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WWW.RETRATODOBRASIL.COM.BR | R$ 9,50 | N O 67 | FEVEREIRO DE 2013 retrato doBRASIL LIVRO MODERNISMO, CINEMA NOVO E CINEMA MARGINAL NA OBRA MÁXIMA DE ISMAIL XAVIER TRIBUTAÇÃO O “AJUSTE” QUE PROVOCOU A RECONCENTRACÃO DE RECEITAS NAS MÃOS DA UNIÃO

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WWW.RETRATODOBRASIL.COM.BR | R$ 9,50 | NO 67 | FEVEREIRO DE 2013

retrato doBRASIL

LIVRO MODERNISMO, CINEMA NOVO E CINEMA MARGINAL NA OBRA MÁXIMA DE ISMAIL XAVIER

TRIBUTAÇÃO O “AJUSTE” QUE PROVOCOU A RECONCENTRACÃO DE RECEITAS NAS MÃOS DA UNIÃO

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FALE CONOSCO:www.retratodobrasil.com.br

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Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A.

EDITORA MANIFESTO S.A.PRESIDENTERoberto Davis

DIRETOR VICE-PRESIDENTEArmando Sartori

DIRETOR EDITORIALRaimundo Rodrigues Pereira

EXPEDIENTESUPERVISÃO EDITORIALRaimundo Rodrigues Pereira

EDIÇÃOArmando Sartori

SECRETÁRIO DE REDAÇÃOThiago Domenici

REDAÇÃOLia Imanishi • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Téia Magalhães

EDIÇÃO DE ARTEPedro Ivo Sartori

REVISÃOSilvio Lourenço [OK Linguística]

COLABORARAM NESTA EDIÇÃOJosé Luiz Ferreira Cavalcanti • Laerte Silvino • Leandro Saraiva • Renato Pompeu • Robinson Nelson dos Santos

FOTO DA CAPASO BFT João Batista de Lima/IAE

REPRESENTANTE EM BRASÍLIAJoaquim Barroncas

ADMINISTRAÇÃOMari Pereira • Maria Aparecida Carvalho • Mariluce Prado • Neuza Gontijo

DISTRIBUIÇÃO EM BANCASGlobal Press

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30 DA ESTÉTICA DA FOME À ESTÉTICA DO LIXO, DA ALEGORIA DA ESPERANÇA À ALEGORIA DO DESENGANOObra reeditada de Ismail Xavier é a mais importante contribuição da crítica cinematográfica brasileira [Leandro Saraiva]

34 COMO SÃO PAULOINVENTOU CRISTOLivro de jornalista da BBC conta que Jesus existiu, só que muito diferente da imagem consagrada que temos hoje[Renato Pompeu]

38 O VERDADEIRO PAPEL DA MÍDIA É ESCLARECER OU CONFUNDIR?Nas últimas décadas a mídia tem funcionado mais como venda nos olhos e tampão nos ouvidos das pessoas[Renato Pompeu]

40 O TEOREMA DE PITÁGORAS DE QUEM ERA REALMENTE?Obra sobre a história da matemática vai além do almanaque e atualiza bibliografia cansada que valoriza a tradição europeia[Robinson Nelson dos Santos]

5 Ponto de Vista É UM ATALHO.MAS, PARA ONDE?Antes estratégica, a Missão Espacial Completa Brasileira segue sem rumo e foi substituída por um plano que se pretende comercial

8 O PLANO MUDOUNossa repórter mostra por que a Missão Espacial Completa Brasileira não vingou como o esperado[Tânia Caliari]

16 A DIVISÃO DO BOLODevido ao ajuste fiscal não desmontado dos governos neoliberais, a maior parte das receitas fica nas mãos da União[Téia Magalhães]

20 A DESIGUALDADE, AGORA,É O XIS DO PROBLEMAO Partido Comunista da China governará o país a partir de março com Xi Jinping, de sua quinta geração de líderes[Raimundo Rodrigues Pereira]

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Ponto de VistaOutubro, 1987: o presidente José Sarney com os ministros Rubens Bayma Denys, Moreira Lima e Leônidas Pires acompanham o lançamento do foguete Sonda IV

É um atalho.Mas, para onde?A Missão Espacial Completa Brasileira era um programa estratégico para o País. Foi substituída por um plano casuístico, que se pretende comercial, mas não se sabe para onde ele vai

O PROGRAMA ESPACIAL BRASILEI-RO tem uma história de conflitos e con-tradições. Pode-se dizer que um de seus criadores, no início dos anos 1950, é o brigadeiro Casemiro Montenegro (1904–2000), o primeiro comandante militar do então Centro Técnico de Aeronáutica (CTA) — hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, subordinado ao comando da Força Aérea Brasileira — e idealizador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, uma das mais famosas escolas de engenharia do País, ambos situados num campus próximo à rodovia Presidente Dutra, na entrada da cidade paulista de São José dos Campos. Montenegro foi afastado do comando do CTA em 1965, não apenas por não fazer parte da ala militar vitoriosa com o golpe que depôs o presidente João Goulart, no início de 1964, mas também por não concordar com o rumo que se pretendia imprimir àquela base militar, de funcionar quase como uma oficina de reparos e ma-nutenção dos aviões do então Ministério da Aeronáutica.

A troca de Montenegro pelo briga-deiro Castro Neves, um oficial anticomu-nista linha-dura, que impôs um regime de quartel também aos civis, alunos e professores da escola de engenharia, levou a instituição à sua “pior hora”, como diz a publicação oficial da entidade de antigos alunos do ITA, que fez em 2001 um apanhado daqueles aconteci-mentos. Os próprios reitores da escola acabaram conspirando contra Castro Neves — foram quatro em menos de um ano e um dos últimos se encontrou secretamente com o então presidente, o general Castello Branco, para defen-der a substituição do homem que via conspiração comunista por toda parte. Foi então que surgiu na nossa história um herói improvável, o brigadeiro Paulo Victor da Silva (1921–2009), que dirigiu o CTA de 1966 a 1973. Participante do grupo de oficiais da Aeronáutica que deu cobertura ao jornalista Carlos Lacerda na conspiração que levou ao suicídio do presidente Vargas, Paulo Victor não só pacificou a escola como foi decisivo tan-

to nos esforços que levaram ao decreto de criação da primeira grande fábrica de aviões do País, a Embraer, em 1969, como na criação das bases para um programa espacial independente brasi-leiro, com acordos industriais e bolsas de estudo para várias dezenas de enge-nheiros e cientistas saírem pelo Brasil e mundo afora com a missão de ajudar a equacionar as questões tecnológicas centrais para a construção de foguetes brasileiros capazes de colocar em órbita satélites também feitos no País.

Do CTA de Paulo Victor saíram proje-tos como o Pequeno Computador Digital, para provar a possibilidade de projetar e construir computadores no Brasil; o desenvolvimento dos primeiros esboços de um reator nuclear brasileiro pelo comandante da Marinha Othon Pinheiro, que acabou sendo a saída para a criação de tecnologia nuclear local, depois que fracassou o Acordo Nuclear Brasil–Ale-manha de 1975; e o desenvolvimento e mesmo a criação de várias empresas de tecnologia avançadas. Grande parte

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do que o CTA tinha em escala de labora-tório para a metalurgia de metais espe-ciais necessários ao programa espacial, por exemplo, foi replicada, em escala industrial, em empresas com as quais o centro fez acordos, como Bardella, Villares, Usiminas, Termomecânica e Termometal. Surgiram a Tecnasa, para a fabricação de radares, posteriormente envolvida no projeto do AMX, um avião militar a ser desenvolvido num acordo Brasil–Itália; a Mectron, da fusão de pequenos fabricantes de mísseis, que desenvolveu o Piranha, uma arma ar-ar, guiada pelo calor da radiação infraver-melha emitida por seu alvo.

Numa das quatro grandes entrevis-tas dadas à publicação dos ex-alunos do ITA, já citada, Paulo Victor passou em revisão o programa Sonda, que começou com um foguete lançado pela Avibras, uma empresa privada, em 1965. Expli-cou que o desenvolvimento da família Sonda transformou-se num programa estatal, sob sua gestão. O Sonda I era, digamos assim, um foguetinho copiado de um modelo americano, de menos de 4 metros de altura, 60 quilos de peso, 12 centímetros de diâmetro e capaz de carregar uma carga útil de menos de 5 quilos. Mais de 200 dele foram lançados entre 1965 e 1977, quando foi aposentado. O Sonda I foi seguido no CTA pelo II, ainda sob a gestão dele e, depois, pelo III e pelo IV. O Sonda IV, já previsto, mas iniciado de fato três anos após Paulo Victor sair do CTA, já era uma máquina de respeito: 11 metros de altura, peso de 7,3 toneladas, variando entre 0,5 e 1 metro de diâmetro, nos quatro foguetes que foram construídos com capacidade de levar uma carga útil de até 500 quilos a 730 quilômetros de altura. Tinha 2 mil peças mecânicas, o dobro do Sonda III; usava um novo tipo de aço, que, além do ferro e do carbono normais, tinha cromo, níquel, molibdê-nio e alto teor de silício, o que lhe dava resistência maior, mais maleabilidade, soldabilidade e estabilidade dimensional e, ainda, mais usinabilidade, ou seja, fa-cilidade de ser trabalhado nas máquinas operatrizes, como tornos e fresadoras. Com o Sonda IV foi construída também a primeira Torre Móvel de Integração, para posicionamento vertical do fogue-te no lançamento, indispensável para foguetes maiores, que não podem ser lançados sobre trilhos colocados em rampas inclináveis. Paulo Victor, apo-

sentado em 1981, foi convidado para assistir ao terceiro lançamento de um Sonda IV, no dia 8 de novembro de 1987, na base de Barreira do Inferno, perto de Natal. No lançamento estavam também o presidente José Sarney, o ministro do Exército e outras autoridades. Paulo Victor explica ao repórter. “É um fogue-te de quatro estágios. No primeiro, são quatro propulsores em torno da carcaça central. No lançamento, me lembrei de que nós começamos tudo há mais de 30 anos. Um propulsor do primeiro estágio apagou. Mesmo assim, o Sonda IV subiu sob controle. Tivemos de destruí-lo, mas o controle direcional funcionou. Tínha-mos um foguete guiável.” Paulo Victor interrompe a conversa por segundos. Tem os olhos cheios d’água. Busca se controlar. Retoma a narrativa. “É um resultado fantástico. Só de lembrar me

emociono. Muita gente não vibra com isso, não sabe avaliar.”

O redator do texto do livreto da AEITA (Associação dos Engenheiros do ITA) escreveu, então, com razão: “Paulo Victor é um militar. Militar não é gente simples de entender. Militar é gente que pensa na defesa do Brasil, da Pátria. Coisas meio fora de moda hoje, quando se difunde a tese de que militar deve cui-dar das PMs, ocupar morros de favelas rebeladas, impedir que narcotraficantes entrem na Amazônia. Militar tem que cuidar da produção, do controle e do disparo de armas. Todo mundo gosta da paz. Mas a história das nações não é só de paz. As nações mais fortes se impõem às mais fracas. Paulo Victor é um nacionalista, desses que acham que é preciso voltar a cantar o Hino Nacional

O atalho prevê pelomenos um milagre:

seríamos oprimeiro país a desenvolver

tecnologias sensíveispara a sua defesa

num empreendimentoapenas comercial

nas escolas. ‘O País precisa de determi-nação, de perseverança’”.

Em 1979, o programa de foguetes da época de Paulo Victor deu um salto de qualidade, transformou-se na Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), vi-sando construir um Veículo Lançador de Satélite (VLS), com capacidade de colocar em órbita satélites artificiais da Terra. O desenvolvimento de foguetes espaciais capazes de colocar uma carga mais pe-sada em órbita significa ter a capacidade de colocar em órbita também uma carga nuclear, para uma ação militar.

A história dos últimos anos é prova cristalina dessa conclusão. A primeira bomba atômica foi despejada pelos americanos sobre Hiroshima em 1945. Em 1949, a URSS construiu a sua. Em 1952, os americanos produziram a bomba H, a superbomba, baseada nos mesmos mecanismos que promovem a queima de hidrogênio no centro do Sol com monumental liberação de energia. Em 1953, os soviéticos repetiram o feito. E com um avanço em relação à experi-ência americana: a bomba era do tipo delivery, não era um trambolho pesadão que precisava ser carregado por uma superfortaleza voadora, lenta e vulne-rável; podia ser carregada na ponta de um míssil suficientemente potente. Os soviéticos tomam, então, a dianteira na construção desse míssil.

Projéteis à base de sal, carvão e enxofre são quase tão velhos quanto as civilizações. Aparentemente os chineses foram os primeiros a utilizar militar-mente armas com esse princípio, na sua tentativa de conter a invasão mongol, por volta do ano 1232. Bagdá, dizem as enciclopédias, teria sido capturada pelos mongóis em 1258 com o auxílio dessas armas. Os árabes, por sua vez, elabora-ram um manual com 107 receitas para essas armas. Mas o seu desenvolvimen-to espetacular é o que se segue ao fim da Segunda Guerra Mundial, com a captura de várias centenas de técnicos alemães que tinham desenvolvido as bombas V2, mísseis capazes de transportar uma to-nelada de explosivos à distância de 300 quilômetros e que foram usados pelos nazistas para bombardear a Inglaterra.

As V2 foram desmontadas e recons-truídas pelos americanos e soviéticos a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, com o auxílio desses técnicos e cientistas alemães capturados no final do conflito. Os russos saíram na frente com um fo-

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guete de 30 metros de altura, 3 metros de diâmetro e 270 toneladas de peso, que em outubro de 1957 levou uma carga de 50 quilos, o Sputnik, à órbita terrestre, criando, assim, o primeiro satélite artifi-cial da Terra. E continuaram na vanguar-da ainda mais espetacularmente quando colocaram em órbita, em abril de 1961, com um foguete maior e mais pesado, uma cápsula de 4,7 toneladas, na qual estava Yuri Gagarin, o primeiro homem a dar uma volta numa espaçonave em torno da Terra. O peso da cápsula era su-ficiente para carregar a bomba H delivery dos soviéticos — era, portanto, o primeiro foguete guiável, capaz de ser lançado da URSS para mergulhar contra o território americano e atingi-lo em poucos minutos, sem chance de defesa.

Os americanos deram a volta por cima em 1969, oito anos depois, tam-bém espetacularmente. Com projeto do engenheiro líder do plano da V2 nazista, Werner von Braun, levado para os EUA no pós-guerra, construíram a família dos poderosos Saturnos, foguetes de 110 metros de altura, o equivalente a um edifício de 34 andares, diâmetro de 10 metros, com um peso de 2,8 mil tone-ladas e capacidade para levar à orbita terrestre 45 toneladas. Com o Saturno V, três americanos foram à Lua e volta-ram, entraram na órbita lunar e um deles desceu ao satélite terrestre, diante de centenas de milhões de espectadores.

No Brasil, em 1979, quando a MECB foi anunciada, o País começava um ciclo de estagnação e incerteza. A inflação disparou, massas de trabalhadores fo-

ram à greve e o governo militar teve de aprofundar um recuo iniciado em 1974, quando o partido oficial do governo — a Arena — sofreu grandes e inesperadas derrotas nas urnas para o outro partido oficial criado pela ditadura — o MDB. Em 1982, o País quebra, vergado sob o peso de enorme dívida externa. Além disso, a inflação começa a dar saltos. O grande movimento de massas por eleições diretas leva a um governo de compromisso que elege presidente, num colégio eleitoral, o senador mineiro Tancredo Neves, do PMDB, e, como vice, José Sarney, do PFL, parte da Arena que se desgarrou do regime militar nos seus estertores.

O governo Sarney mal tocou o Sonda IV. O VLS — a família de fogue-tes específica para a MECB, como seu próprio nome diz — foi indo devagar, quase parando. Ficou em grande parte na teoria: teve cinco revisões concei-tuais ou de definição ao longo de 14 anos: em 1984, 1986, 1988 e 1994. Para agradar os americanos, em setembro de 1990, o presidente Fernando Collor de Mello, pessoalmente, jogou uma pá de cal no Campo de Provas Brigadeiro Veloso, coincidentemente, o grande amigo de rebeliões de Paulo Victor. Num gesto para a mídia, ele fechou a boca de um túnel no qual, supostamen-te, os militares planejavam detonar uma arma nuclear de um programa militar paralelo. Em 1994, o governo de Itamar Franco resolve criar a Agência Espacial Brasileira, em cujas atribuições aparentemente estaria a MECB, mas a

agência, de fato, não tinha qualquer poder executivo e era apenas um ór-gão de assessoramento do Ministério da Ciência e Tecnologia. Finalmente, o governo Lula propôs um atalho imagi-nado para chegar mais cedo ao difícil conhecimento técnico necessário para o País tornar-se independente no cam-po da criação de foguetes e de satélites espaciais: criou uma joint venture com a Ucrânia para, a partir de Alcântara, a base brasileira próxima da linha do Equador, realizar o lançamento de foguetes daquele país. E escolheu um contratador principal para encomendar as partes dos sofisticados satélites geoestacionários. A associação com os ucranianos teria a vantagem de nos fornecer tecnologia através de um negócio que poderia ser lucrativo, visto que Alcântara tem a grande vantagem de ser a base para lançamento de saté-lites mais próxima da linha do Equador. Além disso, a compra de satélites de comunicação permitiria que a indústria brasileira entrasse pelo menos em sub-contratos de partes a serem encomen-dadas a empresas estrangeiras com a tecnologia. Se isso vier a dar certo — no que não acreditamos —, faríamos dois milagres: seríamos o primeiro país a desenvolver tecnologias sensíveis para a defesa nacional num projeto comercial de lançamento de satélites e apreenderíamos a fazer satélites mais sofisticados encomendando satélites dos outros. Este nosso ponto de vista se sustenta com a história “O plano mudou”, a partir da página 8.

O ex-presidente Collor, na base militar de Cachimbo, Amazônia, e os garotos em São José dos Campos: ele jogou a pá de cal; eles ainda tentam

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Nos anos 1970, era a Missão Espacial Completa Brasileira, para a construção de satélites, foguetes espaciais e uma base

para seu lançamento no País. Agora, parece um atalho em busca do domínio de tecnologias, mas não se sabe bem como

por Tânia Caliari

Tecnologia

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“DEZ, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1.” Ao fi nal da contagem regressiva, um clarão ilumina a noite recém-chegada ao litoral de Alcân-tara, no Maranhão. É 8 de dezembro e o lançamento de um foguete carregando um conjunto de aparelhos científi cos na sua ponta é a última missão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) no ano de 2012. Há uma emoção contida de início. Poucos na plateia formada por técnicos, ofi ciais da Aeronáutica, jornalistas e civis convidados, reunidos na sacada do Centro Técnico da base, aplaudem no momento em que o foguete decola longe dali e o es-trondo da explosão faz-se ouvir segundos depois. Onze minutos e 13 segundos após a decolagem, no entanto, há aplausos e vi-vas quando mais de uma dúzia de técnicos, presentes no ambiente envidraçado da sala de controle, onde seis grandes monitores exibem imagens da trajetória do foguete e dados da missão científi ca a ser realizada, cumprimentam-se pelo êxito da operação.

O tenente-coronel Demétrio Santos, engenheiro aeronáutico, deixa a sala de controle para falar com os jornalistas. Está visivelmente satisfeito. A missão foi um sucesso. Ele diz: “Esse foi o foguete mais complexo que lançamos este ano. Foram seis foguetes de treinamento básico, um foguete de treinamento intermediário e agora esse, de porte maior.” Outro militar, o coronel da Aeronáutica Luiz Medeiros, do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, de São José dos Campos, ao qual a base de Alcântara é subordinada, completa a explicação. A missão deu certo não só pela oportunidade de testar o desempenho do foguete mas também os equipamentos de emissão e recepção dos dados do voo e dos experimentos embarcados. “Foi um voo suborbital”, diz. Ou seja: a carga saiu da atmosfera, mas não entrou em órbita. O foguete subiu, chegou a uma altura de 480 quilômetros e desceu, descrevendo uma parábola; a carga útil, caída no mar a 327 quilômetros da base, não foi recuperada. “Por isso temos que receber em terra os dados dos experimen-tos feitos lá em cima, por telemetria.” E tudo isso foi feito naqueles 11 minutos e 13 segundos depois do lançamento, antes dos aplausos.

Situada na cidade colonial de Alcântara, fundada por franceses no século XVII, perto de São Luís, a capital maranhense, a base fi ca a 2,2 graus sul de latitude e é a mais próxima da linha do Equador. Esse privilégio geográfi co permite que os foguetes aproveitem melhor a rotação da Terra em torno de seu eixo para superar a

atração gravitacional e sair da atmosfera do planeta usando menos combustível, com custos menores de operação. Como mostra o mapa nesta página, por exemplo, o centro de lançamentos de foguetes europeu de Kourou, na Guiana Francesa, o segundo melhor em localização, fi ca a 5 graus de latitude norte.

