos, destes grupos.

Sem dúvida, esta c somente uma parte da análise da oposição binária ouvinte/surdo. A outra questão nos leva a uma tripla interrogação: o que é, de quem é, e onde está o mundo dos ouvintes? Ser ouvinte é, certamen­te, uma totalidade mas não parece ser um recorte significativo para uma descrição do mundo, se nele cabem por exemplo, o presidente de uma república europeia, uma mulher tecelã do Cáucaso, um índio do Amazo­nas, um mexicano e uma criança do Nepal. Está claro, que neste caso, o papel de ser ouvinte significa uma forma de dominação e um fazer com que os surdos sejam subalternos na educação. A configuração de ser ouvinte pode começar como uma referência a uma hipotética normalidade auditiva mas se associa, na prática e no discurso, a toda uma sequência de traços de outra ordem. Ser ouvinte, então, é ser falante mas é também ser branco, ser homem, profissional, saudável, normal, letrado, civilizado, etc. Ser surdo, portanto, é estigmatizar a deficiência auditiva pelo não falar, não ser homem, ser analfabeto, anormal, desempregado, perigoso, etc.

Foi Lane (1988) quem revelou, com maior precisão, como e quanto são idênticas a visão paternalista do colonialismo europeu, em relação aos nativos africanos, e a dos profissionais ouvintes em relação aos sur­dos. Não é casual essa descoberta nas duas visões se adverte o que McLaren (1995 ob. cit.) chama de multiculturalismo conservador e corporativo: entre outras práticas, se deslegitimam as línguas estrangei­ras e os dialetos regionais e étnicos se é proclamadamente monolíngúe em consequência se destroem os cimentos da proposta de uma educação bilíngue e se utiliza a palavra diversidade para encobrir uma ideologia de assimilação que está na base dessa posição.

A oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda)

É habitual, definir a comunidade de surdos, como uma minoria lin­guística. Essa descrição está baseada no fato de que a língua de sinais é utilizada por um grupo restrito de pessoas as quais em uma definição tradicional deveriam viver uma situação de desvantagem social, de desi­gualdade e participar de uma forma limitada na vida da sociedade majori­tária. E curiosa a coincidência desta definição com algumas das ideias dominantes na educação dos surdos especificamente aquelas que insis­tem, em que, o uso da língua de sinais constitui, sempre, um fator de exclusão da sociedade majoritária (Anderson. 1989). Não é esse o espaço para se discutir as determinações estatísticas que consideram os surdos e outros grupos como minorias linguísticas, ou raciais, étnicas, sociais,

etc. No entanto, me parece útil, introduzir alguns dados significativos.

Jones e Pullen ( 1992) estimam, que na Inglaterra existam 50.000 sur­dos que usam língua de sinais britânica - ou a BSL - quase a mesma quantidade de quem usa o idioma GALES como primeira língua. Deveriam ser compreendidas, então, como duas minorias iguais: mas as formas de organização políticas e educativas em torno delas, são bem diferentes: e essa diferença imposta entre minorias demonstra que as minorias não são todas minorias que existem, de fato, minorias melhores e piores que se qualifica e não se quantifica aquilo que é minoritário.

Sabe-se por outro lado, que a língua de sinais americana - ASL - é a terceira língua de maior uso nos Estados Unidos. Porém, terá essa língua O mesmo status social acadêmico e linguístico que o espanhol, o chinês ou o francês? Será que o que é, linguisticamente, mais utilizado em um determinado país, também é o politicamente, mais reconhecidos? E não faltam exemplos, em que a oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda) fica desvirtuada. Sacks (1989) entre outros descreve que na ilha Martha's Vineyard de Massachusetts, todos, surdos e ouvintes, usavam até pouco tempo atrás, a língua de sinais, mesmo quando, a proporção de surdos era, infinitamente, menor.

Todos esses exemplos deveriam servir para demonstrar, que mesmo querendo estabelecer critérios quantitativos, para uma política educativa, estes se tornam necessariamente qualitativos e respondem a uma hierar­quia e a uma assimetria de poder: mas não do poder de uma maioria, mas sim, de uma minoria.1

A oposição ora l idade/ gestualidade

Os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em ge­ração, uma língua, a língua das sinais, cuja modalidade de recepção e produção é viso-gestual. Muitos supõem que essa criação linguística deriva do fato de que a deficiência auditiva impede aos surdos um acesso à oralidade. Assim as línguas de sinais, parecem um prémio de consolo para os surdos, e não, um processo e um produto construído, histórica e socialmente, por lais comunidades.

'Note-se que nas escolas de surdos, existem, justamente, mais surdos que ouvintes. E o fato de que as decisões linguísticas e pedagógicas respondam somente ao poder e ao saber dos ouvintes, não se reduz simplesmente a uma questão de oposição maioria/ minoria: é o uso da língua de sinais o que sublinha um conjunto de relações de poder assimétricas e põe, em evidência, aquilo que a minoria/maioria ouvinte das escolas quer exilar, quer dizer. a surdez.

Os trabalhos da linguística pós-estruturalista avaliaram o estatuto linguístico da língua de sinais, como língua natural e como sistemas dife­renciados das línguas orais: o uso do espaço, com valor sintático e topo­gráfico, e a simultaneidade dos aspectos gramaticais são algumas das restrições impostas pelo tipo de modalidade viso-espacial e determinam sua diferença estrutural em relação às línguas auditivo-orais.

A linguagem, então, deveria ser definida independentemente, da mo­dalidade em que se expressa ou pelo meio através do qual, é percebida: possui uma estrutura subjacente, independente da modalidade de expres­são, seja esta auditivo-oral ou viso-geslual. Desse modo, a língua oral e a língua de sinais não constituem uma oposição, e sim, a presença de dois canais diferentes c, igualmente eficientes, para a transmissão e a recepção da capacidade da linguagem.

Mesmo quando numerosas investigações demonstram que as lín­guas de sinais cumprem com todas as funções descritas para as línguas naturais - como por exemplo, as conversações cotidianas, a ironia, a poe­sia, etc. avança-se na sua desvalorização, julgando-a como uma mescla de pantomima e de sinais icônicos universais ou considerando-a, um pidgin primitivo.

Sem dúvida, não se deve pensar que a oposição mencionada, é so­mente, uma questão de mitos c crenças que pertencem, somente, ao cam­po da linguística, pois ao mesmo tempo, vive, dolorosa e problematica-mente, dentro das escolas, trata-se, por um lado, de que essa modalidade de comunicação - a viso/gestual - e essa língua dos surdos - a língua dos sinais não é a língua dos professores ouvintes. E, trata-se também, do contrário: essa modalidade de comunicação - a auditiva/oral - c essa lín­gua dos professores - a língua oral não é a língua dos alunos surdos. O fato de que. alunos e professores não compartilham, nem as modalidades nem as línguas é uma das ambiguidades mais notórias na educação dos surdos. E a ambiguidade gera na maioria das vezes, um inquestionável poder linguístico dos professores ouvintes c um processo de des-linguagem e de des-educação, nos alunos surdos.

As políticas de educação bilíngue e bicultural para surdos - ou deve­riam ser chamadas políticas de educação multilingue e multicultural? -teriam que arrojar uma luz sobre esses fatos e, não simplesmente definir o uso das duas línguas dentro da educação dos surdos. Essa aceitação das línguas não supõe necessariamente uma reconversão do problema. É que ainda existindo as duas línguas, cada uma poderia continuar correspondendo a dois grupos de pessoas diferentes e a duas ou mais imagens do mundo. Assim, o sistema educacional, para os surdos perma­necerá comunicativa e linguisticamente, sempre em paralelo.

Um consenso sobre as potencialidades educacionais dos surdos.

Os surdos constituem um problema atípico para a educação. Além de enfrentar a escola, com a existência das diferenças, de outras formas e processos de identidade de linguagem e de cognição, sugere a necessi­dade de profundas c radicais mudanças na ideologia e na arquítetura educativa. E um fato, que por trás das grandes narrativas na educação dos surdos existe um debate implícito sobre a negação ou a afirmação das potencialidades educativas desses sujeitos. Tais potencialidades, real ou virtualmente ignoradas, pelas escolas e pelas políticas públicas poderiam ser definidas, da seguinte maneira:

• A potencialidade de aquisição de uma língua, a língua de sinais, em outra modalidade de recepção e produção diferente da modalidade oral dominante. Colocar a língua de sinais, ao alcance de todas as crianças surdas, deveria ser o princípio linguístico a partir do qual se faz possível um projeto polílico-educacional mais vasto. Mas, esse pro­cesso não deve ser considerado, somente, como um problema escolar/ institucional nem como uma decisão que afeta nada mais que um certo plano da estrutura pedagógica, nem muito menos, como uma questão a se resolver através de recursos metodológicos. A língua de sinais é um direito dos surdos e não uma concessão de algumas escolas, ou de alguns diretores de escola ou de alguns professores.

• A potencialidade de identificação da criança surda com seus pares c com os adultos surdos. As crianças surdas têm direito além disso a desenvolverem-se em uma comunidade de pares e de construir sua identidade no marco de um processo sócio-histórico não descontínuo, nem fragmentado. As inter-relaçõcs com outros grupos sociais e cultu­rais dependem em grande parte da atualização e do exercício dessa potencialidade. A partir dessa perspectiva a educação dos surdos, de­vem-se propor modalidades diferentes nos processos de ensino e de aprendizagem e tender à construção de grupos sociais em áreas de aprendizagem (Sanchez 1992), descentralizando-se assim, das rígidas idades escolares, do controle curricular do professor ouvinte e centrando-se na interação entre crianças jovens e adultos surdos de diferentes idades, raças, gênero, etc.

• A potencialidade do desenvolvimento de outras estruturas, formas e funções cognitivas, reguladas por um mecanismo de processamento visual das informações. A modalidade viso-gestual, não só tem a ver com a potencialidade linguística dos surdos mas sim envolve o processamento de todos os mecanismos cognitivos. Essa é uma potencialidade que afeta, sobretudo, a questão didática, as informa­ções e o conhecimento e gera uma contradição entre a modalidade

cognitiva dos professores e a modalidade cognitiva dos alunos.

• A potencialidade de inclusão em uma vida comunitária e em um processo de compreensão e produção de fatos culturais diferencia­dos. Não parece possível compreender o conceito de cultura surda, se não for através de uma leitura de multiculturalismo, quer dizer, a partir de uma compreensão de cada cultura na sua própria lógica, na sua própria historicidade. Por ele, a cultura surda não c uma imagem velada de uma hipotética cultura ouvinte. Não é o seu contrário. Não é uma cultura patológica. Para muitos ouvintes que trabalham com surdo, a existência de uma cultura surda constitui tanto um problema de crenças pessoais, como de oportunidades de experiências. De crenças porque, justamente, não existe nada fora do seu normal, sua própria e auto-referencial cultura; nesse plano, a cultura surda seria somente um desvio, uma anomalia. E é um problema de experiência porque ao traba­lhar com crianças surdas - em uma perspectiva clínica, se desconhece os processos e os produtos que geram, por exemplo, a nível de teatro, poesia, artes visuais, ciência didática, etc, determinados segmentos da comunidade adulta dos surdos.

• A potencialidade de participação no debate linguístico, escolar, de cidadania, etc, através de um processo singular de reconstrução his­tórica de uma nova visão sobre a própria educação. São muitos os depoimentos de surdos que, ao fazer referência ao seu passado educativo, invocam a imagem de ser estrangeiros, forasteiros, exilados. Não estão fazendo referência ao fato literal de terem vindo de outras cidades, longe de suas casas em busca de um serviço educativo. Men­cionam o ser c o sentir-se estrangeiros, o ser e o sentir-sc forasteiros, o ser e o sentir-se exilados mesmo dentro das próprias escolas para sur­dos, dentro das escolas com ouvintes c cm seus próprios lares. Esses depoimentos poderiam valer como uma oposição à frágil memória institucional das escolas de surdos - cujas lembranças chegam, geral­mente, só até a adolescência dos alunos - e constituir-se cm uma contra-memória e uma crítica da ideologia dominante, tal como sugere King (1995) nos chamados Estudos Negros.

A educação bilíngue para surdos como meta-narrativa metodológica, linguística, psicolingúística e/ou pedagógica.

A proposta genérica de bilinguismo para surdos poderia correr o risco de constituir-se também como outra grande meta-narrativa na edu­cação dos surdos. Estabeleceu-se uma convenção em torno dela, tanto no que diz respeito a terminologia, como em relação a algumas das práti­cas institucionais, denominadas bilíngues. Como toda convenção a edu­cação bilíngue apresenta duas características relevantes: possui, ao mes­mo tempo, um alto grau de ambiguidade e um caráter relativo de verdade. Ambiguidade, porque sua própria definição é objeto de várias interpreta­ções, inclusive diferentes entre si e a reflexão, mesmo dentro do mesmo

campo terminológico se revela antagônica. E apresenta um caráter de verdade, porque inclusive em sua mínima expressão - duas línguas na educação dos surdos - já supõe e constitui uma supuração em relação a ideologia dominante c um avanço objetivo na concepção educativa para os surdos.

Definindo a educação bilíngue para surdos, como uma grande narra­tiva é possível delimitar quatro vertentes diferentes não sempre integra­das ou relacionadas em suas interfaces respectivas, c habitualmente defi­nidas, de uma forma estática: existem, neste sentido, narrativas bilíngues que dão ênfase ao metodológico e/ou linguístico e/ou ao psicolingúístico e/ou em menor medida, à narrativa pedagógica. Cada uma delas, separa­damente, poderia referir-se a um tipo diferente de educação bilíngue para surdos.

No primeiro caso, a educação bilíngue está sendo narrada e atuada como um sistema escolar que, simplesmente, vem substituir o seu antecessor - a comunicação total - e opor-se ao oralismo. As ideias peda­gógicas do século XX em relação aos surdos, atravessaram várias fases diferenciadas que não podem ser compreendidas, somente, em termos de uma lineariedade em que as ideias antigas são naturalmente substituídas pelas novidades4.

O surgimento5da comunicação total, nos fins da década de 60 e co­meço da década de 70 - cujos mentores recalcam, inclusive hoje, de que se trata de uma filosofia c não de um método" - estabeleceu uma nova ordem nas escolas, deteriorando as férreas barreiras do logocentrismo na educa­ção dos surdos e privilegiando a comunicação, qualquer forma de comu­nicação, acima de qualquer outro objetivo.

4 Lembra-se que já nos fins do séc. XVIII existiam na Fiança propostas bilíngues para a educação de surdos baseadas no acesso dos surdos à língua de sinais e à língua escrita (veja sobre isso Lane, 1984).

s Refiro-me ao surgimento da comunicação total, como narrativa atual, na educação de surdos. Experiências similares já haviam sido desenvolvidas no Instituto Nacional de Paris, pelo abade L'Epée, nos finais do séc. XVIII, que criou signos melódicos, na língua de sinais francesa, para ensinar a estrutura gramatical da francês escrito.

''A oposição filosofia-método, e que sustenta a comunicação total é discutível e precisaria de um amplo espaço de debate, inapropriado para este trabalho. Nas margens das intenções da comunicação total por distanciar-se dos métodos, é sua própria prática, ou sua prática parcial, ou sua prática mal entendida, o que indicaria o contrá­rio. Toda vez que numa transmissão de informação, ou em uma simples conversação. predomine e seja sistemático o objetivo de fazer visualizar a estrutura do idioma falado - mas não a informação nem a conversação em si mesma - e não se use e se modifique a língua dos surdos, estamos frente a um sistema de recursos organizados, física e temporalmente. Essas características respondem por completo à descrição de um método e não de uma filosofia. Por outro lado, o uso do termo filosofia na educação dos surdos deveria responder Questões de outra transcendência, como por exemplo, a imagem do Homem Cultural e não exclusivamente a do Homem Comuni­cativo presente no projeto escolar.

O que podia ter sido e deveria ser uma estimulante transição: termi­nou sendo um fim em si mesmo7 o que deveria ser uma transição para a autonomia linguística dos surdos terminou sendo uma eleição consciente e exclusiva dos ouvintes e, de certa forma, uma eleição contra as neces­sidades sócio-linguísticas e psicolinguísticas dos surdos. Em síntese, uma nova estrutura comunicativa para os ouvintes, mas não um instru­mento cultural significativo para os surdos.

