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KUYA, O DIA-A-DIA DE UM CÃO

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Edição – dezembro 2018

Autoria: Margarida MeiraRevisão: Diana DuarteEdição: Sofia Bairrão

Ilustração: Maria Côrte-Real

e-book em www.alemdatrela.comISBN 978-989-20-9121-1

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KUYA, O DIA-A-DIA DE UM CÃO

Margarida Meira

Aprenda a comunicar para educar o seu cão.

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AgradecimentosSobre este livroI. Primeiras Impressões

Loucura à distância de um toque Portáteis avariados e o mito do não forte Onde é o botão do reset? As vantagens da força O que dizemos sem falarConclusões: que impressões ganha a Kuya deste mundo humano?

II. Hábitos e Aprendizagem Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido? Como assim? Quando a esperança ganha à probabilidade O jogo do quente e frio Sentidos preguiçosos Fora do contexto

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Índice

Margarida Meira

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A importância da iniciativa Criar degraus do tamanho de cada um Arrancar o penso rápido? A lengalenga da tabuada

Conclusões: o que é a Kuya começa a aprender?III. Relação por um fio É normal Um mundo à mão de apertar Bexiga distraída Se funciona, porque não? Sei que estás aí Em modo zapping O impacto gigante de uma melga minúscula

Conclusões: o que aprende a Kuya sobre a rua e sobre a trela no seu corpo?

Nota final da autora

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Kuya, o dia-a-dia de um cão

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Agradecimentos

A todos os cães com quem tive o prazer de partilhar o meu caminho, que me permitiram aprender tanto.

A todas as pessoas que me deram a oportunidade de aprender com os seus cães. Toda a riqueza que ganhei em experiência e conhecimento é graças à aposta que fizeram em mim. Alguns por apenas umas horas, outros por mais de um ano.

A todos os que trabalham com cães de forma apaixo-nada. Ver os vossos olhos brilhar quando dão uma expli-cação ou estão a treinar algum cão, acende e reacende esta paixão que partilho convosco.

Aos eternos sábios que, por ser tão óbvio para eles quanto os cães são espetaculares, não fazem estardalhaços intelectuais e simplesmente vivem esse amor com os cães.

A todos os que tornaram este livro possível. Em todas as suas dimensões ao longo dos últimos dois anos. No apoio que precisei para acreditar que seria possível, no ouvir das minhas ideias, na revisão das minhas palavras, na dádiva do vosso próprio trabalho em áreas que eu não conseguiria fazer sozinha, na participação do crowdfunding para a publi-cação do livro. Muitos de vós são pessoas tão fantásticas,

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que nem sequer vivem com cães, e mesmo assim apostam em mim desta forma incondicional – é impossível expressar a gratidão que tenho por vocês. Principalmente à minha família, e amigos próximos, por caminharem ao meu lado, e abrirem todas as portas que têm ao vosso alcance, para que eu continue a concretizar os meus sonhos.

À Kuya, companheira do meu coração.

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Sobre este livro

Conviver com cães é comum e familiar para a maioria de nós. Ou temos cães, ou tivemos cães quando éramos crianças, ou convivemos com cães de amigos e familiares. Fosse em quintas, em apartamentos, ou na rua, lidámos com cães que, assim que se escapavam da trela, nunca mais ninguém lhes punha a vista em cima. Lidámos com cães que andavam sempre colados às nossas pernas e que, sob qualquer vislumbre de atenção, atiravam todo o corpo e baba para cima de nós, numa dança bestialmente animada… E, antes de nós, várias gerações de humanos e cães partilharam as suas vidas.

Com uma história tão antiga, parece-nos ser fácil interpretar o que eles sentem e pensam. E pode-se dizer que, da parte deles, acontece o mesmo. Parece que ambos desenvolvemos uma capacidade extraordinária de interpretar o que o outro expressa. Contudo, ainda há potencial para melhorar.

Este livro pretende revelar, através de comparações entre cães e pessoas em histórias simples e fictícias, o que acontece entre nós e o cão, que possibilita ou dificulta a interpretação correcta do que estamos a expressar um ao

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outro. Com estas comparações, não se pretende definir uma forma correcta e única de ver e lidar com o cão. Aliás, este livro não é um manual de treino. É um livro que vem potenciar a educação que é dada aos cães, através da identificação e descrição de padrões de interacção que existem entre humanos e cães. Detectando estes padrões, podemos perceber onde e como é que a comunicação pode melhorar. Quanto melhor comunicarmos, melhor seremos entendidos pelos cães. A comunicação é a chave para o sucesso do treino e para um bom convívio entre cães e pessoas!

Kuya, o dia-a-dia de um cão

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Primeiras impressões

I

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LOUCURA À DISTÂNCIA DE UM TOQUE

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Primeiras impressões – Loucura à distância de um toque

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Kuya por todo o lado

Agarrava-se à mala que tinha ao colo, quando o que queria era poder pegar na cachorrinha que estava prestes a adoptar. Chamá-la-ia Kuya, que em crioulo significa coisa boa. Finalmente, a funcionária do canil entrou no gabinete de adopção com uma grande caixa de cartão. Pousou-a leve-mente no chão, ao lado da Rita. A Rita pôde ver a Kuya dormitando, enroscada lá dentro. Sem sair da cadeira à frente da secretária, retirou rapidamente uma manta que tinha na mala. O toque leve das suas mãos, para levantar a Kuya e pôr a manta por baixo, teve o efeito equivalente a uma sirene de bombeiros. A Kuya desatou aos pulos, a querer ir ter com a Rita, que cedeu logo, trazendo-a para o seu colo.

A funcionária começou a explicar os termos de adopção, pedindo a atenção da Rita. Ela bem tentou, mas entre mordidelas nos brincos, patas enroladas no cabelo e puxões na roupa, estava deliciada e completamente distraída.

Passado um tempo, pousou-a na caixa, para conseguir manejar a caneta com a qual preencheria os papéis da adopção. Reparou, ao fim de uns minutos, que a pequenita tinha adormecido. A funcionária explicou que tinham sido uns dias muito intensos no canil, e que era normal ela precisar

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de dormir. Daqui para a frente seria importante fazer tudo com calma e espaçadamente. A Rita ficou enternecida e debruçou-se sobre a Kuya o mais silenciosamente possível, como um militar a entrar em campo inimigo, sob perigo de ser descoberto, e verificou os estragos: a Kuya ainda tinha uma das pulseiras da Rita (agora da Kuya), na boca, com vários fios desfeitos. Com muita calma e carinho deu uma festa no pêlo fofo da Kuya. Parecia que tinha tocado no botão de ligar, porque a Kuya, de repente, não parava quieta!

— Estavas tão bem a dormir, linda, acalma-te! Deita aqui, deita. Está quieta tonta!

Mas a Kuya não parava. Quanto mais a Rita a tentava acalmar, pondo-a na manta, dando-lhe festas, mais ela disparava unhas e dentinhos às suas mãos. Tinha de as retirar para que a Kuya não a magoasse. E assim que se aproximava de novo para lhe dar carinho, lá voltava ela a mordiscar. Isto aconteceu várias vezes: sempre que Rita a via quieta e aproximava a mão, a Kuya ligava o turbo e voltava à carga. Depois de uns momentos demorados neste liga/desliga, a Kuya suspirou um bocadinho e deixou-se adormecer novamente.

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Rita e o vício do telemóvel

Enquanto a Kuya estava com a veterinária, a Rita estava à espera no gabinete. Lá se demoravam, por isso pegou no livro que trazia na mala e abriu-o na última página que lera. O telemóvel tocou. Era o Gonçalo a perguntar ao grupo onde queriam jantar no sábado. Tinham um grupo no WhatsApp com alguns amigos, para combinarem saídas e jantares. A Rita queria ver como corria a semana com a Kuya antes de se comprometer, por isso não ia responder ainda. Arrumou o telemóvel.

O telemóvel tocou. A Sara sugeria a pizzaria BellaVita e o Gonçalo enviou um emoji a sorrir. Pousou o telemóvel, que voltou a tocar antes que pudesse afastar o olhar de volta para o livro. A Luísa dizia que algo mais perto do centro era melhor, para irem depois a pé beber um copo. Pousou o telemóvel. Leu a primeira frase do capítulo e pegou no telemóvel, que, entretanto, tinha tocado de novo. O Luís lembrava a fantástica tasca do Zé Borrego. A Rita fechou a aplicação e passeou uns segundos pelo Facebook. O telemóvel tocou, era o Gonçalo a lembrar que a Rita era vegetariana. Absteve-se de comentar e pegou no livro. Já conhecia bem esta grupeta, iam ficar

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horas a aparvalhar. Lá está, o Luís tinha posto quatro emojis de seguida, uma cara a chorar, uma faca, um coração e um polícia. Já que estava com o telemóvel na mão foi, sem pensar, ao Instagram, ver o que havia por lá. O telemóvel tocou. A Sara sugeria o Folha, restaurante vegetariano. A Luísa disse que era muito caro.

A Rita já sabia que esta conversa ia durar a semana toda, até ao próprio dia do jantar. Pousou o telemóvel e pegou no livro. Releu a primeira frase do capítulo. O telemóvel tocou, com uma resmunguice da Sara. Dizia que a Luísa só criti-cava e não dava sugestões. Voltou ao Facebook só para ver e fazer scroll-down. Após uns momentos, o Luís fazia piadas de como era a Rita que estragava tudo com a sua dieta freak e radical. Voltou a pousar o telemóvel e a reler a primeira frase. Continuou a ler, mas teve de voltar ao início, para apanhar o sentido do que lera. Não terminou, porque o telemóvel tocou e ela queria ver se continuavam a mandar vir com o facto de ser vegetariana. A Luísa tinha feito uma lista com seis restaurantes que, dizia ela, teriam provavelmente opções vegetarianas e eram suficientemente perto do centro. Desta vez, demorou-se ainda mais tempo no telemóvel. Passou

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pelo Facebook e pelo Instagram e acompanhou a parvoeira da conversa. Agora todos gozavam: entre milhões de emojis e memes, ora românticos, ora de lutadores de artes marciais, a brincar sobre o facto de a Luísa e a Sara serem perfeitas uma para a outra. A Rita procurou a segunda frase do capítulo, mas lembrou-se de um gif perfeito para usar, com dois cães de trela a ladrarem ferozmente um ao outro, mas que, assim que as trelas quebram, baixam as orelhas e vai cada um à sua vida. Dizia Pessoas no Facebook versus pessoas cara a cara.

Reparou que tinha fechado o livro sem o marcador. Folheou-o até ver o capítulo II, releu as mesmas frases pela quinta vez. O telemóvel voltou a tocar, mais notificações. Era a Luísa a queixar-se de como quando ela tinha iniciativa ninguém alinhava e só atrofiavam. O Gonçalo foi em seu auxílio e fez uma sondagem com as várias hipóteses, para cada um votar. Quase de certeza que venceria a hambur-gueria, foi aí que a Rita votou. Tinha uns hambúrgueres de seitan deliciosos.

A fome deixou-a aborrecida por estar ali parada à espera. Levantou-se e foi espreitar pelo vidro da janela do gabinete, na esperança de ver chegar a sua cachorrinha.

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Os cachorros são tão amorosos que fica difícil não lhes mexermos imediata e continuamente. Além disso, parecem viver para ficarem absolutamente colados a nós, encostando-se, abocanhando as nossas mãos, atirando-se para o nosso colo ou saltando para a nossa cara. Contudo, são bebés. Ainda não sabem muito bem como é que esta coisa de interagir connosco pode ser levada a cabo. Assim, vão experimentando. Cabe-nos a nós ensinar-lhes a forma ideal de interagirmos.

A primeira coisa que é interessante ensinar aos nossos cães é que a nossa pele é sensível e que os seus dentinhos aguçados causam dano. Há cachorros que, apesar de serem novinhos, têm patorras que magoam só de passagem. O ideal, nos primeiros dias, é que o contacto com as nossas mãos seja associado a um contexto de tranquilidade.

Mas o que é que os cachorros fazem assim que lhes pomos a mão em cima para uma festa? Mordiscam a nossa mão. Parece que o nosso toque, ou melhor, a própria aproximação da nossa mão, é como um botão para que activem a energia toda e desatem a

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mordiscar, rebolar e saltar em cima de nós – como o toque do telemóvel. Torna-se quase impossível, para qualquer um, resistir a pegar no telemóvel poucos segundos depois de este tocar. E, já que o temos na mão, muitas vezes continuamos a explorar as apli-cações. O telemóvel da Rita tocava e lá pegava ela nele sem pensar. A Rita queria genuinamente ler o livro, mas parecia ter um vício automático. Sempre que alguém falava no grupo do WhatsApp, lá queria ela ir ver o que tinham dito.

Talvez com os cachorros seja assim: mal vêem a nossa mão aproximar-se, atiram-se automatica-mente para interagir com ela o melhor que sabem – com a boca, claro está. Mais vale assumir que, de cada vez que a nossa mão se aproximar do nosso cachorrinho, ele vai activar o modo brincadeira e mordidelas. Ele é um bebé. Não consegue resistir. Nasceu para interagir com o mundo. E se o mundo está literalmente a tocar nele, é razão para soltar a loucura. O ideal é pararmos de lhes mexer assim que começam a pôr a boca.