O lançamento desse foguete de fi m de ano, cujo nome técnico mais preciso é VS30/ORION V10, é considerado um evento importante pelas autoridades brasileiras. Foi uma operação com duração de um mês. Envolveu 210 servidores entre civis e militares, além de técnicos alemães que operaram uma estação móvel de te-lemetria. Em princípio, ele é parte de um plano maior, a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), cujas origens remontam há cerca de meio século e cujo objetivo é

assegurar a capacidade de o País ter auto-nomia científi ca e tecnológica nessa área crítica para a defesa nacional e as teleco-municações: ser capaz de produzir, aqui, satélites espaciais e seus foguetes lançadores e ter uma base de lançamentos equipada e consolidada. A base de lançamento existe – é Alcântara, que, apesar de um acidente grave, do qual logo se falará, já está sendo totalmente reparada. Satélites o Brasil já fez: o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) desenvolveu alguns, simples, de pequeno porte, ainda nos anos 1990, para coleta de dados.

O problema principal são os foguetes. É o que se pode perceber das explicações que o coronel Medeiros e o tenente-coronel Santos deram aos jornalistas logo após o lançamento em Alcântara. “Por que VS30/

ORION e por que V10?” O coronel Me-deiros faz a pergunta e ele mesmo responde a ela, contando a história a partir do foguete lançado agora. Ele tem duas partes: o motor VS30, desenvolvido pelo Brasil, e o motor Orion, doado pela Alemanha e de fabri-cação americana. O V10 é porque se trata do décimo veículo com essa confi guração a ser lançado. O VS30 é herdeiro de uma família de foguetes desenvolvidos pelo Brasil desde os anos 1960 para, no início, fazer sondagens meteorológicas. O domí-nio dessa tecnologia serviu de base para o desenvolvimento do primeiro modelo nacional de foguete capaz de colocar um satélite em órbita, o VLS, programado no início dos anos 1980.

Todos os que ouviam o coronel Me-deiros sabiam que essa família de foguetes, básicos para a MECB – daí seu nome, VLS, de Veículo Lançador de Satélite –, tem um história conturbada. O primeiro lançamento foi feito quase 20 anos depois. E foram três tentativas, a partir de 1997. E três fracassos; o último deles em agosto de 2003, uma grande tragédia. Dois dias antes do lançamento, o motor do primei-ro estágio do foguete entrou em ignição inesperada e explodiu no momento em que técnicos ajustavam equipamentos na Torre Móvel de Integração (TMI), uma estrutura de 33 metros de altura, onde o foguete é ajustado para o disparo. A torre foi inteiramente destruída e 21 técnicos e engenheiros morreram. A pergunta, então, era esperada: “E quando vamos ver o lan-çamento do VLS?”, pergunta o repórter da afi liada da Rede Globo na região.

Quem explica é o coronel Santos. Pau-listano formado em engenharia aeronáutica, há tempos ele está no setor espacial. Em 2006, dedicava-se, nos laboratórios do Ins-tituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), em São José dos Campos, a desenvolver uma turbina de pequeno porte para veículos não tripulados, visto que o Brasil, mesmo tendo uma grande fabricante de aviões pequenos e médios, a Embraer, não domina a tecnologia de fabricação de turbinas e de muitos ou-tros equipamentos aeronáuticos. Em 2008, assumiu a gerência do projeto VLS. Santos conta o que aconteceu após o acidente: “Uma comissão de consultores russos veio ao Brasil, analisou os estragos e indicou como a base deveria ser recuperada para que a gente pudesse voltar aos lançamentos.” O CLA passa agora por obras fundamentais, como a construção do prédio de depósito de propulsores, o prédio de combate a in-cêndios e a reforma do prédio de preparação dos lançadores.

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“E quando será o lançamento do VLS com uma carga útil, com um satélite?” San-tos detalha, primeiro, as dificuldades para esse lançamento. Explica: a qualificação de sistemas espaciais é um longo processo de testes, em solo, laboratórios ou espaço. Os testes devem certificar a qualidade e funcio-nalidade de cada subsistema do foguete. O primeiro voo do VLS, previsto para 2014, ainda não será para colocar um satélite em órbita, e sim para qualificar o Sisnav, o sis-tema de navegação desenvolvido pelo IAE, que dará direcionamento ao foguete depois que ele subir. “E o lançamento?”, insistem os jornalistas. Santos começa a responder, mas pondera: “A previsão é… Tudo depen-de de verba e orçamento. Para 2013, foram solicitados 60 milhões de reais. Vamos ver. Para 2012, também foram solicitados 60 milhões, mas foram recebidos 15 milhões. Em 2011, pedimos 50 milhões, recebemos 16 milhões.” Segundo o tenente-coronel, o IAE teria como fazer dois veículos ao mes-mo tempo, um para a qualificação do Sisnav e outro para o lançamento com satélite, mas isso não está ocorrendo.

Ao longo da entrevista, vão se expli-citando as dificuldades da operação para construir o VLS. É necessário, por exemplo, um novo foguete a cada voo, visto que a maioria é usada apenas uma vez. Por falta de verba, o IAE está trabalhando num veículo só; então, o primeiro será só para qualifica-ção. E o lançamento completo – levando

um satélite que está sendo desenvolvido pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) – não será em 2014, como previsto. Depois de 30 anos de desenvolvimento, a despeito de algumas conquistas, o VLS é considerado um projeto velho, que nem atende mais às necessidades das missões espaciais previstas para os próximos anos: a colocação em órbita de diferentes satélites de mais de uma tonelada, mais pesados do que a capacidade de lançamento do VLS-1.

Um relatório internacional publi-cado em 2009, o Futron’s 2009 Space Competitiveness Index, que

reúne índices de competitividade de pro-gramas espaciais de dez países, aponta os melhores indicadores do Brasil nessa área como resultado de investimentos, infraes-trutura e formação de recursos humanos decorrentes da MECB e do programa de desenvolvimento de satélites em parceria com a China, nos anos 1980. CBERS é a sigla. “O Brasil tem visto sua posição de-clinar em relação a outras nações líderes do setor espacial e não possui uma estratégia clara e compromisso de investimento em atividades espaciais”, diz o relatório. Em meados de dezembro do ano passado, a Coreia do Norte anunciou que seu foguete Unha-3 colocara em órbita a segunda ver-são do satélite Kwangmyongsong-3. Toda a tecnologia foi desenvolvida no país, a despeito de ele ser pequeno e pobre e de

viver praticamente isolado por uma série de embargos econômicos e tecnológicos. A Coreia do Norte faz parte hoje do grupo de países que dominam três dos cinco pontos que fazem uma potência espacial. Segundo Paulo Moraes, presidente da Associação Aeroespacial Brasileira e engenheiro do IAE, quando se fala em programa espacial completo, fala-se da capacidade que os pa-íses devem ter para desenvolver satélites e lançadores, ter centro de lançamento, enviar um artefato para o espaço que volte são e salvo para a Terra e, finalmente, executar um voo espacial tripulado.

“Só existem três países que dominam esses cinco pontos: os EUA, a Rússia e a China”, diz Moraes. A Europa, com vários países consorciados na Agência Espacial Europeia (ESA), domina quatro desses pontos. Falta capacidade para voos tripu-lados. A Índia, que iniciou seu programa espacial na mesma época em que o Brasil o fez, também tem esses quatro pontos, tendo, já em 2007, colocado em órbita e recuperado, intacta, uma cápsula espacial. O Japão também já atingiu esse estágio. Depois vêm os países que dominam três pontos, como Israel, Irã e a Coreia do Nor-te, e, finalmente, os países com apenas dois pontos, como a Ucrânia, que tem satélite e lançador, mas não tem base própria de lançamento; a Coreia do Sul, com base e satélite, mas que ainda tenta construir o lançador; e o Brasil, que, como a Coreia

Durante o lançamento do VS30/ORION V10em Alcântara, a pergunta que não quis calar: equando subirá o veículo lançador de satélite?

O coronel Medeiros e o tenente-coronel Santos: satélites o Brasil já fez, base, o Brasil já tem; o problema, agora, são os foguetes

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do Sul, também não tem lançador ainda. A transferência de tecnologia de um país para outro tem tudo a ver com questões estratégicas do desenvolvimento nacional. Em 1990, por exemplo, os EUA impediram que suas empresas continuassem a prestar serviços para o tratamento térmico em peças que constituíam o motor do VLS.

Além da resistência externa, há muitos, mesmo entre cidadãos brasileiros, que questionam: para

que foguetes? Para que satélites num país pobre como o Brasil? Ao terminar de falar ao telefone celular e checar uma informação na internet, o ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e vice-presidente do PSB, Roberto Amaral, retoma uma entrevista que cedia a RB em São Paulo sobre o tema. “Você viu? Eu estava falando ao celular e navegando na internet. Nós precisamos de um programa espacial porque quem não tiver soberania sobre sua própria comunicação não exis-tirá mais.” Amaral, que quando ministro defendeu o direito de o Brasil ter o do-mínio sobre a bomba atômica, vai além, lembrando que a tecnologia de foguetes e satélites pode ser usada para fins pacíficos e comerciais, mas não é neutra. “Como você acha que o mundo moderno vai vigiar suas fronteiras? Com binóculo? Como vamos vigiar o desmatamento da Amazônia? Como vamos prever ciclones, tempestades, secas? Como vamos controlar a aviação civil? Com o antigo código Morse? Como vamos controlar a Força Aérea? Como os submarinos que deverão proteger o pré-sal vão ser guiados? Tudo isso é por satélite! E quem vai fazer os nossos satélites? E por quem vão ser lançados? E por quanto? Vamos ficar na dependência do poderio de fora?”, ele pergunta.

O Brasil, embora seja o oitavo em termos econômicos, é o 23º país em in-vestimento espacial, considerando o gasto de cada país em relação ao respectivo PIB. Segundo dados divulgados pelo mesmo Amaral em artigo de 2011, os recursos alocados para investimento no programa espacial brasileiro não passavam de 0,01% do PIB do País, ou seja, cerca de dez vezes menos que a França, a Rússia e a China. Amaral reconhecia que, depois dos grandes cortes do programa durante os governos Collor e FHC – em 1999, o orçamento para o programa espacial brasileiro foi de 1,6 milhão de dólares –, houve uma retomada de investimentos. Em seus dois governos, Lula dedicou ao programa 110 milhões de

dólares, em média. Nos dois primeiros anos do governo Dilma Rousseff, a média foi de 200 milhões.

Mas ainda é muito pouca grana. Mora-es, já citado, em 1989, liderava no IEA uma equipe de 18 pessoas no desenvolvimento aerodinâmico do VLS. Hoje essa equipe tem quatro funcionários. Moraes está, desde 2004, à frente do projeto de concepção de novos foguetes lançadores que virão depois do VLS, a família Cruzeiro do Sul. Dos cinco foguetes planejados originalmente em 2005, o programa aposta agora em dois. Moraes vai tocando o projeto com a ajuda de três estudantes bolsistas. “Não podemos dizer que não estão dando dinheiro. Todo dia tem três grãos de feijão, dez de arroz e um fiapo de carne. Vamos morrendo aos poucos, de inanição.”

O que tem a dizer sobre isso o presi-dente da Agência Espacial Brasileira (AEB), aparentemente responsável pelo nosso pro-grama espacial? José Raimundo Coelho é físico de formação e trabalhou no Inpe por muito tempo, onde assumiu, entre outras funções, a coordenação do programa de sa-télites CBERS e a chefia da cooperação in-ternacional do instituto. Depois foi chefe de gabinete de Marco Antonio Raupp, quando este foi diretor do Inpe nos anos 1980, e o substituiu como presidente da AEB quan-do ele assumiu o MCTI, no início do ano passado. RB o ouviu em Alcântara, um dia antes do lançamento do foguete citado na abertura de nossa história. Coelho é homem de confiança do ministro Raupp e está em sintonia com o seu pensamento, que pode ser formulado em dois pontos: 1) o Brasil não pode mais seguir seu programa espacial sozinho; precisa de parceiros internacionais que lhe forneçam tecnologia; e 2) o Brasil continua perseguindo os objetivos da MCEB, isto é, consolidar a área de satélite, desenvolver um lançador próprio e ter suas bases de lançamento. Esses dois propósitos são conjugados ou contraditórios? A AEB, por definição funcional, “é responsável por formular e coordenar a política espacial bra-sileira” e se apresenta para o público, em seu site na internet, como tendo a tarefa de “dar continuidade aos esforços empreendidos pelo governo brasileiro, desde 1961, para promover a autonomia do setor espacial”. Coelho diz que a AEB, sozinha, não con-segue atender às demandas do VLS-1. Diz ainda que o Plano Plurianual do governo, para o período 2012-2015, não contempla o orçamento solicitado para o VLS-1.

Há, aparentemente, um grande pro-blema de direção no programa espacial

brasileiro. Embora a AEB tenha a tarefa de formulação e coordenação do programa, não tem qualquer ascendência sobre os braços do governo que o executam, muitas vezes em ações desconexas. A agência é como uma assessoria do MCTI. O Inpe não é subordinado à AEB, mas, sim, também ligado diretamente ao MCTI. O IAE e os centros de lançamento de foguetes, o de Alcântara e o de Barreira do Inferno, são órgãos do Ministério da Defesa, subordina-dos ao Comando da Aeronáutica.

Em 2004, a área aeroespacial foi definida, juntamente com o setor nuclear e o de tecnologia de infor-

mação, como estratégica pelo plano da Es-tratégia Nacional de Defesa, que reafirmou a necessidade de o País “garantir a autono-mia de produção, lançamento, operação e reposição de sistemas espaciais”. O progra-ma espacial brasileiro está inserido também no documento Estratégia Nacional para Ciência, Tecnologia e Inovação, de 2011, como um dos programas prioritários dos chamados “setores portadores de futuro”. A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República vem dedicando debates e estudos sobre o programa. Desde a criação da AEB, os agentes do programa se dedicam a elaborar o PNAE (Programa Nacional de Atividades Espaciais), que define projetos a serem realizados e os inclui em estimativas orçamentárias do País. O PNAE vale por dez anos e é revisado periodicamente, mas não se pode concluir que ele tem o status de um programa de Estado, com orçamento e prioridade dignos de uma política estratégica, argumenta RB com o presidente da AEB.

Coelho contra-argumenta dizendo que, na última revisão do PNAE, feita em 2012, o orçamento para a área foi multiplicado por três. “Nosso orçamento tem sido de 300 milhões de reais, em média, nos últimos anos e a partir de 2013 será da ordem de 900 milhões.” Mas esse aumento vai finan-ciar, sobretudo, dois projetos vistos por ele como parcerias internacionais para o Brasil obter tecnologias. A pergunta é: como isso ocorrerá? A resposta: 1) com a compra de satélites geoestacionários de comunicações, através da Visiona Tecnologia Espacial (joint venture entre a Embraer, ex-estatal, privatizada, com 51% das ações, e a estatal Telebras, com 49%), e graças ao acordo para o lançamento de foguetes trazidos da Ucrânia para serem lançados de uma nova base, que está sendo construída numa parte da área da base de Alcântara, por meio da

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empresa binacional Alcantara Cyclone Spa-ce (ACS), que visa à conquista de parte do mercado global de lançamento de satélites.

No orçamento para 2012, a ACS teve 135 milhões de reais. Para a compra do primeiro dos saté-

lites geoestacionários estão previstos 900 milhões de reais. De um modo geral, o desenvolvimento de foguetes é a parte mais cara. A Índia, por exemplo, que tem um orçamento para seu programa espacial de mais de 1 bilhão de dólares por ano atu-almente – equivalentes a mais de 2 bilhões de reais –, dedica cerca de 40% desse total para o desenvolvimento de foguetes. Para o VLS, em 2012, foram destinados apenas 16 milhões de reais. Sendo esse o programa realmente nacional de desenvolvimento de tecnologia, não é uma desproporção muito grande? O presidente da AEB responde a RB. Ele diz que as novas ações não preju-dicam as demais, porque já chegaram com recursos próprios. Então, conclui a repórter, não é o caso de o plano espacial passar a contar com mais recursos, mas, sim, de outros planos terem passado a fazer parte dele. Ao admitir que não há recursos para tocar o VLS de maneira apropriada e ao defender os novos projetos, Coelho indica que o rumo mudou: sai o penoso esforço para o desenvolvimento local de tecnologia e entram outros expedientes através dos quais haveria transferência tecnológica.

O ex-ministro Amaral também defende essa busca de um desvio. Para ele, o Brasil tem três opções: renunciar ao programa espacial próprio; refazer todos os caminhos, começando do estágio de desenvolvimento atual; ou saltar etapas tecnológicas com as parcerias internacionais. Diz ele: “O Brasil não dispõe de bilhões de dólares para in-vestir e nem pode aguardar mais 50 anos.” Resta, então, escolher os parceiros certos. No caso dos foguetes, seriam os ucranianos.

“Alguém tem dúvida do sucesso da Al-cantara Cyclone Space?”, indagou Amaral, em 9 de setembro de 2010, após cortar simbolicamente a primeira vegetação para o início das obras da base de lançamento do foguete ucraniano Cyclone-4, em Alcântara.

A ACS é a empresa binacional resultante do acordo Brasil-Ucrânia de 2003. No projeto, financiado igualmente pelos dois países, os ucranianos entram com a tecnologia do foguete e o Brasil fornece a estrutura física para lançá-lo. Primeiro a apontar a inanição orçamentária como causa do acidente do VLS em 2003, Amaral viu no acordo uma oportunidade comercial a ser explorada e um atalho tecnológio para que o País consiga ter seu lançador de satélites. Ao deixar o ministério, foi para a presidência da ACS, onde ficou de 2006 a 2011. Mas ainda defende enfaticamente o projeto. No final do ano passado, explicou seu ponto de vista a RB: “Não existe programa espacial brasileiro fora o Cyclone 4. Há muito de-sistiram do VLS, que vai servir agora para qualificação de novos foguetes. A base do CLA também só tem servido a lançamen-tos científicos. O Brasil tem que decidir se quer ter um programa espacial ou se quer um brinquedo para os técnicos. Se for para brincar, continuem com essas coisas aí. Se for para ter um programa espacial, é o projeto Cyclone 4 e 5. Fora daí, a conversa não é séria.”

Amaral acredita que haverá transferên-cia tecnológica no projeto à medida que se der o trabalho conjunto entre técnicos dos dois países, primeiramente na construção da base e depois no desenvolvimento de um novo foguete, o Cyclone 5. Segundo Amaral, há um compromisso contratual de desenvolvimento conjunto do Cyclone 5. A repórter de RB não encontrou qualquer menção ao futuro foguete nos documen-tos oficiais do acordo Brasil-Ucrânia e da constituição da ACS. Mas o Cyclone 5 foi mencionado pelo primeiro-ministro ucraniano, Mykola Azarov, durante a visita do ministro Raupp àquele país em março de 2012. “Azarov disse que os especialistas ucranianos e brasileiros já estão trabalhando no planejamento de uma nova geração de foguete, o Cyclone-5”, registrou o site de notícias russo RBC. Praticamente não existe detalhamento sobre o nível e os termos dessa possível cooperação. Por ora, além da visita de técnicos brasileiros à fábrica do Cyclone, foi criado na Universidade de

Brasília um mestrado em engenharia aero-espacial, durante o qual os alunos passam seis meses na Ucrânia.

Desenvolvido pela empresa esta-tal de engenharia Yuzhnoye, o Cyclone 4 está em fase adiantada

de construção na fábrica Yuzhmash, tam-bém estatal, na cidade de Dnipropetrovsk, e será transportado para o Brasil no maior avião cargueiro que existe, o também ucraniano Antonov. Tudo isso, tecnologia de foguete, satélite, aviões, é herança da antiga URSS, da qual a Ucrânia se separou após 1991. Em comparação ao VLS, o Cyclone 4 é um gigante, com 40 metros de comprimento (duas vezes o do VLS), usa combustível líquido e poderá colocar um satélite de até 5,3 toneladas em órbita baixa, de até 2 mil quilômetros da Terra, ou um satélite de até 1,8 tonelada em órbita geoestacionária, a 42 mil quilômetros. O VLS usa combustível sólido, tecnologia que limita manobras e coloca apenas 150 quilos numa órbita de 700 quilômetros de altura.