Como narrativas linguísticas e psicolinguísticas, a educação bilíngue introduziu a questão da aquisição da língua de sinais na educação dos surdos e os vínculos lexicais semânticos e sintéticos dessa língua com as outras modalidades linguísticas. Os primeiros modelos revelaram uma hierarquia nos objetivos e nos níveis linguísticos, oferecendo, aos sur­dos -pelo menos teoricamente - um acesso completo à língua de sinais e à língua escrita e um acesso parcial à língua oral (por exemplo Bouvet 1 982) ou um acesso completo à língua de sinais c a língua oral (por exemplo Volten-a 1987).

A partir dessas definições baseadas nas experiências de educação bilíngue seguiram orientações de magnitude, continuidade e ideologias diversas. Essa variedade educativa, que não conspira contra si mesma, nem constitui um perigo em si mesma (Skliar 1997) obriga e merece uma generosa reflexão sobre a política educativa para surdos e sobre os meca­nismos de gestão, avaliação e continuidade das escolas bilíngues.

Os motivos dessa diversidade e diferenças nos projetos de educação conduzem à questão da narrativa pedagógica do bilinguismo: é possível adotar a terminologia clássica da linguística, para descrever o caso dos surdos? Algumas dessas situações bilíngues são de algum modo seme­lhantes ao que vivem os surdos dentro e fora da escola? Na minha opi­nião, a utilização do termo bilíngiie na educação dos surdos não deveria ser aplicada, somente às capacidades dos sujeitos em adquirir/aprender duas ou mais línguas, nem deveria obrigar a uma forçada e forçosa com­paração com as habilidades que demonstram alguns ouvintes em tais

7 Um fim em si mesmo que não se levou a cabo. Hansen (1990) refere-se a experiência da comunicação total, na Dinamarca, da seguinte maneira: "(...)As crianças não tiveram uma versão visual do idioma Danes e, em troca, tiveram um input linguístico, muito inconsciente, pelo qual não entendiam nem os signos nem as palavras orais. Eles tendiam a usar uma "meia-língua" mesclando as duas línguas para sobreviver comunicativamente, mas não tinham a menor ideia sobre onde acabava uma lingua­gem e onde começava a outra".

* Uma eleição consciente, mas certamente, muito curiosa. Johnson, Liddell e Erting ( 1989, ob.cit.) afirmam que: "(...) os professores acreditam que ao fazer sinais, as crianças, têm também, acesso à informação que se lhes apresenta na fala. Desta maneira, a concentração na atuação conduz a uma incapacidade do professor para julgar adequadamente ãs necessidades e respostas das crianças. Esta é uma contradi­ção, com nosso enfoque, de que a educação na aula depende da habilidade que o professor lenha para adequar as estratégias de ensino e os conteúdos às necessidades das crianças.

situações. A aplicação do termo bilinguismo na área da educação dos surdos, deveria aludir a sua aceitação pedagógica, quer dizer, à ideia de educação bilíngue ao direito dos sujeitos que possuem uma língua minoritária a ser educados nesta língua. Uma declaração da UNESCO (1954) afirma que: "É um axioma afirmar que a língua materna - língua natural - constitui a forma ideal para ensinar a uma criança. Obrigar a um grupo a utilizar uma língua diferente da sua, mais que assegurar a unidade nacional, contribui para que esse grupo vítima de uma proibição, se se­gregue cada vez mais da vida nacional."

Definida desse modo, a educação bilíngue para surdos c um ponto de partida - e talvez, também, um ponto de chegada - que requer uma ideolo­gia e uma arquítetura educativas a seu serviço. Em outras palavras: a educação bilíngue é um reflexo coerente - talvez, o primeiro na história da educação dos surdos - de uma situação e uma condição sociolinguística dos próprios surdos.

Sem dúvida, uma parte significativa dos surdos não parece apoiar essa proposta no seu sentido mais escolar, ou na ideia de um percentual e/ou um equilíbrio obsessivo, entre a língua oral e a língua de sinais - por exemplo, língua oral de manhã e língua de sinais à tarde ou vice-versa - e muito menos, se entende e se põe em prática como um imperativo determi­nado de fora pelos ouvintes - sobretudo no que se refere a qual tem que ser a modalidade da segunda língua, como ensiná-la e em que movimento isso deve ocorrer.

As comunidades de surdos1' que estão refletindo c debatem sobre este tema defendem a proposta do bilinguismo em primeiro lugar, com o objetivo de que se reconheça o direito à aquisição e ao uso da língua de sinais e, consequentemente, para que possam participar no debate educativo, cultural, legal, de cidadania, etc. desta época, em igualdade de condições e oportunidades, mas sempre, respeitando e aprofundando sua singularidade e especificidade.

É, pelo menos, curioso que muitos educadores e teóricos definam e encerrem o problema do bilinguismo, somente, tomando algumas deci­sões linguísticas referentes geralmente à exata proporção entre a língua oral e a língua de sinais - ou entre a língua de sinais e a língua escrita - e com a inclusão física dos adultos surdos na escola. Sem dúvida, depois de alguns anos de experiência, são poucos os que querem admitir e reco­nhecer que, em realidade, a problemática da escola para surdos, recente-

" No Xll Congresso Internacional da Federação Mundial de Surdos, a Comissão sobre Língua de Sinais e Pedagogia concluiu suas sessões, afirmando que "A Comissão de Pedagogia sustenta que a polémica oralismo versus língua de sinais, já não é uma questão contemporânea. "Nós transcendemos esta controvérsia e, para abordar o próximo século, deixamos o Congresso de Milão de 1880 no passado. As tendências de 1995 são: o reconhecimento e o respeito pela língua de sinais como língua da comunidade surda, e o reconhecimento da educação bilíngue." (WFD News, 1995).

mente, começou a vislumbrar-se, a descobrir-se, na sua natureza mais interna.

Em primeiro lugar, definir uma situação educativa como bilíngue não habilita, de forma simultânea, a definir a natureza interna dessa experiên­cia, mesmo que seja ao contrário. Em segundo lugar e como consequência do ponto anterior, surge a sensação de que o termo bilinguismo diz tudo, mas na verdade não diz nada sobre a educação de surdos. Ele diz tudo, porque propõe, e tende à construção de um ponto de partida irrenunciável: afirma a existência de duas línguas na vida dos surdos; mas, não diz nada, porque, por trás dessas línguas, existem culturas, instrumentos cognitivos, modalidades de organização comunitárias, formas de ver o mundo, e con­teúdos culturais que, geralmente, são omitidos ou não são reconhecidos, como tais, pelos ouvintes.

Portanto, a educação bilíngue deveria propor a questão das identida­des dos surdos como um eixo fundamental para a construção de um mo­delo pedagógico significativo, criar as condições linguísticas e educativas apropriadas para o desenvolvimento bilíngue e multicultural dos surdos; gerar uma mudança de status e de valores no conhecimento e uso das línguas implicadas na educação; promover o uso da primeira língua - a língua de sinais - em todos os níveis escolares; definir e dar significado ao papel da(s) scgunda(s) língua(s) na educação dos surdos; difundir a língua de sinais, a comunidade e a cultura dos surdos além das fronteiras da escola; estabelecer os conteúdos c os temas culturais que especifiquem e garantam o acesso à informação, por parte dos surdos; gerar um processo de participação plena, dos surdos como cidadãos; desenvolver ações para o acesso e a compreensão dos surdos à profissionalização ao trabalho e ao mundo - e não ao mercado - de trabalho.

Por todas as razões expostas, a educação dos surdos na atualidade, já não pode ser descrita somente através de grandes metas-narrativas, nem como um produto de antagonismos fragmentários e oposições biná­rias. Os temas que estão surgindo, hoje, transcendem ambos estilos e ideologias dessa descrição e seguem múltiplas trajetórias de análise. Como um exemplo disso no último Congresso da Federação Mundial de Surdos (1995. ob. cit.) surgem com particular clareza questões como: a situação das mulheres surdas, dos surdos desempregados, dos surdos negros, dos imigrantes surdos, o efeito das duplas discriminações - surdo/negro; surda/mulher, etc - da violência e o abuso em relação às crianças surdas, etc. Essas temáticas transcendem totalmente o paradigma atual na educa­ção especial e precisam ser discutidas, dentro de um contexto, mais amplo em educação. Um contexto que inclua, entre outras questões, tais como o multiculturalismo. o processo de construção das múltiplas identidades,

os mecanismos de poder e de saber dos ouvintes e surdos, a reconstru­ção que os surdos desenvolvem sobre sua própria educação e as políti­cas, em relação às diferenças.

A Escrita nas Diferenças Regina Maria de Souza1

Rosicler C.C. Velasquez Renata Siqueira

O presente trabalho tem como objetivo discutir e analisar aspectos do processo de aquisição da escrita por adultos surdos matriculados, atualmente, no Programa de Alfabetização de Adultos do Centro de Estu­dos e Pesquisas em Reabilitação (CEPRE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Este programa teve origem em 1992 e é mantido em parceria com a Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Campinas.

Desde o começo de nosso trabalho no programa sabíamos que, ao menos de acordo com a literatura, poderíamos ter uma série de problemas pela frente. Nossos alunos eram sujeitos que não haviam tido a oportuni­dade de construir certos conhecimentos cruciais, como aqueles linguísticos, no período considerado otimal do ponto de vista neurológi­co (cf. Rodrigues, 1993). De fato, a maioria deles quando chegava até nós apenas se valia de sinais caseiros. Além disso, todos pertenciam a famílias muito pobre cujos membros não possuíam escolaridade e, quando muito, apresentavam conhecimentos rudimentares sobre a escrita. Em suas ca­sas, os atos de ler e de escrever eram raros e sempre ligados ao atendi­mento de funções restritas (lista de compras e pequenos avisos). Dito de outro modo, a pobreza parecia ser o problema mais grave que enfrenta­vam. Muito mais grave que a surdez ou o analfabetismo.

Deste modo, o processo de construção do objeto escrito requeria ser significado pelo professor, e entendido pelo aluno, como constituindo uma importante via para reflexão e transformação de sua própria realida­de. Nesse sentido, nossos atos de ensino eram também atos políticos.

Nosso grupo contava, e ainda conta, com quatro professores, dois surdos e dois ouvintes. Para funcionar como uma equipe, fez-se necessá­rio a elaboração de um programa de capacitação dos profissionais envol­vidos (planejamento de seminários e discussões teóricas coletivas bem como o preparo didático dos profissionais surdos envolvidos. Um pouco

1 Regina é doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP). É docente e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação da UNICAMP. Rosicler e Renata são pedagogas especializadas em surdez, ambas contra­tadas pela Prefeitura Municipal de Campinas. Email: [email protected].

deste trabalho inicial pode ser lido em Souza e Góes, 1996).

Ao mesmo tempo em que se organizava, o programa também ia se constituindo dialeticamente com e na própria relação com os alunos. Como contávamos com os professores surdos, um de nossos primeiros passos foi propiciar a aquisição da língua de sinais por eles. A escrita lhes foi apresentada, igualmente, desde o início: estava presente nas revistas, nos jornais e nos livros que compunham a biblioteca de classe. Procurá­vamos adquirir os periódicos que mais chamavam a atenção dos alunos quando se punham a observar e a folhear matérias comercializados em bancas de jornais.

Em classe, nos interjogos linguísticos tecidos em língua de sinais, os professores conferiam significados aos textos escritos. Dito de outro modo, interpretavam a escrita com e para os alunos.

Do ponto de vista teórico, optamos por tecer nossas relações de ensino e fundamentar nossas análises inspirando-nos no enfoque sociointeracionista sobre Iingua(gem). A seguir, e antes de passarmos à análise das produções dos alunos, discutiremos brevemente a base teóri­ca que organizou, e vem alimentando, nossa praxis pedagógica.

Concepção de língua assumida

Alguns autores têm ocupado papel de destaque na discussão de nossos estudos, entre eles, Bakhtin, Franchi e Geraldi, sendo suas refle­xões sobre lingua(gem), em muitos pontos, conciliatórias e complementa­res.

De acordo com Franchi (1977) e Geraldi (1993), a língua compõe uma sistematização aberta não podendo ser concebida como um código de regras sintáticas, semânticas e pragmáticas sempre estáveis e imutáveis. Partindo desta premissa, e se enveredando pelas reflexões iniciadas por Bakhtin (1992 a, 1992b), Geraldi (1993) enfatiza o movimento dialético de (re)construção permanente do objeto linguístico a partir do trabalho trans­formador de sujeitos, historicamente inscritos, com e sobre ela. Sujeitos que constroem sentidos sempre novos a partir dos recursos expressivos oferecidos pela língua. Recursos que se renovam em significação, que ganham sentidos irrepetíveis em cada novo momento enunciativo ou que se multiplicam pelo trabalho dos próprios sujeitos. Trabalho este que, ao longo da história, cria tanto constrições (regras) que regulam as possibi­lidades de novas criações expressivas como determinam modos, pelos discursos produzidos, de se dizer e ler o mundo.

Bakhtin (1992 a,b) centra a génese da língua na dialogia, quer dizer, no trabalho que os sujeitos realizam com a língua em interações verbais (não

necessariamente orais) concretas. Para ele, os elementos principais de qualquer interação são: presença de um locutor, de um interlocutor (real, suposto ou virtual), uma situação social dada, um contexto historicamen­te determinado, o objeto de discurso e o desejo pela palavra. Como esses elementos variam sempre, na totalidade ou em parte, cada ato enunciativo é um ato único de transformação das formas da linguagem; e o processo de significação inscreve-se na interindividualidade.

O sujeito bakhtiniano é ativo e responsivo e todo enunciado é conce­bido como uma resposta ou réplica ao enunciado alheio. Esse assunto é abordado mais especificamente por ele em Estética da Criação Verbal (1992b).

"De fato, o ouvinte [leia-se sujeito] que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso adota simultaneamen­te, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adap­ta, apronta-se para executar, etc, e esta atitude [...] está em ela­boração constante [...] desde o início do discurso, às vezes, já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. " ( pg 290).

Por seu turno, a compreensão do enunciado alheio, pelo interlocutor, não é senão o momento inicial de sua resposta:

"O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele espera, não é uma compreensão passiva, que por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução, etc. (...) O desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente pois não é o primeiro locutor, que rompe pela pri­meira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência da língua que utiliza, mas também a existência de enunciados anteriores - emanentes dele mesmo ou do outro - aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e sim­plesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enuncia­do é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados" (pg291).

Por esse caráter dinâmico é que é impossível tomar a significação como um elemento à parte do signo, independente da situação particular e do trabalho de cada personagem que tece o discurso. Imerso no fluxo comunicativo, locutor e interlocutor não tratam a língua como sistema

imutável. Para eles, não se trata de agir de acordo com uma norma externa e coercitiva mas em produzir e compreender as novas significações que uma mesma forma adquire em distintos contextos.

Todas estas ideias podem ser transferidas também para a compreen­são da lingua(gem) escrita. Na perspectiva assumida por nós, à alfabetiza­ção subjaz um processo extremamente complexo não passível de ser reduzido a atos de codificação e decodificação. Ao contrário, concebe­mos a leitura e a escrita como atos dialógicos por excelência; atos que pressupõem a interação à distância de dois sujeitos no mínimo: a do autor com o leitor, seja real ou virtual, e vice-versa.

A leitura, por exemplo, aproxima dialogicamente sujeitos que, muitas vezes, jamais se encontrarão face a face. Isto implica que, em seu trabalho de criação, o autor deve construir e deixar pistas que tornem possível a compreensão de seu enunciado pelo leitor. E estas pistas são linguisticamente recuperadas, possíveis graças à historicidade da própria língua que cristalizou recursos e regras linguísticas. São interpretáveis porque o leitor mobiliza os sistemas de referência sobre o mundo que já possui. Sistemas estes que, no entanto, estão em contínuo movimento de transformação, dado que o sujeito participa continuamente de diferentes jogos de linguagem nas mais diferentes esferas da vida social (na escola, em casa, no trabalho etc). Porque são móveis, ao menos do ponto de vista dos diferentes momentos da história do sujeito, estes sistemas, que orientam determinadas interpretações sobre os fatos do inundo, nem sempre são compatíveis com aqueles postulados pelo autor que elegeu para ler. Dito de outro modo, autor e leitor podem divergir em pontos de vista. É por isso que dissemos que o autor, ao construir seu trabalho, provoca no leitor sempre uma resposta: seja de adesão ou de réplica.

Embora o autor possa ter antevisto prováveis contra-argumcnta-ções por um certo grupo de leitores e tecido seu texto no sentido de evitá-las, certamente não pode ter previsto e considerado todas as possibilida­des de réplica. Ao sujeito leitor caberá tecer endosso ou produzir contra-palavra. Leituras que não provoquem estas respostas são tarefas sem função tanto para o aluno como para o professor.

