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Literatura e Diversidade Cultural na Escola

Alex Caiel* Rejane Pivetta de Oliveira**

Resumo: A diversidade cultural, tema corrente na agenda acadmica, tambm uma questo poltica com largos efeitos na vida social, exigindo de instituies como a escola que repense suas prticas e os aparatos terico-metodolgicos que sustentam seus planos de ensino. Analisamos neste artigo, com base em contribuies tericas dos estudos culturais (WILLIAMS, 1992; HALL, 2003; BHABHA, 2007), de que modo o tpico da diversidade cultural abordado no livro didtico de lngua portuguesa, com ateno aos textos literrios e exerccios de retomada. A partir dos resultados, refletimos sobre o ensino da literatura na perspectiva cultural.

Palavras-chave: Diversidade cultural; Literatura; Escola

Abstract:The cultural diversity, a recurrent subject in the academic thinking, can be seen, too, as a political question, with profound implications on the social life, which demands from institutions like the school, the rethinking of its practices and its theoric-methodological apparatus responsible for its educational planning. In this paper we investigate, with the help of Cultural Studies (WILLIAMS, 1992; HALL, 2003; BHABHA, 2007), in which ways the theme of cultural diversity is approached on Portuguese textbooks, with special attention to the literary texts and retake exercises. From the results of this investigation, we pretend to comment on the teaching of literature under a cultural perspective.

Keywords: Cultural diversity; Literature; School

1 Escola e diversidade cultural O tema da diversidade cultural tem sido abordado contemporaneamente a partir da

perspectiva dos estudos culturais e ps-coloniais, que nascem da problematizao dos conceitos de cultura, sujeito, linguagem e histria. Tais abordagens tericas inscrevem-se na luta intelectual contra as formas de dominao e de hegemonia do sistema capitalista, trazendo para o campo de investigao novos objetos de pesquisa, sobretudo as manifestaes culturais das minorias relegadas ao esquecimento, subestimadas ou mal interpretadas pelos discursos cannicos.

Os fluxos migratrios, o cosmopolitismo das redes e o hibridismo cultural transformaram o multiculturalismo em um tema no apenas acadmico, como tambm uma questo poltica com a qual as sociedades se veem obrigadas a lidar. Assim, campanhas em defesa da tolerncia e do respeito diversidade e polticas afirmativas de incluso passam a fazer parte dos programas de governo, afetando diretamente instituies como a escola, que se

* Mestre em Letras (PPGL UniRitter); professor da FTEC.

** Doutora em Teoria da Literatura. Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras UniRitter.

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v obrigada a revisar suas prticas, teorias, mtodos e contedos de ensino. Exemplo disso o cumprimento de leis, como a que estabelece o ensino de histria, literatura e cultura africanas nas disciplinas escolares e, mais recentemente, a que introduz nos currculos o estudo do Holocausto.

Esse discurso da diversidade cultural, pauta corrente na pedagogia contempornea, impe de fato a necessidade de repensar as instituies de ensino e os aparatos conceituais que sustentam seus programas de formao tarefa complexa, que exige muito mais do que boas intenes. No filme Entre os muros da escola (2008), dirigido por Laurent Cantet, baseado no romance de Franois Begaudeau com o mesmo ttulo, de 2006, encontramos uma aguda reflexo sobre as dificuldades do dilogo intercultural. Numa escola de periferia, na Frana, alunos provenientes de diferentes sociedades rabes, africanos, asiticos, judeus, com suas respectivas lnguas, tradies e valores encontram-se em uma mesma sala de aula, transformada em arena onde se trava um verdadeira batalha cultural.

A diversidade, visvel nos traos fsicos e no sotaque caracterstico dos estudantes, contrasta, porm, com a homogeneizao tpica do consumo capitalista, que se manifesta no modo como os jovens aparecem vestidos, com camisetas, bons e mochilas de marcas famosas da indstria norte-americana, como Puma, Adidas, Nike. Ou seja, a diversidade cultural perpassada pela massificao do consumo, que homogeiniza as identidades e pe em segundo plano a desigualdade econmica e social. O filme mostra, assim, que a existncia de uma escola para imigrantes e para filhos de imigrantes nascidos na Frana pode ser uma alternativa do ponto de vista poltico institucional, mas est longe de resolver a tenso entre tradies, valores e significados culturais.