O acordo Brasil-Ucrânia foi conside-rado estratégico pelo Conselho de Defesa Nacional, que incluiu a construção da base da ACS na esfera de interesses de “seguran-ça nacional”. Em 2011, o então ministro do MCTI, Aloizio Mercadante, hoje na pasta da Educação, referiu-se ao projeto como uma parceria que “num futuro próximo pode ser a base do programa espacial do Brasil”. Em 2008, houve forte resistência por parte da população de Alcântara, de movimentos sociais e de ONGs contra a ocupação da área reservada à ACS, e o Incra decretou a área como pertencente a comunidades quilombolas locais. A ACS teve, então, de ser instalada numa área alugada no terreno do CLA. Houve atrasos no aporte de dinheiro pela Ucrânia e pelo Brasil. As empreiteiras Camargo Corrêa e Odebrecht, que executam as obras em Alcântara, ficaram meses sem receber. Na feira de negócios aeroespaciais Satellite Today, em Washington, D.C., nos EUA, no início de 2012, a ACS esteve presente anunciando seus serviços: “Nossa missão

Os americanos se opõem ao desenvolvimentodo VLS e também a que o Brasil receba tecnologia de foguetes da Ucrânia

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é prestar serviços de lançamento para clien-tes privados e governamentais a partir de 2013, bem como promover a cooperação tecnológica entre Brasil e Ucrânia. Estamos sediados na cidade de Brasília, capital da Re-pública Federativa do Brasil. O Cyclone-4 é uma continuação de uma das famílias de veículos mais confiáveis, o Cyclone: Cyclone-2 (106 lançamentos, 106 bem-sucedidos) e Cyclone-3 (122 lançamentos, 116 bem-sucedidos)”.

Há duas críticas básicas ao projeto da ACS: não se sabe qual é o processo de transferência tecnológica, porque não se acredita que o mero contato entre brasi-leiros e ucranianos promova esse milagre; e há descrença quanto à viabilidade de participação lucrativa da ACS no mercado de lançadores. “O plano de negócios foi feito há cerca de dez anos e havia a previsão de lançar satélites de reposição do sistema Iridium”, aponta o texto de uma petição pública contra o acordo encabeçada pelo blog Brazil Space. O projeto está atrasado: o Cyclone 4 deveria ter sido lançado de Alcântara em 2010 e a data, agora, é 2014. É certo também que a ACS não irá colocar em órbita nenhum dos 81 novos satélites

da Iridium, que substituirão os 66 aparelhos atuais que formam a maior constelação de satélites do mundo. A Iridium é uma em-presa de telefonia fundada pela Motorola nos anos 1990 para fornecer serviços de telefonia móvel de longa distância. Depois de falir devido a seus altos custos de ope-ração, a companhia mudou de dono e se recuperou. Seus satélites estão estacionados a 800 quilômetros da Terra e deverão ser substituídos em 2015.

O Departamento de Estado dos EUA vetou entendimentos entre a Iridium e a ACS, assim como

bloqueia o lançamento, a partir do Brasil, de qualquer satélite que contenha componen-tes americanos, devido ao fato de o Brasil não ter fechado um polêmico acordo de proteção tecnológica. O Acordo de Salva-guardas Brasil-EUA (TSA) foi firmado em 2000 por Fernando Henrique Cardoso, mas foi rejeitado pelo Senado em 2003, por ser considerado abusivo à soberania nacional.

A exemplo dos boicotes que impõem ao desenvolvimento do VLS, os EUA tam-bém se posicionaram contra a assimilação de qualquer tecnologia de foguete ucraniana

pelo Brasil. Em matéria publicada em ja-neiro de 2011, o jornal O Globo traz o teor de telegramas trocados entre a embaixada americana no Brasil e o Departamento de Estado dos EUA e divulgados pelo WikiLe-aks. “O documento contém uma resposta a um apelo feito pela Embaixada da Ucrânia, no Brasil, para que os EUA reconsideras-sem a sua negativa de apoiar a parceria Ucrânia-Brasil, para atividades na base de Alcântara, no Maranhão”, diz o jornal. A resposta americana foi clara: “Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil.”

“Mesmo com as restrições dos EUA, a ACS tentará entrar no mercado de lan-çamento de satélites. Segundo o relatório da consultoria Euroconsult lançado em novembro de 2012, cerca de 1075 satélites serão construídos e lançados nos próximos 10 anos (2012 - 2021) e a maior demanda virá de governos que encomendarão quase dois terços dos satélites, a maioria deles para uso civil. Países emergentes devem

Agosto de 2003, base de Alcântara, terceiro lançamento do VLS: explode o foguete, a torre móvel é destruída e morrem 21 pessoas

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representar um mercado de 110 satélites de diferentes tamanhos e capacidades, a serem desenvolvidos com o apoio de empresas estrangeiras”, diz o relatório. Estaria listado aí o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC), que o Brasil vai comprar fora e com o qual tam-bém espera absorver alguma tecnologia?

Desde pelo menos o início do ano passado, o governo brasileiro está às voltas com a compra de

um satélite geoestacionário de comuni-cações. O Brasil nunca desenvolveu esse tipo de satélite, aparato sofisticado para funcionar a 36 mil quilômetros da Terra. É nessa distância que o satélite consegue acompanhar o movimento de rotação do planeta, ficando “estacionado” sobre o ponto que pretende cobrir com seus recursos de transmissão de dados. Dá trabalho fazer e também dá trabalho en-comendar e comprar. Para essa tarefa, foi constituída a Visiona Tecnologia Espacial, uma empresa que será a prime contractor do negócio. Esse contratante-chefe, digamos, tem um contrato com o proprietário de um projeto, no caso o governo brasileiro, e tem

a total responsabilidade por sua condução e conclusão, podendo subcontratar outras empresas para realizar partes específicas do contrato. Nelson Salgado, presidente da Visiona e ex-executivo da Embraer, explica: a Visiona não será fabricante, mas, sim, uma empresa de engenharia e integração; tam-bém não será operadora do satélite, tarefa que caberá à Telebras, do Ministério das Comunicações (Minicom), e ao Ministério da Defesa. Afinal, o SGDC tem como objetivos principais atender ao Sistema de Comunicações Militares por Satélite e levar banda larga ao interior do Brasil pelo Plano Nacional de Banda Larga, do Minicom. O satélite vai servir também a comunicações entre órgãos do governo federal.

Segundo informações divulgadas pela Telebras durante o Congresso Latino-Americano de Satélites, no último mês de setembro, o primeiro satélite, previsto para ser lançado em 2014, terá vida útil estimada de 15 anos, com centros de operações em áreas militares em Brasília e no Rio de Ja-neiro. O sistema compreenderá ainda a ope-ração de outros dois satélites, que devem ser lançados a cada cinco anos. Detalhe: o Cyclone 4 não poderá levar nenhum deles

à órbita geoestacionária, pois eles pesam cerca de 4 toneladas.

Com autorização do Conselho de Defesa Nacional, o primeiro satélite será comprado sem licitação no mercado inter-nacional, que aguarda a divulgação do texto do Pedido de Propostas para Contratação, ou request for proposal. É nesse texto que estarão especificados todos os detalhes para atender às demandas, definidas num trabalho conjunto entre o Ministério da Defesa e o Minicom, com participação técnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Segundo a revista Teletime, até novem-bro não havia sido possível fechar o texto da proposta para as contrata-

ções. Segundo especialistas ouvidos pela revista, parte das dificuldades para concluí-lo vinha da quantidade de detalhes técnicos a serem especificados, sobretudo para o uso da faixa chamada de Ka, do espectro de ondas eletromagnéticas através do qual se fará o fornecimento da banda larga. “Não há muitos satélites com cobertura de banda Ka no mundo e é preciso especificar a quantidade de feixes que serão usados e como se dará sua cobertura. Uma vez lançado, não é possível fazer alterações significativas na configuração dos feixes”, diz a revista. A Telebras disse, no início de janeiro, que o texto já estava concluído e que o divulgaria em breve.

O SGDC deve ser o primeiro satélite de comunicações do mundo a usar simul-taneamente bandas Ka e X. A banda X é uma faixa de frequência de uso exclusivo militar. Foi adotada pelas Forças Armadas no Brasil e era fornecida pela Embratel, mas a empresa foi privatizada em 1998, vendida à americana MCI World Com. Depois de passar por crises, a empresa está, desde 2011, sob controle da América Móvil, do empresário mexicano Carlos Slim. Com o fim da vida útil dos satélites Brasilsat B1 e B2 em 2007, as telecomunicações mili-tares no Brasil tiveram que depender da disponibilização da banda X pela Star One, subsidiária da Embratel. Hoje, o sistema de telecomunicações militares funciona com o

Os EUA querem salvaguardas; mas um acordode proteção da tecnologia deles, feito pelogoverno FHC, foi vetado no Senado brasileiro

Amaral acha que a Ucrânia é uma saída; para Célio Vaz, a Visiona desburocratiza

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apoiando a iniciativa de criar esse prime contractor privado, no sentido de que essa mudança vai dar mais oportunidade para a indústria, vai tirar os projetos de dentro do modelo verticalizado que tem hoje, no qual o Inpe e o IAE, além de desenvolver pesquisas, têm de administrar contratos, encomendar equipamentos e montar eles mesmos os sistemas completos”, diz Célio da Costa Vaz, dono e fundador da Orbital, uma das cem empresas nacionais que atuam no setor aeroespacial. Para ele, a burocracia e restrições do setor público fizeram com que o modelo fracassasse.

“A indústria não se desenvolveu e vive hoje de contratinhos picados”, diz Costa Vaz, que foi funcionário do Inpe durante quase 20 anos e deixou o instituto em 2000, no segundo programa de demissão volun-tária que tirou mão de obra do instituto e contribuiu para o desmonte do programa espacial como um todo. “Quando saí, fiz um projeto para desenvolver painéis sola-res para uso em satélite que foi financiado pela Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Vivi quatro anos sendo pago por bolsa de pesquisa e, quando fui qualificado, passei a fornecer os painéis dos satélites CBRES para o Inpe”, diz Costa Vaz. Na sala limpa da empresa em São José dos Campos, técnicos trabalham na montagem dos painéis solares do CBERS-4. Vaz relata que o serviço é relativo a contratos que foram assinados em 2010. “Já são dois anos sem o governo convocar uma licitação industrial na área de espaço. Os contratos que estamos executando hoje são de 2009 e 2010. Em 2011 e 2012, nenhum contrato

foi firmado conosco e com nenhuma outra indústria. E isso quebra qualquer empresa.”

Para Costa Vaz, com a criação da Vi-siona, a política de contratação vai mudar, com encomendas de sistemas completos. “Para o primeiro satélite não podemos fa-zer nada, porque tudo que vai para o espaço tem um processo puxado de qualificação. Nesse setor, esse é o grande muro que você tem que pular. Mas, para o segundo satélite, as empresas vão ter tempo para se qualificar dentro das especialidades de cada uma.”

Enquanto isso, os céticos sobre a transferência tecnológica ponderam: “Você acha que vamos comprar dois satélites com a condição de que as empresas passem tec-nologia, para depois nós mesmos fazermos os próximos aparelhos e deixarmos de ser clientes?”, diz Paulo Moraes, que considera que a compra de um satélite, mesmo que inclua algum nível de cooperação, não pode ser considerada parte do programa espacial brasileiro. “Há muito tempo a Embratel estatal comprou dois satélites geoestacioná-rios e pagou para colocá-los em órbita. Fez isso sem alarde, sem desculpas. Ok., vamos comprar de novo um satélite, vamos pagar para colocá-lo lá em cima... Mas não vamos dizer que isso é parte de um programa espacial e nem que os voos comerciais de um foguete ucraniano lançado do Brasil são a base do programa espacial. Isso são atividades, serviços, negócios. Programa é aquilo que tem raiz, que fica. É você desenvolver algo de que é proprietário; é o País formar pessoal e manter esse pessoal na área”, diz.

aluguel de serviços especiais de dois satélites da Star One.

Para se ter uma ideia da total depen-dência do Brasil em relação aos satélites de comunicação, basta ler o texto divulgado pela assessoria de comunicação do MCTI anunciando a ida do ministro Raupp ao lançamento do satélite Star One 3, no último mês de novembro. Esse satélite substituirá o Brasilsat3 nas telecomunica-ções brasileiras na chamada banda C. “A empresa Star One, da Embratel, é respon-sável pela administração do satélite. O C3 foi fabricado pela norte-americana Orbital Sciences Corporation e será lançado pela Ariadnespace, da base localizada na cidade de Kourou, na Guiana [Francesa].”

Para Coelho, a compra do satélite SGDC vai diminuir a dependência do Brasil, pois o aparelho encomen-

dado pela Visiona pertencerá ao governo brasileiro e será operado pela Telebras e pelo Ministério da Defesa. Mas e a depen-dência tecnológica? Na entrevista cedida em Alcântara, o presidente da AEB disse que um dos pontos necessários para fechar a compra com o fabricante do satélite é a empresa se comprometer com a partici-pação da indústria brasileira na fabricação dos próximos aparelhos a serem adquiri-dos para o sistema. “O compromisso do governo brasileiro é consolidar a indústria aeroespacial. Tenho perguntado aos fa-bricantes se eles estão dispostos a ajudar nossa base industrial. A maioria tem se mostrado interessada”, disse Coelho. O blog Panorama Espacial colheu um aceno da indústria internacional de que pode colaborar com o Brasil nesse projeto. Em entrevista ao blog, o executivo da TAS – aliança para o setor espacial entre o grupo francês Thales e o conglomerado italiano Finmeccanica –, Christophe Garier, disse que se sua empresa for selecionada haverá treinamentos acadêmicos e em fábrica de técnicos brasileiros, inclusive com trans-ferência de know-how em design de satélites. Outro executivo da empresa, César Kube-rek, disse que a transferência se daria com fabricação no Brasil de partes do satélite.

Até agora o Inpe e o IAE eram os principais executores do programa espacial brasileiro, atuando como contratantes de indústrias que fabricam parte dos equi-pamentos. Os representantes da indústria aeroespacial apoiam o novo rumo que implicou na fundação da Visiona e seu papel de contratador-chefe dos projetos. “O modelo atual não funciona. Estamos

Coelho acha que vai dar certo; Moraes argumenta: programa é o que tem raiz, que fica

ReproduçãoJosé Luiz Cavalcanti

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A dIvISão do BoLo

Economia

Há tempos não se via tanta vibração no plenário do Congresso como na sessão do dia 12 de dezembro, na qual foi aprovado, por 408 votos contra 91, um pedido que propunha regime de urgência para apreciação do veto da presidente Dilma Rousseff à lei que trata da distribuição dos royalties do petróleo. Com o veto, a presidente retirou do texto aprovado pelos con-gressistas artigos que levariam recursos substanciais da exploração do pré-sal para a grande maioria dos Estados e municípios que não são produtores do óleo. E isso já neste ano, porque a lei aprovada no Congresso inclui na conta os poços já licitados e em operação. A

alegria, entretanto, durou pouco, pois parlamentares do Estado do Rio de Janeiro foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, alegando inconstitucio-nalidade, pediram e obtiveram liminar que suspendeu a votação do regime de urgência, o que colocou a apreciação do veto, em princípio, numa fila com mais de 3 mil propostas apresentadas anteriormente. O placar da votação do regime de urgência e o ânimo dos votantes, no entanto, revelam a insatis-fação generalizada de Estados e muni-cípios com a desigualdade do sistema tributário nacional e o pacto federativo.

Manifestações de governadores e prefeitos contra a centralização dos

Estados e municípios têm razão: depois de certa pausa após a ditadura militar, de novo, no caso da tributação, a União promove o parte e reparte e fica com a maior parte. A causa é o ajuste fiscal dos governos neoliberais dos anos 1990–2002, ainda não desmontado

por Téia Magalhães

impostos e sua distribuição entre os três níveis de governo e entre diferen-tes Estados e regiões vêm se tornando cada vez mais frequentes. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, reclamou dos incentivos fiscais conce-didos pelo governo federal – como a redução do IPI para alguns produtos –, criados para proteger o Brasil dos efeitos da crise financeira internacional. Essas desonerações beneficiam Estados onde estão localizadas as indústrias, mas diminuem o bolo tributário a ser repartido com as outras unidades federativas. Governadores e prefeitos reclamam a renegociação das taxas de juros que pagam à União por suas dívidas e apontam os ganhos extras do governo federal com o diferencial entre a Selic – taxa de juros que o Tesouro paga pela rolagem de sua própria dívida, atualmente no patamar de 7,25% – e as taxas pactuadas em contratos feitos nos anos 1990, que chegam, em alguns casos, como no da dívida da cidade de São Paulo, em 2012, a 16,3%. Essa situação, aliás, levou Fernando Haddad, do PT, ao tomar posse como prefeito da

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cidade, no primeiro dia de janeiro deste ano, a destacar a insustentabilidade da dívida do município, pedindo renego-ciação urgente e fazendo coro com os governadores que insistem há algum tempo na mudança.

Também pode ser colocada nesse contexto a decisão dos governadores do Paraná, de São Paulo e de Minas Gerais, todos tucanos, de se recusarem a renovar antecipadamente os contratos de concessão para geração de energia de algumas usinas de suas estatais concessionárias de energia elétrica, por entenderem que o governo federal fazia gentileza com o chapéu alheio. Com a redução forçada das tarifas, cairia o faturamento das empresas e, em con-sequência, a arrecadação dos Estados com o imposto sobre a circulação de mercadorias, o ICMS – em São Paulo, por exemplo, o ICMS cobrado dos con-sumidores de energia elétrica representa 11% da receita própria do estado.

Nesse contexto, ainda, também devem ser incluídas as ações diretas de inconstitucionalidade

propostas ao STF pelos governos de Mato Grosso, isoladamente, e em con-junto com Goiás, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, contra a manuten-ção das atuais alíquotas de distribuição do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Nessas ações o tribunal decidiu, em 2010, que até o final de 2012 uma lei deveria ser aprovada, com nova proposta de repartição dos recursos do FPE, o que não ocorreu. O governo federal teve, en-tão, de se explicar ao presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa, para fazer as transferências no dia 10 de janeiro de 2013 e não colocar alguns Estados em situação de insolvência.

O tema dos impostos é naturalmen-te explosivo. Foi uma das motivações importantes das revoluções contra o absolutismo e de movimentos de inde-pendência, como o dos inconfidentes de Minas Gerais contra a chamada derrama – o excesso de impostos – da coroa portuguesa e o dos colonos americanos contra as taxas cobradas pela Inglaterra. A República chegou aos EUA um século antes de sua instalação no Brasil. Na Assembleia Constituinte americana, que se reuniu na Filadélfia, em 1789, para elaborar a primeira Constituição do país, a discussão cen-tral foi em torno da necessidade de se

equilibrar a autonomia dos Estados com a manutenção da União, que dá força e unidade ao conjunto dos entes federados. Alguns ensinamentos daque-las discussões valem até hoje: o papel da “União” é duplo: impor algumas regras básicas a serem observadas por todos e, ao mesmo tempo, respeitar a autonomia dos Estados e promover a busca da superação das desigualdades regionais, para evitar a desagregação provocada pela competição entre eles no caso dos impostos.

No Brasil, a concentração da receita tributária nas mãos da União oscilou de acordo com momentos de maior ou menor centralização política. Um momento recente de rara concentração ocorreu no início do regime militar, que governou o País de 1964 a 1985, com a instituição de uma reforma tributária ampla e aprovação de um código tribu-tário que passou a vigorar em 1967. Por meio dessa reforma, ocorreu expressiva concentração da receita na União. No ano da adoção do código, a União ficou com 45,8% da receita tributária total; os Estados, com 49,4%; e os municí-pios, com 4,8%. Em 1981, a União já abocanhava 57,8%; os Estados, 38,4%; e os municípios, 4,1%. Em parte para compensar as perdas de receitas dos outros dois entes federados foi criado em 1966 o Fundo de Participação de Estados e Municípios (FPEM), por meio do qual a União transferia 10% da receita obtida com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e 10% da receita do Imposto de Renda (IR).

Os municípios recebiam também uma cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), na proporção do valor agregado aos produtos no município. Em 1983, em média 47% das receitas dos municípios eram compostas por transferências dos outros níveis de governo e um movi-mento iniciado por prefeitos do Estado de São Paulo, rapidamente ampliado, mobilizou caravanas de prefeitos e ve-readores a Brasília, pressionando pelo aumento das receitas das prefeituras. No mesmo ano, o Congresso Nacional aprovou emenda constitucional que ampliou para 16% as parcelas do IPI e do IR a serem destinadas ao FPEM e, poucos anos depois, a Constituinte ampliou ainda mais os repasses.

A Constituinte eleita em 1987, após o período ditatorial, e que produziu a

Constituição de 1988 deu maior auto-nomia aos Estados e municípios. Do ponto de vista tributário, promoveu mudanças importantes, estabelecendo os impostos de competência dos três níveis de governo. Cabe à União os impostos sobre importação, expor-tação, rendas e proventos, produtos industrializados, operações financeiras, propriedade territorial rural e sobre grandes fortunas, este nunca instituído. Aos Estados são reservados os impos-tos sobre circulação de mercadorias e serviços, transmissão por morte, doa-ção de bens ou direitos e propriedade de veículos. Aos municípios cabe instituir os impostos sobre a propriedade terri-torial urbana, transmissão entre vivos de bens imóveis e direitos reais sobre imóveis e serviços de qualquer natureza.