Acreditamos que, na escola, caiba ao professor resgatar a historicidade do autor, enquanto princípio organizador de discursos de uma determina­da época, classe ou grupo social. Seria seu papel fazer emergir as diferen­tes interpretações dos alunos sobre o tema abordado promovendo, as­sim, exercícios de reflexão crítica sobre o material lido. Da mesma forma, caberia ao mestre resgatar, cm parceria com os alunos, as operações lin­guísticas realizadas pelo autor em seu trabalho de tecedura textual. Neste percurso, reflexões metalingúísticas poderiam ser provocadas pelo pro­fessor em situações efetivas de exercício sobre e com a língua.

Com o intuito de ilustrar o que dissemos até aqui, considere, como exemplo, um possível caminho de leitura do título da seguinte palestra hipotética:

"A função reabilitadora da língua de sinais no ensino do deficiente auditivo"

O leitor deve se valer das pistas formais, deixadas no texto pelo autor, para poder identificar o lugar ideológico no qual o palestrante está inscri­to. Entendamos como o raciocínio de um leitor imaginário poderia se com­por.

Em primeiro lugar, ele poderia se ater ao termo "função". Poderia supor, a partir de seus conhecimentos acadêmicos, que a escolha do item "função" pelo autor confere aos sinais um papel instrumental em relação ao pensamento, o papel de um mero coadjuvante. Em segundo lugar, a palavra "reabilitação" inscreve a educação no interior do paradigma clíni­co. Em terceiro lugar, a expressão "deficiente auditivo" é fortemente marcada em termos ideológicos: explicita a imagem da pessoa surda como sensorialmente inferior aos ouvintes, clinicamente deficiente. Todavia, com uma deficiência que pode ser "corrigida" por reabilitação.

Seguindo um percurso de hipóteses similar, qualquer um de nós che­garia à conclusão que o palestrante é um oralista. O uso por ele da expres­são "língua de sinais" pode ter vários motivos: ou denota desconheci­mento epistemológico profundo (não sabe do que está falando), ou é um recurso para apanhar de surpresa os incautos e indecisos ou, ainda, é a marca da apropriação, por um oralista, de palavras de extrema relevância, do ponto de vista ideológico, para o bilinguismo (tentativa de se imiscuir no paradigma).

Um bom leitor realiza rotineiramente exercícios linguísticos como es­tes. Tornam-se, muitas vezes, tão rápidos que o sujeito acaba por não se dar conta. De qualquer modo, o que deve ser enfatizado é que a leitura vai além da decodificação, ou reconhecimento, dos significados isolados de palavras.

Em relação a díade fala/escrita, cabe lembrar que, há mais de 60 anos atrás, os experimentos de Vygotsky (1984) colocaram sob forte suspeição a crença, ainda comum, de que a escrita seja apenas uma recaptulaçâo da oralidade. Para ele, a escrita deveria ser considerada como uma atividade linguística distinta da fala tanto em estrutura como em função. Vejamos porque.

Em primeiro lugar, como já assinalado anteriormente, a escrita consti­tui um discurso sem interlocutor presente, isto é, dirige-se a alguém au­sente, a um ser imaginário ou atende às necessidades do próprio escritor (o redigir lembretes a si mesmo ou o prazer pessoal de escrever, por exem-

plo). Ou seja, difere da relação direta, em geral face a face, entre locutor e interlocutor, que caracteriza o discurso oral.

Em segundo lugar, os motivos para escrever são mais abstratos no sentido de que se distanciam das necessidades imediatas do aqui e agora. Por conseguinte, as situações precisam ser recriadas e, principalmente, o alo de escrita exigeanálise deliberada sobre a estrutura da linguagem em seus aspectos formais.

Em terceiro lugar, ao contrário do que se poderia pensar, a escrita não é a mera tradução do discurso interior, cuja sintaxe se diferencia tanto da fala como da escrita por ser predicativa e condensada. Ao contrário, du­rante a escrita o autor deve explicitar o que quer expressar para que possa ser compreensível a outrem. Estas características da escrita explicariam, ao menos em parte, as discrepâncias que podem ser encontradas entre ela e a fala cotidiana (Vygotsky, 1984).

Para o psicólogo russo a escrita é uma atividade cultural complexa e, portanto, deve adquirir, na escola, relevância social para o aluno. Caso contrário se reduziria a um mero automatismo motor. Em outros termos, o processo escolar de letramento, sob sua perspectiva, seria inócuo se alicerçado em associações mecânicas entre fonemas e grafemas.

No caso da pessoa surda sinalizadora a questão que se coloca atual­mente é como possibilitar ao aluno condições para atos de escrita exitosos. Com base nos pressupostos teóricos anteriormente explicitados, iremos discutir alguns aspectos da produção escrita de estudantes surdos em língua portuguesa. Não pretendemos esgotar a discussão mas iniciar uma reflexão sobre certos elementos que parecem compor o processo de aqui­sição da escrita. Com este objetivo, selecionamos amostras da escrita de dois estudantes surdos: Armando e Paulo. Ambos não haviam sido oralizados na infância; eram pobres, do ponto de vista econômico, surdos profundos e congénitos. Possuíam, respectivamente, 24 e 17 anos. Ar­mando não havia tido escolaridade prévia e Paulo frequentara, durante 4 meses, uma classe de alfabetização de adultos. Acabou retirando-se da escola porque não acompanhava a turma: não entendia as pessoas e não era entendido por elas.

Constituindo-se autor: a escrita e o processo que evidencia Fragmento do percurso de Armando2

A escrita produzida por Armando teve um contexto: foi provocada por Patrícia, professora surda, após o contar de um chiste. A piada,

: A análise feita da produção de Armando foi realizada em conjunto com a lingiiísta Dra. Maria Cristina da Cunha Pereira, tendo sido parte de um estudo apresentado no 5 th International Congress Of The International Society Of Apllied Psycholin-guistics, na cidade do Porto em Portugal (25 a 27/06/97).

relatada em sinais mais ou menos como a seguir, se referia a uma pessoa de um outro país, nomeado aqui como sendo "x", que teria vindo traba­lhar no Brasil. Esta pessoa, do sexo masculino, admirou-se com as novi­dades e com a beleza das mulheres. Um dia, passeando pela praia, parou em frente a um lugar onde se vendia sorvetes. Entrou e perguntou o que era, apontando as caixas. A moça respondeu que era um doce gostoso que se chamava "sorvete". A pessoa experimentou um picolé e ficou maravilhada com o sabor. Pediu à moça que embrulhasse um, pôs o sorve­te no bolso explicando a vendedora que iria levar para a esposa (que havia ficado em seu país). Quando chegou em "x", pôs a mão no bolso e só encontrou o palito. Exclamou: "Droga! Alguém me roubou!"

Patrícia era fluente em língua de sinais e possuía conhecimento razoável da gramática do português. Enquanto contava a piada, Patrícia escreveu na lousa a palavra sorveteria.

Quando Patrícia acabou de contar a piada, todos os alunos riram, o que contraria a afirmação de que surdos são incapazes de entender piada. Um dos alunos, Armando, perguntou a Patrícia o que era "sorveteria", apontando a palavra escrita na lousa. Patrícia foi à lousa, dividiu-a com um risco vertical de modo que em uma das áreas ficasse apenas a palavra "sorveteria". No outro campo da lousa escreveu: sapataria, padaria e pastelaria. Explicou em sinais cada uma delas. Apontou a palavra escrita "sapataria", traduzindo-a como SAPATO-CASA e explicando L-O-J-A COMPRAR SAPATO. Em seguida, apontou a palavra "padaria" sinali­zando: PÃO-CASA, L-O-J-A COMPRAR PÃO. Faz o mesmo com "paste­laria".

Feito isto, Patrícia passou o dedo logo abaixo da palavra "sorveteria" e perguntou a Armando: O QUE ? Armando não respondeu de pronto. Patrícia, então, encobriu com a mão o sufixo "ria" e sinalizou SORVETE. Passou o dedo cm seguida nesse mesmo sufixo em "sapataria" repetindo a mesma explicação que havia dado anteriormente (L-O-J-A COMPRAR SAPATO). Armando, antecipando-se, a interrompe, caminhou até a lousa e, sublinhando com o dedo a palavra escrita "sorveteria", sinaliza: L-O-J-A COMPRAR SORVETE.

Nesse interjogo dialógico com o aluno, Patrícia abriu a Armando a possibilidade de construir hipóteses sobre um determinado aspecto da língua, a saber, o da derivação por sufixação. E ela quem lhe chamou a atenção para o sufixo e lhe atribui significado, usando a datilologia (L-O-J-A), a língua de sinais (CASA COMPRAR), ocultando ora o sufixo ora o nome, atribuindo ao sufixo digitado R-I-A o significado de L-O-J-A COMPRAR. Realiza estes movimentos valendo-se dos sinais para inter­pretar signos escritos os quais, para Armando, não se associam de modo

algum à oralidade. São objetos materiais que só se tornam signos pelos atos interpretadores do adulto, neste caso, um surdo.

A escrita enquanto sistema, também aberto, c arbitrária e pode ser significada sem qualquer vinculação com a oralidade. Portanto, atraves­sando um percurso lingúístico-cognitivo diferente daquele percorrido por ouvintes, i.é, pode se vincular simbolicamente aos sinais e não ser, como poderia se supor, ao menos em um primeiro momento, estranhos a eles.

Interessante notar que Patrícia deixa para Armando a tarefa de dedu­zir a regra e aplicá-la à palavra "sorveteria", ou seja, a imagem que tem do aluno é de alguém capaz de entender os mecanismos da língua mas sem excluir, todavia, sua participação como co-autora das construções dele.

O passo seguinte que deu foi solicitar a cada um dos alunos que escrevessem como quisessem a piada. A de Armando foi a que segue:

"A piada da sorvete

foi trabalhei o comprar vender tem x lajas comprar levor, sor­vete, Brasil mulheres vi bonita comprar sorvete levos derrete".

Embora a amostra seja passível de uma extensa análise linguística, nosso objetivo é apontar aqui alguns indícios da importância da língua de sinais no processo de letramento de Armando.

Primeiramente, a ordem dos vocábulos nas frases parece seguir a sequência usada por Patrícia ao contar a piada. A expressão "lajas com­prar" é uma colagem, ainda que imprecisa, do enunciado sinalizado L-O-J-A COMPRAR de Patrícia, marca inequívoca da presença da "voz" alheia.

Um segundo ponto a ser comentado é que há indícios de que Arman­do esteja construindo a noção de temporalidade no português, o que pode ser constatado pelos diferentes usos que faz da flexão verbal ( veja nos usos que faz em: foi, trabalhei, vi ao se referir ao passado, e tem e derrete em flexões que remetem ao presente). A língua de sinais atraves­sa esta construção (cf. falta de flexão em comprar e vender), evidencian­do a mútua afetação entre as línguas. A primazia do passado evidencia, provavelmente, a construção de uma outra hipótese sobre o funciona­mento da língua: a de que o passado é a forma verbal típica da narração.

Finalmente, mas sem termos a intenção de estarmos esgotando nos­sa análise, há indicativos de que o papel de escritor está também subme­tido a movimentos de construção: ora ele se diferencia do sujeito do enunciado (foi), ora se confunde com ele, assumindo nestes casos, e ao mesmo tempo, o papel de sujeito da enunciação e do enunciado (traba­lhei, vi).

Paulo e momentos de seu processo de aquisição do objeto escrito

As três produções apresentadas a seguir foram obtidas de distintas situações de avaliação. A primeira, por ora foco de nossa atenção, trata-se de um material produzido por ele no início de 1995 por ocasião de seu ingresso no programa. O objetivo era obtermos dados sobre as hipóteses que Paulo já havia construído sobre a escrita em sua história anterior. A professora lhe ofereceu uma folha de sulfite onde havia a foto, retirada de jornal, de um garoto andando de bicicleta em um parque. Logo abaixo da gravura havia linhas sobre as quais deveria escrever os nomes dos obje­tos que compunham a figura. A "escrita" de Paulo foi a seguinte:

Don ro faús lodcrs scens usp pas dno rdo ruiedne so fomgu lanpedxs ecrd ncs samxousnds

Chama a atenção alguns aspectos constitutivos de seu trabalho. Em primeiro lugar, Paulo não esboçou uma lista de palavras; ao contrário, o lay out de. sua produção lembra a de um texto, iniciando-o, inclusive, com letra maiúscula. Em segundo lugar, há a presença de segmentos, compos­tos por letras, de diferentes extensões, que produzem, no leitor, a impres­são de ter diante de si "palavras" de "diferentes categorias gramaticais".

Cabe-nos perguntar como Paulo pode ter chegado a este ponto. Res­gatando sua história, tivemos a informação que o aluno havia realizado cópias durante os seus 4 meses de permanência na escola. Apesar de inúteis, o trabalho de Paulo não parece ter sido destituído de alguma reflexão sobre o que fazia: a professora lhe chamava, muito provavelmen­te, a atenção para alguns aspectos mais evidentes da escrita como, por exemplo, que a primeira letra do texto deve ser maior do que as outras. Além disso, Paulo parece ter realizado algumas "constatações" como, por exemplo, que cada segmento que compõe um texto não possui o mesmo tamanho e que não há homogeneidade entre eles (escreve "palavras" com e sem acento). Entretanto, estas suas descobertas careciam de signi­ficação, apenas possível se existisse uma língua comum entre ele e os demais personagens em cena na classe (na maioria ouvintes). Língua que, pela ação do outro, interpretasse tanto o signo escrito como as particula­ridades e o funcionamento da escrita. Todavia, suas hipóteses eram, de algum modo, o reflexo do que havia podido compor na relação com um professor que pouco conseguia interagir linguisticamente com ele. O con­tato com a língua de sinais iria se iniciar a partir deste momento. Seria a nossa meta educacional primeira, naquele ano, possibilitar-lhe situações de intercâmbio linguístico efetivo.

Não por acaso o texto realizado no ano seguinte mostra um notável progresso. Numa folha onde havia uma foto de duas equipes de futebol jogando, a professora lhe solicitou que escrevesse sobre a foto. Nesta altura, Paulo já conseguia manter conversação em sinais sobre assuntos do dia a dia. Seus sinais caseiros estavam, pouco a pouco, perdendo terreno para a LIBRAS. Seu texto foi o seguinte:

homem Ele joga você futebol muita vê camigo pessoas rir jogo na futebol bola.

Nesta sua produção já parece haver atos deliberados e mais conscien­tes de escrita: são palavras que escreve, ainda que nem sempre precisas, e não amontoados de letras. É um texto que tenta redigir e não uma lista de palavras sem sentido. Ao mesmo tempo não é uma frase estereotipada que produz ( do tipo: "O homem joga". Ou: "O jogador é bonito"; etc). Ao contrário, faz tentativas de se inscrever, e ao outro, no texto ("vê camigo" e o uso que faz de "você"). Interessante observar a presença do pronome "ele", como elemento anafórico do item "homem" ("homem Ele joga") ou a presença de porções textuais compreensíveis e aceitáveis como: "pessoas rir jogo na futebol". De fato, se trocarmos o conectivo "na" por "de", acrescentarmos "no" antes de "jogo" e flexionarmos o verbo "rir", teremos uma frase sem qualquer problema gramatical (ficaria assim: "pessoas riem no jogo de futebol"). Não por acaso Paulo não tece sua frase deste modo. Sua produção reflete o efeito constritor da língua de sinais sobre sua escrita, já que, em sinais, não há conectivos e nem flexões verbais. Deste modo, sua escrita anuncia um certo momento do processo de constituição do objeto escrito por ele: um momento no qual sinais e escrita se constituem num mesmo território, em vias, todavia, de distinção, uma vez que a escrita não se organiza e se estrutura do mesmo modo que os sinais (ou que a'fala, para quem ouve).

O último texto selecionado por nós foi feito por Paulo este ano numa situação de avaliação coletiva no final do primeiro semestre. A professora havia pedido a cada aluno que redigisse um texto tendo o índio como tema. Ora, em várias aulas anteriores um dos assuntos mais abordados havia sido a crueldde da morte do índio Galdino por um grupo de adoles­centes. A notícia havia sido manchete de revistas e de jornais que foram, aliás, avidamente explorados por todos os alunos em classe. Além disso, o assunto foi motivo de reflexões nas aulas de língua de sinais e de estudos sociais.