O acirramento dos conflitos decorre das prprias prticas escolares, que seguem um modelo tradicional, na expectativa de que a formao oferecida seja vlida para favorecer o processo de adaptao dos imigrantes sociedade francesa civilizada. As produes e manifestaes culturais identificadas aos modos de vida dos diversos grupos sociais representados na sala de aula em nenhum momento so levadas em conta no processo de ensino. A definio dos contedos escolares, conforme assistimos no filme, baseia-se no ponto de vista da cultura dominante, do que podemos citar como exemplo os nomes de origem francesa e norte-americana, citados pelo professor nas frases que ilustram lies de gramtica.

O ensino do francs, tal como mostrado, no comporta a expresso do outro, criando universos de sentido incomunicveis, tal como vemos na cena em que a me de Kumba, um aluno africano, dirige-se s autoridades escolares em sua lngua nativa, tendo o filho como

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intrprete, que evidentemente traduz a seu modo as alegaes dos professores contra o seu comportamento. Torna-se, assim, evidente o problema da traduo, ou seja, a ausncia de uma zona de entendimento comum que aproxime diferenas de compreenso. No h acordo possvel entre a me, os professores e o aluno, restando as diferenas inegociveis.

Entre os muros da escola pe em tela o tema da educao intercultural, desestabilizando antigas hegemonias. O Brasil, pas em que as tenses culturais no tm a mesma dimenso que assumem no continente europeu, no todavia refratrio ao problema das diferenas no espao da escola, especialmente acentuadas pelas profundas desigualdades sociais e econmicas. Crianas oriundas de classes sociais desfavorecidas, que vivem em situao de misria, sem acesso sade, habitao, alimentao, ao saneamento bsico, ao emprego, entre outras necessidades bsicas, povoam as salas de aula das escolas pblicas brasileiras. Nessa medida, cabe indagar o sentido que assume, para esses sujeitos, os contedos e materiais didticos que lhes so oferecidos na escola.

Dificilmente podemos compreender o comportamento desses sujeitos, dissociando-o das influncias advindas de sua experincia social, pois se a mente humana modificada, no desenvolvimento social e por meio dele, uma nfase necessria dos estudos sociais o estudo das formas culturais. (WILLIAMS, 1992, p. 15). Para Williams, os conceitos e prticas culturais cristalizam vises e atitudes, configurando sistemas de percepo e de sensibilidade, o que, na opinio de Maria Elisa Cevasco (2001), articula o emergente e escapa fora acachapante da hegemonia.

inegvel que a cultura regula as prticas sociais e determina valores e comportamentos dos sujeitos. Nesse sentido, importante salientar que os alunos, ao chegarem escola, trazem referncias do lugar de onde provm, um lugar que no apenas fsico, mas constitudo por representaes culturais prprias. Nesses termos, de se esperar que as experincias culturais sejam incorporadas ao processo de ensino.

2 Literatura e representaes culturais no livro didtico Levar em conta as diferentes representaes culturais fundamental para uma

educao democrtica, e a literatura um instrumento privilegiado para canalizar a reflexo sobre as formas de significar o mundo e as relaes que nele se estabelecem. Tomamos aqui o conceito de representao cultural de maneira ampla, como um conjunto de prticas que permite ao homem conhecer e dar sentido ao contexto onde se encontra inserido, levando em conta os aspectos religiosos, artsticos, cientficos, tecnolgicos. Consideramos, assim, como refere Raymond Williams [...] os sentidos antropolgico e sociolgico de cultura como

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'modo de vida global' (1992, p. 13), como modo de ver coletivo, que confere identidade aos sujeitos de determinada comunidade. Dessa forma, as diferentes representaes culturais traduzidas em prticas, comportamentos, criaes, tudo enfim que componha uma rede de smbolos e uma linguagem configuram diferentes identidades.