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Caso contrário, se continuarmos a interagir desta maneira, a brincar com as nossas mãos enquanto o cão nos mordisca, ele vai aprender que é assim que se interage com a espécie de duas patas. Contudo, muito em breve, nomeadamente quando o cão tiver um tamanho que realmente pode magoar, haverá com certeza uma mudança astronómica da nossa parte. E se não partir da família do cão, com certeza virá das visitas ou de outras pessoas com quem ele terá de inter-agir no futuro. Quão injusto é, depois de tantos meses iludido, que o cão tenha de aprender que interagir afinal não envolve os dentes nas nossas mãos?

O mesmo acontece com as festas – convém dar apenas em momentos de mimo e sono. Se usarmos as mãos quando está com vontade de brincar, o cachorro não vai aprender que a nossa pele é sensível. Queremos, com o tempo, que ele associe que o contacto connosco deve ser feito com calma e sem dentes e garras à mistura.

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Dica de treino

Se o seu cão está a magoá-lo, ao mordiscar a sua mão, retire calmamente a mão e pare o contacto físico. Transforme a vossa interacção para algo que envolva mais a sua voz e menos o seu corpo, ou utilize brinquedos para ele morder.

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PORTÁTEIS AVARIADOS E O MITO DO NÃO FORTE

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Kuya e a primeira surpresa

Enquanto o Tiago tira as chaves da mala da irmã, a Kuya mantém-se encostadinha ao colo da Rita. Não está deitada, mas sentada nos braços dela, e todo o seu corpinho faz força para se colar à pele da Rita, até ao pescoço! Foi assim durante toda a viagem de carro. A Rita não podia estar mais derretida por esta delícia bege, de pêlo tão macio, que lhe apetecia nunca largar.

O Tiago abre a porta de casa da Rita, um rés-do-chão com logradouro, já pensado para ser lar com animais de estimação. Fecham a porta atrás deles e pousam no chão aquela relíquia. Um momento de silêncio histérico… o que iria aquele peluche amoroso fazer primeiro? Quanta emoção no primeiro dia de um cão lá em casa.

— Quando é que a vais apresentar aos pais e ao Miguel? — Perguntou o Tiago.

— Vamos almoçar com os pais no domingo, mas já combinei um jantar cá em casa com todos! Assim que o Miguel volte do Brasil. — Respondeu a Rita.

— Do Brasil?— Sim, foi lá passar uma semana com o Luís e os pais

dele. Vou ter esta semaninha para estar só com a Kuya e

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depois conhecem-na todos. Tu foste o privilegiado.— É tão fofa, como resistir?…Ah!… Olha, ela está a

fazer xixi no tapete!— Kuya, NÃO!!! — Exclamou a Rita.

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Zé e o portátil avariado

O Zé estava naquele modo em que as próprias leis do tempo deixam de ser regradas pela luz do sol e passam a ser súbditas da toda poderosa cafeína. Além das horas eternas, à primeira vista improdutivas, também os dias estavam adulterados. A contagem não era feita por dia da semana ou do mês, mas sim por uma trágica contagem decrescente de dias até à entrega da tese. Dez aterradores dias até à data de entrega da tese de doutoramento.

O Zé arrastou as olheiras pelo chão. Trazendo na mão mais um pacote de noodles acabados de fazer (de encher de água a ferver, portanto), aterrou na cadeira da sala. O amigo, que estava acampado na sua casa para também escrever a tese, não fez caso de os noodles serem a única coisa que comia nos últimos dois dias e passou-lhe um redbull para que aguentasse o resto da noite. Enquanto saboreava a refeição, sem pensamentos a condimentá-la, ligou o portátil. Abriu o documento da tese e ouviu um barulho agudo desconcer-tante. O ecrã ficou preto e o computador desligou-se.

— Ok… — Ligou o portátil novamente. Fez o início típico de quando é desligado erradamente, mas depois ligou normalmente.

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Não tinha tempo para investigar o assunto. O antivírus estava a funcionar, e aparentemente estava tudo bem. Cerca de uma hora depois, já havia três páginas do Youtube abertas, o Facebook, os sites das notícias, o e-mail, três documentos Word em que estava a trabalhar e um chat onde falava com amigos sobre jogos. Fora da super-fície do ecrã, mas também aleatoriamente adjacentes no seu campo de visão, havia embalagens de comida, papéis, telemóveis, latas de refrigerantes, canetas, mochilas, chaves e casacos, tudo disposto como se qualquer super-fície fosse adequada a qualquer um dos objectos.

Um estrondoso ruído atingiu-o, de repente, e o portátil desligou-se outra vez. Seria por ter demasiados programas abertos que o computador ia abaixo? Voltou a ligá-lo. O computador fez aquele início outra vez e o Zé deixou-o uns segundos sem fazer nada. Depois, abriu apenas a pasta com a tese e aguardou. Tudo ok. Lá abriu o ficheiro onde estava a escrever a tese e tentou lembrar-se do que tinha escrito, para reescrever. Mas nem teve tempo, voltou a ouvir o som ruidoso e o computador desligou-se. Desta vez, o amigo estava sem os auscultadores que lhe

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costumam ocupar o dobro da cabeça e exclamou:— O que foi isso?!— Não faço ideia!Voltou a ligar o computador. Desta vez, o primeiro

gesto foi tirar o som e clicar em reiniciar. Mas não serviu de nada: o computador voltou a encravar e a fazer um barulho gritante.

— Vou ligar ao Nelson. — Decidiu.Finalmente, ao final do dia (dia dez, na contagem decres-

cente), a coisa parecia começar a fazer sentido. O Nelson falou em chinês (bom, não realmente, mas era como se fosse) e o Zé deixou-o investigar e actualizar o computador.

Às tantas da noite, estavam os três rapazes de cabeça pousada nas mesas, a apodrecer de frustração, quando o computador terminou, por fim, a actualização. O Zé respirou fundo, pôs uns algodões ridículos nos ouvidos, acenou ao amigo que colocava estrategicamente também os auscultadores, e arriscou continuar a escrever a tese. Pensou para si mesmo:

— Desliga-se mais uma vez e peço o portátil emprestado à Maria.

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Quando ralhamos com um cão, o nosso objectivo é parar um comportamento que não queremos que continue. Quem é interrompido, de forma a não poder continuar o que estava a fazer, tende a fazer algo dife-rente. Contudo, se aquilo que fazia antes era impor-tante, no caso do Zé, terminar a tese e, no caso da Kuya, satisfazer as necessidades fisiológicas, não se veri-ficará uma mudança no comportamento nas primeiras interrupções, ou mesmo depois de várias. Quando a motivação para um determinado comportamento é tão grande, parece ficar pouco claro o que se está a punir.

No caso da Kuya, sabemos que a Rita não quer que ela faça xixi dentro de casa, muito menos no tapete. E no caso do Zé, o computador desliga-se sempre que é usado, até ser feita uma actualização adequada. Mas, como o Zé não percebe nada de computadores e é imperativo que escreva a tese, tenta fazer várias coisas para reverter a situação, tais como não sobrecarregar o computador e reiniciá-lo. No entanto, faz sempre o errado, isto é, não actualiza o computador antes de o voltar a usar.

Primeiras impressões – Portáteis avariados e o mito do não forte

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E o que será mais provável que a Kuya faça? A maioria dos cachorros faz como o Zé: começa a experimentar o mesmo comportamento (que se quer eliminar), mas de formas diferentes. O que é mais recorrente? Provavel-mente, o cachorro vai encontrar um canto da divisão e fazer sempre lá xixi. O que, confesse-se, nos dá uma sensação de relativa convicção de que estamos certos em punir, como se ele soubesse que fez mal. Bom, e isso é bem melhor do que quando fazem mesmo debaixo do nosso nariz, no meio da sala de estar.

O Zé não sabia como devia proceder com o computador. Só recebia indicações bastante precárias de estar algo errado, pois volta e meia o computador ia abaixo. A Kuya também ainda não sabe onde se faz xixi. Logo, os não! só lhe vão ensinando, de forma igualmente precária, onde não fazer.

Mas o Zé tem de escrever a tese e a Kuya tem de urinar. Se ninguém lhes disser como fazer, eles vão continuar a fazer como sabem. A Kuya aprenderá a evitar o sítio perto da pessoa que diz não de forma intimidante, o que pode criar uma aversão ao espaço, ou àquele que pune.

Margarida Meira

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Quem sabe, o Zé vai pedir emprestado o computador da Maria depois de escrever a tese, para não ter que passar por nada disto outra vez, mesmo que o Nelson lhe diga que já está tudo arranjado. Por vezes, memo-riza-se uma insegurança, marcada pelo estrondo que aconteceu tantas vezes: em vez de associarmos o desligar do computador à falta de actualizações, associamos ao próprio computador. Para evitar o desconforto da imprevisibilidade toma-se a decisão de comprar um computador novo, por exemplo. Esta forma de apren-dizagem é particularmente comum nos cães, pois aprendem quase tudo por associação a contextos.

No caso dos cachorros, o que às vezes acontece é pararem totalmente de fazer as necessidades perto das pessoas, em casa ou na rua, o que torna a educação das necessidades ainda mais difícil. Assim, deixamos de conseguir estar perto quando as fazem, para os recompensar ou encaminhar para o sítio certo. O mais típico é o cão afastar-se silenciosamente, quando estamos distraídos, para fazer xixi em algum canto mais escondido da casa.

Primeiras impressões – Portáteis avariados e o mito do não forte

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De forma geral, é mais provável que os cachorros façam xixi ao acordar, depois de comer, beber água e brincar. Por isso, estes são momentos perfeitos para os levar ao sítio certo onde queremos que aprendam a fazer as necessidades.

Margarida Meira

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Cada vez que disser não ao seu cão fica a dever-lhe vinte sins! Ou seja, antes de lhe dizer não outra vez, condicione o contexto em que ele está inserido de forma a criar oportunidades de sucesso. Sempre que ele for bem-sucedido – isto é, sempre que ele se portar bem – elogie e dê uma recompensa.

Dica de treino

Primeiras impressões – Portáteis avariados e o mito do não forte

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ONDE É O BOTÃO DO RESET?

Margarida Meira

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Primeiras impressões – Onde é o botão do reset?

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Kuya e os atacadores

Desde criança que a Rita desejava ter um cão. Planeou tudo com precaução. Quando encontrou esta casa adorou o logradouro! Imaginou logo uma cachorrinha a apanhar banhos de sol ao seu lado, esparramadas as duas no pequeno pedaço de relva que ali havia. Agora, dava por si sem saber muito bem como proceder com a adorável bebé peluda.

— Já está tudo limpo? — Perguntou o Tiago, que entretinha a pequenita enquanto a Rita acabava de lavar o chão. — Se fosse a ti mantinha-a no quintal para ela não sujar os tapetes todos.

— Mas eu tenho ali um resguardo! Ela vai aprender, vais ver. — Disse a Rita, enquanto pendurava o tapete para secar.

— Tu é que sabes. Vá, vou andando.— Vais à tal aula de dança com a Maria? — Quis saber,

rindo-se do irmão. — Divirtam-se, beijinhos para ela.Neste momento, a Kuya estava à porta de casa com

eles. Antes de a porta se abrir completamente, a Rita deu um grito, pegou na Kuya e pousou-a no chão. A cadela saltou-lhe para as pernas e a Rita explicou-lhe

Margarida Meira

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que não podia sair assim pela porta. A Kuya começou a ladrar-lhe de volta e a mordiscar-lhe os atacadores. As sobrancelhas do Tiago expressaram o que o riso abafado não expressou: boa sorte!

— Pára de gozar, Tiago! — Exclamou a Rita. Despediu-se dele. Mal fechou a porta, virou-se para

trás e viu a sua mala aberta ser arrastada pela casa fora, deixando pelo caminho tudo o que continha. Carteira, chaves, telemóvel, batom, caderno. Ui, o caderno…

— Kuya!A cachorra parou e virou a cabecinha de lado,

ficando com uma orelha pendurada e outra para cima. A fracção de segundo em que a Rita não disse nada demorou demasiado tempo. A Kuya viu o caderno, saltou-lhe para cima e começou a roer o papel. A Rita já tinha lido sobre isto num manual sobre cães. São cachorros, tudo bem, esta fase é difícil. Respirou fundo e pôs mãos à obra. Lembrou-se do que tinha planeado. Depois de agarrar a Kuya com uma mão, de lhe puxar o caderno babado da boca e arrumar tudo dentro da mala, levou-a ao colo até à sala.

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— Estes são os teus brinquedos, estás a ver?Começou a tirar de um cestinho vários peluches, cordas

e brinquedos de borracha e espalhou-os pela sala. A Kuya parecia interessada. Cheirou todos os brinquedos que a Rita tirou do cesto. De vez em quando dava um saltinho, tipo chelique, e voltava a aproximar-se radiante.