A Constituinte estabeleceu ain-da transferências de recursos arrecadados pela União para

os Estados e municípios e de recursos arrecadados pelos Estados para os res-pectivos municípios. Além de repasses diretos, como de parcela do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, por exemplo, as transferências de re-ceita tributária da União passaram a ser feitas por meio do Fundo de Parti-cipação dos Estados e Distrito Federal (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM): 44% do arrecadado pela União com o IPI e o IR devem ser destinados aos dois fundos – 21,5% para o FPE e 22,5% para o FPM – e ainda mais 3% para financiamento do setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

A distribuição dos recursos do FPE foi estabelecida por lei em 1989: 85% do total dos recursos vão para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, para cumprir o papel da União com vistas à redução das desigualdades regionais. Os recursos são distribuídos em percen-tuais definidos na lei, sendo a alíquota composta por uma parcela de 5% rela-cionada com o tamanho do território de cada Estado e 95% de acordo com sua população e com o inverso da sua renda per capita. Assim, o Estado que recebe o maior volume de recursos é a Bahia, extensa, populosa e pobre na época, que ficou com 9,3862% do total. Esse tipo de divisão do FPE foi conce-bido originalmente para durar por um período de dois anos, após o qual,

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com a realização de novo censo demo-gráfico pelo IBGE, seriam aprimorados os critérios de distribuição. Como isso não ocorreu, os critérios ajudam hoje a ampliar os descontentamentos.

O grande agravante do descon-tentamento dos Estados e municípios decorre do fato

de a descentralização tributária da nova Constituição ter sido aos poucos revertida e, passados 24 anos de sua promulgação, a distribuição da receita tributária não é muito diferente da que existia ao final do regime militar. De acordo com dados da Receita Federal, em 2011 a receita tributária total no País correspondeu a 35,3 % do Produto In-terno Bruto (PIB), ou seja, 1,46 trilhão de reais, dos quais os Estados ficaram com 38,7% – praticamente o mesmo percentual de 1981.

As origens dessa reversão estão na própria Constituição. Mesmo descen-tralizando a receita tributária, ela conce-

deu apenas à União o poder de instituir novos impostos além dos que atribuiu inicialmente aos três níveis de governo, desde que não fossem conflitantes com estes. A Contribuição para o Financia-mento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição Pro-visória sobre Movimentação Financeira (CPMF), já extinta, enquadram-se nesse caso, pois não integram os fundos de participação e, com isso, contribuíram para o aumento do bolo tributário da União, sem beneficiar Estados e muni-cípios. Além disso, a União tem amplos poderes para legislar sobre tributos e temas que afetam diretamente os outros dois níveis de governo. Esse processo é descrito e analisado no livro Demo-cracia, federalismo e centralização no Brasil, de Marta Arretche. Tendo examinado todas as propostas que tramitaram no Congresso Nacional de 1989 a 2009 e que afetaram os três entes federados, Marta mostra que, com a legislação

aprovada, o governo central impõe per-das aos Estados e municípios, tanto do ponto de vista de suas receitas quanto de sua autonomia decisória. Com isso, esses dois entes da federação tornam-se mais dependentes das transferências constitucionais da União.

São inúmeros os casos em que leis federais definiram assuntos de interesse dos Estados. Entre os

casos analisados no livro, dois exemplos são muito claros: a aprovação da Lei Kandir e a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), no governo Itamar Franco, depois rebatizado de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), que desvia-ram parte dos recursos destinados aos outros níveis de governo para promo-ver o acerto fiscal da União. A autora não explora esse ponto, mas o ajuste fiscal feito sob a direção de Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda de Itamar Franco e que pouco tempo depois seria presidente, foi um preparativo para o Plano Real, que es-tabilizou a moeda brasileira abrindo o País ao capital financeiro internacional graças ao pagamento de um diferencial positivo garantido entre os juros pagos internamente e os aqueles vigentes nos principais mercados internacionais de dinheiro, o que acarretou um enorme endividamento para o País.

A Lei Kandir, conhecida como a le-gislação que desonerou as exportações da incidência do ICMS, prejudicando a arrecadação dos Estados exporta-dores, na verdade, teve abrangência bem maior, unificando a forma de arrecadação do imposto e definindo normas para devolução da cota-parte aos municípios. O FSE, criado por uma emenda à Constituição, desvinculou 20% dos impostos e contribuições federais, deixando a União livre para gastar, como quisesse, esses recursos, os quais ela usou para produzir o cha-mado superávit primário, voltado para garantir principalmente o pagamento dos credores do País. Na mesma época,

Passadas duas décadas da Constituiçãoredemocratizadora, a desconcentraçãotributária foi praticamente toda revertida

Governo Itamar, FHC na Fazenda: começa o endividamento e a caça de receitas para pagar

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a União forçou a negociação das dívidas dos Estados, comprometendo parcelas expressivas das receitas estaduais. As unidades federativas também foram im-pedidas de contrair novas dívidas, o que estrangulou ainda mais sua capacidade de realizar investimentos.

Essas mudanças ressaltaram a importância das transferên-cias da União. Segundo Marta

Arretche, hoje, “as transferências constitucionais são a principal fonte de receita da esmagadora maioria dos governos locais”. Comparando dados da execução orçamentária dos Estados de 1995 e 2011, pode-se perceber que o conjunto de suas receitas tributárias próprias caiu de 63,1% do total para 61,6%, enquanto as transferências subi-ram de 20,2% para 23,9%. E a diferença entre os Estados é gritante. No caso daqueles das três regiões mais pobres, as receitas tributárias próprias não che-gam a 50% e, em alguns Estados, nem a 20% da receita total – em se tratando do Amapá, apenas 19% da receita vêm dos impostos estaduais; em Roraima, esse percentual é de apenas 10%. Os efeitos das transferências da União para diminuir as desigualdades regionais são, no mínimo, limitados. O grau de depen-dência das regiões em relação ao FPE para compor suas receitas totais mudou

muito pouco ao longo dos mais de 20 anos de repasses. Entre 1995 e 2011 a participação do FPE na receita total dos Estados da região Norte passou de 35,7% para 32,1%; nos da região Centro-Oeste, de 8,4% para 8,7%; nos do Nordeste, de 32,3% para 29%; nos do Sul, de 4,2% para 5,2%; e nos do Sudeste, não se alterou, permanecendo em 1,6%.

Em um estudo do Banco Interame-ricano de Desenvolvimento (BID) so-bre proposta para reforma do FPE, Te-resa Ter-Minassian, que foi negociadora de programas de ajuste fiscal do Fundo Monetário Internacional no Brasil e na Argentina de 1997 a 2000, afirma que seria desejável que os recursos do FPE servissem para equalizar a capacidade dos Estados de prestar serviços padro-nizados em todo o território nacional, mas não é o que acontece. Segundo ela, “a grande disparidade nas capacidades tributárias dos Estados torna ainda mais importante garantir que o sistema de transferências no Brasil seja adequada-mente equalizador”.

A disparidade de distribuição de recursos da União entre os Estados foi um dos argumentos que mobilizaram a sociedade e políticos fluminenses pela manutenção da atual distribuição dos royalties do petróleo nos contratos de concessão em vigor, o que acabou

resultando no veto da presidente Dilma e na ação de inconstitucionalidade em relação à sessão que aprovou a urgência para apreciação do veto presidencial. Também foram essas disparidades que motivaram as ações de inconsti-tucionalidade em relação à distribuição dos recursos do FPE, aceitas pelo Supremo Tribunal Federal após serem movidas por Estados que são menos aquinhoados nas transferências, prin-cipalmente nos casos de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, que em tese estão contemplados no bolo dos 85% dos repasses do FPE às regiões prioritárias, mas recebem relativamente pouco. O governo federal, entretanto, não concentra receita tributária por alguma razão maligna especial. Faz isso para cumprir compromissos que assu-miu para ajustar a economia brasileira às imposições do sistema financeiro internacional, transformando dívida externa privada em dívida interna pública, pela qual o governo pagou durante anos, e ainda paga, os juros mais altos do planeta, o que garante a entrada de dólares que permitam fechar o balanço de pagamentos e ainda gerar reservas internacionais que possam ser utilizadas, em caso de crise, para pagar os credores externos e cujo custo financeiro também é carregado pelo Tesouro.

Governo Lula: Palocci na Fazenda, Meirelles no Banco Central; eleva-se a meta, busca-se um superávit primário maior

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O Partido Comunista da China governará o país a partir de março com Xi Jinping, de sua quinta geração de líderes. Tarefas heroicas não estão à vista. O que pesa é a crescente distância entre ricos e pobres

por Raimundo Rodrigues Pereira

A deSIguALdAde, AgoRA, é o xISdo pRoBLemA

O dever dO revolucionário, diziam os comunistas antigamente, é fazer a revolução. Isso o Partido Comunista da China (PCCh) fez. Liderado por Mao Zedong (1893-1976), criou a República Popular da China em 1949 depois de duas décadas de guerra civil e de resis-tência à invasão japonesa. Após batalha prolongada contra a diplomacia ameri-cana, que defendia a representatividade do governo nacionalista derrotado no continente, mas instalado pelos EUA na ilha de Taiwan, em 1972 a China governada pelos comunistas ocupou seu lugar na Organização das Nações Unidas como um dos cinco países com direito a veto nas resoluções de seu Conselho de Segurança. Mao re-dividiu o país em comunas populares e as colocou sob a direção do partido. Depois, procurou fugir do destino da União Soviética, que considerava ter-se tornado “social-imperialista”: com a Revolução Cultural, tentou reeducar, no campo, no trabalho com os campo-neses, intelectuais e quadros dirigentes acusados do desvio direitista que teria acometido os soviéticos.

Mas os tempos heroicos da tentati-va de consolidar o poder comunista na China terminaram antes da morte de Mao. Em setembro de 1971, por orien-tação do próprio Grande Timoneiro, Deng Xiaoping (1904-1997) tomou posse como vice-primeiro-ministro. Com a morte de Mao e do primeiro-ministro Chou Enlai, embora nunca tenha ocupado o cargo de secretário-geral do partido, de presidente do país ou de chefe das Forças Armadas, como

se tornaria norma, a seguir, Deng foi o núcleo da chamada segunda geração de líderes comunistas chineses, o idealiza-dor da chamada “economia socialista de mercado” e das grandes reformas que dispararam o desenvolvimento econômico chinês dos últimos 35 anos. Ele é também, de certo modo, o pai do novo estilo comunista de governo das gerações seguintes, as três represen-tadasnas fotos da página ao lado, da abertura do 18º Congresso do PCCh, realizado em Pequim, em novembro passado.

Na fileira da frente, ao centro, está Jiang Zemin, 87 anos, hoje aposentado, que foi o secretário-geral do partido, comandante das Forças Armadas e presidente do país após 1989. À sua direita, está o atual presidente e agora ex-secretário-geral do PCCh, Hu Jin-tao, 71 anos. E o terceiro à direita, a partir de Hu, é Xi Jinping. Xi (de pé, na foto menor), 57 anos, foi eleito secretário-geral do partido no congres-so de novembro e deverá ser aclamado presidente do país e chefe das Forças Armadas em março, pelo Congresso Nacional do Povo, a assembleia de representantes de todas as províncias e regiões do país. A missão dos comunis-tas chineses sob a liderança de Xi pode não parecer heroica, mas não é fácil: fazer o país crescer um pouco menos que os 9% a 10% das últimas décadas e distribuir bem melhor a riqueza ge-rada. Um incidente do ano passado, a queda de Bo Xilai, uma das grandes personalidades da cúpula do partido, ajuda a entender melhor o problema.

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O PCCh tem 86 milhões de fi liados. Estes elegeram 2.270 representantes para seu congresso de novembro. Destes, 371 formaram o Comitê Central e 25 deles, o Comitê Político do partido, o chamado Politburo. Bo Xilai era um desses 25 e muitos achavam que ele poderia ter sido um dos sete a serem eleitos no congresso para o Comitê Permanente do Politburo, o coletivo de líderes que de fato governa o país. Bem antes do congresso, no entanto, em 6 de fevereiro, uma notícia espetacular: o pedido de asilo diplomático de Wang Lijun, o chefe de polícia de Chongqing, ao consulado americano em Chengdu, na província de Sichuan, vizinha a Chon-gqing, deu início à onda de rumores que precederam a queda de Bo. Wang, dizia-se, teria sido afastado do cargo por Bo por tentar incriminar sua mulher, Gu Kailai, no assassinato de um negociante inglês, Neil Heywood, encontrado morto num quarto de hotel em Chongqing em no-vembro de 2011.

No início de março, por ocasião da reunião do Congresso Nacional do Povo,

a assembleia de 2.987 deputados que se reúne para uma sessão legislativa anual de duas semanas em Pequim, Bo tentou se defender publicamente dos rumores. Disse que caluniadores estavam tentan-do jogar lama sobre sua família. Poucos dias depois, a 14 de março, no entanto, o primeiro-ministro da China, Wen Jiabao, advertiu “os líderes do partido e da prefei-tura de Chongqing” sobre a necessidade de serem tiradas lições “do episódio de Wang Lijun”. No dia seguinte, 15 de mar-ço, a decisão de afastar Bo da Prefeitura de Chongqing e da direção do partido local foi anunciada aos delegados do Con-gresso. No mesmo dia, um documento, vazado para o The New York Times e, ao que tudo indica, distribuído pelo próprio governo chinês aos congressistas, dava de-talhes da operação. Bo foi substituído por Zhang Dejiang, vice-primeiro-ministro do governo central, nos cargos de administra-dor da cidade e secretário do partido em Chongqing. Wang teria procurado Bo a 28 de janeiro para lhe narrar a investigação da polícia de Chongqing sobre a morte

as liçÕes do caso bo XilaiO igualitarismo e a pobreza eram os problemas. Agora, é a riqueza que se infiltrou, perigosamente, mesmo nas famílias dos heróis da revolução

de Heywood e as suspeitas que pairavam sobre Gu, sua mulher. Logo depois, Bo o teria afastado do cargo e, a 2 de fevereiro, começado uma investigação contra Wang e seus investigadores. Os americanos teriam recusado o asilo político pedido por Wang e, em acordo com ele, o teriam entregue ao governo central em Pequim, por questões de segurança.

Um mês depois, em abril, Bo foi afas-tado do Comitê Central e do Politburo, através de comunicado ofi cial do partido, que anunciou também a sua detenção e uma investigação formal a que ele es-tava sendo submetido como “suspeito de envolvimento em diversas violações disciplinares”. Segundo a agência estatal de notícias Xinhua, “o comportamento de Bo causou graves consequências que danifi caram seriamente a reputação do partido e do país”. Em 26 de julho, a Xi-nhua anunciou o indiciamento, pela Pro-curadoria da República, de Gu Kailai pelo assassinato, por envenamento, do inglês Heywood. O julgamento de Gu e mais um funcionário do comitê central do PCCh em Chongqing, Zhang Xiaojun, que seria seu cúmplice no crime, foi realizado a 9 de agosto em Heifei, capital da província de Anhui. Mais quatro policiais da cidade foram julgados no dia seguinte pelo ocul-tamento do crime. No atestado de óbito de Heywood consta que ele morreu por embriaguês e seu corpo foi cremado em seguida. Segundo a acusação, ele teria sido envenenado após fi car embriagado e ter pedido água, que recebeu envenenada.

O motivo do crime, segundo a acusa-ção formal, seria um confl ito em torno de “interesses econômicos” que envolveriam Heywood, Gu e seu fi lho, Bo Guagua, que estudou em Oxford, na Inglaterra, com ajuda de Heywood, e nos EUA, em Harvard. Gu não refutou as acusações. A sentença saiu 40 dias depois, a 20 de setembro: Gu foi condenada à pena de morte, suspensa por dois anos, período no qual poderá ter a sentença transfor-mada em prisão perpétua e ter direito a tratamento médico, tendo em vista o fato de a corte ter considerado que seu estado mental por ocasião do crime estava abalado. O chefe de polícia de Bo, Wang Lijun, foi condenado a 15 anos de prisão, em Pequim, quatro dias depois, sob a acusação de ter desertado de suas funções ao fugir para o consulado americano, mas, ao que tudo indica, por ter sido aceita, também, sua afi rmação de que investigou o crime cometido por Gu e o comunicou a Bo Xilai.

a divisÃo administRativa da chinaSão 20 províncias, seis regiões autônomas, duas áreas especiais e Taiwan

ProvínciaRegião autônoma Municipalidade(AAE) Área Administrativa EspecialCapital da província ou região

5 - Para as regiões autônomas: tirar a expressão Autonomous Region, deixar só Tibet, Xinjiang Uyghur, etc

6 -Para Taiwan, tirar o texto atual e substituir porTAIWANProvíncia chinesa querepresentou a Chinana ONU até 1972

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Quando o ex-dirigente de Chongqing será julgado, ainda não se sabe. Ele está no momento, ao que parece, sob a tutela administrativa da shuanggui, um sistema com centros de detenção e um corpo de investigadores especiais do próprio PCCh, que examina o caso em primeiro lugar antes de eventualmente levá-lo à Justiça. Segundo a imprensa oficial, cerca de 150 mil casos, algo como 0,2% dos militantes, são investigados pela shuanggui por ano. Ultimamente, 95% deles são denúncias de corrupção. Segundo um relatório divulga-do pela Comissão Central Disciplinar do partido no congresso de novembro, de 643.759 casos investigados ultimamente, a grande maioria foi resolvida por meio de punições administrativas ou internas do partido e 24.584 foram encaminhados à Justiça para julgamento. Tem sido regra nos congressos do partido anunciar o perigo de a corrupção abalar as bases do governo comunista na China. Segundo o presidente Hu Jintao, no seu relatório lido na abertura do Congresso em 15 de novembro, o PCCh ainda não satisfaz “a expectativa do povo” pelo fato de existirem “órgãos governamentais fra-cos, burocracia excessiva, extravagância, desperdício e corrupção de um número reduzido de quadros do partido”. Hu disse ainda que o fracasso no combate à corrupção pode causar “o colapso do partido e a queda do Estado”.

O partido e a Justiça chineses têm punições duras contra a corrupção e outros desvios de conduta, mas essas práticas aparentemente resistem a esses tratamentos. Em 2000 foram executados um vice-governador de província e um ex-presidente do Congresso Nacional do Povo. Em 2007, após ter sido destituído do cargo, expulso do partido e mantido preso por mais de dois anos, foi julgado e executado o chefe da Administração Estatal de Alimentos e Remédios do país, de 62 anos, que chefiou essa agência de 1998 a 2005 e foi condenado por ter recebido propina de 850 mil dólares para aprovar a liberação de medicamentos. Em 2006, um secretário do partido em Xangai também foi executado. A China tem o maior número de execuções entre os países que adotam a pena de morte, embora em número de executados por habitante perca para outros países. Nos últimos anos, no entanto, a Suprema Corte do Povo da China, o equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal, baixou instru-ções para que a pena capital seja aplicada apenas em poucos casos “extremamente

graves”. Aparentemente, nada indica que a corrupção tenha aumentado ou diminuído sensivelmente em função da dureza ou do abrandamento das punições.

O caso de Bo Xilai, no entanto, teve outro ingrediente que ampliou sua repercussão política. Gu Kailai é uma advogada comercial bem-sucedida. Tem um livro no qual diz que o sistema judicial chinês é comparativamente melhor que o americano. Defendeu empresas chinesas nos Estados Unidos. Teria pago despe-sas do filho, Bo Guagua, nos EUA e na Inglaterra com esses rendimentos. Tudo

indica também que o inglês Heywood era intermediário dela em suas operações para sustentar o filho no exterior. O jovem, de 24 anos, é uma estrela na internet de seu país. Aparentemente, é apenas um rapaz normal e privilegiado. (Os jornais divul-garam com enorme destaque – no Brasil, uma página inteira do Valor Econômico – a história de um encontro dele com a filha do embaixador americano em Pequim, ao qual ele chegou dirigindo uma Ferrari vermelha. Na internet, o leitor interessado que procurar por Bo Guagua no Google Imagens encontra essa história e, inclusive,

a versão de que ela é falsa e foi plantada por Murdoch, que é dono do The Wall Street Journal, onde a notícia saiu pela pri-meira vez, e seria amigo do embaixador.)

Mas, pelo fato de Bo Guagua ser um rapaz privilegiado, sua história interessou à tese dos que acham que a China perdeu seu rumo e é dirigida por uma plutocra-cia de familiares hoje apenas vagamente ligados a heroicos antepassados revolu-cionários que são a origem do poder que os plutocratas exercem hoje, embora não tenham mais o menor compromisso com seus antepassados. A troca de presidentes chineses foi, como se diz na gíria jorna-lística, um gancho para pendurar essa versão numa grande quantidade de fatos, mesmo que precários. No mesmo perío-do, o The New York Times publicou uma grande história de certo modo acusando o primeiro-ministro Wen Jiabao de ter uma família que detinha o equivalente a 2,7 bilhões de dólares em ações, especial-mente no setor de seguros. O artigo não dizia que os negócios tinham sido ilegais e afirmava que, aparentemente, o próprio Wen não detinha nenhuma parte dessa fortuna e que não havia qualquer evidência de ele ter interferido no processo que teria tornado rica a sua família. Advogados dos familiares de Wen negaram o conteúdo do artigo e disseram que poderiam pro-cessar o jornal. O governo chinês disse oficialmente que a publicação “difamava a China” e visava a “outros interesses”. É certo também que Wen Jiabao, antes de começar o seu segundo mandato como primeiro-ministro, disse numa reunião de quadros de alto nível do partido em Pequim que “líderes em todos os níveis de governo devem se colocar na vanguarda do movimento contra a corrupção” e

O partido prende e mata por corrupção. E tem uma políciaprópria para investigar desvios de seus militantes

Gu, Bo e o filho Bo Guagua: um assassinato, um rapaz privilegiado e um grande escândalo

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garantir formalmente que os membros de sua família, amigos e subordinados próximos não abusem da influência go-vernamental. Antes, Wen havia fortalecido as regras que obrigavam os servidores públicos a apresentarem publicamente seu patrimônio e o de familiares próximos.