O livro didtico est maciamente presente nas salas de aula das escolas brasileiras. Alm dessa ampla rede de distribuio, com seus evidentes interesses econmicos - o que j bastaria para questionar o uso desse material - h ainda a veiculao, em seus contedos, de uma srie de determinismos e conceituaes generalizantes, supostamente vlidas para todos os pblicos. Assim, diante de tamanha homogeneizao, de se suspeitar que essa ferramenta de ensino seja incapaz de promover a cidadania e o respeito diversidade, conforme a proposta dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997), documento oficial que estabelece, de maneira explcita, a necessidade de a escola constituir-se em um espao democrtico, que acolha a diversidade e a diferena formadora do tecido social brasileiro. Para discutirmos essa questo, tomamos o livro didtico de lngua portuguesa1, analisando as representaes culturais privilegiadas nos textos literrios presentes na coletnea e nas atividades de retomada propostas.

O livro estruturado em 8 unidades, sendo que em cada uma delas h um tpico principal considerado a Chave da Unidade. O primeiro texto da unidade, destinado leitura, acompanhado de exerccios de interpretao. Na sequncia, feita a proposta de produo textual, seguindo-se o Estudo da Lngua. H ainda um segundo texto para leitura, denominado Texto B; a partir dele um novo incentivo produo textual; mais uma vez o Estudo da Lngua, uma abordagem acerca da Ortografia, encerrando a Unidade com um Projeto em equipe. Todas as unidades tm a mesma estrutura.

Para efeito desta anlise, escolhemos a Unidade 2, que sugere, pelos textos propostos, a discusso acerca do tema da diversidade cultural. A unidade abre com um texto intitulado O presente dos magos, de O. Henry2, cuja histria apresenta um casal que no tem o que dar de presente um ao outro no Natal. A mulher vende os cabelos para arrumar dinheiro e comprar o

1 O livro em foco o de Lngua Portuguesa destinado aos alunos da 5 srie, do projeto Ararib, publicado pela

Editora Moderna. A escolha desse livro deu-se em 2008, quando foram distribudos 5,7 milhes de exemplares dessa coleo s escolas pblicas brasileiras, de acordo com a Associao Brasileira de Editores de Livros, constituindo-se no livro didtico mais utilizado nas escolas pblicas brasileiras. Por sua vez, a preferncia pelo volume da 5 srie do ensino fundamental deve-se ao fato de ser uma fase de transio na trajetria de formao do educando brasileiro, que passa nesse momento a distinguir de maneira mais evidente campos disciplinares do conhecimento.

2 Histrias de O. Henry. Traduo de Alzira M. Kawall e Jos Paulo Paes. Cultrix: So Paulo, 1964.

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presente; o homem vende um relgio de ouro que havia herdado, com o mesmo objetivo. O texto, originalmente escrito no sculo XIX, tem um carter nitidamente moralizante. A falta de dinheiro do casal no est vinculada a um problema social o trao que prepondera na representao romntico, com nfase no desprendimento e no sacrifcio de uma personagem pela outra. Lido hoje, esse imaginrio social e cultural veiculado pelo texto parece anacrnico, necessitando um trabalho de contextualizao histrica, favorea o dilogo entre pocas distintas.

Exatamente as condies de leitura do texto - levando em conta a realidade do sujeito que o l, o contexto de suas experincias sociais e culturais - o aspecto que passa ao largo das propostas de atividades do livro didtico. Isso poderia levar ao questionamento sobre algumas representaes contidas na histria, tais como as condies de moradia das personagens (as ilustraes revelam um ambiente requintado); as vestimentas e chapus com que so caracterizadas; os belos e bem tratados cabelos da mulher; o relgio de ouro herdado pelo homem; a obteno de dinheiro pela venda de objetos para compra de presentes de Natal; o lar como um espao ideal de afeto familiar; o fundo edificante da ao das personagens.