Explicitadas as condições prévias de produção, vejamos como Paulo organizou seu texto.

índio

notícia morreu Pessoas muita foi madolesndo queimado mor­reu chorar vida assuta notícia converssaria com cinco quando cidade Brasília homem Passeira ando carro queimado Galdino Polícia País santos índio por que vida anos notícia Pataxó fi­cou casa fazem chorar grupo família vida.

Embora sua produção mereça uma análise mais aprofundada, chama­remos a atenção para alguns aspectos mais relevantes para nossa discus­são atual. Nota-se, claramente, que este texto faz ecoar as discussões realizadas em classe sobre o índio Galdino. Neste sentido, faz emergir fragmentos dos enunciados dos sujeitos que dialogaram com Paulo nas várias aulas das quais participou e nas quais o assunto foi discutido. Enunciados que se mantêm vivos no aluno e que são retomados por ele em seu ato de tecedura textual, evidenciando, de um lado, a natureza social e coletiva da autoria e, de outro, a polifonia constitutiva do texto.

Do mesmo modo, é interessante observar que, ainda que haja falta de elementos coesivos, as palavras utilizadas por ele evocam o episódio de modo inequívoco ( morreu...queimado... cidade Brasília...Galdino... ín­dio... Pataxó).

Estamos trabalhando com a hipótese de que as falhas de coesão, e mesmo de coerência, parecem sugerir que Paulo apenas inicia o percurso da construção dos conhecimentos linguísticos necessários para que possa articular, ou orquestrar, as diferentes vozes que afloram em sua escrita. De fato, no momento, as palavras parecem emergir de modo simultâneo e desordenado. Entretanto, mais do que evidenciar "erro" este fato sugere que maestro e músicos ainda não se diferenciam. E em direção a esta diferenciação e orquestração que nossas provocações, possíveis através de interjogos dialógicos com o aluno (materializados em perguntas, em solicitações de maior explicitude, nas demandas para uma melhor ordena­ção do escrever etc) estarão voltadas daqui para frente. Esperamos con­verter a análise deste processo em objeto de estudo de nossos futuros trabalhos.

Considerações finais

O acompanhamento do percurso de nossos alunos nos tem evi­denciado que:

1. Em relação a sujeitos que são expostos simultaneamente à escrita e aos sinais é provável que o solo psicolingúístico de constituição dos dois objetos seja. inicialmente, o mesmo. Observações nos tem sugerido que a diferenciação se dá em concomitância com um maior conhecimento

linguístico do aluno, i.́ ´e o momento em que operações metal ingúísticas começam a ser demandadas pelo professor e se voltar tanto aos sinais como à escrita.

2. A escrita é um objeto que demanda interpretação do outro uma vez que, sendo lingua(gem), tem na opacidade uma de suas características constitutivas. Mais do que se perseguir na escola a ampliação e memorização de vocabulário, a escrita e a leitura demandam a construção de um espaço dialógico de inserção. Só adquire significado se elo inte­grante da cadeia de enunciados nos quais o sujeito também se constitui.

3. A escrita pode indiciar momentos constitutivos do processo de aquisição da linguagem de um modo geral, como nos sugere a polifonia que jorrou incontidamente no último texto de Paulo. Melhor colocando: os papéis de autor e de leitor estão indistintos neste momento e se con­fundem com o próprio ato de escrita do sujeito. Indistinção esta que não permite a Paulo, ainda, conceber o leitor como "não eu", como alguém para o qual tenha que construir uma certa compreensão do texto. E daí porque a sua aparente falta de coesão pode estar revelando não só um momento particular do processo de aquisição de linguagem, mas também, e por conta disto, uma das facetas de constituição de sua própria subjeti­vidade.

Bibliografia

•B AKHTTN, M. (Voloehinov) (1992a) Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6 ed. São Paulo: Ed Hucilec (original russo de 1929).

•B AKHTTN, M. (1992b) O problema do texto. In: Bakhtin, M. - Estética da Criação Verbal. Tradução do francês: idem anterior, 1 ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda (original escrito entre 1959 -1961).

•BAKHTIN, M. (1992b) Os Gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. - Estética da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira (revisão: Marina Appenzeller); 1 edição, São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda (o texto considerado foi escrito entre 1952 e 1953).

•FRANCHI, C. (1977) Linguagem - atividade constitutiva. Almanaque -Cadernos de Literatura e Ensaio, 5:9 - 27, São Paulo: Brasiliense..

•GERALDI, J. W. (1993) Portos de Passagem. 2 ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

•RODRIGUES, N. (1993) Organização neural da linguagem, la: Moura, M.C.; Lodi, A.C.; Pereira, M.C.C. (cda.)Língua de Sinais e Educação do Surdo. Série de Neuropsicologia, vol.3. São Paulo: Tec Art.

•SOUZA, R.M.; Góes. M.C. (1996) O instrutor surdo e o seu objeto de trabalho construções discursivas no interjogo surdo-ouvinte. Para Além do Silêncio, n° 5-6, ps. 4-8.

•VYGOTSKY, L.S. (1984) Formação social da mente.São Paulo: Martins Fontes

Dinamização de Leitura dentro de uma Prática Bilíngue nas

Bibliotecas do INES Regina Celeste

(INES)

Na prática bilíngue do ato de ler,

a língua de sinais e a língua portuguesa

são amantes. As palavras incendeiam

bocas e mãos e fazem do corpo um

coração aberto às chamas.

Assim, experimentamos as nossas histórias e nos

construímos no conhecimento do outro. De um jeito natural, nos

lemos, e nos lendo, nos

descobrimos; e nos descobrindo, nos

transformamos.

Na qualidade de professora especializada em Literatura Infantil e Juvenil, inserida numa equipe de trabalho, com seis professores dinamizadores de leitura e três monitores surdos, também dinamizadores de leitura, abordarei o tema proposto, em meu nome e no dos meus parcei­ros de Bibliotecas.

Agradecemos aos idealízadores e organizadores deste seminário por nos terem convidado para dele participar.

Realizamos o nosso trabalho nas bibliotecas designadas Biblioteca Infantil e Biblioteca Juvenil - atendendo os alunos do Jardim de Infância ate a 8a série. Nesse trabalho, não contamos com a colaboração de bibliote-

cários voltados para a prática do ato de ler. Contudo, sabemos da impor­tância deste profissional no espaço que atuamos - Biblioteca.

Somos educadores preocupados com a produção e promoção da lei­tura e acreditamos que as bibliotecas precisam ser um desafio educacio­nal dentro de qualquer realidade escolar.

Por que esta reflexão introdutória?! Pelo fato de defendermos a uni­dade BIBLIOTECÁRIOS / DINAMIZADORES-PROFESSORES / PRO­FESSORES DE SALA DE AULA / MONITORES SURDOS / ALUNOS. Afinal, nossa filosofia está calcada no dualismo BIBLIOTECA / PRÁTI­CA DE LEITURA.

Como diz Drummond em um dos seus versos: "Ou não se salva, e é o mesmo. Há solução, há bálsamos para cada hora e dor..." . Como não aceitamos a política do "Ai meu Deus o que vamos fazer", buscamos soluções e as bibliotecas acontecem a todo vapor e, com certeza, os nossos alunos não são mais os mesmos. O bálsamo do nosso trabalho insere os surdos num universo cultural repleto de significados e envolve-os numa relação substantiva de experiências reais.

Destacamos uma passagem de Dom Casmurro, de Machado de As­sis, que nos obriga a uma revisão do conceito de história e do reconheci­mento do surdo como sujeito em um sistema de ensino especial:

"Uma ideia, uma ideia sem língua. Que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras ideias... É isto... Ideia só! ideia sem pernas! Ideia só! Ideia sem braços!" Cada vez que aprofundamos esta leitura machadiana e a relacionamos ao trabalho de bibliotecas, percebemos que no silêncio do surdo existe um universo de significados por explorar. Compreendemos que a subjetividade do texto literário deve ser íntima da subjetividade da língua de sinais. Desta forma, tornamos mais fácil o conhecimento do que significa o significante nas relações textuais inter­nas. Na nossa prática bilíngue, a língua de sinais é a protagonista que dá rosto a esse silêncio e "mãos às ideias". Ainda em Dom Casmurro, no diálogo do personagem-narrador com o leitor, Machado de Assis nos presenteia com uma belíssima passagem: "A alma é cheia de mistérios... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida c amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo... Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre..." Neste momento, vocês são os nossos leitores c com certeza as leituras estão sendo diversas, pois cada um é um. Mas se nessa diversidade, interpretamos o surdo como um ser pensante c com todas as possibilidades de criação a partir do imagina-

rio... aí sim, podemos acordar Machado de Assis e pedir que ele cochi­che com Homero, Aristóteles, Varrão, Virgílio, Plínio e Columela, segredos de éguas iberas de uma nova era, fecundadas no chão das diferenças.

Na biblioteca, as produções literárias são apresentadas em momen­tos de profunda troca. O enlace entre os elementos contextuais e os textuais acontece em língua de sinais e em língua portuguesa. Assim, o aluno extravasa o EU numa explosão de sentimentos e experiências vivenciadas. A língua de sinais passa a ser uma necessidade pedagógi­ca, não apenas como um recurso auxiliar, mas como uma língua inscrita no universo cultural do surdo. Por intermédio da aprendizagem bilíngue, o aluno exercita a leitura do mundo e a estas leituras muitas outras leituras acontecem. Ressaltamos que essas leituras precisam ser partilhadas com as leituras do monitor surdo e com as leituras do professor dinamizador -Só assim atingimos a unidade e garantimos a trama das semelhanças e dessemelhanças.

A nossa prática representa uma luta Institucional e afirma a educação especial para o surdo. Acreditamos que muitos entre vocês, participan­tes deste seminário, também necessitam beber do mesmo vinho. Espera­mos que as nossas lutas sejam as lutas e as conquistas futuras de cada pessoa que aqui desejar. Mas, para isso, é preciso estarmos conscientes do trabalho que realizamos com o aluno surdo. E isso significa ato de ler. Acordaremos algumas leituras para reflexão: Somos capazes de ler os fatos e as relações intimamente contidas na realidade do nosso aluno surdo? Refletimos ou levantamos questionamentos sobre o momento da história social e política que os nossos alunos estão vivendo? Qual a nossa contribuição para transformar esse:; comportamentos da socieda­de? Todas essas indagações são muito bem aprofundadas por Ezequiel Theodoro da Silva: "Consciência é um atributo estritamente humano, que possibilita ao homem descobrir e alargar as suas representações do mun­do". Como ensinar o surdo a ler e escrever sem antes termos a consciên­cia do que é Leitura / Liberdade e Leitura / Transformação?

Para aprofundar e tornar mais significativa esta discussão, pedimos ao surdo Alexandre Luiz que apresente o conto "Ninguém", de Luiz Vilela. Pedimos ao intérprete que não faça a tradução.

"A rua estava fria. Era sábado ao anoitecer mas eu estava chegando e não saindo. Passei no bar e comprei um maço de cigarros. Vinte cigar­ros. Eram os vinte cigarros que iam passar a noite comigo.

A porta se fechou como uma despedida para a rua. Mas a porta sempre se fechava assim. Ela se fechou com um som abafado e rouco. Mas era sempre assim que ela se fechava. Um som que parecia o adeus de

um condenado. Mas a porta simplesmente se fechara e ela sempre se fechava assim.

Acender o fogo, esquentar o arroz, fritar um ovo. A gordura estala e espirra ferindo minhas mãos. A comida estava boa. Estava realmente boa, embora tenha ficado quase metade no prato. Havia uma casquinha de ovo e pensei em pedir-me desculpas por isso. Sorri com esse pensa­mento. Acho que sorri. Devo ter sorrido. Era só uma casquinha.

Busquei no silêncio da copa algum inseto mas eles já haviam todos adormecido para a manhã de domingo. Então eu falei em voz alta. Foi só uma frase banal. Se houvesse alguém perto diria que eu estava ficando doido. Eu sorriria. Mas não havia ninguém. Eu podia rolar no chão, ficar nu, arrancar os cabelos, gemer, chorar, soluçar, perder a fala, não havia ninguém. Eu podia até morrer.

De manhã o padeiro me perguntou se estava tudo bom. Eu sorri e disse que estava. Na rua o vizinho me perguntou se estava tudo certo. Eu disse que sim e sorri. Também meu patrão me perguntou e eu sorrindo disse que sim. Veio a tarde e meu primo me perguntou se estava tudo em paz e eu sorri dizendo que estava. Depois uma conhecida me perguntou se estava tudo azul e eu sorri e disse que sim, estava, tudo azul."

O título e as descrições ambientais deste conto sugerem sentimentos de abandono c solidão. - Como o surdo sente a realidade e como essas sensações acontecem em cada um de nós? - Fechar... fechar... fechar repete-se várias vezes e simboliza a falta de comunicação e o enclausuramento do homem. - Somos curiosos o suficiente para romper com as portas que continuam a se fechar nas nossas relações? - As perguntas iguais e repetitivas mostram o ritmo monótono da vida- das pessoas. - O que fazemos para escapar da monotonia das aulas sem iden­tidade?

Aprofundando ainda a subjetividade deste texto à expressão "CORE­OGRAFIA DE BOCAS", do surdo Alexandre Luiz, acrescentamos CORE­OGRAFIA DE MÃOS E DE BOCAS. Só que na educação bilíngue, essas coreografias, num silêncio revelador, transgridem o visível e fantastica­mente mexem com a imaginação e a realidade, onde cada um de nós é co-autor de descobertas. Não basta apenas coreografar, é preciso bailar nas experiências reais.

A primeira leitura do conto, aquela feita em língua de sinais, deve ter causado uma sensação de exílio em cada uma das pessoas que não domi­nam essa língua ou que dominam pouco. Creiam, amigos, essa ruptura é o real na cotidianeidade dos surdos. Quantas sensações veladas alimen­tamos, não é mesmo?! No entanto, se concebemos a leitura do surdo

como leitura da história social feita de alma e corpo, revelamos a essencialidade e o essencial é o ser diferente.

Associando nossas ideias às de Antonio Faundez, destacamos: "Penso que, para que nosso contexto se enriqueça ainda mais, em nossa mente, em nosso corpo, em nossas emoções, necessita de um contexto outro... para nos descobrir precisamos nos mirar no Outro, compreender o Outro para nos compreender, entrar no outro..."

A ideia de que uma mensagem é passada através de um código, leva-nos a aprofundar ainda mais este conceito em relação ao ensino especial voltado para alunos surdos. Um código precisa ser comum tanto para quem emite, quanto para quem recebe e as ideias podem ser transmitidas através de códigos não-verbais. Compreendemos que a língua de sinais é uma língua com códigos não verbais, que deve ser comum ao emissor e ao receptor: monitores e alunos. Nessa igualdade de comunicação, o aluno surdo sente-se capaz, valorizado, estimulado e a língua portuguesa deixa de ser um mito. Passam a usar o código verbal com mais intimidade, no pilar das vivências e experiências do dia-a-dia. Assim, os códigos inlertextualizados revelam semelhanças e diferenças sussurradas com as crónicas, as poesias, os contos, os romances, os filmes e tantas outras possibilidades de leituras. Começam a brincar com as palavras polissêmicas, familiarizam-se com as figuras de sintaxe, descobrem as formas de expressão de ideias, desenvolvem o potencial criativo, mergu­lham nas metáforas, nas prosopopéias, nas catacreses. nas, nas e nas...

Nosso objetivo, como todo objetivo, visa o comportamento humano. ou seja, aquilo que queremos que é próprio da ação do homem. Se o nosso objetivo é levar o aluno surdo a ler e escrever autonomamente, não podemos esquecer que esses alunos possuem desejos próprios e ideais específicos. Afinal, eles também possuem exigências humanas. Não devemos perder a noção de que o processo de ler é identidade do proces­so de viver.

Nesse sentido, as bibliotecas bilíngues provocam o encontro do lei­tor surdo com o livro. De posse deste encontro, o domínio do texto, do melatexto e do transtexto acontecem nos sótãos das emoções.,

Dentro do trabalho bilíngue de leitura, muitas outras temáticas são de extrema importância e devem ser aprofundadas. Mas em duas horas não é possível trocarmos tudo. Contudo, destacaremos alguns tópicos para reflexão: Qual a função social da leitura? O que significa o ato complemen­tar de leitura e escrita? O que é leitura alem do espaço de bibliotecas? O que significa leitura e ludismo? Como selecionar bons livros? Como con­sideramos a Literatura Infantil e Juvenil enquanto arte literária? Como se

reconhece um livro de qualidade? A Literatura Infantil e Juvenil deve ser encarada como instrumento pedagógico? Como combater o vício do didatismo? Como inserir a Literatura em projetos interdisciplinares sem descaracterizar sua função básica, que será sempre despertar o prazer? O bom dinamizador é 6 bom leitor?... dentre tantos outros questionamentos que precisam ser acordados dentro do sistema educacional de ensino.