Porém, tanto a história de Bo como a de Wen e muitas outras, de repercussão menos duradoura, foram sucesso na in-ternet. No caso de Wen, especificamente, logo o governo chinês bloqueou o acesso, por parte de computadores instalados na China, aos artigos referentes ao tema. A internet, como se sabe, é um campo de batalha política desde que começou a ser construída pelos americanos com fins científicos e depois militares, há quase 30 anos. E a China tem uma longa tradição de luta nesse campo. A primeira conexão via internet da China com o exterior foi feita entre um acadêmico do país e outro da Alemanha em setembro de 1987. A partir de 1993, o governo começou a criar uma ampla e moderna rede de fibra ótica. Oito linhas de alta capacidade no sentido norte-sul e mais oito no sentido leste-oeste logo cobriram o país, através de empresas totalmente controladas pelo Estado.

A partir de 2000, o ingresso de capital estrangeiro em empresas de produção de conteúdo para a internet na China foi limitado a 49%, para manter o controle nacional. Os donos dessas empresas são responsabilizados pelo conteúdo que divulgam. Ao mesmo tempo que o de-senvolvimento da internet permitiu que as pessoas se expressassem numa escala sem precedentes, as empresas fornecedo-ras de equipamentos para comunicação e as de criação de conteúdo com objetivos comerciais também desenvolveram mecanismos para vigiar os usuários e conhecê-los cada vez mais a partir das informações que eles mesmos depositam na rede. Estima-se que a China terá cerca de 720 milhões de usuários da internet no final deste ano.

Ao mesmo tempo, cresceu no aparato de segurança interna no país a quantidade de funcionários encarregados de acom-panhar as tendências das informações circulantes. Quando eclodiu a chamada Primavera Árabe na Tunísia, na Líbia, no Egito e em outros países, no início de 2011, dissidentes chineses convocaram manifestações pela internet para 13 cida-des do país visivelmente com o mesmo propósito de derrubar o governo. A po-lícia chinesa ocupou os 13 locais no dia

as Revoltas das massasNas cidades e nos campos, os que ficaram para trás no gigantesco processo de transformação social proclamam em voz alta suas reclamações

indicado e depois, na renovação dessas convocações, que atraíram pouquíssima gente, mas foram repetidas várias vezes. No mesmo período, a cúpula do PCCh promoveu um seminário. No encontro, Hu Jintao declarou que a China tinha “uma importante janela estratégica para seu desenvolvimento”, mas vivia “um período de aumento dos conflitos so-ciais”. É preciso, disse ele, “aperfeiçoar a administração” da internet e da “sociedade virtual” e criar mecanismos para “guiar” a opinião pública.

Não parece que a internet chinesa seja um instrumento potencial para a mudança do regime político do país. Os dirigentes

do partido estão preocupados, de fato, é com o gigantesco movimento de massas produzido pelo desenvolvimento das forças produtivas chinesas, como preten-dido por Deng Xiaoping. O substituto de Mao no leme do barco chinês pregou também que enriquecer era glorioso e que era necessário que alguns enriquecessem primeiro. Isso aconteceu numa escala que ele talvez não imaginasse. Hoje, feitas as devidas considerações metodológicas, a China é um país muito mais desigual que os EUA. Chega a ser quase tão desigual quanto o Brasil. Isso faz com que histórias como a da família de Bo Xilai causem tanto dano político ao país.

O PCCh, fundado em 1921, sempre teve grandes debates internos. Entre 1927, quando liderou a Longa Marcha que formou o Exército Popular de Libertação do país, e 1971, quando aparentemente se deu conta do fracasso da Revolução Cul-tural com a qual procurou afastar a China do modelo soviético, Mao venceu todas as grandes disputas. Sua posição básica, até antes de reconhecer o fracasso da Revo-lução Cultural, é resumida na história do partido pela seguinte frase: “Nós devemos

falar, mês após mês, ano após ano, da luta de classes e do perigo de uma restauração do capitalismo, a fim de ter uma compre-ensão suficientemente clara e de seguir a linha marxista-leninista.” Deng Xiaoping, uma das lideranças dissidentes nessa eta-pa, foi reabilitado, por indicação do pró-prio Mao, a partir de 1971, primeiro como vice-primeiro-ministro e depois, em 1973, como membro do comitê permanente do Politburo e vice-presidente da Comissão Militar do Comitê Central do partido e chefe do Estado-Maior do Exército de

Libertação Popular. Dois anos depois da morte de Mao, em 1978, Deng passaria a ser o novo grande timoneiro da China, com a consigna de colocar em primeiro plano, no lugar da luta de classes, o “de-senvolvimento das forças produtivas” do país. Foi Deng também quem patrocinou o programa das “quatro modernizações” para criar líderes do partido que fossem, como dizia ele, “revolucionários, mais jovens, com mais conhecimento e mais especializados”, através do qual despon-taram as figuras centrais das chamadas três gerações de líderes: de Jiang Zemin, Hu Jintao e, agora, Xi Jinping.

A prioridade para o “desenvolvimento das forças produtivas” da China se deu basicamente a partir da substituição das comunas rurais criadas sob a liderança de Mao. No seu esforço de fugir do modelo soviético no movimento do “Grande Salto à Frente”, Mao agrupou as 750 mil cooperativas agrícolas e as pequenas propriedades rurais onde estavam 80% da população do país em comunidades de 5 mil a 10 mil famílias, formando cerca de 10 mil comunas rurais, cada uma delas com uma direção política orientada para desenvolver lado a lado a agricultura e a indústria e evitar a burocratização e o centralismo excessivos. Numa reunião plenária do Comitê Central do partido em 1978, Deng defendeu sua posição antiga de que as comunas atrasavam o desenvolvimento das forças produtivas e aprovou submeter a votação, em todas as comunas, um novo sistema: a manutenção da propriedade coletiva da terra combinada com a possibilidade de seu arrendamento

As comunas saíram da ideia de promover o desenvolvimento equilibrado entre cidade e campo

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a foRça de tRabalho no camPoPor áreas de emprego, em milhões de trabalhadores

aos camponeses. A proposta foi aprovada em mais de 90% dos locais.

Uma das formas de ver os resulta-dos desse esforço de desenvolvimento é apresentada num interessante estudo de dois chineses, um professor, Ming Lu, e um doutorando, Hong Gao, ambos da Universidade Fudan, de Xangai: “Quando a globalização encontra a urbanização – reforma do mercado de trabalho, desigual-dade de renda e crescimento econômico na República Popular da China”, no título traduzido do inglês. Em seu trabalho, publi-cado em 2009, com estatísticas do período 1978-2007, os dois acadêmicos concluem basicamente que o desenvolvimento chinês se tornou desequilibrado, com grande de-sigualdade na distribuição de renda, num movimento que pode ser dividido em duas etapas: a primeira, da reforma das comunas

até meados dos anos 1990, e a segunda, daí em diante, quando as reformas foram completadas com mudanças no sistema cambial e do emprego urbano. O conjunto de reformas se reflete de maneira distinta sobre o trabalho na área rural e na urbana.

No campo, como se pode ver no qua-dro 1, na primeira etapa, sem que ocorra mais do que um crescimento vegetativo da força de trabalho rural, que vai de 350 mi-lhões para 480 milhões de pessoas, amplia-se o número de trabalhadores nas empresas das cidades e vilas rurais, de menos de 60 milhões para mais de 120 milhões de pes-soas e cria-se um expressivo contingente de trabalhadores por conta própria que, em menos de dez anos, de 1989 a 1996, sai do zero para cerca de 50 milhões de pessoas. Na segunda etapa, ocorrem duas grandes mudanças no campo: surge uma corrente

de trabalhadores migrantes, que sai do zero em 1996 para cerca de 120 milhões de trabalhadores em 2006, e forma-se progressivamente um grande contingente de empresas privadas que vai absorver, ao final do período, algo como 25 milhões de trabalhadores. A migração faz com que a força de trabalho no campo pare de crescer apesar do crescimento demográfico.

A mudança no emprego urbano é vista no quadro 2. A transformação é disparada por dois fenômenos, dizem Ming e Hong. Um é a mudanças na política cambial, com a desvalorização expressiva da moeda chi-nesa, o yuan, em 1984. O outro é a abertura da conta-corrente do balanço de pagamen-tos do país, para garantir o pagamento das transações comerciais. Com isso, surgem milhares de empresas locais para explorar o mercado externo e o crescimento do mercado urbano em expansão e, ao mesmo tempo, instalam-se no país, em associação com empresas locais, grandes companhias manufatureiras interessadas na exploração da mão de obra barata chinesa. E essa mão de obra é fornecida, tanto pela migração do campo quanto pela reforma do sistema de propriedade estatal, com a redução drástica do número de estatais – de perto de 250 mil para cerca de metade –, a concentração da produção nos mais diversos ramos e um grande esforço de remanejamento da enorme massa de seus trabalhadores. As estatais deixam de ser as empregadoras de 80% da mão de obra, como em 1978, e passam a empregar pouco mais de 20% da mão de obra, como em 2008. As em-presas de propriedade coletiva deixam de empregar em torno de 20% da mão de obra e passam a empregar pouco mais de 2%. E os outros tipos de empregadores, especialmente da indústria e de serviços privados, que praticamente não existiam em 1978, passam a ser os responsáveis pelo emprego urbano restante.

As reformas tangeram os trabalhado-res do campo para as cidades em busca dos milhões de empregos novos que surgiram com salários muito baixos para os padrões da mão de obra dos grandes países expor-tadores globais, como Alemanha, Japão e Estados Unidos, mas atraentes para pessoas que viviam muito pobremente no campo chinês. Nos últimos 20 anos, o PIB chinês cresceu mais de 500%, cerca de dez vezes mais que o americano. A China ficou rica, sem dúvida. Mas seu povo é pobre: a renda per capita do país é menor que a do Brasil, foi de cerca de mil para perto de 4,3 mil dólares nesses últimos 20 anos, enquanto a dos americanos foi de 35 mil para 47 mil dólares.

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Trabalhadores na agricultura eforça de trabalho excedente no campo

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Trabalhadores emigrantes

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EMPREGO URBANO POR TIPO DE EMPREGADOREm porcentagem do total empregado, de 1978 a 2007

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A PARTE DO TRABALHO NA RENDA NACIONALDe 1987 a 2007, em %

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O PCCh monitora o descontentamen-to popular e a polícia reprime os incidentes violentos há tempos. Exemplos do moni-toramento e dos incidentes ao longo dos últimos 15 anos:

• Em fins de 1995, a polícia interveio num conflito aparentemente causado por um morador de Shenzen, cidade industrial nova no sul da China, que passou com sua motocicleta sobre uma estrada recém-pavimentada por trabalhadores migrantes de outras províncias. O motorista foi atacado, a polícia interveio com violência, os trabalhadores se revoltaram, moradores de Shenzen tomaram o partido do motoci-clista, mais de cem pessoas ficaram feridas, disparos mataram duas pessoas, os migran-tes alegaram que não foram atendidos no hospital local, houve novos incidentes e a sede do PCCh foi atacada.

• Em meados de 2001, o partido publicou o “Relatório de investigação da China 2000-2001: estudo de contra-dições na população sob novas condi-ções”, um documento de 308 páginas, com o resultado de pesquisas próprias e consultas a estudiosos do assunto em 11 províncias. Ele descrevia a propagação de “protestos coletivos e incidentes de grupos”, alguns com dezenas de milhares de pessoas, resultantes de conflitos eco-nômicos, étnicos e religiosos, e dizia que as relações da população com o partido eram “tensas” e que os conflitos estavam

“aumentando”. Contava o caso de um produtor rural que cortou a orelha de um cobrador de impostos.

• No início de 2002, o correspon-dente Oliver August, do The Times, de Londres, na China visitou a cidade de Xianning, na província de Hubei. A província fica no interior do país, longe do litoral, ao leste, e da fronteira russa, ao norte. É onde Mao concentrou a

indústria pesada, no início dos anos 1960, curiosamente, sob comando de Deng Xiaoping. O repórter investigava a história de três gerentes de fábricas estatais que tinham sido assassinados por operários afastados das empresas. Ele visitou a fábrica de produtos químicos cujo gerente, Wang Shihua, havia sido assassinado pelo operário Xu Yudong durante uma discussão sobre o montante

de sua indenização. Xu fora afastado depois de nove anos de trabalho. August concluiu seu texto dizendo: “Quando ele [Xu] começou a trabalhar nessa fábrica, em 1993, o Partido Comunista prometia empregos para toda a vida. Agora os co-munistas o afastaram, dando-lhe pouca esperança de conseguir outro emprego.”

• Em fins de 2005, o então ministro chinês da Segurança Pública, Zhou Yong Khan, fez um balanço de seu trabalho e do que esperava fazer para o ano seguinte: se-gundo ele, teriam ocorrido 74 mil “inciden-tes de massas” em 2004, envolvendo mais de 3 milhões de pessoas em 377 cidades e 1.955 vilarejos, uma sensível expansão em relação ao ano anterior, quando houve 58 mil incidentes, e um grande aumento em relação aos números de dez anos antes – 10 mil incidentes.

O discurso de Zhou estava articulado com uma nova política chinesa em relação aos incidentes de massa, exposta pelo pre-sidente do país, Hu Jintao, no final de 2004, num encontro com dirigentes do partido e depois nas reuniões de planejamento para o Congresso Nacional do Povo do início do ano seguinte. Ela estava baseada em três pontos: conhecer bem o problema, agir preventivamente e atuar convenientemen-te, segundo teria dito Hu nesses encontros, procurando melhorar as condições de vida das duas classes fundamentais do país, o campesinato e o proletariado.

Os migrantes ilegais perdem direitose são os quemais engrossamos chamadosprotestos de massa

Novo tipo de protesto: milhões foram “desapropriados” sem indenização, de direitos sobre a terra adquiridos com a reforma

AFP

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o PaRtido, a RefoRma Política e as classesA extinção das comunas e a abertura econômica para ocampesinato criaram uma expressiva burguesia na China.Por quais canais essa classe se expressará?

Durante o Congresso Nacional do Povo, no ano passado, em Pequim, o primeiro-ministro Wen Jiabao, que deixa o cargo em março, junto com o presidente Hu Jintao, deu uma entrevista de três ho-ras à imprensa na qual fez declarações consideradas incomuns. Defendeu uma reforma no sistema político do país e disse que, se isso não for feito, mesmo os resultados econômicos das últimas décadas podem ser perdidos e a China poderia viver de novo um período de grande turbulência. “Não há outro ca-minho”, disse ele. “Sem uma reforma política bem-sucedida, será impossível empreender na sua plenitude a reforma do sistema econômico. Novos proble-mas que nasceram no seio da sociedade chinesa não serão resolvidos e tragédias históricas como a Revolução Cultural podem acontecer novamente”, concluiu. Uma das características de Bo Xilai foi o apelo a certos métodos de ação política que lembraram a Revolução Cultural. Em 2008 ele lançou a campanha “Cante Vermelho e Esmague Preto”, combinan-do o incentivo a reuniões com cantos revolucionários a uma campanha contra gangues criminosas do submundo de Pe-quim. Foram presas dezenas de empre-sários acusados de ligação com a máfia.

Nessa mesma entrevista do primei-ro-ministro, ele referiu-se indiretamente a Bo Xilai ao advertir os dirigentes do partido e da municipalidade de Chon-gqing sobre o escândalo escancarado com o pedido de asilo do ex-chefe de polícia local ao consulado americano. Bo era um ídolo para muita gente. Um livro, O modelo Chongqing, à venda na livraria da municipalidade e escrito por três autores considerados “maoistas”, era, segundo a revista The Economist, cujo repórter passou por lá em 2011, “uma espécie de manifesto” a favor da promoção de Bo ao comitê permanente do partido, no congresso do ano passado. Muitos viram na fala de Wen Jiabao apenas o aspecto da luta interna no PCCh sobre a linha a seguir. Mas o problema de fundo de sua fala está longe de envolver apenas dois grandes quadros do partido.

Quando Mao proclamou a República Popular em seu discurso na praça da Paz

Celestial, em Pequim, a 1º de outubro de 1949, o país tinha 475 milhões de habitantes. Incluindo o número de em-presários na força de trabalho, 85% eram camponeses, 5% trabalhavam no setor de serviços, 6,5% eram trabalhadores na indústria manufatureira e 4,3% eram empresários, dos quais mais de 90% eram donos de empresas com menos de oito empregados. Quando as reformas de Deng Xiaoping começaram, em 1978, a burguesia chinesa havia praticamente desaparecido. As quatro classes que Mao chamava de progressistas e nas quais se baseava a transformação socialista a ser efetivada – o proletariado, o campesi-nato, a pequena burguesia e a burguesia nacional – tinham praticamente sido

reduzidas a três. As reformas de Deng reanimaram a burguesia. Um “Estudo sobre os estratos sociais da China”, publicado em janeiro de 2002, mostrava que, nas duas décadas entre 1978 e 1999, o número de proprietários de empresas privadas passara de zero para 4,8% da população incluída na força de trabalho. A China tem hoje 1,347 bilhão de habi-tantes, a maioria nas cidades – 691 mi-lhões de moradores, contra 656 milhões da área rural. No final de 2008, segundo números do seu Escritório Nacional de Estatísticas, dos 4,9 milhões de unidades econômicas registradas no setor indus-trial e de serviços do país, 3,6 milhões – 75% – eram empresas privadas; havia 173 milhões de trabalhadores do setor industrial e 182 milhões no de serviços.

Resumindo as estatísticas: nas últi-mas décadas, houve enorme redução do

Na intenção, tudobem: admitir osburgueses nopartido, desde quesejam “excelentes”pessoas

campesinato e um igualmente enorme crescimento do proletariado urbano e das diversas camadas de trabalhadores do setor de serviços. Embora, em termos absolutos, pelas dimensões da população chinesa, os números sejam pequenos, nota-se também, relativamente, um grande crescimento do empresariado, da burguesia. Os burgueses são, agora, alguns milhões. E a burguesia chinesa formada nessas últimas décadas pode ser vista como uma burguesia nacional? No conjunto, evidentemente, não: das estatísticas do censo econômico oficial citado antes, dos 4,9 milhões de empre-sas chinesas, 100 mil tinham participação de capital estrangeiro e representavam 6,5% do capital total.

O partido fez dois movimentos em relação a essa nova burguesia. Com o primeiro, procurou atrair seu setor pro-gressista. No seu discurso em Pequim, na data de comemoração dos 80 anos do partido, 1º de julho de 2001, Jiang Zemin disse que “as forças avançadas da produção”, no “estágio primário de socialismo” em que a China se encon-traria, não incluíam apenas os trabalha-dores mas também “empreendedores privados”. E continuou: “A integridade política de uma pessoa” não deveria ser julgada somente com base em “se ela tem propriedades e em que extensão”. O principal jornal de massas do PCCh, o Diário do Povo, liderou a divulgação da nova postura com sucessivas matérias. “O importante discurso de 1º de julho é a gloriosa oportunidade de aderir ao marxismo, enriquecê-lo, desenvolvê-lo sob novas condições”, disse uma delas. Em outras, ressaltou-se a necessidade de admitir membros de “um novo es-trato social” – as palavras “burguesia” e “capitalistas” foram evitadas. O jornal procurou, ainda, esclarecer que tais novos membros teriam de ser “pessoas excelentes”, que seguiriam a linha do partido e respeitariam os direitos dos trabalhadores. Isso sem deixar de salien-tar que, independentemente da inclusão dessas pessoas do “novo estrato social”, operários e camponeses continuariam sendo “a espinha dorsal do partido”.

Tudo muito bem, cheio de boas intenções. Para este artigo não se encon-trou nenhuma avaliação do desempenho desses empresários como militantes do PCCh – que, deve-se ressaltar, é comu-nista e defende, inclusive, a ditadura do proletariado. Mas a imprensa tem uma série enorme de artigos sobre os ricos

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no Congresso Nacional do Povo. O CNP é a assembleia formada por delegados eleitos para representar todos os setores da população. A Constituição chinesa diz que todo o poder na República Popular da China “pertence ao povo” e que “os órgãos através dos quais o povo exer-ce o poder estatal” são o CNP e seus correspondentes, os congressos locais do povo dos diversos setores e locais. A Constituição estabelece também que todo cidadão a partir de 18 anos tem o direito de votar e ser votado, a despeito de sua etnia, raça, sexo, religião, educação e propriedades. As eleições são diretas no nível administrativo mais próximo da população, os distritos e vilas, desde o começo dos anos 1990.