Depois de expor abundantemente todos os brinquedos pelo chão da sala, a Rita sentou-se no sofá para adiantar alguns e-mails. A Kuya não pensou duas vezes e pôs as patas e a boca no telemóvel da Rita. Entre festas e empur--rões suaves, a Rita disse-lhe para ir brincar com os brin-quedos. A Kuya tentou saltar repetidamente para o sofá, mas não conseguiu. Ainda era muito pequenina. Decidiu então mordiscar o que estivesse mais perto. Como não queria sair de perto da Rita, os ténis dela foram o item seleccionado. A Rita pegou nela e pousou-a um pouco mais longe, numa viagem pelo ar que mereceu mais dentadinhas nas mãos e um baloiçar maluco, até aterrar no chão. O tempo de a Rita largar a Kuya e afastar as mãos foi ultrapassado por um veloz salto que a Kuya deu para cima da Rita novamente.

Margarida Meira

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A Rita pegou num dos brinquedos e abanou-o à frente da Kuya, que imediatamente o tentou abocanhar. Por um segundo louvável, ficou deita-dinha a mordiscar o brin-quedo. Mas, no segundo seguinte, já estava a abocanhar o sofá, o tapete, a saia da Rita, e por fim, acompanhando uma rendição da Rita, os atacadores dos ténis outra vez. Menor dos males, deixa-a lá estar assim e pronto, pensou ela.

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Luís inundado por um Brasil imenso

Desde pequeno que o Luís sonhava com o Brasil. Cresceu com as novelas brasileiras nos serões de família lá em casa. Uma memória íntima e agridoce, pois marcava a hora de ir deitar. Ele e a irmã ficavam caladinhos no sofá, enquanto aproveitavam a distracção dos pais com a novela e cele-bravam cada segundo em que não eram recambiados para a cama. Tentavam imitar os adultos e faziam-se de estátuas invisíveis, como se os pais não estivessem perfeitamente cientes das horas. Nesses momentos de quietude, o Luís dava por si a enrolar-se no português cantado dos actores que via no ecrã. Assim começou esta admiração pelo Brasil. Claro que, novinhos como eram, caíam sempre na tentação de disparatar com beliscões e palhaçadas um com o outro e os pais acabavam por os mandar para a cama.

Ao longo dos anos, foi descobrindo mais sobre o Brasil. Conhecia bem a história portuguesa e arrepiava-se-lhe a pele ao pensar no holocausto dos índios durante a chegada dos portugueses, no século XVI. Adorava os documentários sobre a Amazónia, as cascatas, as praias, os rios cheios de vida. Interessavam-lhe as dicotomias sociais, a luta contra o crime e o valor que os brasileiros dão à estética. E a

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música…! Sabia tocar umas dez músicas de bossa nova na sua guitarra. Conhecia tão bem o Brasil que só faltava vê-lo com os próprios olhos.

Os pais convidaram-no a ele e ao marido, o Miguel, irmão da Rita e do Tiago, para irem passar uma semana a Recife. Ele teria gostado de fazer o plano da viagem, mas andava tão atarefado com o trabalho que deixou que os pais os inscrevessem, aos quatro, num pacote turístico que incluía passeios e actividades para todos os dias. Teve tempo de fazer umas pesquisas na internet na véspera, entre a preparação do trabalho para a sua ausência e o arrumar das malas com o Miguel.

Durante o vôo a mãe ficou um pouco maldisposta, dirigin-do-se ao lugar deles.

— Pede um copo de água para ver se ficas melhor, mãe.— Ah, passeio um bocadinho pelo corredor e já passa.A verdade é que oito horas seguidas eram obra! O pai

dormia ferrado, de certeza, e o Miguel estava entretidís- -simo com a segunda comédia romântica que passava no televisor, colado às costas do banco da frente. Ao lado, o Luís sonhava acordado com sestas de uma tarde inteira

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numa cama de rede, bebendo água directamente do côco.Mal saíram do aeroporto, viram o acenar agitado de um

senhor baixo e cheio, tanto de gordura na barriga como de dentes, num sorriso aberto e convidativo. Acenou, cumprimentou e indicou a direcção aos senhores da frente; acenou, cumprimentou e indicou a direcção à família ao seu lado… Aproximou-se dos quatro e deu um aperto de mão forte ao pai, um abraço à mãe e umas pancadas animadas nas costas dele e do Miguel. Entregou-lhes os papéis que teriam de preencher para serem levados para o hotel que fazia parte do pacote turístico.

Enquanto o Luís e o Miguel liam os papéis e os pais pousavam as malas no chão, o senhor Herculano já tinha ido receber o casal jovem a uns metros ao lado e voltado para perguntar se estava tudo bem, apontando para onde teriam de assinar. O Luís levantou o papel como quem diz homem, estou a ler ainda, que se reduziu verbalmente num mais simpático.

— Sim, sim, obrigado. — E lá foi o homem cumpri-mentar e receber o resto das pessoas do grupo. Era tão cheio de ordens indicativas, com uma voz envolvente e um mexer

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de braços tão animado que era impossível não se sentirem embrulhados, seguindo-o para onde quer que fosse.

Ao sentar-se no lugar, dentro da camioneta, teve uma breve paz de espírito. Deu a mão ao Miguel e sorriram carinhosamente. A camioneta arrancou, ele olhou para a paisagem pela janela e preparou-se para inspirar o Brasil, com calma. Mas engasgou-se imediatamente com um zumbido altíssimo que o microfone fez.

— Bem-vindos! Senhores e senhoras, se preparem para uma experiência maravilhosa na magnífica cidade de Recife! Teremos visitas à cidade e às praias durante o dia, prova de deliciosos cocktails durante a noite, passeios nas cachoeiras de águas límpidas e frescas perto da cidade, e tudo mais que possam imaginar!

Toda a gente na camioneta aplaudiu e assobiou. Parecia um grupo animado, desejoso de festa e entretenimento. O Luís suspirou internamente, pois não era bem isto que esperara encontrar.

Ao fim de três dias de actividades lideradas pelo senhor Herculano, havia qualquer coisa errada. O Luís parecia emocionalmente irreconhecível, até por ele próprio,

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andava carrancudo e facilmente irritável. O dia-a-dia era preenchido. Acordavam sempre com pressa de chegar a horas ao pequeno-almoço, para ver se ainda restava algum suco delicioso. Na camioneta, ouviam o Hercu-lano a falar todo o tempo, ouviam guias turísticos todo o passeio, paravam em praças e miradouros pré-definidos, com tempos determinados.

Tudo o que faziam era indicado pelos guias. O que comiam, o que bebiam, para onde deviam apontar as câmaras e tirar fotos, o que deviam comprar como recordação. Havia tanta invasão de incentivos para fazer isto, aquilo e aqueloutro, que o Luís já não aproveitava nada com sabor e estava facilmente irritável.

Dentro de uma loja de recordações, no centro da cidade, aproximou-se da mãe que estava entretida no meio de tanta bijutaria.

— Querido, o que achas destas pulseiras? Lindas estas missangas, não são? — Perguntou a mãe com os olhos a brilhar de tanta cor e sol.

O Luís revirou os olhos, a pensar já vi umas centenas destas!— Então, mas que cara é essa?

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— Desculpa, sim, são bonitas, mãe. — Ai, não sei o que se passa contigo, até parece que não

estás de férias! Porque não quis resmungar com ela, virou-se para o

lado para ver o que andavam a fazer os homens. Estavam entretidos com os chapéus de palha e os charutos.

— Levamos uns destes para ter lá em casa para os convi-dados, o que achas? — Perguntou o Miguel.

— Desde quando é que fumas charutos?— Então, tonto, não é para mim, é para quem quiser.

E para dar aquele charme… — Fez um olhar sedutor enquanto fingia que fumava, com ar sério, para depois se desmascarar numa adorável dancinha de ombros.

— Sim, querido, como queiras. — E o Herculano fez sinal à porta da loja para se apressarem a regressar.

Mais tarde, ao sair de um banho quente, o Miguel encontrou o Luís agarrado ao portátil.

— Passa-se alguma coisa no trabalho?— Não. Vim ver os e-mails, mas na verdade está tudo

encaminhado. — Então, que estás tu a fazer? Porque vais preocupar-te

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com o trabalho quando estamos de férias?O Luís fechou o portátil. — Não sei o que se passa, não consigo relaxar, ando

irritadiço.O Miguel conhecia bem o Luís, era uma pessoa de

hábitos, para quem desligar, quando estava em sítios novos, era difícil. Acabou de se vestir, pegou na mão dele e levou-o para fora do quarto. Atravessaram o corredor, entraram no restaurante e passaram para uma zona no exterior que o Luís ainda não conhecia. Havia um pátio, à esquerda de quem saía do restaurante, com cadeirões e mesinhas de madeira, feitas à mão. E uma vista fantástica para a praia, com o mar infinito no escuro da noite. Havia no pátio uns biombos de madeira, lindíssimos, que faziam pequenos recantos, cada um com cadeirões confortáveis. No último recanto, além de cadeirões, havia duas camas de rede cor-de-laranja, de um tecido macio e forte. O Miguel pediu dois gins ao empregado e refastelou-se numa das redes. O Luís suspirou, sorridente, e atirou-se de um salto para a sua rede. Foi tão enérgico que a rede lhe fugiu das mãos e quase caiu redondo no chão! À segunda tentativa, com

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calma, sentou-se primeiro. Ficaram os dois ali, no fresco da noite, a ouvir as ondas do mar e a ver o céu estrelado.

Estar deitado na rede, com tempo, sem receber indicações sobre o que comer, onde ir e o que fazer, fez com que uma paz de espírito e uma clareza mental o inundassem.

No dia seguinte, o Luís espreguiçou o tempo em fotografias cheias de pormenores das fachadas das casas, das folhas das árvores com o sol e o azul por cima, das mãos de quem comia queijo frito vendido na praia… Quando entrou em mais uma loja de bugigangas, para a mãe se divertir em presentes para as amigas, ficou quase meia hora a falar com a senhora da loja. Era ela que fazia as pulseiras com materiais que as primas lhe enviavam. Muitas coisas vinham do Sertão, como as madeiras que usava nas molduras. E havia, entre dezenas de desenhos da praia e de igrejas, uns desenhos caricatu-rados de famílias típicas das fazendas do interior. Comprou um desses. Num percurso pelo centro, o Luís pediu ao guia que aguardasse enquanto ia espreitar uma esquina. Encon-trou uma fachada lindíssima, numa rua cheia de prédios de só dois ou três andares, cada um com uma cor viva diferente, azul, verde, amarelo, rosa! Tirou fotografias com gosto.

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O Luís queria tanto conhecer tudo o que lhe estava a ser exposto que não desligava nem um bocadinho. Ao fim de uns dias, esta estimulação sobrecarregou-o. Estava literalmente a precisar de tirar férias das próprias férias. Os cachorros são um bocadinho como uma pessoa de férias. Bem-dispostos, querem ir a todo o lado, conhecer tudo, interagir com o máximo de pessoas, cães, gatos, pombos, bicicletas, folhas de árvore…! Podemos mesmo dizer que a missão dos cachorros é interagir! Conhecer e brincar com tudo o que existe. Tal como o Luís, que queria ver e saber tudo sobre o Brasil, também a Kuya quer ver e saber sobre tudo o que encontra na sua nova casa. Assim, não vai descansar até conhecer tudo à maneira dela.

Como? Abocanhando, puxando, raspando, rebo-lando… À cão, portanto. Mas esta sobre-estimulação, por vezes, não deixa tempo à consolidação do que se apreende sobre o ambiente circundante. Por isso, é muito importante os cães terem pausas. Note-se que pausas não são finais, são pausas, portanto, a meio da coisa, e não só quando já estouraram toda a sua

Margarida Meira

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energia. Afinal, o que é que é mais natural acontecer? Os cães brincarem até à exaustão e adormecerem de um segundo para outro, para depois acordarem com as pilhas cheias e se atirarem novamente como malucos a tudo o que vêem. Embora o instinto lhes diga interage e mexe em tudo, todos os seres precisam de doseamento para que possam absorver e lidar com aquilo que vêem e interagem. Assim, tal como o Luís se regenerou completamente com uma boa sesta na rede, num lugar tranquilo e relaxado, os cachorros ganham muitíssimo em terem pausas sem estimulação. Ao restringir um cachorro a um parque por exemplo (tal como fazemos para os bebés), teremos a certeza que eles terão momentos sem tanta estimulação, ou com brinquedos apropriados para os acalmar. Dar-lhes acesso geral é como criar um mini senhor Herculano, animado, a acenar aos gritos para absolutamente tudo o que existe dentro da nossa casa.

— Aqui à esquerda temos um maravilhoso pé de cadeira para roer, em frente temos o tecido do sofá para escavar e, venham, venham, debaixo da cama há

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tantos sapatos com um cheiro maravilhoso, à espera que os venha destruir!

É impossível resistir. Se condicionar o seu cachorro de forma a que este tenha momentos sem estimulação inter-calados com momentos com coisas para fazer, irá notar que ele parece menos uma máquina reactiva de saltos, ladrares e mordidelas e que vai começar, magicamente, a aguardar uns segundos perante cada coisa nova que lhe for apresentada. Vamos aproveitar esta motivação fantástica que os cachorros têm de apreciar a vida para os transformar, aos poucos – sim, demora meses – em adultos ponderados. Se deixarmos este estilo de vida de sobre-estimulação acontecer, é possível que se trans-formem em adultos selvagens e reactivos, que, por serem demasiado brutos quando estão dentro de casa com o resto da família, acabarão por ser recambiados para o quintal. Como o Luís, por exemplo, que ficou irritadiço com a própria mãe em plena loja de recordações.