Para finalizar nossa fala, escolhemos uma expressão da aluna Renata Celino, da turma 803, de um texto criado por ela. Em É A MINHA VIDA, assim intitulado, Renata nos emocionou quando escreveu: "E verdade, as nossas mãos são iguais e falam". Essas palavras mergulharam em nós, particularmente em mim, levando-nos a repassar Paulo Freire: "O corpo humano, velho ou moço, gordo ou magro, não importa de que cor, o corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo que fala, é o corpo que luta, é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que vive!"

Esperamos que as palavras da aluna Renata se ramifiquem. Emara-nhando-se aqui, ali, lá... num menstruo de instantes detidos, e que as nossas leituras, nossos olhares c nossas mãos sejam as nossas histórias recontadas e libertadas.

O TRABALHO NAS BIBLIOTECAS INFANTIL E JUVENIL DO INES

Atendemos aos alunos do Jardim da Infância ate a 8a série do 1° grau. Nosso atendimento consiste num trabalho bilíngue de leitura, realizado semanalmente em dois tempos de aula, dentro da grade curricular.

INTERESSE POR LIVROS DE LITERATURA...

As atividades da BIBLIOTECA servem para criar o interesse e o prazer pela leitura, motivando a presença dos alunos neste espaço.

ATIVIDADES...

• Jogos diversos • Dramatizações • Pantomimas • Contação de histórias • Criação de histórias em língua de sinais • Re-contação de histórias lidas e sinalizadas

COMO ACONTECE O APROFUNDAMENTO LITERÁRIO...

Aprofundamento, através de perguntas, dos textos lidos em língua portuguesa.

A leitura é trabalhada como co-produção. A abordagem literária é realizada em termos de compreensão das relações. O exercício da leitura é lúdico com a preocupação de conduzir ao prazer. O trabalho com o texto é distinto das matérias de aprendizagem curricular. Não utilizamos a Literatura como pretexto. São realizadas produções alternativas Criação, recriação de histórias a partir do que foi lido ou contado.

OUTRAS ATIVIDADES REALIZADAS NA BIBLIOTECA:

• Empréstimo de livros • Concursos (prosa, poesia, quadrinhos, etc.) • Visitas à outras Bibliotecas • Exposições • Confecção de jornais • Montagem de peças teatrais

PROFESSORES DINAMIZADORES/ MONITORES DINAMIZADORES:

Levantam o assunto e o lema antes de dar o livro. Apresentam duas ou três obras para que os alunos elejam a leitura comum.

Estão sempre se atualizando em relação à LITERATURA. Têm a preocupação de levai' o aluno à compreensão e interpretação

do que foi lido ou contado.

Preocupam-se com o ensino / aprendizagem de leitura, aprofundando: NIVEL DE USO NÍVEL DE SIGNIFICADO NÍVEL DE SIGNIFICAÇÃO

AVALIAÇÃO

A avaliação da leitura é indireta. Não utilizamos provas, testes, questionários prontos, ou quaisquer tipos de averiguações que levem a notas ou conceitos.

Equipe das Bibliotecas:

Professores:

Ana Maria Vargas Beatriz Alda Schmidt Eliane Silva Souza Martins Elizabeth Vaz Machado Regina Celeste Zaida Ramos de Oliveira

Monitores surdos

Alexandre Luiz Leandro Elis Rodrigues Nelson Pimenta

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos Plausíveis RJ: José Olímpio Editora, 1985.

ASSIS, Machado.Dom Casmurro. SP: Editora Scipione, 1984. FREIRE, Paulo & FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta.

RJ: Paz e Terra, 1985. MACEDO, Maria Carolina & OLIVEIRA, Mareia L. C. de. Seleção de

Livros. Sim? Não? Por quê? Como? RJ: UFRJ, 1992. PONDE, Glória & YUNES, Eliana. A Arte de Fazer Artes. RJ: Editorial

Nórdica LTDA, 1985. SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na Escola e na Biblioteca. SP:

Papirus, 1993. VILELA, Luiz. Tremor de Terra. SP; Ática, 1977. YUNES, Eliana. Por uma Política Nacionalde Leitura. Cadernos de

Educação Básica. Série Institucional.

PALESTRA1 DO MONITOR SURDO ALEXANDRE LUIZ

É preciso que os ouvintes sintam o que nós, surdos, sentimos. Quan­do eu apresentei o conto "ninguém", vocês sentiram o mesmo que os surdos sentem durante as aulas. Como vamos ensinar aos nossos alunos surdos, se eles não entendem o que vocês falam? Há uma barreira entre o professor e o aluno.

Os professores poderiam ganhar tempo com o surdo. Com um surdo como monitor, o professor ouvinte pode transmitir o ensino e não filtrá-lo, como faz a maioria dos professores, provocando um ensino fraco, impos­sibilitando o aluno surdo de fazer outras atividades fora.

Tenho certeza e posso provar que foi um alívio, um sonho realizado para os alunos do INES, quando a Instituição resolveu colocar um surdo monitor junto com o professor, na biblioteca. Eles falam e pedem que outras matérias adotem a mesma prática.

A Língua de Sinais não é tão fácil. Ela é muito bem estruturada. Um professor que sabe pouco a Língua de Sinais, já é alguma coisa, mas precisa aperfeiçoar cada vez mais. Um simples erro, ou uma troca de sinais, pode provocar um desentendimento entre professor x matéria x aluno.

'Este texto corresponde á versão em português da palestra proferida em LIBRAS pelo monitor surdo Alexandre Luiz.

Por exemplo: Uma pessoa ouvinte estava conversando em língua de sinais com uma surda. Essa pessoa diz à surda que ela era muito doce. A surda ficou furiosa c saiu. A pessoa ouvinte ficou sem saber o que tinha acontecido e, mais tarde, soube que havia feito o sinal errado, em vez do sinal "doce", fez o sinal de "piranha": "Você é muito "piranha", ao invés de você é muito "doce".

Por isso, é importante um surdo monitor junto com o professor. Além de ajudar nas aulas, podem corrigir os erros de estrutura da Língua de Sinais feita pelo professor.

O surdo monitor é muito bom para os alunos surdos! Poder trocar, tirar suas dúvidas, entender mais rápido, sentir-se mais livre para perguntar, aprofundar perguntas e despertar curiosidades. Claro, temos a mesma afinidade, sabemos de nossa cultura e nossos costumes, o jeito de usar a Língua de Sinais, o sentimento de liberdade e a leveza de usá-la.

O ideal seria formar os surdos, desde pequenos, no conhecimento das outras línguas, no caso da língua portuguesa, para que eles, futuramente, possam trabalhar como professores c em outras atividades profissionais. E óbvio que a Língua de Sinais é a primeira língua que deve ser ensinada para depois poder compreender e entender outras línguas diferentes dela.

A tarefa do monitor não é apenas para ajudar e sim enriquecer o traba­lho dos professores. Assim, eles aprenderão a conhecer mais o nosso "mundo", com a língua de sinais e vice-versa. Assim, como monitor surdo, na troca, enriquecerei mais o meu currículo e a minha capacidade de mostrar aos surdos todas as possibilidades. Desta forma o trabalho produtivo com as pessoas ouvintes e surdas torna-se mais pleno.

Para trabalhar com o monitor, não é tão fácil, exige muita paciência. Como diz o provérbio: "Uma andorinha só não faz o verão".

Aquisição de L1 e L2: O Contexto da Pessoa Surda

Ronice Múller de Quadros'

AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Ao longo da história da educação de surdos no Brasil sempre houve uma preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. As propostas pedagógicas sempre foram calcadas na questão da linguagem. Essa preocupação com a questão da linguagem, não menos importante que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase que exclusi­va, perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança sur­da.

Há várias razões para tal fato, dentre elas, o fato das crianças serem surdas tornava fundamental a discussão sobre o processo de aquisição da linguagem, tendo em vista que tal processo era traduzido por línguas orais-audilivas. As crianças surdas dotadas das capacidades mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por essa razão, até os dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o desenvolvimento da linguagem em crianças surdas através de métodos de oralização. "Fazer o surdo falar e ler os lábios permitirá o acesso a linguagem", frase repetida ao longo da história c que tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologia que favoreçam esse proces­so, há muitos anos, com alguns avanços.

Entretanto, apesar de lodo esse empenho, os resultados que advêm de tal esforço são drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstram o fracasso das inúmeras tentativas de se garantir linguagem através da língua oral-auditiva do país, a língua portuguesa. Todos os profissionais envolvidos na educação de surdos que conhecem surdos adultos admitem o fracasso do ensino da língua portuguesa, não somente enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente, en­quanto língua que permite o desenvolvimento da linguagem.

Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente "salvar" o seu processo de aquisição da linguagem através da língua brasileira de sinais - LIBRAS. A raça humana privilegia tanto a questão da linguagem,

1 Doutoranda do Departamento de Pós-Graduação em Letras da PUCRS - área de concentração: Linguística Aplicada - com o suporte financeiro da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

isto é, a linguagem c tão essencial para o ser humano que, apesar de lodos os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relações através dela, os seres humanos buscam formas de satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais inde­pendentes da escola e da família, buscam relações com outros surdos através da língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos brasilei­ras foram sendo criadas e tornando-se espaço de "bate-papo" e lazer em sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais "oralizavam" ou as escolas "integravam" crianças surdas nas escolas regulares de ensino. Percebe-se, aqui, um movimento de resistência natural por parte dos sur­dos a um processo social, político e linguístico que privilegiou o parâmetro do normal.

As pesquisas sobre a aquisição da linguagem avançaram muito a partir dos anos 60. Os estudos envolvendo a análise do processo de aquisição de várias crianças começaram a indicar a universalidade desse processo (Fletcher&Garman, 1986; Ingram, 1989;Slobin, 1986). O estudo da Língua de Sinais Americana - ASL - começou exatamente neste mesmo período através de uma descrição realizada por Willian Stokoe, publicada em 1965 pela primeira vez (Stokoe et alli, 1976). Esse trabalho representou uma revolução social e linguística. A partir dessa obra, várias outras pesquisas foram publicadas apresentando perspectivas completamente diferentes do estatuto das línguas de sinais (Bcllugi & Klima, 1972; Siple, 1978; Lillo-Martin, 1986) culminando no seu reconhecimento linguístico nas investigações da Teoria da Gramática com Chomsky (1995:434, nota 4) ao observar que o termo "articulatório" não se restringe a modalidade das línguas faladas, mas expressa uma forma geral da linguagem ser repre­sentada no nível de interface articulatório-perceplual incluindo, portanto, as línguas sinalizadas.

Quase que em paralelo a esses estudos, iniciaram-se as pesquisas sobre o processo de aquisição da linguagem em crianças surdas filhas de pais surdos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987). Essas crianças apresentam o privilégio de terem acesso a uma língua de sinais em iguais condições ao acesso que as crianças ouvintes têm a uma língua oral-auditiva1. No Brasil, a LIBRAS começou a ser investigada na década de 80 (Ferreira-Brilo, 1986) e a aquisição da LIBRAS nos anos 90 (Karnopp, 1994; Quadros. I995)2.

' Privilégio porque representam apenas 5% das crianças surdas, ou seja, 95% das criança surdas são filhas de pais ouvintes e que, portanto, na maioria dos casos, não dominam uma língua de sinais.

2 Para mais detalhes sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas através da ASL e da LIBRAS ver Quadros (1997).

Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sen­do, mais uma vez, os estudos de aquisição da linguagem indicam univer­sais linguísticos. O lato do processo ser concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvol­va em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse proces­so vem sendo tratado na educação de surdos.

A aquisição da linguagem em crianças surdas deve ser garantida através de uma língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da LIBRAS. Isso independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetização, aquisição do português, aquisição de conhe­cimentos, etc), pois é algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das crianças surdas virem para a escola sem adquirirem uma língua, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à LIBRAS. O processo educacional ocorre mediante interação linguística e deve ocor­rer, portanto, na LIBRAS. Se a criança chega na escola sem linguagem, é fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do proces­so de aquisição da linguagem através de uma língua visual-espacial3. A aquisição da LIBRAS por crianças surdas brasileiras é algo inquestionável. No entanto, a educação de surdos continua apresentando inúmeros pro­blemas mesmo quando as crianças têm acesso à língua de sinais. No Brasil, essa constatação é comparável à situação das crianças.ouvintes que vão para escola com a aquisição da linguagem garantida através do português e, no entanto, os índices de repetência c evasão escolar são dos mais altos do mundo. As propostas pedagógicas devem ir além das línguas envolvidas no processo educacional.

A tradição na educação de surdos de se pensar somente na lingua­gem todo o tempo precisa acabar. A escola deve se constituir não em função das línguas que permeiam a vida escolar dos surdos, mas para muito além disso, ou seja, cumprir com seu papel enquanto instituição educacional.

' Neste caso, poder-se-ia redefinir o papel do fonoaudiólogo nas instituições que atendem surdos. Não mais como àquele que tem a função de trabalhar com a oralização, mas como àquele que trabalhará cem a linguagem e seus distúrbios gerados pelo fato das crianças terem acesso a LIBRAS tardiamente e , também, com os distúrbios de linguagem comuns às crianças que adquirem uma língua falada so que em sinais (na linha da linguística clínica, mas com uma língua visual-espacial).

Partindo das questões abordadas até o presente, quando se reflete sobre a língua que a criança surda usa, a LIBRAS, c o contexto escolar, imediatamente pensa-se em alfabetização.

ALFABETIZAÇÃO

O processo de alfabetização é essencialmente natural. As crianças passam pelos diferentes níveis desse processo mediante interação com a escrita construindo hipóteses c estabelecendo relações de significação que parecem ser comuns a todas as crianças.

Obviamente esse mesmo processo deve acontecer com as crianças surdas. Entretanto, as crianças surdas devem estabelecer visualmente relações de significação com a escrita. Assim sendo, toda a energia dos alfabetizadores de surdos é canalizada para a autonomia da escrita, mas nos níveis propostos por Ferreiro e Teberosky (1985), ou seja, níveis propostos com base em sistemas escritos alfabéticos. Interessantemente, tais níveis estão descritos como pré-silábico, silábico, silábico-alfabé-ticoe.alfabético (com suas respectivas subdivisões). Inquestionavelmente, esse trabalho representa um avanço nos estudos sobre a alfabetização. No caso específico da alfabetização de surdos, vários professores tenta­ram visualizar esse mesmo processo4. Apesar de todos esses esforços parece haver um "buraco-negro" no processo de alfabetização de crian­ças surdas. Os professores fazem alguns relatos: "As crianças chegam em um determinado nível e trancam ", "As crianças não conseguem sair da representação da palavra", "Não consigo fazer com que eles escre­vam um texto', "Eles conseguem escrever somente as palavras traba­lhadas em aula ", e assim por diante.

Ferreiro & Teberosky (1985) usaram a nomenclatura mencionada aci­ma para idenlificar o processo de alfabetização alfabético em que as crian­ças estabelecem relação de significação entre o que é dito e o que é escrito, embora haja autonomia da escrita. O nível silábico envolve a compreensão da criança de que as diferenças das representações escritas estão relacionadas com as diferenças nas representações sonoras. Sono­ras que para os surdos devem ser visuais. Apela-se então para a leitura labial que, ocuparia o lugar das representações sonoras. No entanto, apresenta-se a seguinte constatação:

Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos (Duffy, Í987) constataram que, apesar do investimento de anos da vida de uma criança surda na sua oralização, ela somente é capaz de

4São raros os registros dessas tentativas, alguns registros constam nos Anais do II Encontro de Alfabetizadores de Deficientes Auditivos - INES - MEC - Rio de Janeiro, (1989).

captar, através da leitura labial, cerca de 20% da mensagem e, além disso, sua produção oral, normalmente, não é com­preendida por pessoas que não convivem com ela (pessoas que não estão habituadas a escutar a pessoa surda). (Qua­dros, 1997:23)

O primeiro problema que deve ser reconhecido é que a escrita alfabé­tica da língua portuguesa no Brasil não serve para representar significa­ção com conceitos elaborados na LIBRAS, uma língua visual espacial. Um grafema, uma sílaba, uma palavra escrita no português não apresenta nenhuma analogia com um fonema, uma sílaba e uma palavra na LIBRAS, mas sim com o português falado. A língua portuguesa não é a língua natural da criança surda. Já foi abordado no presente trabalho que a língua em que o processo de aquisição da linguagem ocorre naturalmente em crianças surdas brasileiras é a LIBRAS.