As propostas de trabalho com o texto acabam fortalecendo vises estereotipadas, como a da bondade humana, associada ao imaginrio cristo, haja vista a referncia explcita aos reis magos , homens maravilhosamente sbios, que inventaram a arte de dar presentes natalinos. No se trata de fazer a condenao do texto em si, mas do propsito que subjaz sua seleo e orienta as atividades de leitura. Uma abordagem cultural no poderia ratificar valores e crenas, seno que submet-los reflexo e, mais do que isso, ao contraste com outros pontos de vista. Em vez disso, o livro fica debruado, por longas seis pginas, sobre exerccios pouco convidativos ao desenvolvimento da crtica cultural, requerendo a simples identificao de passagens do texto. Uma das questes propostas solicita que os alunos transcrevam no caderno a frase que traduziria, com maior preciso, a ideia bsica do conto, entre trs opes apresentadas. Eis as frases:

Della e Jim se amam e vivem felizes, apesar de no terem dinheiro.

Della e Jim se amam e no se importam em sacrificar o que tm de mais precioso em nome

desse amor.

Della e Jim se amam e gostam de dar presentes um para o outro.

Sem atentar para o direcionamento da viso do leitor, obrigado-o a interpretar o j interpretado, chama ateno a nfase dada ao amor, felicidade e ao sacrifcio, sentimentos e atitudes que do nobreza ao gesto de comprar presente como forma de agradar o ser amado.

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Numa sociedade de forte apelo ao consumo como a que vivemos, mesmo que muitas pessoas estejam excludas desse universo, o texto acaba dando uma justificativa moral aos padres burgueses compatvel com o seu contexto de produo, mas cuja leitura, no presente, impe um necessrio deslocamento crtico, no estimulado pelo livro didtico.

Enquanto os PCN apresentam uma orientao pluralidade cultural, reafirmando a necessidade de respeito s diferenas, o livro didtico em questo no incorpora de maneira crtica a discusso acerca da questo das desigualdades sociais, indissociveis das prticas culturais. Dessa forma, os textos encontrados no livro didtico acabam promovendo identificaes com padres sociais e culturais hegemnicos, por mais que faa isso de maneira completamente dissimulada.

O segundo texto apresentado na unidade, que serve de mote produo textual, um conto tradicional do Japo Espelho no cofre que participa da antologia Os 100 melhores contos de humor da literatura universal, organizada por Flvio Moreira da Costa. O fato de a origem do conto ser japonesa no parece ter nenhum propsito, pois nada sobre o texto destacado que o relacione a aspectos da cultura de onde provm. Alm disso, no h, entre este texto e o anterior, nenhum elemento que possa promover o dilogo entre, por exemplo, aspectos da religiosidade ocidental (j que existe a referncia aos Reis Magos) e da oriental (pela meno a uma personagem monja). O conto de humor japons serve apenas de modelo para a identificao da estrutura narrativa (conflito, clmax e situao final), a qual os alunos devero obedecer na escrita de uma histria, baseada na foto de um homem de termo puxando uma mula, tendo como pano de fundo um cu azul, fora de qualquer contexto. Alis, a descontextualizao dos textos parece ser a tnica, afora o fato de que nenhum deles apresenta qualquer relao entre si, no permitindo assim o dilogo e o trnsito entre diferentes concepes culturais.

Na pgina 67 aparece uma lenda indgena - Mavutsinim: o primeiro kuarup, a festa dos mortos. Antes do texto, consta uma explicao sobre a lenda, sua origem e caractersticas. O tipo de explorao proposta para o texto de simples identificao de elementos formais, mesmo quando entram em questo aspectos culturais, como por exemplo:

Copie no caderno os elementos que permitem dizer que a lenda pertence cultura indgena.

Escreva no caderno os elementos que permitem dizer que o texto O presente dos magos no pertence cultura indgena. (p. 70)

Pertencer a uma cultura isol-la em seus traos tpicos. O modo como proposta a leitura dos textos reduz completamente a possibilidade de dilogo entre tradies culturais

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distintas e mesmo a interao com a experincia e costumes dos leitores. Na proposta de produo textual, solicita-se que os alunos pesquisem entre familiares, vizinhos ou professores uma lenda da sua regio, a qual dever ser transcrita, a partir de algumas orientaes, como o registro de expresses orais e caracterizao do clmax. A tarefa de recolha da lenda pelos alunos destituda de qualquer interesse cultural medida que se trata apenas de entender as caractersticas formais do gnero, desvinculado de prticas de significao empreendidas pelo homem no seu espao social e cultural, onde se produz diversidade e diferenas.