Além disso, o Luís foi tão sobre-estimulado com actividades turísticas que, mesmo à noite, no quarto, sem nada para fazer, teve a tendência de procurar mais

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coisas com que se preocupar; nomeadamente, pegou no portátil para ir ver o trabalho. Há alguns cães que, mesmo satisfazendo as suas necessidades de energia, parecem nunca desligar, e estão sempre à procura de coisas para fazer, como roer, escavar ou ficar a ladrar durante horas a barulhos que só eles conseguem ouvir.

Parece existir uma correlação entre sobre-estimu-lação e incapacidade de nos auto-acalmarmos. Assim, fazer pausas é algo extremamente vantajoso para os cachorros, ensinando-os a aguardar pacientemente nos momentos em que não é possível interagirem com tudo e todos. Por exemplo, nos transportes públicos, ou quando ficam algures sozinhos à nossa espera, como em casa, no carro ou à porta da mercearia.

Note-se que parar não significa condicionar o cachorro muito tempo. Para se transformarem em adultos saudáveis é imprescindível que os cachorros interajam com tudo e todos. Não obstante, esta estimulação e interacção deve ser feita a um ritmo em que o cão consiga realmente lidar com as coisas e não apenas reagir a elas.

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Dica de treino

Durante a hora da sesta, por exemplo depois da refeição e do passeio, feche o seu cachorro numa transportadora, de forma a que ele fique confortável e com vista para o que se passa à volta dele. Não exceda o tempo mais do que uma hora, assegure-se que ele fica confortável e tran-quilo. Não o feche como castigo por ele estar muito excitado.

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Primeiras impressões – Onde é o botão do reset?

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AS VANTAGENS DA FORÇA

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Primeiras impressões – As vantagens da força

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Kuya e os seus dentes agulha

A Rita tinha ido à cozinha, mas assim que voltou à sala viu a Kuya escorregar pela manta do sofá num espreguiçar engraçado, a transbordar de fofura. Lembrou-se do que lera e pegou nela para a levar ao quintal. Leu que é mais provável que os cachorros façam xixi logo que acordam. Podia ser que a Kuya ganhasse bons hábitos! Assim que se aproximou, a Kuya encostou-se para trás dando-lhe as patinhas e abanando a cabecinha. Irresistível. Deu-lhe umas festas na cabeça e a Kuya atirou as costas para o chão. A Rita continuou a dar-lhe festas, agora também na barriga, e a Kuya começou a fazer uns sons que ela achou amorosos, enquanto se remexia mais rapidamente. Pegou nela para a levar para o quintal e a Kuya começou a mordiscar-lhe as mãos.

— Está quieta linda, vamos lá fora. A Kuya foi-se baloiçando, tornando mantê-la ao colo cada

vez mais difícil. Já no relvado, sacudiu-se, começou a cheirar, e passado uns segundos, magia, fez um xixi! A Rita ficou tão contente que começou a festejar e, claro, a Kuya adorou.

Entraram novamente e a Rita foi buscar uma toalhinha para limpar as patas da Kuya. Reparou na escova que

Margarida Meira

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estava no cesto e também decidiu trazê-la, para escovar aquele pêlo farfalhudo. Ao aproximar-se das patas da Kuya ela começou a afastar-se.

— Anda cá, está quieta.Apanhou-a e agarrou-lhe a pata. No meio de movimentos

rápidos e descoordenados, a Kuya soltou-se e correu pela sala. Com pulinhos, vénias e ladrares amorosos, foi-se aproximando de novo. A Rita agarrou-a e manteve-a ao pé de si enquanto lhe limpou as patas. A Kuya atirou as costas para o chão.

— Kuya, estavas tão fofinha. Porque é que agora estás tão arisca?

Sorriu e abanou a sua mão sobre a pele da barriga da Kuya. Tinha uma pele tão macia! Notou que a Kuya começava a atirar-lhe a boca com um bocadinho mais de força e deixou-a ir embora.

Primeiras impressões – As vantagens da força

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Tiago, um Don Juan sem jeito

A Maria, namorada do Tiago, falava nisto desde o primeiro encontro: adorava danças a pares! Fossem danças tradicionais europeias, o forró brasileiro ou o lindyhop americano, os bailes eram animados. O Tiago sabia que a sua sina estava gravada em pedra, era só uma questão de tempo até à sentença. Ao fim de um ano de namoro, já não tinha como fugir aos convites da Maria sem a deixar chateada. E ela sabia como armadilhar a coisa. Recebeu uma mensagem dela:

— Sempre tens esta noite livre?— Sim, o pessoal aproveitou o feriado para fazer um

fim-de-semana prolongado. Só está cá o Zé, mas está completamente açambarcado pela tese, não vale a pena contar com ele até ao final do semestre. Tens alguma ideia? Acho que saiu um episódio novo de Game of Thrones, queres ficar em tua casa a ver? — Respondeu-lhe o Tiago.

— Tenho uma ideia melhor, vamos a um workshop grátis de lindyhop que há no centro.

— Maria, já sabes que sou um zero à esquerda a dançar. — Disse o Tiago.

— Por isso é que vamos a um workshop, para aprender.

Margarida Meira

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— Ripostou a Maria. — Mas não tenho jeito nenhum. — Repetiu.— Ninguém tem, vais ver, é um grupo de iniciados, por

isso é que se chama workshop…Bolas, aquele argumento irritante dava resposta a tudo: — Ok baby, vou a este, mas se não gostar não me pedes

mais para ir.Recebeu o gif de um cachorrinho amoroso a lamber

um gato super desconfortável com a babosa intimidade do cão.

Ele foi de bicicleta, ela foi de metro, e encontraram-se à saída da estação. O Tiago desmontou da bicicleta, deu-lhe um beijo e caminharam juntos até ao clube onde decorreria o workshop.

— Número 26, chegámos. — Disse a Maria. Uma grande porta verde, de madeira, continha uma

porta mais pequena, por onde entraram. Logo à entrada, estava uma rapariga com o cabelo entrançado ao redor da cabeça e um vestido curto, vintage, amarelo torrado. Os seus olhos castanhos, gigantes, acompanharam a entrada curiosa e cautelosa do casal.

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— Olá! Viemos para o workshop de lindyhop. — Exclamou a Maria, entusiasmada.

Estava um pouco envergonhada, nunca tinha ido a este sítio e esta dança não era daquelas em que se sentia mais à vontade. Lá em baixo já estavam algumas pessoas. O Tiago descobriu olhares apavorados de outros dois rapazes, provavelmente também arrastados pelas namoradas, e isso descansou-o um pouco. Entraram na sala.

— Bem-vindos pessoal! Eu sou a Sofia, o meu par é o Pedro, e planeámos para vocês uns passos de introdução ao lindyhop. Antes, gostaríamos que se espalhassem pela sala, individualmente, e que se desloquem como se sentirem bem, enquanto pomos umas músicas. Depois daremos algumas indicações, mas para já caminhem, simplesmente. Esta parte parece fácil, pensou o Tiago.

— Sintam o ritmo, vejam como é interessante o ritmo da música e como podem caminhar com esta batida.

Tudo bem, isto também sei fazer. O Tiago estava surpreen-dido com o à-vontade que sentia com a música e como o seu corpo parecia estar a fazer o mesmo que os dos profes--sores. Confirmou-o pelo reflexo do espelho da sala.

Margarida Meira

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— Agora juntem-se em pares e façam um círculo, líderes do lado de fora, isso mesmo.

A Maria estava excitada e agarrou rapidamente o braço do Tiago. Os professores começaram por ensinar o primeiro passo. O Tiago estava a demorar a perceber a ordem: esquerdo, direito, esquerdo, pausa, direito, esquerdo, direito, pausa foi o estratagema que encontrou para traduzir o pá, pá, pá… pá, pá, pá do professor. Sentia-se orgulhoso desta sua interpre-tação. Estavam a lutar um bocado para acertarem o ritmo entre os dois quando ouviu uma calamidade:

— Troca de par!— Como assim, troca de par? — Perguntou ele à Maria,

enquanto ela deslizava para fora dos seus braços. — Sim, vamos trocando. — Respondeu ela docemente.— Mas ainda não sei fazer o passo! — Exclamou o

Tiago.— Não faz mal, estamos todos a aprender.Mal a Maria acabou de falar, ainda nem se tinha virado

para o novo par, uma mão pousou nas costas dela, num abraço dançante. Não havia nada a fazer. Também ele já tinha uma mão pousada no ombro esquerdo, com a

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mão direita da rapariga à espera de encontrar a mão esquerda dele. Olhou lentamente para ela, como um robô avariado, e lá tentou reproduzir os passos. Estava quase a apanhar-lhe o jeito quando os professores pediram que parassem, para explicarem o passo seguinte. Parecia diver-tido, mas era mais complexo, implicava levantar o braço para que a rapariga passasse por baixo.

Nova troca, o novo par fazia os passos todos com imensa graciosidade. O par seguinte não tinha tanto jeito, mas fazia a sequência toda na mesma, independentemente de ele acertar a sua parte ou não.

Depois de algum tempo, conseguiu finalmente acertar nos passos, e eis que chegou o maior desafio de todos. Os professores sugeriram aos alunos que alternassem a sequência conforme quisessem. Podiam andar para a frente, ficar no mesmo sítio e passar a rapariga por baixo do braço. Ele odiava coreografias e assim podia ouvir a música mais à vontade. Ui, começava a gostar disto.

Juntou-se ao novo par e começou com a sequência normal. Estavam em sintonia. Depois começou a alterar a sequência, mas a rapariga não percebeu, repetindo a

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sequência normal. Parou e voltou ao início para se coor-denarem, mas, assim que decidiu fazer algo diferente, a rapariga não fez caso e continuou com a sequência apren-dida. Trocaram de par.

Com o novo par aconteceu a mesma coisa. Era muito simpática e sorridente, mas parecia um robô, fazia os passos sem que ele os indicasse. Devia estar a ser pouco claro. Começou a esticar e puxar o braço com um pouco mais de força e conseguiu que o novo par rodasse mesmo fora da sequência. Finalmente, pensou. Com o resto das músicas sentiu-se mais confiante, parecia um profissional, virava o par, andava para a frente ou ficava no mesmo lugar, tudo sempre que queria. Muitas vezes, as raparigas tinham que acelerar o passo para corresponder ao puxão que ele lhes dava, mas logo a seguir percebiam o que ele pretendia. Os passos do Tiago ainda não estavam bem aprendidos, mas ele até se esqueceu de aperfeiçoar a sua parte, porque bastava puxar ou empurrar levemente os seus pares para dançarem em sintonia.

A professora estava há uns momentos a observá-lo e pediu para dançar com ele. Deram o primeiro passo e ela

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parou-o imediatamente, quando ele levantou o braço dela com força para ela rodar.

— Experimenta usar o corpo todo para sugerir os passos e não apenas o braço. Por exemplo, inclina-te, vira o tronco também, e experimenta usar o braço com um movimento mais suave.

Pouco suave?… Sentiu-se um idiota, sem jeito. Esforçan-do-se, contudo, por reaprender a medir a força, viu que a professora correspondia rapidamente e sem problema a cada alteração de sequência que ele fazia. Uma maravilha de conexão. Estava desejoso por dançar com a Maria! Que chatice, estava a apaixonar-se por esta dança.

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Ainda sem os passos bem aprendidos, o Tiago sentiu necessidade de indicar melhor que passos queria fazer. As raparigas, como também ainda estavam a aprender, tentavam sempre adivinhar o passo seguinte e assim acabavam por ficar descoordenados. Quando o Tiago se apercebeu que fazendo mais força com o braço conseguia movimentar o par para o passo que desejava, assumiu que era assim que se fazia.

A Kuya também não estava a conseguir expressar que não queria que a Rita a pegasse ao colo, e lhe agarrasse as patas para a limpar ou escovar. Por isso, começou a mordiscar com um bocadinho mais de força para se livrar das mãos da Rita. Com o tempo, sempre que a Rita der festas à Kuya e ela não quiser, ou lhe mexer de forma que a Kuya não gosta (por exemplo para a limpar, pôr a coleira ou escovar) é muito natural que a Kuya comece a ser mais bruta para se soltar. Se isso funcionar, tal como funcionou com o Tiago puxar o par, morder com força passará a ser um comportamento útil para a Kuya em interacções desconfortáveis com as pessoas. Exactamente o oposto do que queremos que ela aprenda.

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Para uma cachorra que se quer livrar do desconforto de uma escova, mas tem uma motivação gigante para brincar e interagir, mordiscar é ainda mais vantajoso, porque é versátil. Ora serve para tirar mãos indese-jadas de cima, ora serve para movimentar mãos, que assim se tornam em perfeitos alvos de caça. Quantas vezes, a meio de uma brincadeira bruta, afastou a mão depois de uma mordidela indesejada e o seu cachor--rinho ficou boquiaberto com ar de louco, orelhas para trás, olhos esbugalhados, pronto para saltar e caçar a mão novamente?