As línguas de sinais apresentam uma escrita que foi desenvolvida para representar formas e movimentos num espaço definido. No Brasil, esse sistema escrito está sendo aplicado a LIBRAS e usado por alguns surdos a partir de um projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido na PUCRS5.

Da mesma forma que há alguns anos, os estudos das línguas de sinais revolucionaram a visão quanto à aquisição da linguagem por crian­ças surdas, o reconhecimento de que as línguas de sinais não são línguas agrafas transforma a visão do processo de alfabetização dessas crianças.

Todos os níveis do processo de alfabetização devem aparecer em crianças surdas alfabetizando-se mediante interação com a escrita da língua de sinais, ou seja, com grafemas, com sílabas e com palavras que representam diretamente a LIBRAS.

Para que seja melhor visualizada essa representação escrita da língua de sinais, será escrito um parágrafo em sinais com a tradução para o português logo a seguir.

s Prof. Dr. Antônio Carlos Rocha da Costa - Instituto de Informática da PUCRS -junto com uma equipe que inclui surdos universitários c pesquisadores da área de informática, linguística e educação, estão buscando divulgar a existência deste sistema c sua possível utilização como meio de registro da LIBRAS. Para uma visualização desse sistema ver na Internet: www.signwriting.org

Há dois grupos, aqueles que aprendem a falar e aqueles que aprendem a língua de sinais. Esses últimos desenvolvem a habilidade espacial no cérebro de forma mais sofisticada do que o outro. A possibilidade de ler um desenvolvimento mais natural do espaço pode favorecer o processo educacional da criança surda. A escrita da língua de sinais é uma forma de aproveitar o potencial dos surdos. A representação da lín­gua de sinais através da escrita permite um processo de apren­dizagem da leitura e escrita natural. As crianças estabelecem relações diretas da língua de sinais para a escrita. Por que é tão complicada a alfabetização das crianças surdas? Até o presente, as crianças surdas só tiveram contato com a escrita do português. Essa forma escrita está relacionada com a lín­gua oral auditiva e não com uma língua visual espacial.

Um estudo sobre o desenvolvimento da escrita em crianças israelen­ses pré-escolares (Tolchinsky & Levin, 1987) constatou que a produção escrita das crianças apresenta uma ordem que parece corresponder a uma sequência evolutiva, válida para diferentes formas escritas e culturas. As autoras desse trabalho consideraram as análises de Ferreiro & Teberosky para chegar a essa conclusão. O sistema escrito do hebraico apresenta algumas características peculiares que o diferencia de sistemas alfabéti­cos. Tal sistema conecta unidades que aparecem em cadeias curtas (não mais que cinco unidades são usadas para formar unia palavra) e sua dire­ção é da direita para a esquerda.

Da mesma forma que com o hebraico escrito, Apresentam-se a hipótese de que o processo de alfabetização em crianças surdas através do sistema escrito da língua de sinais ocorre em uma sequência evolutiva. A escrita da língua de sinais é formada por unidades que correspondem às configu­rações de mão, os movimentos e as expressões faciais gramaticais em diferentes pontos de articulação que formam palavras mediante algumas combinações. Apesar de ser um sistema escrito diferente e refletir um sistema linguístico espacial, a sequencia evolutiva de sua aquisição deve ocorrer da mesma forma''.

Um trabalho realizado por 0'Grady, vanHoek e Bellugi (1990) sobre a interseção entre a escrita, os sinais e o alfabeto manual verificou que a escrita das crianças surdas, por volta dos três anos, apresentava a forma do sinal correspondente na ASL. As respostas evidenciaram que crian-

"As pesquisas sobre o processo de alfabetização de crianças surdas sendo alfabelizadas na escrita da língua de sinais são urgentes para que se traga evidências desse processo e se ofereça subsídios para que isso seja reconhecido e executado em todo país.

ças surdas conectam a língua escrita com sua língua nativa, a ASL. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi (1991) apresentam um exemplo dessa relação com os sinais através da figura (1).

FIGURA 1: Representação escrita das crianças com base nos princípios da ASL

(Fok, vanHoek, Klima & Bellugi, 1991:140) O sinal para PATO é o mesmo na LIBRAS. A representação escrita

respectiva é a seguinte: (a) PATO

As primeiras tentativas das crianças que adquiriram a ASL foi de representar através de símbolos as palavras na ASL. Ao observar-se o sistema escrito da ASL, percebe-se que há aspectos relacionados a ASL. Isso é claramente observado cm (a) onde o sinal ao lado da produção escrita é semelhante a sua representação escrita (neste exemplo, há uma relação com a configuração da mão usada no sinal para PATO).

Outros exemplos de conexão entre os sinais e a representação escrita de crianças surdas estão diretamente relacionados com a configuração de mão usada nos sinais que são também letras do alfabeto manual. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi observaram que as crianças explicavam que a palavra INDIAN iniciava com F porque o sinal para INDIAN na ASL usa a configuração de mão F (do alfabeto manual da ASL). É interessante observar que essas crianças não tiveram acesso ao sistema escrito da ASL.

Quando assessorava uma escola de surdos no interior do RS, tive a oportunidade de observar que uma criança representava a letra V usan­do o seguinte símbolo:

(b)

Essa criança está fazendo uma relação direta com a configuração de mão R. A representação escrita dessa configuração na LIBRAS é a se­guinte:

(e)

Não somente no nivel da palavra, mas também no nível da estrutura da língua acontece a relação entre a língua de sinais e a sua escrita. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi observaram exemplos da produção escrita de crianças surdas chinesas que indicam a estruturação da língua de sinais chinesa. A figura (2a) apresenta a figura de uma 'porta' e (2b) a figura de uma 'menina abrindo uma porta'. Uma criança surda escreveu correta­mente a palavra 'porta' no chinês, no entanto na segunda figura associou o radical para pessoa do chinês a palavra 'porta', produzindo uma forma composta usada na língua de sinais. Na figura (3) aparecem alguns exem­plos em que as crianças chinesas inventaram uma forma escrita para cada desenho apresentado. As representações escritas refletem os princípios de formação das palavras das línguas de sinais, por exemplo, uso da forma, tamanho e quantidade para formação da palavra.

"quatro" "quadrado" "forma" "quatro" "longo" "forma" "redondo" "fornia"

(Fok, vanHock, Klima & Bellugi, 1991:141)

A escrita da língua de sinais capta as relações que a criança estabe­lece naturalmente com a língua de sinais. Sc as crianças tivessem aces­so a essa forma escrita para construir suas hipóteses a respeito da escrita, a alfabetização seria uma consequência do processo.

Considera-se aqui que a alfabetização e a aquisição de uma segunda língua envolvam processos diferentes, principalmente quando se trata de línguas de modalidades diferentes. Qualquer estudo sobre a aquisição da leitura e escrita em uma L2 pressupõe que os alunos estejam alfabetiza­dos na fornia escrita da LI. Portanto, somente após as crianças surdas estarem alfabetizadas na escrita da LIBRAS, sugere-se iniciar a aquisição formal da língua portuguesa, nesse caso, a segunda língua das crianças.

AQUISIÇÃO DE L2

Até o momento a aquisição do português escrito por crianças surdas foi baseada no ensino do português para crianças ouvintes que adquirem o português falado naturalmente. Esse fato fica claro, quando se percebe que o que de fato ocorre é que a criança surda é colocada cm contato com a escrita do português para ser alfabetizada em português. Várias tentati­vas de alfabetizar a criança surda através do português já foram realiza­das, desde a utilização de métodos artificiais de estruturação de lingua­gem até o uso do português sinalizado7. Apesar de todas essas tentati-

7 No Brasil, os métodos artificiais de estruturação de linguagem mais difundidos são a Chave de Fitzgerald e o de Perdoncini. Português sinalizado é um sistema artificial adotado por escolas especiais para surdos. Tal sistema toma sinais da LIBRAS e joga-os na estrutura do português. Há vários problemas com esse sistema no processo educacional de surdos, pois além de desconsiderar a complexidade linguística da LIBRAS, é utilizado como um meio de ensino do português Para mais detalhes ver Quadros (1997)

vas, evideneia-se o fracasso da aquisição do português por alunos sur­dos11.

A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar o processo de aquisição por alunos surdos de uma língua escrita que representa a modalidade oral-auditiva (Andersson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997; entre outros). A aquisi­ção do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos surdos é analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisi­ção da LI e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como aquisição de uma L2.

Desconhecendo ou ignorando a representação escrita das línguas de sinais, os precursores dessa discussão acenaram a possibilidade de alfa­betizar surdos na escrita da língua oral-auditiva considerando tal sistema suficientemente autónomo para tornar possível a alfabetização visual (Ferreira-Brito, 1993). No entanto, observa-se que esse processo não está acontecendo naturalmente. Alfabetizadores percebem que quando a criança surda atinge o nível silábico de sua produção escrita, ela se apoia na leitura labial da palavra. Esse processo acontece até a criança precisar passar do nível da palavra para o nível textual, nível em que os problemas com o português escrito permanecem lendo cm vista a limitação da leitura labial. Fato esse constado por Nobre (1996): os alunos surdos não apre­sentam maiores problemas ortográficos. Parece que a criança surda não ultrapassa a interface do léxico com a sintaxe no português, isto é, do nível da palavra para o nível da estrutura dessa língua.

O processo de aquisição de L2 pressupõe a natureza da faculdade humana para a linguagem. As pesquisas de Berenl (1996) apresentam alguns mecanismos de aquisição do inglês que são acionados por alunos surdos no seu processo de aprendizagem. Tais mecanismos refletem os princípios da Gramática Universal (Chomsky, 1995). Partindo disso, ao se pensar especificamente sobre a aquisição da L2 por alunos surdos apre-sentam-se alguns aspectos fundamentais: (a) o processamento cognitivo espacial especializado dos surdos; (b) o potencial das relações visuais estabelecidas pelos surdos; (c) a possibilidade de transferência da LI­BRAS para o português; (d) as diferenças nas modalidades das línguas no processo educacional; (e) as diferenças dos papéis sociais e acadêmi­cos cumpridos por cada língua, (f) as diferenças entre as relações que a comunidade surda estabelece com a escrita tendo em vista sua cultura;

* Para mais detalhes sobre a produção escrita do português de alunos surdos ver Fernandes (1990) e Gões (1996)

(g) um sistema de escrita alfabética diferente do sistema de escrita das línguas de sinais; e (h) a existência do alfabeto manual que representa uma relação visual com as letras usadas na escrita do português.

Além desses aspectos, os estudos sobre a aquisição de L2 apresen­tam questões externas que devem ser consideradas, pois podem determi­nar o processo de ensino de línguas, são elas: o ambiente, o tipo de interação (input, output e feedback), a idade, as estratégias e estilos de aprendizagem, os fatores emocionais, os fatores sociais e o interesse (motivação) dos alunos.

O ambiente do ensino da língua portuguesa - L2 - para surdos, por envolver o ambiente escolar e o ensino de língua, caracteriza um ambiente não natural de língua. Pensando na realidade dos surdos brasileiros, Po­der-se-ia supor que o ambiente fosse caracterizado como natural, pois quase todas as pessoas com quem eles convivem usam a língua portu­guesa, isto é, os surdos estão "imersos" no ambiente em que a língua é "falada". No entanto, a condição física das pessoas surdas não lhes per­mite o acesso à língua portuguesa de forma natural. Na verdade, nestes casos não há "imersão", no sentido em que o termo é empregado nas propostas de aquisição de L2 com base no enfoque natural (programas de imersão). Portanto, o ambiente de aquisição/ aprendizagem da L2 para os surdos é não natural9.

Quanto ao tipo de interação, oferecer ao aluno surdo um input quali­tativamente compreensível, autêntico c diversificado do português é um desafio para os professores. Um input compreensível, mas ao mesmo tempo complexo o suficiente para desafiar o aluno a desenvolver seu processo de aquisição, exige que discussões prévias sobre o assunto abordado em língua de sinais sejam promovidas. Além de ser compreen­sível, o input deve ser autêntico e diversificado, ou seja, os alunos preci­sam estar diante de verdadeiros textos (muitos profissionais simplificam textos tomando-os não autênticos) e com tipologia diferenciadas.

A ordem natural de aquisição deve ser um dos critérios a ser observa­dos ao ser oferecido o input ao aluno. Como a aquisição de L2 também reflete a capacidade para linguagem específica do ser humano, há uma certa ordem no seu processo de aquisição. Outro aspecto abordado so­bre o input é a quantidade em que ele é oferecido ao aluno. Considerando que o input da L2 é basicamente visual para os surdos, é imprescindível ampliar o tempo depreendido para o contato com a L2. O aluno deve ter

"Aquisição/aprendizagem está relacionado com o equilíbrio entre conhecimento im­plícito e explícito no processo de ensino de línguas (para mais detalhes ver Ellis, 1993; Quadros. 1997).

oportunidade de interagir com o português escrito de várias formas e em todos os momentos em que for propício. Os textos, as palavras, as estóri­as escritas em português devem ser oferecidas visualmente desde o prin­cípio da escolarização, mesmo não sendo alvo da alfabetização. Assim, a criança tem um input natural do português escrito.

Ainda quanto ao tipo de interação, o professor deve estar atento às oportunidades que o aluno dispõe para expressar sua L2 (output). No caso específico de alunos surdos, oportunizar a eles a expressão escrita é fundamental para que o aluno avalie o seu desenvolvimento e o professor interfira no processo de aquisição através de meios cabíveis (análise de "erros", análise da interferência da LIBRAS, análise da estrutura do por­tuguês). Ao analisar as produções de alunos surdos, parece ser possível inferir que o processo de alfabetização das pessoas surdas independe do processo de ensino do português. O output (produção) escrito dos alu­nos expressa ideias que apresentam uma relação direta com a LIBRAS. O processo de ensino do português ocorrerá em uma etapa seguinte. A intervenção do professor representa o feedback para o aluno surdo pos­sibilitando a reflexão sobre as hipóteses que criou na sua produção (output).

A idade dos alunos vai implicar o uso de procedimentos diferentes no processo de ensino de L2. As crianças precisam de atividades que atendam aos seus interesses imediatos de forma mais natural possível. A língua escrita, por si só, apresenta características que se distanciam de relações comunicativas imediatas. Cabe aos profissionais tornarem esse processo interessante à criança inserindo-o em uma prática social. Nor­malmente, o ensino de L2 para crianças enfatiza a aquisição do vocabulá­rio e a compreensão da L2. Os adultos, diferentemente das crianças, apre-sentam-se motivados conscientemente para o processo de aquisição da L2, assim se dispõem a falsear ambientes naturais de língua. Já com as crianças, o processo exige do professor habilidade para tornar a aquisi­ção o mais autêntica possível e para criar motivação suficiente para des­pertar o interesse do aluno.

Quanto aos estilos e às estratégias de aprendizagem (Nunan, 1991; Ellis, 1993), sugere-se que o professor faça o levantamento das ten­dências e das preferências dos alunos. As classes de crianças surdas normalmente são formadas por grupos em número reduzido (5 a 10 alunos); dessa forma, torna-se possível traçar um perfil. Conhecer os estilos e estratégias de cada aluno certamente repercutirá na qualidade da inter­venção do professor no processo de ensino de L2.

Os fatores afetivos podem influenciar no desenvolvimento do aluno diante da L2. As crianças, por estarem formando sua auto-imagem, podem

se sentir inibidas e os adultos, por serem críticos, podem bloquear o processo. Com os alunos surdos não é diferente; entretanto, além desses fatores, há outros que podem dificultar ainda mais a aquisição de L2. As crianças surdas podem estar sofrendo toda a pressão emocional familiar cm função da surdez e os adultos podem manifestar resistências em rela­ção a L2 decorrentes de constantes fracassos e frustrações gerados por um ensino inadequado. Os profissionais devem atentar a essas questões e procurar resolvê-las, pois estas afetam o processo. Tendo em vista a relação afetiva entre os pais e a criança, o trabalho com os pais, paralelo e conjuntamente com as atividades das crianças, deve fazer parte dos pro­gramas escolares. Já o trabalho com os adultos envolve um processo mais consciente; desta forma, os alunos e os profissionais devem refletir sobre o passado escolar para que se reavalie o processo e se construa uma nova caminhada em termos educacionais.