Um trecho de uma lenda africana o prximo texto introduzido na unidade, retirada do livro Os prncipes do destino: histrias da mitologia afro-brasileira. Sobre o fragmento (o que dificulta a compreenso do texto e contradiz a nfase na estrutura narrativa trabalhada pelas lies da unidade) so formuladas trs questes que enfatizam a identificao e a classificao dos substantivos. A letra de Caetano Veloso, chamada Maracatu atmico apresentada em seguida. Nenhuma relao com os textos anteriores proposta; a presena do texto talvez se deva ao ritmo africano o maracatu mas os exerccios sugeridos no estimulam essa relao, enfatizando os substantivos compostos, ilustrados por palavras da letra da msica (beija-flor, guarda-chuva, couve-flor, etc.).

A ltima seo da unidade tem o sugestivo ttulo de Exposio cultural: festas tradicionais. A atividade sugere o levantamento para saber se h alunos de nacionalidade ou ascendncia estrangeira (italianos, portugueses, espanhis, etc), motivando a pesquisa sobre datas comemorativas e como so festejadas. Chama ateno em primeiro lugar a referncia a povos europeus como possvel origem de alguns alunos, inclusive espanhis, pouco representativos na formao do povo brasileiro, em comparao, por exemplo, aos africanos e japoneses no mencionados (mas paradoxalmente presentes em textos da unidade). O tratamento dado diversidade cultural na proposta de Exposio privilegia o extico e o esteretipo, como podemos constatar na sugesto de decorar o espao com a bandeira do pas, enfeites, objetos e roupas tpicas. Tal abordagem exclui o conflito e a diferena cultural, em nome da superficialidade festiva que homogeiniza as identidades. A negao da interculturalidade fica patente em um dos enunciados que instrui acerca da atividade, no qual lemos: Caso nenhuma das comemoraes tenha relao com uma cultura diferente da brasileira, a equipe escolhe qual cultura deseja pesquisar. Assim, o livro trabalha com a ideia de culturas isoladas e homogneas, como se fosse possvel falar em uma cultura brasileira com uma identidade nica, e no formada a partir de um amlgama cultural onde confluem

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vrias tradies. Mais irnico ainda o fato de, ao final da lio, o livro anunciar: Dessa forma, todos aprendero um pouco mais a respeito de outros povos.

O tema da diversidade cultural, tratado apenas na forma de exposio dilui a diferena, caracterizando o que Stuart Hall denomina de multiculturalismo liberal, que consiste em integrar diferentes grupos ao senso comum, sem colocar em pauta conflitos, opresses e hierarquias (2003, p. 53). Em uma unidade em que aparecem textos representativos de tradies indgenas, africanas, orientais e crists, a proposta de exposio cultural como forma de conhecer outros povos resulta apenas na identificao de traos formais e exteriores, sem propiciar o estabelecimento de um ponto de vista intercultural, em que diferenas e possibilidades de integrao entre distintos significados culturais estejam em pauta.

3 O lugar cultural da literatura na escola A partir da anlise aqui procedida, claramente percebemos o apagamento das

representaes culturais no que elas tm de significativo para relativizar posies hegemnicas. Assim, possvel pensar que o livro est disposto a transferir significaes aos alunos, e no a concretizar um debate de conhecimentos e vises de mundo. O mais grave disso que a literatura acaba sendo instrumento de inculcao ideolgica.

A escola parece permanecer ao largo das intensas trocas culturais operadas tanto pelos meios miditicos e virtuais como pela convivncia com a diferena representada por gostos, crenas, convices religiosas, estticas e usos da linguagem dos prprios educandos que constituem o espao escolar. No se trata de preferncias individuais, mas de significados coletivos, construdos na interao da escola com as experincias sociais da comunidade onde ela se insere.