Relembrando a maravilhosa joi de vivre com que os cachorros parecem nascer e a vontade imensurável que têm de interagir, mesmo que a função da primeira mordida fosse tirar a mão indesejada de cima dele, logo a seguir vai-se lembrar quão divertido é perseguir mãos. Resultado? Atira-se novamente à nossa mão, esquecendo-se que ao início estava desconfortável com esta interacção. E depois? Auto-inunda-se de estímulos (leia-se: os humanos que só tinham boas intenções, mas que se começam a mexer bastante) e ganha

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uma energia imparável, sem nunca aprender como é suposto, então, interagir com as mãos das pessoas. Torna-se problemático com cães que ganham um tamanho considerável nestes primeiros meses de vida.

Como é que o Tiago conseguiu reaprender a liderar um par suavemente? Antes de mais, a professora inter--rompeu a dança de forma a deixar claro que assim não funcionaria. Podem imaginar os ombros que seriam deslocados se não fosse esta professora! Muitas raparigas, futuros pares, foram salvas graças a este momento. Note-se que o Tiago, tal como a Kuya, é muito capaz de empatia e só tem boas intenções. Mas, se não notar que está a ser bruto para alguém, não tem razões para deixar de o ser. O Tiago estava muito concentrado nos passos, tinha sido a sua primeira aula! Assim, era tudo novo e com muita informação. À semelhança do Luís, quando somos inundados de informações novas torna-se difícil parar e, como no caso do Tiago e da Kuya, sem parar teremos ainda mais dificuldade em dar conta que o outro se está a magoar com a nossa acção.

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Assim, é importante criar um ambiente de calma e tranquilidade quando vamos interagir com os cachorros. Dar brinquedos adequados à mordida e parar de interagir se o cão está demasiado excitado para estar atento aonde põe os dentinhos. Tornar a nossa mão (pés, roupa, pulseiras, etc.) alvos super divertidos de caça é de evitar, pela mesma razão.

Para ler com mais clareza se o cão está a prestes a morder por estar desconfortável, o ideal é fazer pausas quase a cada segundo, afastando a mão. Se o cachorro se aproxima (e com a boca fechada) é porque, em princípio, não estará incomodado com a interacção (seja qual for, festas ou brincadeira).

Muitas vezes estamos a dar festas a um cão que claramente quer contacto, mas talvez não dessa forma. Como é que o poderemos saber? Afastando a mão e aguardando. Veja que parte do corpo é que ele encosta à mão. Encostar-se com o pescoço ou o lombo é muito diferente de se atirar com a boca aberta e patinhas da frente para a nossa mão. Se se encosta podemos dar festas, se se atira, mais vale ir

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buscar um brinquedo para brincar com ele.Se eles continuam incomodados com a nossa mão

(que pode estar há muitos segundos demasiado perto, ou a ser intrusiva) geralmente viram a boca (mesmo sem morder) na direcção da nossa mão. Como quem diz: sai daqui! A maioria de nós não faz caso. E das duas, uma: ou tiramos e voltamos a pôr a mão – o que ensina ao cão que mordiscar o alivia momentaneamente –, ou continuamos a dar festas até que o cão se atira de barriga para cima, pedindo uma pausa das mãos gigantes em cima dele. Mas quem é que resiste a esta pele macia da barriga?

Note-se que há muitos cães adultos que pedem festas na barriga, mas mostram um comportamento diferente. Estão parados e fazem movimentos lentos, não têm as orelhas para trás, e estão claramente em modo mimo. Os cachorros que se atiram de barriga para cima depois de simularem que vão abocanhar mãos que estavam muito perto, estão a pedir uma espécie de tréguas enquanto tentam perceber que coisa é esta gigante que o agarra e toca (a nossa mão).

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Há até cachorros que, por serem grandes de tamanho, se apercebem que ficar assim de barriga para cima torna difícil a sua manipulação. E aprendem que se se atirarem de barriga para cima numa situação que, para eles, é vista como conflituosa, ficam safos. Uma das situações mais típicas em que isto acontece é quando queremos vestir os cães com um peitoral ou pôr-lhes a trela.

É de evitar chegar ao ponto em que o cão morde ou se atira para o chão para parar uma interacção. Além de criar contextos calmos para o contacto físico, fazer pausas e dar-lhe brinquedos adequados para mordiscar, há alguns exercícios perfeitos para ensinar o cão a estar calmo quando precisamos de o manipular. O mais conhecido é o toca ou target de mão. É um exercício que nos permite direccionar o cão. Há inúmeros vídeos acessíveis na internet que explicam como se pode treinar este comportamento.

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Em momentos de mimo e brincadeira, quando está a dar festas ao seu cão, conte apenas dois segundos de festinhas, afaste a mão e observe.

O cão não se aproximou? – Então pare de lhe dar festas.

Aproximou-se com a boca aberta? – Enca-minhe a brincadeira para um brinquedo.

Aproximou-se com o resto do corpo? – Pode continuar a dar festas.

Dica de treino

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O QUE DIZEMOS SEM FALAR

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Kuya com distância de segurança

A Rita dobrou a toalha e colocou-a ao lado da escova, no cestinho das coisas da Kuya. Voltou para a sala e viu um cocó e um xixi no tapete. Não queria acreditar. Tinha trazido para casa uma máquina de fazer necessidades! Ia estragar-lhe a casa toda, os tapetes e, oh… ao levantar o tapete, apercebeu-se que até o chão de madeira estava molhado, ia manchar o chão todo! Enquanto lhe passavam estes pensamentos pela cabeça, a Rita foi arregalando os olhos até as sobrancelhas chegarem ao tecto, enquanto o maxilar ficava tão tenso que os dentes se mordiam uns aos outros. Entre levantares de braços e mãos que iam até à cabeça e depois até à cintura, um olhar furtivo começou à procura da pequena bestinha responsável por aquela porcaria. Por um segundo assustou-se, não a via em lado nenhum. Finalmente, viu-a parada, sentada, a observá-la. O susto passou e foi novamente tomada pela zanga. Um dedo indicador liderava o corpo tenso em ralhetes na direção da Kuya.

— Não se faz isto menina! Ai, ai, ai. Feia!

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Tiago perito em decifrar a mãe

O Tiago não se apercebeu de quanto tempo ficaram no clube. No fim do workshop inscreveram-se nas aulas regulares, claro está. Foram comer qualquer coisa num pequeno restaurante dessa rua e voltava agora para casa dos pais.

Abriu a porta de casa e estava tão absorto com as músicas a passarem-lhe pela cabeça que não se aper-cebeu do silêncio fatal que a mãe atirava desde a mesa da sala de jantar. Depois de tirar o casaco e pousar as chaves olhou para os pais, pousou a mão no ombro do pai, que também estava à mesa, num cumprimento bem-disposto.

— Tudo bem? — Mas o pai demorou mais tempo do que o normal a virar a cabeça para o filho.

Viu isto como uma espécie de sinal, cúmplice, pois o olhar vinha da direcção da sua mãe para ele. Ui. Tinha feito alguma coisa que não devia, ou devia ter feito alguma coisa que não fez. Olhou para mãe, com um súbito alerta a percorrer a sua mente. Tentou lê-la. Ar carrancudo, olhar para o prato entre garfadas. Porque seria? Não tinha avisado que ia ao workshop?

— Então filho, foi divertido? — Tinha.

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Não teria arrumado o quarto? Levou o olhar na direcção do quarto enquanto vasculhava a memória a uma veloci-dade alucinante. Tinha. Estaria só chateada com outra coisa e não com ele?

— Querido, podes-me passar a água por favor? Tiago senta-te lá aí. — Não, estava simpática com o pai e ríspida só com ele.

Sentou-se. O que seria? Porque estava ela tão tensa, a ignorá-lo, sem olhar para ele?

— Quantas vezes preciso de te dizer para levares o lixo?

Margarida Meira

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O Tiago apercebeu-se rapidamente, pela linguagem corporal da mãe, que havia algo de errado. Porquê? Porque nós, além de usarmos o discurso verbal, comu-nicamos através da linguagem corporal. Além de haver sinais universais que sabemos interpretar de forma inata, à medida que nos vamos conhecendo uns aos outros vamos percebendo cada vez melhor que sinais da linguagem corporal precedem diferentes interacções. Por exemplo, alguém que se passeia pela cozinha com os músculos relaxados, a baloiçar ligeiramente o corpo enquanto prepara o jantar, estará provavelmente de bom humor, só lhe falta cantarolar ou assobiar uma música. Não era o caso da Glória. A mãe do Tiago estava tensa, evitava olhar para ele e apresentava uma expressão facial fechada, isto é, boca fechada, maxilar tenso, sobrancelhas franzidas. Mesmo sem saber o que tinha acontecido para a deixar assim, o Tiago percebeu num ápice que era ele o responsável.

Os cães comunicam através de posturas, movimentos, expressões faciais e sons. Além disso, têm uma visão melhor do que a nossa para captar o movimento, por

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exemplo, o movimento de micro-expressões no nosso rosto. Assim, à medida que vão passando as suas vidas connosco, vão-se tornando peritos em decifrar a nossa linguagem corporal. Bastou passar um dia com a Rita para que a Kuya percebesse que a sua tensão corporal, ao ver o xixi no tapete, previa algum tipo de conflito. Por isso, deve ter decidido ficar a observá-la de longe, numa tentativa de o evitar.

Ao contrário do Tiago, a Kuya, qual Zé ignorante em técnicas de informática, não tem como perceber o que a Rita diz. O Tiago, por mais que puxasse pela cabeça, não conseguiu lembrar-se do lixo. Teve de ser a mãe a explicar porque estava chateada. Como a Kuya não entende o que a Rita diz, o mais provável é manter-se quieta, afastada e até cabisbaixa sempre que a vir com as posturas que prenunciam um ralhete, independentemente de a sua origem ser indecifrável.

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Sempre que o seu cão faz aquele ar de culpado, observe a sua linguagem corporal. Observe a sua postura, os gestos que está a fazer, as suas expressões faciais, e os sons que lhe está a dizer. Interiorize tudo isto e reproduza-o apenas e sempre que quer interromper um comportamento indese-jado. Assim que o comportamento do seu cão muda (por exemplo quando parou de fazer as necessidades no sítio errado) mude também esta forma de comunicar com ele.

Dica de treino

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Conclusões:que impressões ganha a Kuya deste mundo humano?

• Todos conhecemos cães que fazem xixi de tão excitados que ficam ao cumprimentarem um familiar que chega a casa. A sua joi de vivre e a nossa paixão por eles resulta nesta interacção explosiva. Há muitíssimos momentos em que esta forma de interagir é absolutamente mara-vilhosa. Contudo, há outras alturas em que a interacção com pessoas deve ser calma e controlada, nomeadamente com desconhecidos na rua, com crianças, idosos, etc. Se os cães aprendem, desde o primeiro contacto com pessoas, que a interacção connosco é sempre cheia de excitação, com pulos e mordidelas à mistura, teremos de os condi-cionar fisicamente quando não pudermos arriscar que eles magoem alguém. É mais justo ensinar, desde o início, que o nosso contacto nem sempre é sinónimo de brincadeira.

• Não estando direccionada a agir da forma que a Rita

quer, a Kuya acaba por ser apanhada em flagrante a fazer xixi no tapete. A educação da Kuya começa com este formato de tentativa e erro, o que é natural, contudo, a imprevisibilidade implicada neste processo pode levar a Kuya a sentir alguma insegurança perante a Rita e a sua forma de comunicar.

Margarida Meira

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• Alimentada por uma fome de interacção e por uma curiosidade insaciável acerca do que a rodeia, a Kuya está sempre pronta para mexer em tudo. Isto é algo a promover e potencializar para que os cães se desenvolvam mental-mente de forma saudável. Existe, todavia, um limite ténue entre promover interacção e inundar o cão sem lhe dar tempos para respirar. A Kuya está a habituar-se a passar de estados de espírito e energia do oito ao oitenta!

• Com os ânimos em cima, há maior probabilidade de interpretações rápidas e erradas. A excitação dos cães começa a ganhar contornos mais brutos. A Kuya começa a aprender a fugir e atirar a boca na direcção das mãos da Rita, quando está desconfortável com a forma como a Rita se aproxima e mexe nela.

• De vez em quando, a Kuya vê ameaças nas acções da Rita. Seja um dedo indicador, uma tensão no corpo todo ou o tom de voz mais alto. Peritos em identificar o nosso comportamento, os cães aprendem rapidamente a prever o que vamos fazer, observando as nossas posturas

Primeiras impressões

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e expressões faciais. Assim que identificam zanga nos seus humanos tentam passar despercebidos, para que não haja efeitos colaterais. Nada disto significa que a Kuya entenda realmente o que fez para que a Rita se zangasse.

Os cães são muito capazes de entender o que se passa à volta deles. São inteligentes, empáticos e têm boa memória. Mas a forma como interpretam e comu-nicam é sobretudo através da linguagem corporal. Como nós somos dotados de uma linguagem verbal tão desenvolvida, a linguagem corporal passa-nos comple-tamente ao lado. Mas também a usamos, e os cães vêem isso. Se tirássemos o som à nossa comunicação com os cães, ficaria muito mais claro porque é que eles nos entendem. Viver com cães vem com esta bênção, a possibilidade de reaprendermos a comunicar de forma mais intuitiva e natural.