A partir desse nível, os delegados para o nível mais alto são escolhidos por votação no nível anterior. O 13º CNP terá cerca de 3 mil delegados e elegerá o presidente da República em março, quando começa o mandato de cinco anos de seus deputados – o mandato do presidente coincide com o do CNP. Essa grande assembleia se reúne durante uma sessão de duas semanas em Pequim, anualmente, e tem um comitê permanen-te que se reúne, também na capital da China, por dez dias a cada dois meses. O 13º CNP começou a ser eleito a partir das eleições diretas nas vilas e distritos em outubro, no processo que terminará em fevereiro.

Segundo matéria da agência Bloom-berg, divulgada no Brasil pelo diário Valor Econômico, existe um levantamento confiável com a lista dos mais ricos do

CNP. Ela é feita a cada legislatura pela Hurun, uma editora de Xangai espe-cializada em revistas voltadas para os consumidores de artigos de luxo, um setor da economia chinesa que teve um crescimento espetacular nos últimos anos. A Hurun, diz o artigo, usa informa-ções disponíveis publicamente sobre os negócios na China, cruza nomes obtidos dessa forma com a lista de membros do CNP e tira daí sua lista dos mais ricos.

Pois bem: segundo a lista da Hurun, os 70 delegados mais ricos do 12º CNP tinham um patrimônio de perto de 90 bilhões de dólares. Isso, diz o artigo da Bloomberg, deve ser comparado com o patrimônio de 7,5 bilhões de dólares que teriam os 660 principais funcionários dos três poderes dos Estados Unidos. A comparação não é apropriada porque o sistema político dos EUA, que se pretende muito melhor que o chinês – o país tem ampla liberdade partidária, imprensa livre e tudo o mais que a democracia burguesa permite –, não nos parece essa maravilha. A esse respeito, veja, em nossa edição de janeiro, “Se não Obama, quem?”, que trata do sistema pluripartidário – de fato, bipartidário – americano e conta a história de como ele se consolidou após a guerra civil de 1861–1865, quando o país, já efeti-vamente independente, industrializava-se e começava a disputar, com a Inglaterra, o título, afinal ganho, de primeira potência imperialista global. Veja também, nesta edição, à página 42, o artigo “O verdadeiro papel da mídia é esclarecer ou confun-dir?”, sobre a regulação da imprensa na Inglaterra, país onde se formou a primeira

nação imperialista e no qual a liberdade de imprensa se transformou num negócio de quinta categoria, com empresários como Murdoch.

De qualquer modo, é indiscutível que o fato de homens muito ricos te-rem assento na maior casa legislativa do país – o CNP tem o direito de emendar a Constituição e é o órgão responsável pelo seu cumprimento – tem peso. Diz o artigo citado da Bloomberg que a terceira pessoa mais rica do CNP, na legislatura que está se encerrando, Lu Guanqiu, descrito como “um magnata do setor de autopeças”, viajou para os EUA com o provável novo presidente da China, Xi Liping, na visita oficial deste aos EUA em fevereiro do ano passado, tendo participado de uma reunião com o vice-presidente Joe Biden e o então secretário do Tesouro, Timothy Geith-ner. No fundo, essas reuniões ajudam os negócios de Lu.

Além de admitir os ricos no partido e no CNP, o PCCh fez dois outros mo-vimentos que afetam os interesses da burguesia chinesa: a transformação dos contratos de arrendamento das terras de posse dos camponeses em instrumentos financeiros negociáveis no mercado e o fortalecimento dos direitos de repre-sentação dos trabalhadores nos locais de trabalho. Sobre os rumos dessa reforma trabalhista, pode-se saber mais através de uma entrevista dada por Li Keqiang no final do ano passado. Li é atualmente vice-primeiro-ministro da China e foi nomeado pelo PCCh para ser um dos sete integrante do comitê permanente

Lu, à direita, magnata de autopeças, foi um dos delegados ao 12º CNP e foi com Xi Jinping aos EUA: para ele, foi ótimo

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do birô político do partido. Está escala-do para ser o substituto de Wen Jiabao, como primeiro-ministro do país, a partir de sua eleição provável pelo 13º CNP que está sendo eleito, na sua sessão de março próximo.

No discurso, Li declarou que os custos do trabalho devem aumentar na China. Em vez de poder desfrutar a enorme massa de mão de obra barata que impulsionou o país nas primeiras décadas da reforma e abertura do final dos anos 1970, agora a China deve fazer uma reforma nos dividendos do cres-cimento, ou seja, deve reduzir o lucro das empresas em benefício do aumento dos salários. Li também falou da outra reforma: a do sistema chinês de registro do local de moradia, chamado de hukou, que nega, aos migrantes não autorizados a trabalharem em cidades fora de seu local de moradia, os mesmos direitos ao sistema de bem-estar social de que gozam os moradores locais. A reforma dos dividendos já está em curso. Nos últimos anos, o PCCh aumentou o seu trabalho nas fábricas, aproveitando-se da imposição, pelo governo, de repre-sentantes dos trabalhadores inclusive na diretoria das empresas e ajudou, através de seu braço sindical, a fazer crescer o movimento grevista e de protesto contra baixos salários e por melhores condições de trabalho. Por essas razões, nos últimos anos houve sensível aumento dos salários dos operários na China. Essa reforma, com certeza, fere os interesses dos bur-gueses tradicionais, cujo papel essencial, como se sabe, consiste em obter mais-valia da força de trabalho para ampliar sempre mais o seu capital. Em relação ao que pensam sobre essa reforma os empreendedores que são ao mesmo tempo militantes do PCCh, nada se sabe. Será que eles seguirão a linha do partido que assim decidiu, contrariando seus próprios interesses? Quem viver verá.

A outra reforma, a do sistema hukou, também já está em curso, em caráter experimental, na província de Chengdu e na municipalidade de Chongqing, desde 2007. Ela tem um sentido mais ambíguo, pelo menos segundo o marxismo tradi-cional conhecido. A doutrina diz: um camponês é, em potencial, um burguês. A reforma de Deng Xiaoping foi boa para o desenvolvimento chinês e ele tinha razão na disputa teórica com Mao, porque, nas comunas, que existiram nas duas primeiras décadas de construção do socialismo na China, os campone-

ses não estavam à vontade, junto do proletariado, porque, em geral, queriam produzir mais e enriquecer. Daí porque o arrendamento das terras e a consigna de que “enriquecer é glorioso” de Deng caíram para eles como o queijo sobre o macarrão e a reforma do campo chinês foi tão espetacular.

Mas não para todos os campone-ses. Como mostramos nos capítulos anteriores, as reformas, inclusive a do setor estatal, formaram uma burguesia industrial, mas, nesse movimento, a mão de obra barata desempenhou um papel essencial e os pobres migrantes do cam-po formaram nas fileiras dessa mão de obra barata. E não atingiram a “glória” de enriquecer, como sugerido por Deng. O objetivo das comunas de Mao tinha o propósito, como dissemos, de promover um desenvolvimento mais equilibrado do país, de tentar evitar uma migração enorme para as cidades. O partido quis

fazer isso politicamente, dirigindo as co-munas. Já naquela época o sistema hukou funcionava. Sem maiores problemas, no entanto, porque a China se desenvolvia muito mais lentamente do ponto de vista econômico, embora de modo muito mais turbulento do ponto de vista político.

Com as gigantescas migrações e os enormes desequilíbrios provocados pelas reformas, a solução encontrada pelos planejadores chineses foi cortar os serviços públicos do seu sistema de bem-estar social para os migrantes não autorizados. Isso provocou enormes e numerosíssimos conflitos, como alguns já descritos neste artigo. A solução que estava sendo tentada em Chongqing era aproveitar os direitos dos trabalhadores ao arrendamento das terras públicas estabelecido com as reformas de Deng e transformá-los num instrumento financeiro. Explicando melhor: o arren-damento das terras das comunas foi feito através de contratos dos camponeses

com a administração das vilas, distritos e municipalidades por prazos, no geral, de 30 anos e que podiam ser renovados. A ideia da reforma é que um camponês que tenha direito a um desses contratos possa, então, vendê-lo e mudar-se para a cidade, aumentando a sua renda para enfrentar as condições da mudança.

Numa sessão especial do comitê permanente do Congresso Nacional do Povo realizada em 2008 e que durou um mês, acabou-se aprovando uma reforma com o sentido de financeirização expos-to, com a condição de que se preservem a posse coletiva da terra e a quantidade de terras agrícolas necessárias para a China manter a sua capacidade atual de ser autossuficiente em alimentos, ou seja, de produzir para alimentar a sua enorme população. (Aqui não estão contados, é claro, gatos, cachorros e outros bichos domesticáveis. Recentemente, o gover-no liberou a criação deles nas grandes cidades, visto que os chineses estão mais ricos e esses animais de estimação comem, em grande parte, soja exportada pelo Brasil...)

O detalhamento da reforma do sistema hukou merece outro artigo. No momento, para finalizar este, pode-se dizer que a burguesia chinesa – que, em geral e por precaução, avaliamos ser re-belde às ideias do PCCh – gosta da ideia da financeirização da propriedade da terra, porque isso abre um novo campo de negócios dentro do já amplo setor de negócios imobiliários do país, que mo-vimenta muita gente: algumas centenas de milhares de empresários e algumas dezenas de milhões de trabalhadores. Pelo censo oficial já citado, são 245 mil estabelecimentos de negócios imobiliá-rios, com 5,5 milhões de trabalhadores empregados, e 245 mil estabelecimentos ligados à construção civil, com 39,1 mi-lhões de trabalhadores.

A senhora Wu Yajun, presidente do conselho de administração da Longfor Propertis, empresa de negócios imobiliá-rios com um patrimônio de pouco mais de 5 bilhões de dólares, é do Congresso Nacional do Povo. O partido deve temer a sua atuação como deputada do CNP? Ela, por ser muito rica, deveria não ter esse direito? Talvez o deva ter. Afinal, o CNP não é assim tão poderoso e a China, como foi dito, está na etapa primária da construção do socialismo e seu sistema não parece ser menos democrático que o americano, como sugerimos pelas leituras recomendadas um pouco acima.

A senhoraWu Yajun, com patrimônio deUS$ 5 bilhões, é do Congresso Nacional do Povo. Tudo bem?

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dA eStétIcA dA fomeà eStétIcA do LIxo,dA ALegoRIAdA eSpeRAnçAà do deSengAno

Livro 1

É raro que a reedição de uma obra seja um grande acontecimento de uma área do conhecimento. Os es-tudos cinematográficos no Brasil têm, inclusive, acompanhado o crescimento da produção do cinema brasileiro pós-retomada, com a multiplicação de cur-sos universitários, revistas impressas e eletrônicas, livros, festivais e mostras. Mas já é em si mesmo um tema para reflexão que nada dessa produção se compare, em qualidade e mesmo em capacidade de iluminar o presente, com a republicação de Alegorias do subdesen-volvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal, originalmente lançado por Ismail Xavier em 1993.

Trata-se da obra máxima do princi-pal crítico de cinema no País – e talvez o principal crítico, quaisquer que sejam as áreas culturais em consideração –, ainda que nos últimos 20 anos Ismail tenha continuado a publicar, sempre com renovado fôlego, aliando grande tino para diagnósticos do presente his-tórico, perspicácia de análise estética e erudição temperada pela generosidade democrática de seu estilo cristalino. Mas um grande crítico só alcança a plenitude de suas capacidades quando

se debruça sobre obras que, por sua qualidade e complexidade, desafiam a leitura e descortinam visões originais da vida individual e coletiva: Bazin es-crevendo sobre o neorrealismo, Lukács sobre o romance realista, Benjamin sobre Baudelaire, Roberto Schwarz sobre Machado de Assis.

Isso acontece em Alegorias do sub-desenvolvimento, obra de maturidade do projeto de trabalho de seu autor. Entre outras coisas, ele é responsável pela consolidação do campo dos estudos cinematográficos no País, para além do ensaísmo idiossincrático. Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP desde meados dos anos 1970, Ismail dedicou a primeira fase de sua carreira a uma obra de consolidação metodológica e atualização teórica do seu campo. Em O discurso cinematográ-fico – opacidade e transparência, passou em revista, de modo comparativo e historicamente situado, praticamente todo o corpo teórico dos estudos cinematográficos, e o livro tornou-se bibliografia obrigatória da área em formação. Quase ao mesmo tempo, publicou Sétima arte, um culto mo-derno, dedicado às primeiras teorias

do cinema, do início século XX, e à discussão nacional sobre a então nova arte. Ismail iniciava seu trabalho mar-cando a reflexão teórica de envergadura internacional por um enraizamento radical na experiência nacional, na qual os entraves e incompletudes são parte essencial do jogo.

A década seguinte foi o de um definitivo passo à frente, com a produção de Sertão mar: Glauber

Rocha e a estética da fome e, na sequência, Alegorias do subdesenvolvimento – ambos republicados pela CosacNaify. Neles, mergulhou no nosso melhor momento cinematográfico evidenciando como se deu a formalização estética do mais importante momento histórico do País no século XX – que teve no Golpe de 1964 seu lance decisivo. Essa análise busca compreender como o Cinema Novo, e depois o Cinema Marginal, compôs “seu diálogo com a herança modernista e os imperativos de uma militância de efeito político imedia-to”, como explicou o próprio crítico na apresentação escrita especialmente para a reedição de Sertão mar, em 2007. Essa dupla atenção, aos detalhes de

Alegorias do subdesenvolvimento, de Ismail Xavier, reeditado com novo e iluminador prefácio, é a mais importante obra da crítica cinematográfica nacional

por Leandro Saraiva

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composição estética dos filmes e à interpretação totalizante da história, situando o repertório teórico e as re-ferências internacionais no contexto nacional, estabeleceu um novo padrão para a crítica cinematográfica no País.

Em Sertão mar, Ismail dedicou-se a caracterizar a “estética da fome” glauberiana não como um mero estilo diferencial, na prateleira das formas mundiais, mas como uma expressão esteticamente poderosa da condição de subdesenvolvimento. Pela análise comparativa entre filmes de Glauber (Barravento e Deus e o Diabo na terra do sol) e obras contemporâneas que almeja-vam dominar o código cinematográfico hegemônico (O cangaceiro e O pagador de promessas), Ismail consegue delinear em detalhe o projeto do Cinema Novo, que dialogava tanto com o modernismo literário nacional quanto com o cinema moderno do pós-guerra, em espe-cial italiano (neorrealismo) e francês (nouvelle vague), mas em seus próprios termos de radicalização política, trans-figurada, digamos assim, numa autoria

que pretendia criar uma cinematografia anticolonial através de uma ruptura no nível da linguagem artística.

Em especial na análise de Deus e o Diabo, Ismail mostra como Glauber construiu essa posição

pela incorporação de elementos do cinema e da cultura internacionais – a moldura de western, os momentos de montagem inspirados em Eisenstein, as interpretações e interrupções brechtia-nas – e aqueles de extração popular nacional –, o contraste fotográfico ao estilo das xilogravuras, o cordel e seu narrador cego, as figuras emblemá-ticas do messianismo e do cangaço, numa obra que justapõe ritmos, da experiência popular e de uma filosofia da história que vislumbra o horizonte revolucionário. O resultado é intenso, quase operístico, cheio de saltos: o barroquismo de Glauber nunca foi tão bem exposto e apresentado como na prosa cristalina de Ismail. O críti-co explorou ao máximo a recorrente identificação de um elemento mítico,

religioso, na arte de Glauber, muitas vezes chamado de profeta, caracteri-zando seu cinema como “alegórico”. A alegoria é uma figura retórica base-ada na desnaturalização da narrativa, na codificação de elementos de uma mensagem. Em termos clássicos, serve à transmissão de uma verdade anterior, em geral religiosa, que antecede a obra. Em sua versão moderna, que teve em Walter Benjamin seu grande teórico, a alegoria transmite uma mensagem em aberto: pede decodificação, mas não entrega os códigos. Anuncia, jus-tamente, a falsidade da prosperidade capitalista, apontando suas raízes na violência, revelando que, por trás da ordem aparente, como sua imagem em negativo, está a ruína e a fragmentação da exploração e da alienação – ou, na expressão sintética de Glauber, ela mesma alegórica: da fome.

Ismail chamou Deus e o Diabo de “alegoria da esperança”, por o filme concatenar as imagens da violência do mundo do messianismo e do canga-ço, emblemas da violência social em

Cena de O Bandido da Luz Vermelha: ele é, segundo Ismail, um mergulho progressivo no sentido da história como catástrofe

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geral da sociedade brasileira, com um salto visionário para a revolução, no famoso final, ao som dos versos que profetizam que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, acumulando as experiências populares e fazendo explodir a ordem vigente.

Sertão mar antecede Alegorias e lhe dá a base para a interpretação, estética, do momento histórico

seguinte: o inferno de Eldorado (o equivalente ficcional do Brasil, em Terra em transe), na derrota do movi-mento popular para o golpe de direita. Terra em transe é um filme seminal, não apenas para a série de películas anali-sadas no livro de Ismail mas também para outras obras fundamentais do período, como Tropicália, de Caetano Veloso, e a montagem de O rei da vela, por José Celso. Nele Glauber levou ao extremo o que Ismail chamou de seu “desejo de história”, na forma mais acabada de um drama barroco, feito de fragmentos alegóricos, compostos em torno de tramas palacianas e sugestões de presença de forças transcendentes atuando para uma antir redenção, uma danação universal, reduzindo o mundo a ruínas. Em Glauber, essas forças eram a grotesca aliança entre burguesia internacionalizada, capital estrangeiro (a invisível, mas todo-

poderosa Explint) e o populismo de direita, carola e reacionário, encarnado por Diaz – tudo amalgamado na face-máscara demoníaca de Diaz, no que parece ser a nossa versão fracassada e conservadora do Destino Manifesto americano. Se a liderança americana parecia aos EUA um direito sagrado, Glauber encenava uma condenação irremissível, a reposição dos mesmos poderes atávicos, telúricos, impondo a Eldorado seu subdesenvolvimento, desde seu início colonial.

A passagem de Deus e o Diabo para Terra em transe e a de Sertão mar para Alegorias marcam a expressão cinema-tográfica do que se acreditava ser a pré-revolução para a agonia frente ao vitorioso golpe da reação. Nas palavras de Ismail, da “alegoria da esperança” para a “alegoria do desengano”. A radicalização alegórica, a dramatiza-ção da perda de um sentido histórico, inaugurou um novo momento na cultura. Como resume Ismail no novo prefácio da reedição de Alegorias, o livro “focaliza o final dos anos 60, um momento de forte transição política, cultural, estética – em que o cinema, o teatro, as artes visuais e a MPB […] definiram uma época […]. Tivemos uma síntese de um legado construído ao longo do século XX, desde o mo-dernismo dos anos 20 até o momento

nacional-desenvolvimentista dos anos 50 […] houve uma veloz sucessão de inovações que, depois do golpe militar, não arrefeceu, tornando-se ainda mais intensa em suas rupturas e tensões com o poder. [O cinema] internalizou a crise política de época na sua construção formal, mobilizando estratégias alegó-ricas marcadas pelo senso da história como catástrofe”.

A série que se desdobra a partir de Terra em transe – O bandido da luz vermelha, Macunaíma, Brasil

2000, O anjo nasceu, Matou a família e foi ao cinema, Bang bang – marca a passagem do Cinema Novo ao Cinema Marginal e um mergulho progressivo nesse “senso da história como catástrofe”. Essa per-da do horizonte histórico vai se mani-festar de maneiras diversas. Nos filmes de Bressane (Matou a família e O anjo nasceu), isso ocorre numa encenação feita de planos longos e descentrados, enquadrando um desespero a frio, ele-gante na moldura, grotesco e violento nas ações, sem qualquer chance de reconciliação. E, diferente de Glauber, sem contextualização histórica ou mesmo explicações narrativas, num presente esvaziado, sem esperança para seus personagens à deriva. Ainda mais radical em sua negatividade, Bang bang, de Tonacci, é feito de fragmentos de ação, que se estendem, em planos ultracompostos, mas sem que se com-ponha um sentido, numa ironia geral e sem qualquer valorização, de gestos ou entendimentos. Um meio sorriso geral, de tom quase louco.