Quanto aos aspectos culturais que envolvem o processo de ensino de L2, sugere-se que o profissional os explicite para o aluno surdo. Tais aspectos, que subjazem o texto, interferem no seu significado e passam desapercebidos pelo aluno de L2. A reflexão sobre as culturas em que os sistemas linguísticos estão imersos contribui para a conscientização das diferenças que se refletem, muitas vezes, em idiossincrasias do léxico.

Para finalizar, torna-se relevante alertar aos profissionais que o pro­cesso de aquisição/aprendizagem do português por surdos deve estar inserido em uma proposta educacional mais abrangente. Quanto ao espa­ço atribuído ao ensino do português, a escola deve se preocupar em ter profissionais altamente especializados no ensino de L2. Esse profissional deve conhecer os mecanismos de aquisição da linguagem para compre­ender as hipóteses dos alunos quanto ao português - sua L2 - para, a partir disso, interferir no processo de forma adequada. Vale destacar que qualquer processo educacional se concretiza mediante a interação efetiva do professor com o aluno. Se o professor não se comunicar com o seu aluno utilizando a língua de sinais, o processo estará completamente com­prometido. Uma proposta educacional para surdos deve ser reconstruída permanentemente para que venha atender aos interesses dos alunos e extrapolar a questão das línguas.

Neste artigo, objetivou-se diferenciar três processos relacionados com as línguas no contexto educacional dos surdos:

1. a aquisição da linguagem que deve ser garantida através de uma língua espaço-visual, isto é, uma língua de sinais (no caso do Bra­sil, a LIBRAS);

2. a alfabetização que deve acontecer naturalmente através da escrita das línguas de sinais;

3. a aquisição/aprendizagem do português que envolve um processo de aquisição de L2.

Tais processos apresentam uma questão em comum: a faculdade da linguagem. No entanto, cada processo é, de certa forma, independente um do outro. A aquisição da linguagem é essencial ao ser humano, por­tanto as crianças surdas precisam entrar em contato com uma língua es-pacial-visual para ler garantida essa essência da linguagem. Quanto à alfabetização, parece que as crianças surdas alfabetizam-se naturalmente quando em contato com o sistema escrito das línguas de sinais. Por outro lado, o processo de aquisição/aprendizagem do português não é es­sencial, mas é necessário na sociedade brasileira; assim sendo, os alunos surdos precisam adquirir o português escrito.

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Uma Experiência Fonoaudiológica na Abordagem Bilíngue Profa. Dra. Cristina B. F. de Lacerda (UNIMEP)

A questão da educação dos surdos é polemica e atual. Quando recor­remos à literatura disponível sobre o assunto, verificamos que desde o século XVIII há uma busca ativa do melhor modelo de educação para as pessoas surdas. Comentam-se os fracassos e insucessos, prós e contras tanto do ensino especial, exclusivamente voltado para o atendimento da pessoa surda; como da inserção destes sujeitos no ensino regular. Esta discussão, geralmente, precede outra não menos importante que aponta para a dificuldade que os surdos têm, após anos de escolarização, em lerem e escreverem de forma satisfatória, qualquer que seja o modelo educacional escolhido (educação especial/ensino regular). Assim sendo, os surdos são escolarizados, mas parece que esta escolarização produz poucos resultados realmente eletivos.

Paralelamente à evolução de propostas e discussões envolvendo a questão educacional dá-se o desenvolvimento de técnicas e conheci­mentos médicos que compreendem o surdo como um "deficiente auditi­vo" que precisa ser tratado e reabilitado. Neste contexto, surge também a figura do fonoaudiólogo, ao qual é reservada a tarefa de trabalhar com o surdo de forma a fazê-lo ouvir e falar, ou seja, de torná-lo ouvinte.

Para desenvolver" seu trabalho, a fonoaudiologia desenvolveu ao lon­go dos anos um conjunto de técnicas que visam levar o sujeito surdo a aprender a falar e a aproveitar seus "restos' auditivos, já que estas 'fun­ções' não se desenvolvem naturalmente nestes sujeitos. A habilidade de falar é alcançada, via de regra, através de exercícios e técnicas artificiais, onde a linguagem é pouco considerada e o enfoque está voltado para a articulação. Em geral, são terapias longas, laboriosas em que o sucesso é bastante discutível.

Já em 1926, Vygoslky (1986) apontava para o modo com a língua falada era ensinada aos surdos argumentando que tal como era realizado, tomava muito tempo da criança, em geral, não ensinando-lhe a construir logicamente uma frase. O trabalho (naquela época e contemporaneamente) era dirigido para uma 'recitação' e não para a aquisição de uma linguagem propriamente, resultando em um vocabulário limitado e, muitas vezes, sem sentido, configurando uma situação extremamente difícil e confusa.

Vygotsky, então, comentava que a problemática do surdo aparece bri­lhantemente resolvida nas teorias, mas que, na prática, não se observam os resultados desejados.

Esta discussão mantém-se atual. Práticas de educação e/ou terapêu­ticas que visam a uma produção articulatória que faz pouco ou nenhum sentido para o surdo c que o faz despender horas importantes em treinos que não levam à aprendizagem de linguagem propriamente. O verdadeiro problema parece estar no fato de que a linguagem oral precisa ser ensina­da; o que ocorre normalmente com os ouvintes é que ela é adquirida, sem que para isto haja qualquer procedimento 'especial'.

Este trabalho de oralização não pode aparecer separado da estimulação auditiva, os 'restos auditivos' devem ser aproveitados e desenvolvidos, como máxima, pois eles podem levar o indivíduo a 'ouvir' e este é o grande objetivo.

Os casos bem sucedidos infelizmente são poucos. Alguns chegam a falar bastante bem e a desenvolver estratégias para uma convivência satisfatória no inundo ouvinte, contudo trata-se da minoria. A maioria desenvolve uma fala pouco inteligível, não chegando a um desenvolvi­mento consistente de linguagem, sentindo dificuldades para a inserção no mundo ouvinte, e desadaptados do mundo das pessoas surdas.

O fonoaudiólogo que deveria trabalhar com as questões da lingua­gem possibilitando o desenvolvimento deste indivíduo como um todo, acaba atendo-se a um trabalho perceptual-articulatório que pouco contri­bui para a constituição dessa pessoa enquanto sujeito.

Neste contexto, configura-se uma insatisfação com esta 'tarefa' tera­pêutica e publicações e discussões sobre experiências com as línguas de sinais, fazem surgir uma perspectiva de trabalho que contemple uma lín­gua/linguagem para o surdo. Uma língua estruturada, natural, que pudes­se levá-lo a um desenvolvimento pleno, e a sua constituição enquanto sujeito, acenando com uma saída justa c honesta para o trabalho com as pessoas surdas.

Antes de explicitar este modo de trabalho se faz necessário definir a concepção de linguagem aqui assumida.

"Ressaltamos a linguagem como (inter)ação humana e ativida­de constitutiva destacando uma característica fundamental que é a reflexividade, isto é a propriedade/possibilidade que a lin­guagem apresenta de remeter a si mesma. Ou seja, fala-se da linguagem com e pela linguagem. Ainda, o homem fala de si, (re)conhece-se, volta-se sobre si mesmo pela linguagem a qual

pode falar de seu próprio acontecimento.[...] usamos a língua/ linguagem para configurar, estudar, conhecer, analisar a pró­pria atividade na qual estamos imersos, da qual não nos pode­mos desprender e que circunscrevemos conto objeto de estudo. Se é possível um certo distanciamento, se a reflexividade é possí­vel, não podemos nunca nos situar "fora" da linguagem. Mais do que objeto e meio/modo de abordagem, a linguagem é constitutiva dos processos cognitivos e do próprio conhecimen­to, uma vez que a apropriação social da linguagem é condição fundamental do desenvolvimento mental. Isso permite conceber a linguagem como condição de cognição, e leva-nos a indagar sobre a linguagem como lugar de origem da conduta simbólica " (Smolka, 1995:41-42).

Assumida deste ponto de vista a linguagem traz consigo o saber, os valores, as normas de conduta, as experiências organizadas pelos ante­passados. participando desde o nascimento, no processo de formação do psiquismo.

"Ao nomear os objetos, explicitar suas funções, estabelecer rela­ções e associações, o adulto cria na criança, formas de reflexão sobre a realidade. Está-se destacando a intercomunicação como fator fundamental não apenas na apreensão do conteúdo, mas, igualmente, na constituição do afetivo, do emocional e da cognição" (Palangana, 1995:23).

Os indivíduos de uma mesma cultura partilham um certo sistema de signos (língua, que permite que eles interajam entre si de modo bastante satisfatório). Tais signos - palavras - têm um significado mais ou menos comum para os membros dessa comunidade; entretanto, podem ter senti­dos bastante diversos de uma pessoa para outra. É pela linguagem que se torna possível organizar/agrupar ocorrências, criando categorias conceituais. Neste sentido a linguagem instrumentaliza o pensamento fornecendo conceitos e formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e os objetos do conhecimento, envolvendo sig­nificados e sentidos.

É pela linguagem e na linguagem que se podem construir conheci­mentos. E aquilo que é dito, comentado, pensado pelo indivíduo c pelo outro, nas diferentes situações, que faz com que conceitos sejam genera­lizados, sejam relacionados, gerando um processo de construção de con­ceitos que vão interferir de maneira contundente nas novas experiências que este indivíduo venha a ler. Ele se transforma através desses conheci­mentos construídos, transforma seu modo de lidar com o mundo e com a

cultura e essas experiências geram outras num 'continum' de transforma­ções e desenvolvimento.

A mediação semiótica é que permite também a incorporação do indi­víduo ao meio social e, como consequência, a apropriação deste. Os si­nais provenientes do meio social são captadas por canais (órgãos perceptuais) dos indivíduos. No caso do surdo, ele deve se apropriar da cultura da comunidade em que está inserido, através do mediador semiótico usado por excelência que é a linguagem oral. Os surdos constituem um grupo minoritário que tem dificuldades de acesso a esse mediador. Con­tudo, eles se apropriam da cultura, mas isso parece ser feito com muitos problemas.

Um trabalho fonoaudiológico que realmente pretenda trabalhar com a linguagem do outro precisa contemplar as questões aqui apontadas. Pre­cisa estar atento aos problemas de linguagem dos sujeitos surdos e a sua dificuldade de acesso à cultura do grupo ao qual pertence. Contudo, o trabalho de oralização e audibilização, tradicionalmente desenvolvido pelos fonoaudiólogos, em geral, não permite uma ação que assuma a linguagem em toda sua amplitude. Reduzindo a 'linguagem' do surdo à sua produção articulatória ele fica privado de um desenvolvimento pleno.

Nesse contexto, a proposta de educação bilíngue, na qual o surdo deve ser exposto o mais precocemente possível a uma língua de sinais, identificada com uma língua passível de ser adquirida por ele sem que sejam necessárias condições especiais de 'aprendizagem', surge como uma proposta de trabalho com língua que permite o desenvolvimento rico e pleno de linguagem e que possibilita ao surdo um desenvolvimento integral. A proposta de educação bilíngue preconiza, ainda, que também seja ensinada ao surdo a língua da comunidade ouvinte na qual está inserido, cm sua modalidade oral e/ou escrita, sendo que esta será ensina­da com base nos conhecimentos adquiridos através da língua de sinais.

O fonoaudiólogo, que pretenda trabalhar com a linguagem, e não apenas com um segmento dela, precisa, então, incorporar a abordagem bilíngue, transformando sua prática na busca de torná-la mais adequada no que se refere ao atendimento integral da pessoa surda.

Mas as mudanças não se fazem de maneira fácil. É preciso descobrir um novo modo de agir, não descrito, ainda por construir, que contemple as necessidades ora expostas. Baseado nos conhecimentos teóricos de­senvolvidos, o cotidiano do trabalho fonoaudiológico pode gerar situa­ções que favoreçam a elaboração de novos conhecimentos.

Desta maneira, focalizar um caso clínico, sua evolução e desafios poderá suscitar alternativas de intervenção que nos abram novas frentes.

Com tais pressupostos passarei a narrar de forma breve a evolução de um caso de uma criança surda que procurou o consultório fonoaudiológico para tratamento.

Fui procurada pelos pais da criança que buscavam um fonoaudiólogo que pudesse ensinar seu filho a falar. Era uma criança de 6 anos que, aos 3 anos teve um quadro de meningite aguda, e que ao final do processo agudo da doença estava irremediavelmente surda(surdez profunda bila­teral). No primeiro ano após a meningite, todo o trabalho desenvolvido objetivou fazer a criança voltar a andar e a refazer seu desenvolvimento motor. Até o momento em que fui procurada, todo o trabalho realizado orientava-se nesta linha. A queixa principal dos pais era a precariedade de sua comunicação com o próprio filho. Queriam saber como agir e o que fazer para que o filho pudesse falar com eles.

Já no primeiro encontro, expus as diferentes abordagens educacio­nais e terapêuticas que se apresentavam para o trabalho com os surdos. Julguei importante contextualizar historicamente a questão dos surdos e o papel ocupado pelas línguas de sinais ao longo da história. Os pais me ouviram atentamente e ao final da sessão o pai me disse: "Não espero que meu filho deixe de ser surdo, espero que ele seja feliz!"

Parti para a avaliação da criança que me pareceu saudável, inteligen­te, intrigante e um tanto "incomunicável'. Ele conhecia uns poucos ges­tos domésticos, e utilizava-se de vocalizações apenas para chamar a aten­ção de seu interlocutor. Seu desempenho em jogos e atividades, porém, deixam ver que era bastante inteligente e que era capaz de elaborar alguns conteúdos relativamente complexos (regras básicas de jogos, etc).

Propus à família então que a criança fosse 'imersa' em linguagem, em uma linguagem que fosse verdadeiramente acessível para ela, conside­rando que seu desenvolvimento de linguagem era fundamental para seu desenvolvimento enquanto sujeito.

Foram propostas aulas de línguas de sinais para os pais e irmãos, e terapias em sinais para a criança. A terapia foi proposta com o objetivo de estimulá-lo o máximo possível em sinais, de uma forma terapeuticamente organizada. Ele poderia ser 'diagnosticado' como um sujeito com atraso de desenvolvimento de linguagem e este atraso poderia ser trabalhado cm um espaço especialmente voltado para isso. Paralelamente, os pais estariam se capacitando no uso de sinais e aos poucos estes passariam a fazer parte de sua rotina, fazendo com que o papel da estimulação tera­pêutica de linguagem fosse revisto com o passar do tempo.

Eu, naquele momento, tinha um domínio precário de sinais e não me sentia como um interlocutor suficientemente adequado para 'ingressá-lo'

na língua de sinais; contudo julgava que meus conhecimentos sobre linguagem e desenvolvimento poderiam ser úteis para aquela criança. Convidei, então, uma intérprete em LIBRAS para trabalhar nas sessões juntamente comigo de modo a oferecer à criança a língua de sinais de uma forma mais estruturada c fluente.

Esta mesma intérprete tornou-se responsável pelas aulas de língua de sinais para a família.

Inicialmente, a criança tinha pouca ou nenhuma atenção para os si­nais, não demonstrava interesse ou curiosidade pelos nossos movimen­tos. Os poucos sinais que fazia eram disformes, mal feitos e ela não acei­tava correções ou interferências. Ela parecia acreditar que nós, adultos, poderíamos adivinhar seus pensamentos e realizar seus desejos sem que ela tivesse que expressá-los. Foram três anos de silêncio, e ausência de uma linguagem estruturada até que esta criança entrasse em contato com os sinais. De que modo ela se comunicou até então? Parece que em certa medida ela teve seus desejos satisfeitos não precisando, ou julgando não precisar expressar-se melhor para alcançar seus objetivos.

Há um exemplo que ilustra muito bem esta situação: Jogávamos, em uma sessão terapêutica, um jogo em que cada um sorteava uma figura, a olhava e sinalizava para os outros de modo que soubessem de que figura se tratava, sem vê-la. Então, todos deveriam procurar numa grande carteia a tal figura em meio a muitas outras. Ele jogava o jogo de forma adequada até que chegou sua vez de sortear uma figura cujo sinal não conhecia. Ele olhou para a figura e olhou para nós esperando que localizássemos a figura correspondente na carteia sem que ele tivesse dado qualquer pista. Quando foi solicitado que sinalizasse algo, ele olhava para a figura c esperava que reagíssemos, parecia de fato acreditar que pudéssemos saber qual era a figura em questão, assim como ele o sabia.