Vejamos como funciona a mente canina quando estão a aprender coisas novas.

Margarida Meira

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Primeiras impressões

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HÁBITOS E APRENDIZAGEM

II

Hábitos e Aprendizagem

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VALE A PENA O ESFORÇO? E SE ESTIVER ABORRECIDO?

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido?

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Kuya, a exploradora

A Rita acordou com a Kuya a ganir suavemente, esca-rafunchando o edredão. Estava meio caído no chão, e ela fez dele um escorrega macio, em tentativas de saltar para cima da cama. Invariavelmente, depois de mais uma escorregadela, a Kuya descarregava o seu insucesso com mordidelas minúsculas e barulhentas no edredão ou no tapete. A Rita deixou cair a mão ao lado da cama antes de conseguir mexer qualquer outra parte do corpo, ou sequer abrir os olhos. Sentiu umas lambidelas frenéticas e levantou uma pálpebra. Lá estava ela, a cachorrinha mais fofa do mundo, de olhos esbugalhados a pedinchar atenção. Pegou nela e ficaram quase uma hora na ronha na cama, até que o pai da Rita ligou. Era dia de almoço de família e os pais queriam saber se a iam buscar a casa. Depois de feitas as combinações, a Rita levantou-se para se ir arranjar. Foi até à cozinha e tirou do congelador um brinquedo de borracha, com patê lá dentro, que tinha confecionado na noite anterior, especialmente para esse peluche andante. Deu à Kuya o brinquedo com a sua refeição da manhã e ficou a vê-la pegar nele. Agachou-se e bateu umas palminhas na direcção da Kuya. Isto fez

Margarida Meira

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com que ela começasse uma corridinha. A Rita fingiu que ia atrás dela, parou, sorriu e foi tomar um duche.

Depois de focinhar, lamber o brinquedo pela casa toda e não haver réstia de comida lá dentro, a Kuya foi até à porta da casa de banho onde estava a Rita. Começou a ganir e a raspar na porta. Ouvia o barulho da água a correr e sentia o cheiro da Rita lá de dentro. Ficou algum tempo assim, a ganir e a raspar na porta. Mas o barulho da água não permitia à Rita ouvir a pequenita. Como estava cheia de energia, começou a vaguear pela casa. O cheiro do brin-quedo chegou aos seus bigodes e deu uma corridinha para debaixo da mesa da sala. Esgueirou-se entre as pernas das cadeiras e começou a tentar dar com as patas no brin-quedo que tinha rebolado para trás de uma delas. Era-lhe difícil passar neste labirinto. Começou então a mordiscar as pernas de madeira da cadeira que não lhe saía da frente. Começou a achar piada este material aparentemente duro, mas que, depois de alguma quantidade de baba, se torna bem macio de mordiscar.

Num impulso de caçadora, decidiu pular com as duas patas da frente na direcção do brinquedo. No empurrão

Hábitos e Aprendizagem – Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido?

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que deu nas cadeiras conseguiu que o brinquedo rebo-lasse para fora do labirinto. Deu a volta pelo outro lado e pegou no prémio, felicíssima. Depois de se vangloriar por toda a casa com o troféu na boca, sentiu-se um bocado cansada e voltou para a porta da casa de banho. Desta vez, só raspou com uma pata, uma vez, e parou. Deu um suspiro, deitou-se e ficou pacientemente à espera que a porta se abrisse.

Margarida Meira

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Tiago de roupão e ramelas

Em casa dos pais, o Tiago estava ainda de roupão quando chegou o correio. Depois de abrir a porta do prédio, foi ver se o espelho o alertava para algum cabelo demasiado colado à cabeça. O cabelo estava impecável, mas as olheiras e ramelas não enganavam ninguém. Lavou a cara e a campainha soou. Ao abrir a porta e cumpri-mentar o carteiro, o senhor explicou que se tratava de uma carta registada, dando-lhe uma caneta, para que assinasse o comprovativo de entrega. O Tiago pegou no papel e na caneta, virou-se para trás e apoiou-se na cómoda da entrada para assinar.

A caneta não escrevia. Riscou com mais força e só saiu um pouco de tinta quando fez um círculo gigante pelo papel todo. Ficou um bocado embaraçado, enquanto o senhor, que esperava à porta, espreitava, provavelmente recordando-se dos seus anos de juventude. Para evitar mais círculos artísticos no papelito alheio, pegou noutro papel, que tinha ali à mão, e atacou-o com riscos. Mas a vontade por alimentar e o corpo por acordar não lhe deram muita paciência. Acabou por deixar umas marcas incolores no papel, de tanta força que fez, numa ou outra

Hábitos e Aprendizagem – Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido?

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tentativa. Devolveu a caneta ao senhor, depois destes segundos de experimentação, e sugeriu que a deitasse fora porque não prestava para nada. O senhor guar-dou-a na mala e ofereceu-lhe outra. O Tiago assinou rapidamente e devolveu o papel e a caneta. Despedi-ram-se e fechou a porta.

Depois desta interacção, o piloto automático enca-minhou-o até à cozinha. Arrastou as pantufas verdes pelo chão, abriu a porta do frigorífico e ficou parado no tempo, a olhar, sem pensar, para as prateleiras com várias sugestões. Fechou a porta do frigorífico e abriu a porta da prateleira por cima do lava-loiças. Fechou essa e abriu a do lado. Viu que o café estava acabado de fazer. Olhou para as frutas no cesto sobre a mesa da cozinha. Olhou para o pão, por tostar, no cesto ao lado da torradeira.

Endireitou-se e foi até à despensa. Também parou, durante alguns segundos, mas agora com um ar mais astuto, enquanto analisava o interior. O seu olhar iden-tificou algo interessante – a lata das bolachas, biscoitos e chocolates. Abriu a tampa de metal antigo, gesto acom-panhado por um som típico de casa da avó, e inspirou

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possibilidades. Na verdade, estava ainda tão sonolento que o corpo não estava preparado para que ele atirasse comida lá para dentro. Fechou a tampa, pôs a lata debaixo do braço e foi para o quarto, feliz com o seu futuro.

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Cheio de sono, o Tiago não perdeu muito tempo a usar uma caneta que não conhecia. Riscou uma ou duas vezes e não saiu tinta. Deduziu por isso que não escrevia. Como o que não faltam são canetas, rapida- mente deixou de insistir e pediu outra ao carteiro. Quando a motivação não é muito forte e o comporta-mento que estamos a fazer é rapidamente visto como ineficaz, facilmente desistimos de o continuar.

Aconteceu o mesmo com a Kuya. Ela sabia que a Rita estava dentro da casa de banho, mas não conse-guiu nem uma voz, nem um olhar como resposta aos seus ganidos. Assim, o comportamento de chamar pela Rita foi fácil de deixar. Repare-se que pela manhã, quando a Rita estava a dormir a cinquenta centímetros da Kuya, o comportamento de ganir tinha mais proba-bilidades de funcionar. Assim, qual drama queen, a Kuya assumiu o pedinchanço, deduzindo que lhe traria o que procurava: a atenção e interacção com a Rita.

O mais provável é que a Kuya assuma que, se a Rita está do outro lado da porta da casa de banho, não há forma de a fazer voltar. Se estiver do outro lado de

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qualquer outra porta, isso já pode ser outra história, outra aprendizagem. Há imensos cães que ficam tranquilos, deitadinhos, à porta das casas-de-banho enquanto os seus donos têm os seus momentos de spa lá dentro.

Como o cão é um animal exploratório e a Kuya é uma cachorrinha auto-didata, depois de ter esperado à porta da casa de banho, lá foi ela à procura do que fazer, tal como um adolescente acabado de acordar, à espera que o mundo o entretenha. A Rita fez o trabalho de casa. Tinha pela casa coisas interessantes para cães, nomea-damente o brinquedo recheado de delícias e com um material apetecível para cravar dentinhos de leite. Já que o cão será cão de qualquer forma, vamos lá criar um contexto em que ele possa ser cão, de forma a mantermos a nossa casa inteira.

Mas um explorador não é facilmente entretido. O Tiago abriu todas as portas da cozinha em busca de algo que interessasse. Entre leite, café, fruta, cereais, pão, só as bolachas preencheram os seus critérios que aparentemente eram curtinhos. Para um cão, cheio de energia típica de cachorro, um brinquedo de borracha, que já não faz nada,

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a não ser encher-se de baba e, de vez em quando, rolar para longe, é tão interessante como uma peça de fruta para um monstro das bolachas como o Tiago. O brin-quedo é interessante enquanto tem comida, não apenas porque a Kuya é quase tão gulosa como o Tiago, mas por outra razão. Porque é interactivo! Cada vez que a Kuya morde, aperta ou atira o brinquedo ao ar, há a possibi-lidade de saltar uma migalha peganhenta de comidinha boa. É um desafio tirar lá de dentro o seu prémio.

Quando o brinquedo está vazio, a Kuya tem duas hipóteses: a que a Rita tanto desejava e a que a Rita evitou sequer considerar. O que desejamos é que o cão fique sossegado e tranquilo. Mas, com tanto à sua volta ainda por explorar, é difícil que essa hipótese seja levada a cabo. Tão difícil como saber que existe aquele boião de bolachas na despensa e não ir lá buscá-lo. É quase impossível, até para o ser mais disciplinado – que, vejamos, não é nenhum dos casos.

Nas nossas casas temos muitos materiais com esta tentadora característica de serem interactivos quando uma boquinha e umas patorras se aproximam: sapatos

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que se desfazem, almofadas que explodem, ou, neste caso, madeiras que se tornam macias às gengivas e aos dentes em desenvolvimento. É importante limitar o acesso aos cães, de forma a que eles não ganhem maus hábitos. Para este efeito, há vários parques e cancelas que podem ser colocados nas nossas casas. Depois de se entreterem com os brinquedos adequados (mais do que um talvez seja melhor), o mais natural é os cães relaxa-rem e acabarem por esperar pacientemente. Foi o que aconteceu, finalmente, e o que a Rita desejava. Espere-mos que não aspire a casa nos próximos dias, para não se deparar com a marca dos dentinhos nas cadeiras.

Note-se que a Kuya, ao largar as pernas da cadeira, tendo já consumido mais energia, voltou à porta da casa de banho, ganiu uma vez – tal como o Tiago experimentou a caneta uma última vez – e desistiu rapidamente, deitando-se à espera da sua humana. A altura ideal para começarmos a deixar os nossos cães com acesso a toda a casa é depois de um bom passeio, de forma a que aprendam a gostar de fazer a sesta, em vez de se entreterem a estragar-nos mobília.

Hábitos e Aprendizagem – Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido?

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Na sua ausência, não deixe acessível nenhum objecto que o seu cão possa ter interesse em destruir.

Antes de se ausentar tenha a certeza que o seu cão comeu, bebeu, correu, explorou e brincou. O ideal é associar estar sozinho a dormir. Com estas necessidades todas satis-feitas o que apetece é fazer uma longa sesta até a família humana voltar a casa!

Dica de treino

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Hábitos e Aprendizagem – Vale a pena o esforço? E se estiver aborrecido?

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COMO ASSIM?

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Hábitos e Aprendizagem – Como assim?

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Kuya em fintas e corridas

A Rita já estava vestida, pronta para se calçar, quando olhou em volta e viu a Kuya com uma meia na boca. Estava parada, com as orelhas em frente, abanava a cauda esticadinha e olhava para a Rita, com aquele troféu na boca. Fez uma vénia com as patas da frente e lançou-se à partida. Por baixo da cama, pelo corredor, por baixo das pernas da Rita, lá corria aquela fugidia. A Rita esbrace-java e desequilibrava-se enquanto a pequenita se divertia a fintá-la. Finalmente conseguiu apanhar-lhe uma pata, que em seguida lhe escapou. A Kuya assustou-se com isto e parou de repente, depois de largar a meia a meio caminho. A Rita apanhou a meia do chão e começou a barafustar e apontar o dedo à Kuya. A Kuya baixou a cabeça. E quando a Rita se virou para pôr a meia no cesto da roupa suja, ladrou-lhe com a cauda a abanar.

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Zé e o risoto de cogumelos

Era hoje o dia em que o Zé ia fazer rappel pela primeira vez. Estava confiante. Precisava de espairecer, depois de tantas semanas enfiado em casa a escrever a tese. Tese entregue, vida nova.

Nesta onda de novos desafios, até tinha experimen-tado cozinhar na noite anterior. A sua amiga Maria que fazia sempre jantares deliciosos, deu-lhe a receita de um risoto de cogumelos. A receita era muito clara, ponto por ponto, com a letra bonita da Maria. Cortar as cebolas em rodelas e colocá-las em azeite na frigi-deira durante três minutos. Acrescentar os cogumelos laminados e o alho picado. Deixar mais cinco minutos. Acrescentar sal, coentros e um pouco de vinho branco e deixar mais dois minutos. Aqui, a única questão poderia ser a quantidade de vinho, mas vinho a mais também não seria um problema.

Assim que acrescentava um novo ingrediente, o Zé olhava rapidamente para o relógio, para não lhe escapar nem um segundo. Memorizava os números, astutamente, e ficava no telemóvel à espera que passassem os três, os cinco e os dois minutos. Por fim, acrescentou o arroz e a

Hábitos e Aprendizagem – Como assim?