Cabe aqui um destaque para a ino-vadora e muito produtiva percepção de Ismail sobre o tropicalismo. Como já foi dito, é reconhecida a influência de Terra em transe sobre protagonistas do movimento em outras artes, sobretu-do Caetano Veloso. A lição tirada por Caetano do filme de Glauber é, inclu-sive, o ponto nevrálgico da narrativa do surgimento do tropicalismo, em Verdade tropical, e também da crítica

Terra em Transe é a expressão cinematográfica do que seria o otimismo pré-revolução e acaba sendo a agonia frente ao golpe

ALegoriAS do SubdeSenvoLvimento: CinemA novo, tropiCALiSmo e CinemA mArginAL

Autor Ismail Xaviereditora Cosac NaiyfAno 2012páginas 480

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a Caetano, empreendida por Roberto Schwarz em seu ensaio sobre o livro de Caetano (em Martinha versus Lucrécia). Schwarz aponta, na leitura feita por Caetano da agonia de Paulo Martins, o intelectual engajado de Terra em transe, uma negação do compromisso com as forças populares, retomando, assim, algo de seus argumentos em “Cultura e política: 1964–1969” (em O pai de fa-mília e outros estudos). Nesse artigo, hoje um texto clássico sobre o movimento liderado por Caetano e Gil, Schwarz reconhece a capacidade mimética das imagens poéticas tropicalistas, que ele bem caracteriza como alegóricas. Elas flagrariam o absurdo da modernização conservadora brasileira, sobrepondo vanguarda e atraso (como na letra da própria Tropicália, canção-manisfesto de 1967), mas, ao mesmo tempo, se-riam imagens congeladas, incapazes de incluir uma mediação, uma possibilida-de de superação desse absurdo – o que dependeria, justamente, de uma ação popular de negação da ordem burguesa pós-golpe, que o tropicalismo excluiria de sua visão.

Passando ao largo da polêmica com Caetano, o que interessa aqui é a inter-pretação de Ismail do tropicalismo no cinema, sobretudo em O bandido da luz vermelha, filme que sucede e polemiza com Terra em transe, parodiando sua

dramatização operística da política numa historieta de confronto entre o bandido e JB da Silva, um chefão da Boca do Lixo. O filme é uma colagem de paródias, não só de Terra em transe mas do próprio cinema moderno inter-nacional – como se fosse uma chancha-da escrita e dirigida por Godard. Toda essa ironia, tipicamente tropicalista, não nega, entretanto, a história, ou melhor, o “senso da história como catástrofe”. A máxima do filme – “Se a gente não pode fazer nada, a gente avacalha” – é encenada também como corrosão, como alegoria infernal do “terceiro mundo”, tão evocado no filme. “Da estética da fome à estéti-ca do lixo”, dizia o subtítulo da tese apresentada por Ismail à NYU, que deu origem ao livro agora reeditado. Ismail reconhecia no tropicalismo uma potência de negação e rebelião que, hoje, seus detratores tendem a esquecer e, assim, congelá-lo em uma versão comercial edulcorada que não com-bina com a ação cultural de Caetano e Gil, pelo menos naquele momento, e de outros tropicalistas mais radicais, como Agripino, Rogério Duarte ou Torquato Neto.

Com essa visão nuançada do mais rico e complexo momento de nossa arte, e também o mais tenebroso em termos políticos, Ismail expõe o que

de mais próximo o cinema brasileiro logrou em termos de “formação”, de expressão em forma estética da forma social do País. Uma formação social truncada, que se moderniza repondo as estruturas tradicionais, reproduzindo desigualdade e injustiça. Esse subde-senvolvimento atávico encontrou sua expressão audiovisual nas alegorias estudas por Ismail.

A republ icação de um l ivro dessa magnitude nos exige a recolocação do cinema na

perspectiva dessa formação histórica. E não é o menor mérito dessa obra grandiosa o seu novo prefácio. Nele, Ismail retoma, com base em seu pró-prio trabalho posterior, sempre atento à atualidade, e sem perder o tino his-tórico, as ligações do cinema brasileiro recente com seu passado modernista, trágico e alegórico. Reconhece a pre-sença desse cinema, até nos casos de negação como afirmação de alternati-vas mais mercantis, mas muitas vezes como repertório nacional que interpela o realizador atual, que se vê impelido a acertar contas com o sertão, com a favela e os marginais, com a narrativa de estrada, e assim por diante. Nos casos mais instigantes, ainda com a invenção de uma linguagem cinema-tográfica própria, que, se não surge mais como movimento, persiste em trabalhos individuais, como os cineas-tas modernos remanescentes – como Coutinho, Bressane ou Tonacci –, ou eu jovens realizadores que buscam a experimentação, ainda que sem a busca de totalização de tempos mais decisi-vos. Balanço precioso o desse prefácio, em um tempo de criação atomizada e de pouco adensamento histórico na reflexão de um campo crítico que deve muito a Ismail, em sua constituição, mas hoje tende a aderir aos lances rápidos, seja nas tentativas mais mer-cantis, nas modas críticas universitárias ou nas consagrações autocentradas de festivais especializados.

Tudo considerado – retomada, crescimento da faixa nacional de mer-cado, presença do cinema na TV, via nova lei do cabo, cursos e encontros universitários, festivais, sites, revistas –, é muito provável que a reedição de Alegorias do subdesenvolvimento seja o grande acontecimento cinematográfico dos últimos anos.

Deus e o Diabo: alegoria da violência do cangaço como salto visionário à revolução

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como São pAuLoInventoujeSuS cRISto

Livro 2Jesus Cristo realmente existiu, mas sua vida e obra foram muito diferentes da imagem que temos hoje, a qual foi criada principalmente por são Paulo, que não conheceu Cristo pessoalmente e o idealizou e acabou consagrando, embora não o consi-derasse divino. Essa, pelo menos, é a tese de Selina O’Grady, jornalista da BBC especialista em temas históricos e religiosos, sobre os quais produziu várias séries televisivas e publicou livros de vulgarização. Essa tese consta de seu mais recente livro, editado no ano passado pela Atlantic Books, da Grã-Bretanha: And Man Created God – Kings, Cults, and Conquests at the Time of Jesus, ou seja, “E o homem criou Deus – reis, cultos e conquistas no tempo de Jesus”, em tradução livre.

Escrito mais ao estilo de uma vivaz reportagem que procura recriar pes-soas com seus hábitos e cacoetes e os ambientes luxuosos ou modestos que frequentavam do que com o sisudo teor das obras de historiadores eruditos, o livro divulga para um público mais amplo teses que já estão consagradas pela historiografia das religiões. Como acreditar em Deus é uma questão de fé e escrever um relato histórico, ainda que semijornalístico, requer base em docu-mentação deixada por seres humanos, e não por Deus, o tom geral do livro é agnóstico.

Para o grande público, ao mesmo tempo culto, mas leigo no assunto, uma das grandes contribuições do livro é a divulgação mais ampla de teses há muito

Um amplo painel de um período de grandes transformações na cultura dos povos, que começa algumas décadas antes do nascimento do deus dos cristãos e vai até o século IV d.C.

por Renato Pompeu

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aceitas entre os pesquisadores sobre o fato de que o cristianismo, tal como o conhecemos, e mesmo a figura de Jesus Cristo, tal como consta no imaginário de bilhões de fiéis, são em grande parte “invenções” de são Paulo, e não criações propriamente de Jesus Cristo e seus apóstolos. Selina O’Grady, por exemplo, nota que, cronologicamente, os escritos de são Paulo são anteriores a todos os demais textos do Novo Testa-mento, inclusive os Evangelhos, embora estes se refiram a fatos anteriores aos narrados por são Paulo. Isso quer dizer que o pensamento dele influenciou as histórias sobre a vida de Jesus, dando a ela um colorido, algo diferente do que realmente aconteceu.

Aqui temos de lembrar que há estudiosos agnósticos e ateus, principalmente na antiga União

Soviética, que consideraram Jesus Cristo não ter jamais existido, já que não exis-tem sobre ele registros contemporâneos à sua vida, mas apenas a partir de cerca de um século após a sua morte. Mas a maioria dos pesquisadores considera que Jesus Cristo efetivamente existiu e lembra que os documentos mais antigos referentes a Alexandre, o Grande, datam de cerca de três séculos depois de sua morte, sem que ninguém ponha em dúvida a sua existência. Apenas Selina O’Grady nota que, pelo que se sabe a partir de documentações, Jesus foi mais um dentre numerosos pregadores judeus que atuavam na Palestina durante a ocupação romana.

Em primeiro lugar, é preciso notar que Jesus pregou predominantemente para pescadores e camponeses que viviam em pequenas aldeias da Gali-leia, não tendo maior experiência no verdadeiro centro do judaísmo da épo-ca, a Judeia. Também não teve maior influência junto a setores médios e altos da sociedade judia da época. Acima de tudo, sua pregação se dirige praticamen-te apenas aos judeus da Palestina, não se dirigindo aos outros povos da épo-ca. Seus apóstolos, que eram também pescadores e camponeses de pequenas aldeias, igualmente se dirigiram aos ju-deus, embora tenham ensaiado acenos a não judeus simpatizantes do judaísmo, que, porém, segundo os apóstolos, precisavam se converter ao judaísmo e adotar as suas práticas, como a circun-cisão, para poderem ser seguidores de

Jesus Cristo. Todos eles, Cristo e seus apóstolos, eram críticos em relação às autoridades romanas.

São Paulo, no entanto, tinha uma experiência completamente diferente. Nascido Saulo, era um judeu da Diáspo-ra, e não da Palestina; nasceu em Tarso, na Ásia Menor, hoje Turquia. Além dis-so, era de uma camada social mais alta. De profissão, era produtor de tendas para os acampamentos militares dos romanos e, além disso, também coletava impostos para o Estado romano. Isso o colocava em colisão com grande parte dos judeus da época, particularmente os da Palestina, que eram resistentes à ocupação romana, e não aliados dela. Como judeu pio e agente dos romanos, Saulo participou da perseguição aos cristãos, mas, a partir de uma viagem a pé para Damasco, começou a ter visões em que Jesus lhe aparecia pregando para judeus e não judeus, e não só para não judeus simpatizantes do judaísmo, mas para todos os seres humanos, inclusive os que não queriam se converter a esse credo.

A partir dessas visões, Saulo se converteu ao cristianismo e mudou seu nome para Paulo, que significa “peque-no” em latim. Mas não se tratava do cristianismo como regeneração do juda-ísmo, tal como constava da pregação do próprio Jesus Cristo e de seus apóstolos, mas, sim, de uma religião universal, para todos os povos, tal como era pregada por Jesus Cristo em suas aparições na visão de são Paulo.

Toda essa história consta apenas do último capítulo do livro de Selina O’Grady. Não se restringindo à história do cristianismo, mas abrangendo todo o ambiente histórico, religioso, cultural, social, político e econômico do chama-do mundo conhecido na época pelo Ocidente, ou seja, a Europa, a Ásia e o Norte da África, a autora mostra como as concepções sobre Deus e os textos sagrados foram produções de seres humanos que procuravam responder às exigências de seu tempo.

O período coberto pelo livro come-ça algumas décadas antes do nascimento de Cristo e chega ao século IV d.C., quando o imperador romano Teodósio proibiu o culto de outras religiões que não a cristã – e também a judaica, úni-cas religiões admitidas no Ocidente até poucas décadas atrás. A autora chama a atenção para o fato de que a Antigui-

dade foi muito mais tolerante quanto à diversidade de religiões do que a Idade Média ou a Idade Moderna. Mesmo hoje, na Idade Contemporânea, na maioria dos países não se chegou a um nível de tolerância religiosa comparável ao dos tempos antigos.

O’Grady assinala inicialmente que, nos tempos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo, o mundo passava por uma mudança geral nas concepções religiosas, provocada por uma mudança também geral no modo de vida das pessoas. Antes dessas grandes trans-formações, praticamente a totalidade das pessoas era constituída de famílias de agricultores que não conheciam am-bientes urbanos e cultuavam divindades a que pediam boas colheitas, em troca de sacrifícios propiciatórios. Também havia tribos guerreiras que cultuavam deuses que propiciavam coragem e vi-tórias nos combates seguidos de saques.

Os cultos a deuses rurais e tribais, entretanto, não eram adequados aos grandes impé-

rios que haviam começado a se formar no período abrangido pelo livro: o império de Alexandre e os de Roma, Pérsia, Índia e China. Nos impérios de Alexandre e de Roma, chegou a haver tentativas de divinizar o imperador, mas isso criava dificuldades para os seus súditos de múltiplas etnias e múltiplas divindades. Surgiu um problema novo: como se podia ser ao mesmo tempo um fiel egípcio, de cuja identidade fazia parte a crença nos antigos deuses rurais e tribais, e um fiel súdito romano?

Também a instauração dos grandes impérios não só fez aumentar grande-mente o grau de urbanização das socie-dades mas também mudou radicalmente o caráter das cidades. Até então elas haviam sido sedes de templos e de guar-nições militares de praticamente uma etnia só, mas passaram a ser centros comerciais e administrativos multiét-nicos, além de contarem com soldados de várias regiões de cada império, com cada etnia cultuando os próprios deuses. Os que serviam para os camponeses (ou para os escravos agrícolas) e para os grandes proprietários agrários (que constituíam aristocracias nobiliárqui-cas) não serviam, de um lado, para os comerciantes e artesãos, que eram extremamente nômades e circulavam por várias cidades do império, sem

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estarem apegados aos deuses de cada uma. Eles haviam enriquecido, mas seu novo status social não era tido como alto pelas nobrezas agrárias que con-tinuavam dando o tom na sociedade. Em vez dos deuses particularistas do campo e das tribos, esses comerciantes e artesãos passaram a preferir deuses ao mesmo tempo mais universalistas e que permitissem uma exaltação da personalidade. O mesmo ocorria com os quadros administrativos mais altos, como, por exemplo, os grandes coleto-res de impostos, que, juntamente com a corte imperial, necessitavam de um culto que tornasse mais respeitado o Estado, cada vez mais centralizado e atingindo, continuamente, territórios maiores e populações mais densas e mais heterogêneas.

Havia formas especiais de espi-ritualidade entre as camadas mais intelectualizadas, não

só a dos comerciantes e artesãos mas também a dos quadros administrativos e, ainda, dos próprios senhores agrários. Esses estratos se interessavam mais por filosofia do que por religião e assim cresceram nas cidades do Império Ro-mano e também dos impérios da Pérsia e da Índia, afetados pela cultura grega desde o Império de Alexandre; primeiro os inúmeros adeptos do epicurismo e,

em seguida, os do estoicismo, com seu culto à razão e às liberdades individuais.

Isso que se pode chamar de espi-ritualidade filosófica atingiu, porém, o auge na China, onde o confucionismo se tornou uma verdadeira religião es-tatal, um culto seguido pela poderosa burocracia centralizada imperial. Esse pensamento dominou a sociedade chi-nesa durante dezenas de séculos. Selina O’Grady chama a atenção para o fato de que a ideologia originada a partir de Confúcio foi, entre todas as ideologias criadas pelos seres humanos até agora, a que dominou mais pessoas durante mais tempo. O império chinês foi o que mais avançou no desenvolvimento de uma religião estatal que legitimasse, aos olhos das massas da população, o poder imperial. No entanto, cabe lembrar que, para os burocratas chineses, o poder imperial só era legítimo enquanto fosse um bom governo, aprovado pelo Céu (um princípio impessoal). O imperador só era legítimo enquanto tivesse o man-dato do Céu e a comprovação concreta disso era a satisfação da população com o governo. Quando a população não se sentia bem servida pelo governo, isso era sinal de que o Céu tinha retirado o seu mandato ao imperador, sendo então legítimo derrubá-lo e substituí-lo por outro imperador, e mesmo por outra dinastia, que cumprisse o mandato do

Céu. Desse modo, na China, até o sécu-lo XX, a religião estatal era mais forte do que o próprio imperador. Assim, em parte pelo fato de que o império chinês era étnico e culturalmente mais homo-gêneo do que os outros impérios, não foi necessário tornar religião oficial uma religião de salvação pessoal, embora credos salvacionistas como o budismo e o taoismo tenham penetrado na massa da população chinesa e sejam tolerados pelo culto estatal.

Diferentemente da China, não foi possível instaurar religiões estatais de cunho mais racional

do que emotivo nos outros impérios do mundo então conhecido (Europa, Ásia e Norte da África). Não que tenham faltado tentativas de deificar a pessoa do imperador em Roma, na Índia ou na Pérsia, armadilha da qual a religião estatal chinesa escapou e que, afinal de contas, não “pegou” em nenhum dos grandes impérios citados, embora tivesse sido comum a deificação do rei em sociedades ainda mais antigas, como o faraó do Egi-to. A deificação do imperador do Japão, corrente até o fim da Segunda Guerra Mundial, não é discutida no livro de Se-lina O’Grady, pois a sociedade japonesa só entrou na história a partir do século VII d.C., isto é, depois de encerrado o período de que ela trata.

De toda forma, a deificação do so-berano só era possível em unidades po-líticas menores e étnica e culturalmente mais homogêneas do que os grandes impérios antigos. Estes procuravam articular num todo orgânico único toda a massa de seus súditos. Cada um ficava, então, dividido entre as tradições em que se tinha criado e se formado e a nova tradição imperial que lutava para se afirmar. Em socorro do Estado imperial, entretanto, em formas varia-das conforme as condições materiais e ideológicas de cada império, vieram, porém, as religiões salvacionistas.

Elas pregavam não mais predo-minantemente rituais e sacrifícios aos

Como judeu e agente dos romanos, Paulo participou da perseguição aos cristãos, atéque começou a ter visões e inventou Cristo

And MAn CReAted God: KinGs, Cults, And Conquests At the tiMe of Jesus

Autora Selina O’Gradyeditora AtlanticAno 2012Páginas 393

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deuses, para que estes retribuíssem com benesses materiais, mas primor-dialmente regras comportamentais consagradas pela divindade e que, uma vez cumpridas por parte de cada indivíduo, lhe garantiriam a salvação, expressa na bem-aventurança após a morte. Seu surgimento também estava relacionado, como as tentativas de culto estatal, com a necessidade de manter a identidade pessoal em meio à mul-tiplicidade étnica e cultural dos novos impérios. Havia, nas novas condições sociais, mais dinâmicas, a necessidade de conciliar a individualidade de cada um com a universalidade exigida de cada súdito do império.

Assim, na Pérsia surgiu o zoro-astrianismo, religião dualista – tinha o Deus do Bem e o

Deus do Mal – que pregava que o fiel, se cumprisse os mandados do Deus do Bem, garantiria a salvação de sua alma após a morte, mas, mais profun-damente, pregava que todos os fiéis eram iguais entre si. Isso satisfazia, de um lado, a espiritualidade de cada um, pois as antigas religiões rurais e tribais atribuíam status pleno, perante cada di-vindade, apenas aos grandes sacerdotes, ficando os demais fiéis numa situação mais periférica em relação a cada deus. De outro lado, satisfazia a necessidade do poder central de a condição de súdito

ser sentida como uma condição univer-sal de cada um.

Na Índia, num primeiro momento, o novo poder imperial tentou recorrer ao budismo e, em grau menor, ao jainismo, como religião que exercesse o mesmo papel que o zoroastrianismo exercia na Pérsia. A religião tradicional indiana, o hinduísmo, parecia não servir como credo universal, pois dividia os seres humanos em castas hereditárias, entre elas a dos sacerdotes, ou brâmanes, a dos guerreiros e governantes, a dos comerciantes, artesãos e lavradores, e a dos párias, ou intocáveis, ou dalits (que faziam os serviços mais “sujos”, como limpar banheiros, conduzir es-gotos e cuidar de cadáveres). Tanto o budismo como o jainismo – este mais rigoroso em seu ascetismo – pregavam que todos os fiéis eram iguais e que sua salvação dependia não do acaso do nascimento nesta ou naquela casta, mas do comportamento ético de cada um. Mas os padrões éticos e o ascetismo exigidos pelo budismo, e ainda mais pelo jainismo, eram tão elevados e tão rigorosos, além de exigirem uma alta intelectualização, que não emocionaram as grandes massas da população indiana, que preferiam se envolver com os festi-vos rituais hindus, mais atraentes do que a ascese budista ou jainista. O papel de religião “imperial”, assim, acabou indo para um hinduísmo transformado, que

passou a admitir, influenciado pelo bu-dismo e pelo jainismo, que cada um, de qualquer casta, por seu comportamento individual, poderia, após sua morte, reencarnar-se numa pessoa de casta superior e assim sucessivamente, até reencarnar-se como brâmane, podendo então aspirar à salvação após a morte.