A questão central era com a elaboração/construção de conceitos. Ele aprendia facilmente novos sinais-lexicais e os usava adequadamente, mas em alguns momentos defrontavamo-nos com problemas insolúveis, es­pecialmente quando envolviam conceitos mais amplos, tópicos que não podiam ser meramente mostrados ou desenhados.

Após um mês de trabalho com Guilherme, chegou a data de seu ani­versário e sua mãe trouxe, para a sessão, fotos de sua festa. Ao vê-las comentamos sobre o bolo, sobre os convidados c sobre sua idade. Ao sinalizarmos /6/, que era a idade que estava completando, ele se enfure­ceu, olhava para o sinal/6/ e reagia agressivamente fazendo o sinal l\l com o indicador levantado. Procuramos compreender o que ele queria dizer. Ele desenhou um bolo de aniversário com uma vela cm cima e apon-

tava para a vela exaustivamente como que indicando que só havia uma vela. Eu compreendi que ele se referia à vela e nós a sua idade, mas como fazê-lo chegar a compreender esta questão? Desenhei também um bolo, mas com uma vela com formato de número seis, mas isto não trouxe qual­quer esclarecimento à questão. Passei, então, a mostrar minha idade, es-crevendo-a, a idade da intérprete, a idade de um bebê e etc, mas não conseguimos sair do impasse. Solicitei à mãe, no final da sessão, que trouxesse fotos de seus aniversários anteriores e procuramos em sessões subsequentes resgatar o 'conceito' idade, mas nada pareceu fazer qual­quer sentido para ele. A vela sobre o bolo sempre prevaleceu...

Neste período, Guilherme frequentava duas escolas. Pela manhã, uma escola especial para surdos e à tarde, uma pré-escola para ouvintes. Esta 'opção' de escolarização foi feita pelos pais, buscando oferecer a ele educação especializada e oportunidade de integração social. Não pensei em propor qualquer alteração naquela fase inicial de atendimento, a ques­tão do envolvimento com a língua de sinais já me parecia uma grande tarefa e até o momento Guilherme não parecia ter problemas com suas atividades acadêmicas.

A escola especial que frequentava tinha preferencialmente uma abor­dagem oralista, contudo eu havia sido informada que algumas professo­ras desenvolviam um trabalho de Comunicação Total. Visitando a escola, pude perceber que Guilherme tinha uma professora que usava muitos gestos em sala de aula, numa prática bimodal, e que seus companheiros sinalizavam/usavam gestos intensamente. Foi intrigante notar que Gui­lherme fazia pouco uso de sinais também neste contexto, e que apresenta­va dificuldades em comunicar-se com seus pares e professora.

Tal ponto revela-se importante para salientar o papel do fonoaudiólogo neste caso. A exposição a um ambiente de Comunicação Total não mos­trou-se suficiente para estimular/desvendar para Guilherme o mundo da linguagem, ele mantinha-se reticente c com muitas dificuldades de interagir com o grupo. O trabalho fonoaudiológico, tinha, então, um papel ainda mais importante de despertá-lo para a linguagem e para seus efeitos na constituição de Guilherme enquanto sujeito social.

Na escola regular, Guilherme era descrito pela professora como um aluno que não apresentava problemas, ele compreendia bem as ativida­des e se relacionava satisfatoriamente com os companheiros. Parecia res­ponder às atividades guiando-se por pistas do próprio ambiente, olhando o que faziam outras crianças, etc, e não dava sinais de problemas. Contu­do, tratava-se de um contexto escolar que prioritariamente favorecia o 'brincar' sem pretensão de ensinar conteúdos de forma mais estruturada. Os 'trabalhinhos', quando propostos, envolviam atividades de coorde-

nação motora fina, percepção visual e outros que Guilherme não tinha problemas em resolver.

No contexto terapêutico, ele foi evoluindo bastante bem, ampliando seu conhecimento cm sinais, ampliando suas possibilidades de compre­ender e fazer-se compreender. Ao final de um semestre de trabalho, podi-am-se observar algumas mudanças significativas c a família comentava sobre os progressos na convivência doméstica.

Alguns trabalhos foram dirigidos propositadamente para gerar co­nhecimentos em áreas que pareciam especialmente difíceis para Guilher­me compreender. Foi proposta a confecção de um calendário semanal. com desenhos e fotos das atividades realizadas diariamente, seguido de símbolos (logotipos das escolas, por exemplo) e escrita. Este calendário logo pode ser ampliado para atividades mensais e atualmente ele foi dis­pensado porque Guilherme pode guiar-se pelos calendários comuns loca-lizando-se em relação a eventos escolares e familiares (aniversários, fes­tas, passeios, etc) sem maiores problemas.

Ao final do ano letivo, veio à tona a necessidade de decidir sobre qual seria a melhor opção escolar para Guilherme. Fiz então uma visita à escola especial que informou que no próximo ano Guilherme frequentaria uma classe de pré, onde começariam a ser discutidos aspectos da alfabe­tização, mas que esta só seria concluída após três anos de escolaridade. Professores da escola informaram que a partir de sua experiência com outras crianças surdas, três anos seria o prazo mínimo para que estas pudessem se alfabetizar. Saí de lá com um questionamento: porque levar três anos para alfabetização? Por que prever para todos os alunos surdos esse 'mínimo' de tempo? Quais as dificuldades efetivas apresentadas por Guilherme justificavam esse prazo pré-eslabelecido? Ou tralava-se de uma questão da escola, que não dispunha de uma metodologia adequada para alfabetizar sujeitos surdos e propunha um prazo dilatado?

Em seguida fui visitar a escola regular que Guilherme frequentava todas as tardes. Perguntei, inicialmente, qual tinha sido seu desempenho ao longo do ano. A professora informou que Guilherme desenvolveu-se muito bem e que acompanhou o restante da classe sem problemas. Per­guntei, então, sobre seu ingresso no pré, que naquela escola c orientado para a alfabetização. A professora disse entender que Guilherme não po­deria ir para o pré, porque era surdo e alfabetizar-se para ele seria muito difícil e que ele deveria permanecer no jardim. Levantei questões sobre seu aproveitamento e indaguei se a professora julgava que ele pudesse aprender mais permanecendo no jardim. Ela pareceu confusa e respondeu negativamente. Ele havia seguido bem os conteúdos do jardim, mas al­fabetizar-se parecia descabido para um surdo. Além disso, a escola alfa-

betizava as crianças dentro de uma perspectiva analítico-sintética, valori­zando a separação silábica e a oralização, o que sem dúvida seria uma dificuldade adicional para alguém que não fala, e não ouve.

Estava diante de um problema. As alternativas de escolarização mos-travam-se pré-conceituadas cm relação ao desempenho que Guilherme pudesse apresentar diante da tarefa de alfabetizar-se. Passei, então, jun­tamente com a família, a discutir as dificuldades de inserção escolar de uma criança como Guilherme e a refletir com eles quais as possíveis saí­das. Eu acreditava que ele era suficientemente inteligente para alfabetizar-se, e para aprender quaisquer outros conteúdos, em prazos compatíveis com aqueles gastos pelas crianças ouvintes, desde que estivesse em um ambiente que permitisse/possibilitasse sua aprendizagem. Discutimos sobre abordagens educacionais e sobre metodologias mais ou menos adequadas, e surgiu no contexto de uma discussão a proposta de buscar uma boa escola regular que pudesse receber Guilherme juntamente com uma intérprete de língua de sinais. A ideia era oferecer a ele um espaço educacional preocupado com a questão dos conteúdos a serem construídos, que não 'facilitasse' só porque Guilherme era surdo mas que, ao mesmo tempo, oferecesse tais conteúdos na língua em que ele tinha maior domínio, ou seja, na língua de sinais, c isso só seria possível com a presença de um intérprete.

Inicialmente, fiz contato com três escolas próximas à residência de Guilherme (três escolas particulares, de abordagem construtivista) c ex­pus a situação propondo sua inserção juntamente com um intéprete. Em todos os casos foram colocadas barreiras, foi manifesta uma certa des­confiança sobre a real possibilidade dessa criança inserir-se e aprender. Os argumentos que foram apresentados deixavam entrever preconceito e descrença nas possibilidades de desenvolvimento de uma criança surda.

Assim sendo, parti em busca de uma outra escola regular, que já tivesse tido experiências com 'casos especiais' e que pudesse compreen­der diferentemente o desafio que estava sendo proposto. Encontramos uma escola que mostrou-se aberta para acolher Guilherme, mas perplexa em relação à proposta da presença de um intérprete em sala de aula: "Nós não vamos poder nos comunicar diretamente com ele? Este intérprete ficará por um breve período até que nos adaptemos, não é? Como ele vai se relacionar com as crianças? O que é a Língua de Sinais?" As indaga­ções da escola apontavam para sua compreensão da realidade da criança surda, c mostravam que um longo caminho teria que ser construído para tornar proveitosa a experiência sugerida.

Assim, já com 6 anos e meio, Guilherme passou a frequentar, nessa

escola, uma classe de ouvintes acompanhado de uma intérprete de LI­BRAS. Ela é professora de surdos, tem um domínio razoável da língua de sinais e sentiu-se desafiada pela proposta, pois também nunca havia vivi­do algo semelhante.

Os primeiros meses foram de intensas negociações. A professora, inicialmente, tomou para si a tarefa de comunicar-se com Guilherme (por que ela não deveria?) e espontaneamente começou a desenvolver uma prática de 'comunicação total' cm sua sala de aula, falando e sinalizando com os alunos simultaneamente. Tal prática perdurou apenas por um bre­ve período, pois pudemos ir apontando a precariedade dos sinais utiliza­dos pela professora, a confusão causada pela bimodalidade para a com­preensão dos alunos ouvintes, a incompletude de seus enunciados ora em sinais, ora em português o que a levou a desistir desta prática. A partir daí, a professora cedeu, verdadeiramente, espaço para o trabalho da intér­prete, solicitando-a, valendo-se de sua ajuda e a incluindo nas situações que envolviam Guilherme.

As crianças ouvintes desta sala de aula mostraram-se encantadas com os sinais, em poucas semanas todos dominavam o alfabeto digital e um conjunto mínimo de sinais, usando-os entre si e com Guilherme. A atitude geral das crianças fazia crer que elas não viam qualquer problema naquela situação de interlocução c solicitavam a intérprete sempre que necessitavam de algum esclarecimento.

Guilherme também passou por adaptações importantes. Ele, inicial­mente, parecia dar pouco valor à presença da intérprete na sala de aula, ela precisava chamar sua atenção para que a olhasse c tinha que rever constantemente seu posicionamento em sala, porque ele deslocava-se sem levar em conta as dificuldades que isto poderia gerar para o trabalho da intérprete. Contudo, após alguns meses pode-se observá-lo buscando posições para melhor visualizar a interprete e a valorizar seu trabalho. A própria interpretação foi sendo construída na relação de Guilherme com a intérprete, ele foi aos poucos reconhecendo seu valor e sua necessidade. No início, ele parecia acreditar que era capaz de compreender 'tudo' sim­plesmente por estar presente nas situações.

O papel do fonoaudiólogo nesta inserção foi de grande importância, pois centralizava as discussões com pais, professor e intérprete procu­rando traçar metas comuns que pudessem ser partilhadas por todos aque­les envolvidos no trabalho com Guilherme.

Após seis meses de trabalho nesta escola, c um ano de trabalho terapêutico Guilherme completou 7 anos e então buscamos conversar com ele sobre seu aniversário. Eu, propositalmente, perguntei a ele se

tinha feito sete anos e como se sentia. Ele respondeu (naturalmente) que sim, que tinha sete, e foi dizendo a idade de outras crianças de sua classe mostrando que ele estava mais velho. Era maravilhoso poder observar que o conceito de idade estava ali, presente e estruturado, indicando que os caminhos percorridos estavam dando seus frutos.

No início deste ano, ele ingressou na primeira série. Em sala de aula Guilherme participa ativamente das dinâmicas que se configuram, sendo crítico e capaz de negociar com seus pares interesses e desejos. A classe toda ao ler ou elaborar novas escritas, recorre à datilologia como forma de esclarecer pontos para ele, ou mesmo para esclarecer-se (afinal os sinais configuram-se como um recurso de língua também para os ouvintes). Tais 'trocas' colaboram para que Guilherme aperfeiçoe seus sinais, fique aten­to aos sinais dos outros, etc, valorizando-se e sentindo-se valorizado.

Ele está se desenvolvendo, no que se refere à alfabetização, de forma compatível com as outras crianças da sala de aula. Assumir em classe as suas diferenças, recolhecer a necessidade de ter um intérprete, reconhe­cer o uso de uma outra língua em sala tem favorecido que em meio as diferenças Guilherme possa desenvolver-se 'igual aos demais', aprovei­tando do contato social e acadêmico de maneira semelhante às outras crianças. A educação só pode ser igual para todos se as diferenças de cada um forem consideradas.

As atividades festivas na escola ilustram de maneira especial sua inserção. Para festa do dia das mães ou Natal foram preparadas músicas cantadas em vozes e sinais por todas as crianças, contemplando-se ambas as línguas. A comunidade ouvinte encantou-se com o desempenho das crianças e Guilherme pode participar das atividades integralmente'.

A terapia fonoaudiológica tem agora dirigido-se, também, para o de­senvolvimento de sua oralização. Com base na escrita, nas letras e nas palavras que pode ler e reconhecer, temos tentado construir sua oralização de modo a ler sentido e poder ser compreendida por ele. E fato que ele demonstra pouco interesse por estas atividades, contudo, o trabalho está apenas no início e não se pode precisar que rumos irá tomar. Paralelamen­te ao trabalho com a oralização, segue o trabalho com a linguagem, afinal foram anos de silêncio numa idade em que a linguagem desenvolve-se de forma vertiginosa. Buscamos agora contar histórias, trabalhar com narra­tivas mais complexas, trabalhar com os implícitos da língua, com os jogos de palavra/sinais, com a ironia, objetivando propiciar um domínio cada vez mais amplo de linguagem.

Anteriormente, Guilherme frequentava uma escola especial para sur­dos, mas seu contato com lais crianças não se mostrou suficiente para seu desenvolvimento em LIBRAS. Hoje porém, ele encontra-se distan-

ciado da comunidade surda o que, seguramente, constitui um problema e um desafio, no sentido de buscar grupos de surdos de diferentes idades com os quais ele possa conviver e dialogar. E na comunidade surda que ele terá acesso à língua de sinais cm toda a sua plenitude e poderá desen­volver-se de maneira completa. O trabalho feito até aqui foi pensado para solucionai", diante das condições sócio-culturais impostas, os problemas mais urgentes de interação c linguagem desta criança. Daqui para frente deverá ser pensada sua inserção na comunidade surda de forma mais ampla.

Para finalizar gostaria de fazer algumas considerações. Alguns países vêm desenvolvendo programas de educação bilíngue, mais ou menos estruturados, apontando para sucessos e dificuldades de implantação dos mesmos. Contudo, a proposta bilíngue mostra-se como aquela capaz de dar às pessoas surdas uma possibilidade de acesso à linguagem, de forma ampla. Tal acesso mostra-se fundamental para a constituição de sujeitos plenos e seguros.

A experiência aqui relatada não foi premeditada, mas construída no cotidiano do desenvolvimento desta criança, partindo de suas possibili­dades materiais, afetivo-emocionais, familiares e sociais, buscando na comunidade recursos que pudessem oferecer vivências mais ricas e pro­veitosas para ela.

Contudo, trata-se de uma experiência que pode apontar para novos caminhos no trabalho com as crianças surdas. O surdo merece ser respei­tado em sua condição linguística; na medida em que tal condição é respei­tada, ele pode desenvolver-se, construir novos conhecimentos de manei­ra adequada e satisfatória. Mas, para que isso ocorra, é preciso que se gerem algumas condições especiais, respeitando sua linguagem. E preci­so que os profissionais envolvidos no trabalho com as pessoas surdas reconheçam isso. A fonoaudiologia precisa rever-se, buscar novos mo­dos de atuar. A pedagogia precisa rever-se também, afinal são tantos anos de tentativas infrutíferas que necessitam ser alteradas.

A questão da educação bilíngue é ainda controvertida, gera polémi­cas, mas cada vez mais, tem-se configurado como uma solução viável para o atendimento às pessoas surdas. E nossa tarefa seguir procurando novas formas de implementá-la, buscando soluções para esta problemáti­ca tão intrigante.

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