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água quente, e agora eram doze minutos de espera com a tampa posta.

O resultado foi cruel. A cebola ainda branca, os cogu-melos crus e o arroz duro. Voltou a pôr tudo na panela, acrescentou mais água quente e ficou a mexer, até a comida parecer mais cozinhada. Ficou um bocadinho melhor, mas incomparável ao risoto da Maria.

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Faltava ao Zé um ingrediente essencial para que conseguisse interpretar correctamente a receita: experiência na cozinha. Quando fazemos algo comple-tamente novo, interpretamos da forma que conse-guimos, ou seja, consoante o que aprendemos a fazer anteriormente. Como ele não costuma cozinhar, não está atento ao lume e não sabe a relação entre o lume e o tempo de cozedura indicado no papel. O resultado foi acrescentar os ingredientes cedo demais, provavel-mente porque aqueles tempos de cozedura estão de acordo com um fogão mais potente que o do Zé.

A Kuya não sabe distinguir os brinquedos do que não o são. E, como cachorra que é, vai simplesmente assumir que tudo à sua volta é parte integrante de um recreio encantado. Além disso, claro está, ela não sabe o que a Rita está a dizer com aqueles sons de palavras que usa com as pessoas.

Anteriormente, quando a Rita lhe deu o brinquedo com comida, brincaram as duas numa apanhada divertida. Desta vez, embora a Rita não estivesse para brincadeiras, o que aconteceu, na prática, não

Hábitos e Aprendizagem – Como assim?

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foi muito diferente. Em ambas as situações, a Kuya tinha algo interessante na boca e a Rita tinha ar de estar prestes a correr pela casa toda com ela, típica brincadeira da apanhada.

Neste caso, a Kuya assustou-se e não percebeu porquê. Esta incompreensão da razão pela qual a Rita fica séria e brusca de repente pode levar a más aprendizagens. Pode fazer com que a Kuya, no futuro, quando encontrar coisas tão interessantes como uma meia (por exemplo, um osso na rua, uma embalagem de bolachas na despensa, um prato com restos sobre a mesa) se apresse a devorá-las, às escondidas, para ter a certeza que não apanha sustos durante a sua exploração tão natural e instintiva.

Uma brincadeira excelente entre cão e humano é o puxa – usar um brinquedo de corda para brincar. A chave de ouro neste jogo é nós largarmos o brin-quedo várias vezes. Assim, o cão aprende rapidamente que brincar connosco é muito mais divertido do que sozinhos, porque damos vida à corda!

Margarida Meira

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Quando está a brincar ao puxa, com um brinquedo de corda por exemplo, largue o brinquedo a meio da brincadeira e aguarde. Se o seu cão se aproxima de si com o brin-quedo na boca, mexa o brinquedo sem lho tirar e volte a largar, a afastar-se e a aguardar. Assim que o seu cão se aproxima de novo com o brinquedo, faça a mesma coisa. Pode repetir as vezes que quiser. Está a ensinar o seu cão a trazer-lhe objectos em vez de fugir com eles.

Dica de treino

Hábitos e Aprendizagem – Como assim?

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QUANDO A ESPERANÇA GANHA À PROBABILIDADE

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Hábitos e Aprendizagem – Quando a esperança ganha à probabilidade

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Kuya a pensar de certeza que isto vai funcionar

A Rita já estava arranjada, mas ainda tinha uns minutos antes de os pais chegarem. Foi até à cozinha e a sua sombra linda seguiu-a, aos pulinhos. Tinha alguma loiça para lavar e coisas na bancada para arrumar. A Kuya adorou este novo cenário. Tudo o que passava nas mãos da Rita merecia ser cheirado. E todos os movimentos da Rita se podiam transformar em presas de caça. No meio de roupas a esvoaçar e roupas abocanhadas havia ainda o possível bónus de migalhas caírem no chão. A Rita não conseguia resistir àquela alegria, por isso baixava-se para dar a cheirar todos os utensílios de cozinha que a Kuya tanto insistia em cumprimentar.

A Kuya saltou e pôs as patas na bancada, estican-do-se toda para chegar o mais longe possível por cima da bancada. Mas, nesta exploração, estava demasiado perto dos condimentos, e a Rita virou-se para ela e disse o mesmo som cinco vezes, falando com um tom de voz cada vez mais forte.

— Para o chão, Kuya, para o chão. Kuya para o chão. Chão Kuya. Chão.

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Ao quinto chão, a Rita acabou por pegar nas patas da Kuya que estavam na bancada e baixou-se com ela até ao chão. Isto deliciou a Kuya que se esparramou na Rita imediatamente, enchendo-a de lambidelas. Era tão mimosa que a Rita até se esqueceu da água a correr enquanto ficou de cócoras a dar festas a esta pestinha irresistível.

A actividade na cozinha continuou. Umas vezes, a Kuya punha as patas na própria Rita e parecia que ficavam lá coladas, com o perigo de rasgar as calças. Se não sentia as garras da Kuya, a Rita dava montes de festinhas à sua companheira. Se por acaso sentia as garras, dava um grito e afastava-se para trás. Aí, a Kuya inclinava a cabeça um segundo e, certeira de espírito, dava um salto, crente de que, assim, a Rita ia interagir de novo com ela. Neste instante, em que a Kuya considerava se ia ou não saltar, parecia pensar algo como de certeza que isto vai funcionar.

Hábitos e Aprendizagem – Quando a esperança ganha à probabilidade

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Mário e a carripana do seu coração

Entraram no carro. O Mário sentou-se no lugar do condutor, ocupando todo o assento. A Glória sentou-se no lugar ao lado, e o Tiago entrou, distribuindo braços e pernas por todos os bancos da parte de atrás carro. Iam buscar a Rita à sua casa nova, para irem almoçar.

O Mário pôs a chave na ignição do velho peugeut, rodou-a, e ouviu-se um barulho constante e cansado. Voltou a virar a chave para si. Ninguém falou. A Glória olhava em frente, entretida com os seus pensamentos, e o Tiago suspirou, virando o olhar na direcção da janela.

Outra viragem da chave e mais um barulho ensurde-cedor fez as sobrancelhas da Glória unirem-se ao alto, perturbadas. Nada. O Mário apenas parava de rodar a chave na ignição. Estava tranquilo, como se aquele fosse o procedimento natural para qualquer carro pegar. E a verdade é que era essa a sua realidade. Muitas vezes pegava à primeira, mas havia outras em que só à vigésima. Certo era que até hoje tinha sempre pegado. E outra coisa era certa, não tinham dinheiro para comprar outro carro.

À terceira vez que rodou a chave, a carripana lá se abanou toda e o som cansado passou para outro som, não

Margarida Meira

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muito mais animado. Era, aliás, igualmente desagradável – mas, por significar o fim do martírio, aliviou toda a gente. Arrancaram e poucos metros à frente o Mário perguntou à Glória qual era o caminho. A Glória teve um sobressalto. Quem é que sabia o caminho? Nenhum deles.

A Glória e o Tiago tremeram perante a ideia de desligar o carro enquanto ligavam à Rita. Mas o Mário não se preocupava com isso. De certeza que o carro voltaria a pegar, acabava sempre por funcionar.

Hábitos e Aprendizagem – Quando a esperança ganha à probabilidade

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A Rita tentou explicar várias vezes à Kuya que não queria que ela saltasse. Afastou-se quando as garras lhe apertaram as pernas, puxou a roupa quando a roupa era caçada pelos dentinhos dela, num salto acrobático, e pegou nas patas para as colocar no chão, em vez de ficarem na bancada.

Mas a Kuya sabe que este mundo maravilhoso é muito fácil de alcançar. Literalmente: está apenas a cinquenta centímetros de distância vertical. Se, de vez em quando, num movimento mais bruto da Kuya, a Rita deixar cair umas migalhas, mesmo que haja uma probabilidade mínima de isto acontecer, já vai valer a pena ter saltado. E se não cair comidinha, há sempre coisas para cheirar e mordiscar. Algumas coisas, a Rita até lhe dá a cheirar, quando ela se esforça mesmo por chegar lá a cima. E de vez em quando até ganha o jackpot: depois de tanto se empoleirar e saltar, a Rita baixa-se para a mimar de forma ternurenta. Ao contrário de ganir quando a Rita está no duche, saltar quando a Rita está perto tem mais probabilidades de ser vantajoso.

Margarida Meira

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O Mário tem uma motivação muitíssimo grande para insistir com o carro velho. É que, ao contrário de canetas, o carro é um bem muito mais difícil de substi-tuir. Assim, por mais sons dramáticos que ele faça e por mais que não pegue, o Mário vai dar à chave as vezes que forem necessárias. Se fosse um carro novo ou semi-novo, sem problemas até então, qualquer um ficaria alarmado e talvez até fosse ao mecânico logo que não pegasse pela primeira vez. Mas, tratando-se da carripana do seu coração, que às vezes pega e outras vezes não, o Mário vai sempre experimentando, inde-pendentemente das vezes que tiver que rodar a chave, certo que vai pegar.

Da mesma forma, interagir com a Rita é muito importante para a Kuya. Assim, chegar a ela, saltando e abocanhando, vai valer sempre a pena. Basta que seja eficaz uma vez, e todo o esforço será recompensado.

Hábitos e Aprendizagem – Quando a esperança ganha à probabilidade

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Evite dar atenção ao seu cão (olhar, falar, tocar) a não ser que ele tenha as quatro patas no chão. Repare, olhar para ele, pegar nas patinhas dele e dizer Vá, para o chão, também conta!

Antecipe o comportamento errado – fique atento para o cumprimentar da forma correcta antes que ele tenha de saltar para o fazer.

Dica de treino

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – Quando a esperança ganha à probabilidade

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O JOGO DO QUENTE E FRIO

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – O jogo do quente e frio

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Kuya disciplinada à hora da refeição

A Rita desligou o telemóvel e observou a cozinha arru-mada. Preparou-se para dar a segunda refeição à Kuya. Dava-lhe sempre três refeições por dia. A primeira e a última no brinquedo; e esta, a meio do dia, na taça. Tinha lido num manual que os cães devem esperar para comer e foi isso que começou a treinar desde o primeiro dia.

Com o som da ração a tocar na taça de metal, a Kuya levantou as patas da frente no ar e deu um rodopio, qual dançarina encantada. A Rita sorriu, agarrou a taça para si com as duas mãos e exclamou um decidido senta! A Kuya pôs o rabinho no chão, com a cauda a varrer de um lado para o outro, freneticamente. A Rita levou uma das mãos para perto da cara da Kuya, para se assegurar que ela obedecia enquanto dizia fica, várias vezes. A Kuya afastou-se para o lado, porque a mão não a deixava ver a taça que descia, e a Rita disse na, na, não, senta, senta, senta. A Kuya fixava a taça como se estivesse hipnotizada e a Rita deu-lhe um empurrãozinho no lombo para ela se sentar. A cauda voltou a varrer no modo de velocidade máxima. A Rita foi cantando aquela lengalenga misturada de senta, fica e não, mas a Kuya era muito rápida. Mexia-se muito,

Margarida Meira

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aproximava-se da Rita e levantava-se sempre antes da au-torização. Às vezes até segurava a mão da Rita com as patas da frente. E nunca olhava para ela! Parecia que só ligava à comida.

A Rita fartou-se. E, depois de um dos não, elevou a taça, ao endireitar o corpo para cima. A Kuya fechou a boca com a língua lá dentro. Sentou-se. A Rita disse boa, de forma assertiva, e recomeçou a baixar a taça. Estava cansada de esticar o braço na direcção da Kuya, porque ela acabava sempre por fintá-lo, aproximando-se dela, ou melhor, da taça. Por isso, desta vez não lhe espetou a mão à frente. Foi cantando a lengalenga, desta vez só do fica; à primeira vez que a Kuya virou um bocadinho a anca, a Rita ameaçou logo que elevava a taça num espasmo rápido da mão que a segurava. A língua voltou a ser engolida e a Rita fez com que a taça recomeçasse a descer dos céus. Antes de a colocar no chão disse podes ir. E a Kuya avançou para o seu prémio.A cabecinha dela era mais pequena que a taça. Era sim-plesmente amorosa.

Hábitos e Aprendizagem – O jogo do quente e frio

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Glória e a moça do GPS

No carro, com o motor desligado, a Glória começou a clicar no ecrã do tablier. Era um carro velho, mas estava todo modernizado com coisas que o Tiago insistia em instalar. A última actualização era o sistema mãos livres, associando o alti-falante do rádio ao telemóvel. Uma voz robótica, mas doce, começou a falar por cima das sugestões do Mário e do Tiago.

— O que deseja? — Perguntava ela. — Ligar à minha filha!O Tiago nem teve tempo de expressar a parvoíce que

escutara, porque a Glória emendou rapidamente:— Ligar à Rita!— A abrir a caixa de mensagens. — Não! Chamadas! Quero ligar!— Mudar para dicionário sueco.— Nãaao!O Mário olhou para o filho, pelo retrovisor, com uma

expressão de cumplicidade, como se fossem dois polícias num caso por resolver. O filho, mentor orgulhoso, fez um curto aceno como resposta. O Mário olhou para o ecrã e fez a única coisa que o Tiago lhe tinha ensinado. Clicou no botão supe-rior direito que tinha uma imagem com um certo e uma cruz.