Em Roma, o judaísmo, tornado religião salvacionista por influ-ência do zoroastrianismo, não

podia tornar-se uma religião imperial porque era a religião de uma etnia só, o chamado povo eleito de Israel. Ou-tras religiões, como o culto a Ísis, ou a Mitra, ou a Apolônio, embora muito mais difundidas no império do que o cristianismo em seus inícios – profes-sado por apenas 15% da população do Império Romano quando foi esta-belecido como religião estatal –, não eram, porém, salvacionistas, pois, em vez de terem um código de conduta cuja obediência assegurava a salvação, baseavam-se ainda no antigo “é dando que se recebe”, ou, mais exatamente, “é fazendo oferendas à divindade que ela retribui com benesses”. Além disso, nelas os sacerdotes valiam mais do que os fiéis. Ocorre, porém, que, como vi-mos, Jesus e seus apóstolos, que haviam vivido a vida toda na Palestina, sempre se consideraram judeus e só se dirigiram a judeus. Até que são Paulo, judeu que não nasceu na Palestina, mas na Ásia Menor, que era tão romanizado que era produtor de tendas para os soldados romanos e coletor de impostos para o Estado romano – duas atividades que a maioria dos judeus julgava blasfemas –, que não conhecera Cristo pessoalmente e que, acima de tudo, vivia na carne o dilema entre ser um bom judeu e ser um bom cidadão romano, passou a alardear que Cristo lhe aparecia em visões, como portador de uma mensa-gem universal, para judeus e para não judeus, para todos os seres humanos, enfim, considerados iguais entre si. Com o tempo, as décadas e os séculos, os imperadores, como Constantino e Teodósio, passaram a perceber que o cristianismo, como credo salvacionista que considerava todos iguais perante Deus, era a religião imperial que tanto procuravam – uma criação, afinal, de são Paulo para conciliar seu desejo de ser um bom religioso com sua vontade de ser um bom súdito romano.

O Jesus Cristo do imaginário de bilhões de fiéis é, em grande parte, “invenções” de são Paulo

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Em vez de ser os olhos e os ouvidos da grande massa de cidadãos, nas últimas décadas a mídia tem funcionado como venda nos olhos e tampão nos ouvidos das pessoas

por Renato Pompeu

Enquanto aqui a simples regula-mentação das concessões de rádio e tele-visão é apresentada pela mídia como uma tentativa de censura, até mesmo como tentativa de censura à mídia impressa, na Grã-Bretanha, em novembro de 2012, foi apresentado e divulgado um relatório oficial sobre a necessidade, justamente, de se regular a própria mídia impressa. Esse relatório, chamado de Relatório Leveson, porque o governo de David Ca-meron encarregou de sua elaboração o juiz sir Brian Leveson, foi encomendado oficialmente pelo primeiro-ministro na

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Os advogados e membros da Hacked Off defendem vítimas de abusos da imprensa

Livro 3

esteira do grande escândalo da mídia que começou em 2007 e culminou em 2011. Descobriu-se então que editores e chefes de reportagem providenciavam a escuta clandestina de centenas de telefones de celebridades, colunáveis e outras pessoas, em busca de “informações quentes”. O escândalo levou ao fechamento do principal tabloide do país, o News of the World, carro-chefe do império midiático global do australiano Rupert Murdoch.

O que é o Relatório Leveson? Trata-se do relatório de um inquérito judicial público, instaurado em julho de 2011,

para investigar as culturas, a ética e as práticas da mídia. Em novembro de 2012, o relatório foi apresentado pelo juiz Leveson como resultado da primeira parte da investigação, a que se seguirão os processos criminais referentes aos grampos telefônicos praticados pelo News of the World. Mas, já nessa fase inicial, o Relatório Leveson aponta para a necessidade de leis que regulem a mídia e, particularmente, instituam um órgão de fora da mídia para supervisionar suas práticas e sua ética. Esse órgão substitui-ria a atual Comissão de Queixas sobre a Imprensa, órgão da própria mídia que pratica a autorregulação. Em suma, o que o juiz propôs foi a substituição da autorregulação da mídia por um órgão regulador externo à mídia.

Pode-se dizer que, no país clássico da liberdade de imprensa, recentemente a grita pela regulamentação externa da mídia se tornou a grita de amplos seto-res da sociedade britânica, e não só por causa das escutas telefônicas clandestinas mas também por causa do pensamento único veiculado pelos oligopólios mi-diáticos. Agora, Leveson propõe um órgão externo que conceda ou não selos de qualidade às publicações da mídia, aplique multas, assegure o direito de resposta e imponha em cada caso a publicação de correções. Além disso, o órgão teria um papel de arbitragem em casos de processos por calúnia e invasão de privacidade, tanto na esfera judicial quanto na indenizatória.

O Relatório Leveson começou a ser discutido no Parlamento britânico em dezembro de 2012. Há desde a posição dos governistas conservadores – segun-do a qual o relatório tem boas ideias, mas algumas das medidas que propõe, inclusive a aprovação de leis sobre a mídia, devem ser mais bem avaliadas por causa dos riscos à liberdade de imprensa – até o ponto de vista dos oposicionistas trabalhistas, de aprovação total do rela-tório e da instauração de leis reguladoras da mídia. Com exceção do jornal The Guardian, que apoiou a oposição, embora exigindo “cuidado” na formulação das leis, toda a grande mídia britânica deu apoio à posição de não impor mudanças por lei. De qualquer forma, a decisão so-bre o novo órgão deverá ser tomada até a passagem do primeiro para o segundo semestre deste ano.

Algumas das posições de Leveson são bastante semelhantes às de um livro

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que vem alcançando grande repercussão nos últimos dois anos entre o público leitor britânico. Trata-se de The return of the public – democracy, power and the case for media reform (“O retorno do público – democracia, poder e as razões para a reforma da mídia”, em tradução livre), de autoria do pesquisador Dan Hind, originalmente publicado em 2010 e que teve em 2012 uma segunda edição pela editora Verso, de tendência progressista. Hind trabalhava como editor de publi-cações de outros autores até que, em 2001, os atentados de 11 de Setembro o levaram a refletir sobre sua carreira e a começar a escrever, particularmente como colaborador do jornal progressista londrino The Guardian, uma das poucas vozes dissonantes, na grande mídia glo-bal, em relação ao chamado pensamento único neoliberal. Seu livro sobre a mídia de massa é basicamente a apresentação de propostas para democratizar a infor-mação e o debate público por meio da participação dos cidadãos em instituições regulares de acompanhamento da mídia. Note-se que, em todo o livro, Hind dá pouca atenção às possibilidades de apro-veitar os novos meios eletrônicos, em especial a internet, para democratizar o fluxo de notícias e de opiniões.

Ele começa constatando que o que se chama de opinião pública – “o corpo social informado capaz de tomar iniciativas políticas e de levar a mudan-ças legislativas” – hoje exclui, mesmo nos países adiantados, de democracia mais antiga e mais institucionalizada, a esmagadora maioria da população. Em outras palavras, a opinião pública, hoje em dia, circula apenas entre a elite do Estado e os empresários particulares controladores da grande mídia. Teori-

camente, a mídia deveria ser os olhos e os ouvidos da grande massa de cidadãos, mas, segundo Hind, nas últimas décadas, ela tem funcionado mais como venda nos olhos e tampão nos ouvidos de dezenas de milhões de pessoas.

O livro apresenta uma comparação entre o que a mídia fez logo antes da guerra do Iraque – apresentou como competentes e habilitados os generais reformados e agentes de serviços de informação que alardeavam o perigo iminente das “armas de destruição em massa em poder do governo iraquiano”

e como extremistas obscurantistas os que opinavam, corretamente, que não havia nenhuma arma de destruição em massa em todo o território do Iraque – e os conselhos dos pensadores da coisa pública desde a Roma antiga até os Pais Fundadores dos Estados Unidos, passan-do pelos da Revolução Inglesa, a respeito do autogoverno por uma coletividade bem informada.

Após constatar que a difusão em massa das inverdades sobre o Iraque pela grande mídia não foi de modo nenhum um caso isolado e que a manipulação das informações consiste na regra no cotidia-

The ReTuRn of The Public – democRacy, PoweR and The case foR media RefoRm

autor Dan Hindeditora HVergoano 2012Páginas 256

no da “opinião pública”, Hind opina que os cidadãos não são livres quando não têm nem o poder nem as informações necessárias para impor-se como os ver-dadeiros governantes. A partir daí, ataca os chamados “especialistas”, tanto do governo e do Estado quanto da mídia, que deteriam “saberes especiais” a partir dos quais os cidadãos são informados, por uma “elite benigna”, tanto dos acon-tecimentos quanto das decisões tomadas.

Se até aqui essa parte apresentada da obra de Hind pode ser considera-da negativa e já muito explorada por outros, a parte positiva, que inclui suas propostas de reforma, é bem mais original. Para começar, ele inclui no chamado ecossistema informativo não só as transmissoras de rádio e TV e a imprensa escrita mas também as uni-versidades. Considera que cada tipo de informação, seja ele qual for, não pode ser propriedade de ninguém, e todas as informações devem ser públicas.

O mais importante é que ele propõe que sejam destinadas verbas de um fun-do público para financiar grupos locais, espécie de fóruns de cidadãos. A esses fóruns os jornalistas e suas empresas deveriam enviar suas propostas de cober-tura. Essas propostas seriam aprovadas, rejeitadas ou reformuladas pelos fóruns de cidadãos, que assim funcionariam como editores.

Sabendo que sua proposta pode ser acusada de propiciar um controle restritivo, de tipo populista ou fascista, do fluxo de informações, Hind responde que o controle atual, pelos proprietários, é muito mais restritivo. Além disso, a multiplicidade de fóruns locais, em comparação com os números restritos de tomadores de decisões nos atuais oligo-pólios midiáticos, assegurará, na opinião do autor, uma muito maior diversificação de informações.

Hind pode ainda ser acusado, porém, de querer simplesmente aumentar o po-der de sua profissão original, a de editor de publicações de outros autores. De todo modo, sua proposta foi considerada suficientemente brilhante para receber o prêmio de Melhor Livro de Ideias de 2011, outorgado pelo Festival de Ideias de Bristol, no valor de 7,5 mil libras. Para nós brasileiros, entretanto, o importante é que seu livro indica que não é só no Brasil e na Argentina que cada vez mais setores protestam contra a atual situação da grande mídia.

Levenson propõeum órgão externoque concedaselos de qualidadepara as publicaçõesda imprensa

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História da matemática, escrita por uma professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vai além do almanaque e atualiza bibliografia cansada que valoriza a tradição europeia

por Robinson Nelson dos Santos *

A mAtemáticA é uma descoberta ou uma invenção? Existem várias mate-máticas? Se não houvesse humanidade, ainda assim haveria matemática? Uma hipotética matemática extraterrestre seria igual à da Terra? Essas são algumas das questões retóricas a que alunos de licen-ciatura, futuros professores, costumam ser submetidos, como forma de libertar a mente do embotamento do ensino tra-dicional. Nenhuma, claro, tem resposta fácil – a dos ETs, então, nem se fala. Mas todas convidam a beber de uma mesma fonte: a história da matemática – ou das origens de um conhecimento que, de tão fundamental, confunde-se com o da própria humanidade.

Há tempos integrada ao currículo de graduação de licenciados na área, a histó-ria da matemática vem tendo sua impor-tância reconhecida como instrumento capaz de dar sentido ao conteúdo de uma disciplina tão vital quanto árdua – que o digam as notas das avaliações gerais dos estudantes do ensino básico, público ou privado. Bastariam essas inquietações para fazer de História da matemática, da professora e pesquisadora da UFRJ Tatiana Roque, uma sugestão de leitura para qualquer cidadão com curiosidade mediana. Mas o livro deve ser lido, ain-da, por outras razões: à moda de outros livros clássicos do gênero, não trata simplesmente de ventilar especulações ou saciar curiosidades de almanaque.

O livro da professora Tatiana desta-ca-se por várias razões. Primeiramente, por ser uma obra original escrita por uma pesquisadora brasileira num cam-po em que predominam referências estrangeiras. E também por atualizar uma bibliografia já cansada, que se apoia há anos em cânones como dois livros traduzidos do inglês: História da matemá-tica, de 1968, escrito por Carl Benjamin Boyer (1906–1976), um professor do G

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Antigo texto matemático de escrita cuneiforme doperíodo babilônico: o teorema, bem antes de Pitágoras

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Brooklyn College da Universidade da Cidade de Nova York; e Uma introdução à história da matemática, de 1964, de Howard Whitley Eves (1911–2004), geômetra e historiador, autor também de uma obra em seis volumes, Mathematical Circles, uma coletânea de bem-humoradas historietas sobre os matemáticos, recentemente reimpressa pela Associação dos Matemá-ticos dos EUA. Outro livro igualmente importante, porém menos popular entre graduandos, talvez por não haver tradu-ção em português, é Mathematical Thought From Ancient to Modern Times (1972), de Morris Kline (1908–1992), também americano.

Em seu livro, Tatiana – que é doutora pelo Coppe, um instituto de pesquisa e pós-graduação da UFRJ, e participa de grupos de pesquisa na França – afirma querer desfazer “mitos e lendas” que povoam a história da matemática. Mas não se deve confundir esse trabalho com certa onda revisionista que tem aparecido em outros campos de pesquisa, como filosofia ou história do Brasil, e que se presta a afirmar que feijoada não é prato brasileiro ou que Santos Dumont foi ir-relevante. O que ela faz é apresentar para estudantes, professores e curiosos temas de vários estudos e debates que já tinham trânsito livre entre alunos e pesquisado-res das principais universidades do Brasil. Sua revisão abre espaço para outras inter-pretações históricas, concebidas muitas vezes com base nas mesmas evidências citadas pelos cânones, mas que evita o perigo de julgar o passado com os olhos do presente. “A história [da matemática] foi escrita, muitas vezes, com o intuito de mostrar que os europeus são herdei-ros de uma tradição já europeia desde a Antiguidade”, justifica a autora.

Um dos mitos mais exemplares ex-postos por Tatiana – e que ainda vive na memória dos que passaram pelo ensino básico – é o do teorema “de Pitágoras”, que vai escrito assim, entre aspas, por-que, de acordo com a história, Pitágoras não teria enunciado teorema algum, se é que ele realmente existiu. “Hoje se sabe que essa relação [entre o quadrado da hipotenusa e a soma dos quadrados dos catetos] era conhecida por diversos povos mais antigos do que os gregos e que isso pode ter sido um saber comum na época de Pitágoras [meados do século

VI a.C.]”, escreve. O teorema geométrico “de Pitágoras” aparece nos Elementos, um conjunto de 13 livros publicados por Eu-clides, considerado o pai da geometria, que viveu quase três séculos mais tarde e que só conhecemos por traduções posteriores, já que os originais foram perdidos. Mas, nos livros, Euclides nem sequer menciona Pitágoras – e há quem diga que o próprio Euclides foi o autor da demonstração.

A figura de Pitágoras também está associada a outro mito: o da chamada “crise dos incomensuráveis”, quando pitagóricos teriam entrado em um grave

hiStóRia da matemática - uma viSão cRítica, deSfazeNdo mitoS e leNdaS

autora Tatiana Roqueeditora Zaharano 2012Páginas 512

conflito existencial ao encontrarem dois segmentos de reta que não poderiam ser medidos com base em uma fração de um dos segmentos, utilizado como unidade – um indicador, sabemos hoje, da existência de números irracionais, que não podem ser escritos como frações (razões) com numerador e denominador inteiros. Reza a lenda que o pitagórico responsável pela “descoberta” dos segmentos incomensuráveis teria sido atirado ao mar, como forma de varrer o desconforto para baixo do tapete. Muita gente tem repetido histórias como essa, incluindo o físico Leonard Mlodinow, autor de best-sellers de divulgação cientí-fica como A janela de Euclides e O andar do bêbado. Para Tatiana, no entanto, o que houve foi uma má interpretação das fontes históricas. “Algumas fontes indicam que as grandezas eram classi-ficadas como comensuráveis em com-primento ou em potência [...] Se temos um quadrado de lado 1, esse lado não é comensurável em comprimento com sua diagonal (que sabemos medir raiz de 2). No entanto, seu quadrado 1 é comensu-rável com o quadrado da diagonal, que é 2”, explica. Embora considere fantasiosa a história do assassinato do matemático grego, Tatiana admite, com base em evidências, que “se não houve uma crise, também não diminuímos a importância da descoberta”.

Outro tema envolto em um mito curioso – e, desta vez, com um toque brasileiro – é a fórmula de Bhaskara para a resolução das chamadas equações de segundo grau, conhecidas de todos os estudantes do ensino básico (veja no quadro a equação e uma solução). Primeiro, porque a história da mate-mática hindu registra dois Bhaskara. O mais famoso, Bhaskara II, nasceu em 1114 e foi autor de livros de aritmética e álgebra que se tornaram populares no século XII. Mas seus escritos citavam trabalhos mais antigos, já conhecidos, em forma retórica – à época, era co-mum enunciar problemas e métodos de cálculo na forma de versos –, e nem de longe se podia enxergar a clareza de escrita que percebemos hoje e que é atribuída, em grande parte, aos esforços de organização da álgebra simbólica por François Viète no século XVI. “Havia um método geral para resolução de equações [...] No entanto, não podemos dizer que já existisse uma fórmula”, contesta Tatiana.

A obra de Tatiana Roque ajuda a dar sentido ao conteúdo de uma disciplina tão vital quanto árdua

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Mais curioso é o fato de a fórmula de Bhaskara ter ganhado esse apelido apenas no Brasil, já que em muitos países ela é chamada de “fórmula para solução de equações quadráticas”. Uma boa pista não está no livro de Tatiana, e sim no artigo “Por que Bhaskara?” publicado em 2001 pela revista História & educação matemática. Nele, a professora da Unicamp Maria Ângela Miorim e mais quatro alunos localizam a origem desse fenômeno no livro didático Curso de matemática, de 1960, escrito pelos pro-fessores Benedito Castrucci e Geraldo dos Santos Lima Filho. Os dois teriam utilizado pela primeira vez o termo fór-mula de Bhaskara e foram seguidos por uma geração de autores, que por sua vez formaram professores e alunos, numa espécie de marolinha histórica.

O livro de Tatiana Roque também abre caminho para uma melhor com-preensão da importância de hindus, árabes e chineses no desenvolvimento da matemática – abordagens que, segundo a autora, costumam aparecer nos livros tradicionais de história da matemática como notas de rodapé. A China, nesse aspecto, talvez seja a mais prejudicada. Em 1819, por exemplo, o matemático in-glês William George Horner apresentou-se diante da Royal Society de Londres para reivindicar a autoria de uma solução para equações de segundo grau que já era conhecida dos chineses pelo menos 400 anos antes. Em outro caso, o historiador Jean-Claude Martzloff mostra, em seu livro A History of Chinese Mathematics,

de 1987, que um algoritmo para reso-lução de sistemas de equações lineares comumente atribuído ao gênio alemão Carl Friedrich Gauss (1777–1855) já constava do livro chinês Nove capítulos da arte matemática, escrito provavelmente entre 208 a.C. e 8 d.C.

No fim das contas, de todos os mitos combatidos em História da matemática, talvez o principal seja o de uma mate-mática calcada exclusivamente sobre o

saber teórico e, portanto, distante da realidade – uma situação que muitas vezes é apontada como a vilã do mau aproveitamento da disciplina pelos estu-dantes. “Um dos fatores que contribuem para que a matemática seja considerada abstrata reside na forma como a disci-plina é ensinada”, argumenta a autora. Os pitagóricos, por exemplo, teriam elaborado as “trincas pitagóricas”, que deram origem à famosa relação de, no triângulo com um ângulo reto, de 90 graus, o quadrado da hipotenusa, o lado

maior, ser igual à soma do quadrado dos catetos, os dois lados menores, mas não com pensamentos altamente abstratos, mas usando simples pedrinhas. Além disso, problemas práticos estiveram na origem de quase todas as soluções en-contradas na geometria dos gregos e na álgebra esboçada pelos árabes.

Enveredar pela história para expli-car matemática implica também uma dose de humildade. Segundo Tatiana, “a perspectiva histórica permite reco-nhecer que qualquer interpretação é provisória”. Hoje, como ela mostra, a própria interpretação historiográfica produzida ao longo do tempo pode ser alvo de crítica e avaliação. “A matemática que lemos nos livros já foi produzida há muito tempo e reorganizada inúmeras vezes. Não se trata de um saber pronto e acabado.” Mais importante, diz ela, é aprimorar a forma como a matemática é ensinada: em vez de repetir anedotas de origem duvidosa, o professor faria melhor se reinventasse os “ambientes problemáticos” nos quais os conceitos foram criados. “A história da matemática pode perfeitamente tirar do esconderijo os problemas que constituem o campo de experiência do matemático, a fim de que possamos entender melhor seus conceitos.” Nesse sentido, esta História da matemática é um passo a mais para fora da caverna educacional em que nos encontramos.

* Jornalista, licenciado em matemática pelo IME–USP e mestre em educação pela FE–USP

Sugere a autora“aprimorar a forma como a disciplina é ensinada em vez de repetir anedotasduvidosas”

A solução da equação de segundo grau: foi brasileira a ajuda que derrubou o mito da “fórmula de Bhaskara”

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Cartão Material Escolar.É o GDF dando uma aula de cidadania e ajudando a garantir o futuro de milhares de jovens e crianças.

As famílias beneficiadas pelos programas sociais do GDF agora contam com mais uma vantagem: o Cartão Material Escolar. Com isso, elas podem comprar o material escolar nas papelarias credenciadas e ainda contribuir com a economia do Distrito Federal. Se você é proprietário de papelaria ou outra empresa que fornece esse tipo de material, participe da Chamada Pública. Mais informações: www.se.df.gov.br ou www.sempes.df.gov.br.

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