Nesse contexto, a abordagem da literatura na escola teria muito a ganhar se contribusse com o deslocamento de fronteiras, a transposio de convenes e a vinculao do texto a prticas sociais e culturais historicamente situadas, tornando-o, assim, um elemento vivo na experincia dos alunos. O que ocorre, como vimos na anlise do livro didtico, que os textos literrios so inseridos nas unidades de ensino apenas como pretexto para a explorao de certos contedos curriculares. Isso se deve, sobretudo, ao prprio limite do livro didtico, estruturado segundo paradigmas tradicionais de ensino, que divide o conhecimento em contedos formalizados segundo uma lgica racionalizadora, sem espao para interao com os elementos culturais relativizadores das classificaes e valores dados

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de antemo. Talvez um livro didtico aberto, que rompa completamente com as fronteiras

epistemolgicas, seja algo impensvel, uma impossibilidade em si. Contudo, ele continua sendo um instrumento maciamente presente nas escolas, contando com investimentos pblicos significativos, sendo, portanto, merecedor de ateno crtica. A mediao do professor fundamental para que a literatura, tal como apresentada no livro didtico, no reforce preconceitos, esteretipos e vises hegemnicas, enfraquecendo seu poder de provocar o questionamento e a transformao dos modos de pensar.

Contudo, no se trata de dar literatura um fundamento, moral ou esttico, como se ela cumprisse, em si mesma, uma funo emancipadora. Talvez seja justamente essa ideia pr-estabelecida a de que os textos literrios so portadores de mensagens edificantes a responsvel por interpretaes que acentuam valores tomados como universais, escamoteando o ponto de vista a partir do qual eles se instituem. Uma abordagem da literatura do ponto de vista cultural no poderia desvincul-la das condies particulares em meio s quais ela se desenvolve e assume diferentes funes o que, no limite, nos conduz a um paradigma antropolgico de ensino da literatura. Desse modo, j no poderamos falar de literatura como uma entidade homognea, enquadrada em parmetros pr-definidos, pois o termo literatura implicaria necessariamente questionamentos do tipo: Que literatura? Para quem? Com que finalidade? Em que condies? Quais as mediaes? Considerar a literatura como atividade humana resultante de prticas sociais e culturais muda substancialmente as formas de estud-la e, com isso, a prpria concepo de literatura, ainda hoje entendida como um bem espiritual, portadora de contedos morais edificantes.

Compreender a literatura como produo cultural, e no como monumento, implica no s desloc-la da centralidade do cnone, como tambm vincul-la vida e s prticas sociais, como manifestao criadora de padres de comportamento, capazes de estruturar formas de relaes sociais. Nesses termos, a literatura deixa de ser modelo de valores e comportamentos sociais, para se transformar em ferramenta por meio da qual as pessoas do sentido e identidade s suas prticas. Ou seja, a literatura ganha uma dimenso mais antropolgica, que no passa pelo entendimento de cultura como ilustrao.

O problema de fundo, portanto, epistemolgico. No basta acumular textos que supostamente sejam representativos de diferentes contextos culturais, se o modo como sua existncia concebida dissocia-os completamente das condies de produo e recepo. Isso revela que, a despeito do discurso da diferena, segundo dispem os documentos oficiais, os materiais escolares, em ltima anlise, mascaram seu carter de homogeneizao cultural.

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O trabalho com textos literrios na escola poderia auxiliar de modo mais produtivo a experincia de deslocamento necessria ao dilogo cultural, se de fato os materiais didticos promovessem o intercmbio de significaes e pontos de vista, ao contrrio de reforar convencionalismos culturais. A literatura , por excelncia, o local da diversidade cultural e, portanto, da produo de diferenas culturais (BHABHA, 2007). Todavia, ela necessita, como componente de ensino, da adequada mediao dos materiais didticos para que, de fato, faa diferena na escola.

Referncias BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. So Paulo: Paz e Terra, 2001. HALL, Stuart. Da Dispora: identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. PARMETROS Curriculares Nacionais: introduo aos parmetros curriculares nacionais/ Secretaria

de Educao Fundamental. Braslia: MEC/SEF, 1997. PROJETO Ararib: portugus/obra coletiva, concebida, desenvolvida e produzida pela Editora

Moderna. Editora responsvel urea Regina Kanashiro. So Paulo: Moderna, 2006. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.