— Sistema de confirmação activado.

Margarida Meira

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— Que raio fizeste tu Mário? — Ele não sabia bem, por isso manteve o ar sério e ficou calado.

— O que deseja? —Perguntou a voz, outra vez.— Ligar à Rita!— Abrir caixa de mensagens? Sim ou não?— Não. — Respondeu a Glória, contente por a máquina

ter parado de tomar decisões sozinha.— Ligar o GPS? Sim ou não?— Não! — Exclamaram a Glória e o Mário.— Ligar o rádio? Sim ou não?— Nãaaaaao! — Responderam todos em coro, incluindo o

Tiago, orgulhoso dos pais tão modernos. Tinha conseguido este programa em segunda mão. Por mais que fazer esta chamada fosse demorar, não havia dúvidas que tinha sido uma ideia genial.

— Abrir os contactos? Sim ou não?— Sim, sim! — Confirmou a Glória, animada.— A abrir os contactos. A quem pretende ligar?— Rita!— Ligar ao Martim? Sim ou não?A Glória estava satisfeitíssima com esta moça que falava

do tablier.

Hábitos e Aprendizagem – O jogo do quente e frio

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Ou porque é um programa que o Tiago desenrascou de sítios duvidosos, ou porque a Glória não tem facili-dade com tecnologia, a verdade é que a voz do tablier não correspondia aos pedidos que a Glória fazia, até acti-varem o sistema de confirmação. Algo tão simples como dar feedback, neste caso, dizer sim e não, facilita muitíssimo a comunicação.

Faz lembrar aquele jogo em que alguém esconde um objecto numa sala e outra pessoa tem que descobrir onde está, seguindo apenas as palavras quente e frio. Quando quem procura se aproxima do local, quem escondeu vai dizendo quente. Assim que quem procura vira noutra direcção, qualquer uma que não a certa, a outra pessoa diz frio. Só duas palavras. Não interessa a distância a que se está do objecto, só interessa estar, ou não, na direcção dele.

Para a Glória foram as palavras sim e não a facilitar a comunicação. Mas e para a Kuya? Terão sido os senta, fica e não, repetidos e desordenadamente intercalados? A Kuya, tal como muitos cães, é bem capaz de asso-ciar palavras a comportamentos. Contudo, esta apren-dizagem implica um treino em que quem ensina tem

Margarida Meira

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que ter uma sincronização e um padrão no que está a dizer, o que não foi o caso.

Então, para a Kuya, o que era o quente, e o que era o frio? A aproximação e o afastamento da taça cintilante! No início da interacção, com a taça pronta com a refeição, a Kuya manteve-se sentada, mexeu-se, levan-tou-se, desviou-se e agarrou o braço da Rita. Inde-pendentemente destes comportamentos a taça não se mexia! Isto tornou a comunicação tão confusa como quando a voz do tablier assumia o que fazer sem confir-mação da Glória. Só quando a Rita puxou a taça para cima é que a Kuya, surpreendida e chamada à reali-dade, parou e sentou. Desta vez, enquanto se manteve sentada, a taça foi descendo. Quente, quente, quente, olhos postos nesta descida sem nenhuma mão a tapar a vista. Assim que a Kuya experimentou levantar-se, a Rita subiu a taça, ameaçando um frio congelante. Isto fez com que a Kuya procurasse manter-se sentada, uma vez que havia sido isso a confirmar que teria a taça mais perto de si. Assim, manteve o rabo colado ao chão para ser bem-sucedida e poder comer da taça.

Hábitos e Aprendizagem – O jogo do quente e frio

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Pegue num papel e faça três colunas:– Na primeira, escreva os comportamentos que

não quer que o seu cão faça, por exemplo que pedinche à mesa;

– Na segunda coluna, à frente de cada um desses comportamentos, avalie e registe se quando o seu cão faz isso, tem acesso a coisas que quer (esta é a coluna dos sins, por exemplo restos do jantar);

– Na terceira coluna escreva uma alterna-tiva que gostaria que o seu cão fizesse. Não vale escrever na negativa, por exemplo, em vez de que não pedinche, escreva que esteja tranquilo, na cama dele.

Volte a olhar para a segunda coluna. A partir de agora passe a utilizar essas recompensas para os comportamentos da terceira coluna e nunca para os da primeira.

Dica de treino

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – O jogo do quente e frio

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SENTIDOS PREGUIÇOSOS

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Hábitos e Aprendizagem – Sentidos Preguiçosos

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Kuya de peitoral laranja

A Glória ligou à Rita pela segunda vez, agora para dizer que a voz do GPS lhes indicava estarem a dois minutos de distância. A Rita achou estranha tanta conversa sobre o GPS, mas gostou de ouvir a mãe animada. Foram ambas até à porta, a Rita e a sua sombrinha peluda. Já estavam prontas para sair. Uma com o casaco azul vestido, outra com o peitoral laranja. O casaco da Rita era longo, até aos joelhos. Tinha a mala ao ombro e ao pescoço um lenço bonito, amarelado.

Lembrou-se de como era importante aproveitar todas as oportunidades para treinar a sua companheira. Com a mão na porta e a outra na mala, olhou para a Kuya e disse senta. A Kuya abanou a caudinha. A Rita virou-se mais na direcção da cachorra e inclinou-se ligeiramente, repetindo mais duas vezes senta. A caudinha voltou a abanar e agora foi acompanhada de um ladrar seco e contente. A Rita tirou a mão da porta e, virando-se e inclinando-se mais para a Kuya, esticou o dedo indicador na direcção do rabo da Kuya, repetindo mais alto senta. A Kuya inclinou a cabecinha para o lado e depois sentou-se.

Voltou a pôr a mão na maçaneta, a Kuya voltou a levan-tar-se e foram para o carro dos pais, acabado de parar à porta.

Margarida Meira

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Maria, a bailarina

A Maria já fazia esta aula há dois meses. Tinha desco-berto o estilo, completamente incomum, num espectáculo que vira na rua, no centro de Lisboa: tribal fusion belly dance. As bailarinas mexiam a anca com uma precisão hipno-tizante e a música electrónica preenchia os movimentos com batidas perfeitas. Inscreveu-se nas aulas e lá estava ela, de frente para o espelho, atenta à professora.

Diziam que demorava muito tempo a trabalhar e isolar os músculos. Cada uma das quinze raparigas presentes na sala tentava perceber onde raio estavam esses músculos invisíveis, que faziam a anca da professora fazer movimentos geométricos tão giros e diferentes. Nessa aula, já tinham treinado o subir das ancas a tempos diferentes, ora a direita, ora a esquerda. Depois treinaram o descer da anca. E agora, ao som de uma música com menos batida, estavam a fazer círculos africanos. Era maravilhoso observar e tentar reproduzir. Achava que estava a acertar no tempo certo, mas quase ficava com os olhos em bico só de fixar o espelho. Bom, não era uma nódoa, mas a verdade é que era muito difícil. O que lhe valia era a motivação da professora e as músicas maravilhosas.

Hábitos e Aprendizagem – Sentidos Preguiçosos

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E o facto de as restantes colegas também estarem todas a tentar.

A professora parou e propôs um exercício novo. Iam dançar a próxima música como quisessem, mas tinham de incorporar alguns movimentos que a professora ia sugerindo. Baixou um pouco as luzes, para se sentirem mais à vontade. Cada uma se virou para onde queria, não valia a pena estarem viradas para o espelho. A música começou com uma batida engraçada, que depois se intercalou com um som contínuo, surgindo por trás a melodia de um piano.

— Hiplifts! – Disse a professora.Era o movimento que tinham estado a fazer, o de elevar

a anca, ora a direita, ora a esquerda. Ficava muito bem na música. Experimentou fazer os hiplifts enquanto caminhava.

— Agora experimentem maias.A Maria ficou confusa de repente. Qual era este? Olhou

para a colega pelo canto do olho. Ela também estava a olhar em volta. Os olhares das duas aterraram na anca de outra colega mais à esquerda. Ah! Era aquele em formato de infinito na vertical. Gostava deste. Fez vários,

Margarida Meira

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em velocidades diferentes. Faziam-no em quase todas as aulas, lembrava-se bem quais músculos da barriga é que tinha de puxar e relaxar.

— Taximes!Ai… A Maria também não fazia ideia qual era este.— Então, meninas? Todas as aulas fazemos estes. Têm

de começar a decorar os nomes! — Reclamou a professora.Nem a Maria nem nenhuma das colegas sabia qual era

esse movimento. A professora chamou-as para a frente e todas se viraram para ela. Bastou fazer uma vez para iden-tificarem o movimento: era igual ao maia, mas ao contrário. Acenaram com a cabeça e continuaram a dançar. Agora, o desafio era ir trocando entre estes três movimentos até ao final da aula. Foi muito divertido.

Hábitos e Aprendizagem – Sentidos Preguiçosos

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Há dois meses que a Maria tem aulas deste estilo de dança. Em todas as aulas, a professora diz os nomes dos movimentos, de cada vez que os fazem. Mas, com tanto para pensar ao mesmo tempo, a Maria acabou por não lhes fixar o nome. Sabe identificá-los quando vê a professora fazer. Mas ao deparar-se, sozinha, sem o exemplo da professora, apercebeu-se de como não sabia identificar alguns movimentos pelos nomes.

Da mesma forma, é provável que a Kuya ainda não tenha associado o som senta isoladamente do gesto que costuma ver a Rita fazer enquanto o diz. Conse-guiu perceber, quando viu a Rita de frente para ela, inclinada sobre ela e com o dedo a apontar para ela.

Quando está nas aulas, a Maria está concentrada a olhar para a professora pelo espelho. Neste esforço por reproduzir os mesmos movimentos, não ganhou o hábito de usar também a memória auditiva. Como se houvesse uma espécie de economia dos sentidos na aprendizagem, em que, se tudo depender da visão, a audição pode fazer uma sesta. Os cães usam muito o olfacto e a visão. Assim, a audição fica em segundo

Margarida Meira

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plano, como em nós fica o olfacto para identificar coisas como café acabado de fazer. Se queremos que os cães aprendam os sons, podemos facilitar-lhes a vida. Ou antes, podemos dificultar-lhes a vida, despertando-lhes o sentido da audição. Isto é, sempre que quisermos que um cão se sente, dizemos o som sem mexermos a mão. E só depois juntamos o som ao gesto que ele facilmente associa ao comportamento. É muito mais provável que as pistas visuais – como estarmos de frente para o cão, inclinarmo-nos sobre ele ou apontarmos – sejam asso-ciadas ao comportamento do que o som que estamos a fazer. Assim, os cães acabam por não memorizar os sons, mas apenas os gestos.

Hábitos e Aprendizagem – Sentidos Preguiçosos

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Sempre que pedir ao seu cão para fazer algo, comece por utilizar apenas o sinal verbal associado ao comportamento. Por exemplo, a palavra senta, sem movimentos ou gestos da sua parte. Se o seu cão não corresponder é possível que ainda não tenha aprendido esse som. Pode então ajudá-lo com o sinal gestual – que é mais provável que ele já tenha memorizado.

Dica de treino

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Hábitos e Aprendizagem – Sentidos Preguiçosos

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FORA DO CONTEXTO

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Hábitos e Aprendizagem – Fora do contexto

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Kuya de língua de fora à janela

Entraram no carro dos pais da Rita. Antes de o carro arrancar começaram a discutir onde iam almoçar. Foi uma mistura de sons de palavras humanas e sons amorosos de uma brincalhona que saltava de colo em colo, lambu-zando as quatro caras. Acabaram por decidir-se pela casa dos pais. A Kuya era ainda muito irrequieta para ficar presa tanto tempo numa esplanada sem ter o que fazer. Além disso, o Tiago ia precisar do carro logo a seguir ao almoço, para ir ao rappel com o Zé. Por momentos, a Rita esqueceu-se que o Miguel estava no Brasil, com o Luís, e perguntou porque não iam almoçar com eles, ao que o Tiago respondeu, em tom de gozo, que não lhes ficava bem a caminho.

No banco de trás ia o Tiago no meio, a Rita do lado direito e a Kuya do lado esquerdo. O Tiago tinha aberto um bocadinho a janela e a Kuya ia com as patas da frente na porta e o focinho à janela, com as orelhas a esvoaçar. A Rita ficou preocupada com o facto de ela poder cair numa travagem mais brusca e começou a chamá-la, para que viesse para o seu colo. Chamou-a imensas vezes, mas como estava com o cinto não conseguia alcançá-la.

Margarida Meira

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O Tiago estava entretido com a música que ouvia, por isso não se apercebeu da situação. A Rita chamou e chamou, e a Kuya só olhava para o que passava do lado de fora da janela. Carros, bicicletas, pessoas, cães, árvores, prédios, cheiros e sons que nunca tinha experimentado.

A Rita pediu ao Tiago para pegar na Kuya, e ele pô-la ao colo da Rita.

— Kuya, não me estás a ouvir?Caída no colo da Rita, a Kuya parecia vê-la pela primeira

vez. Assim que ouviu a sua voz ficou toda contente e lambeu-lhe a cara.

Hábitos e Aprendizagem – Fora do contexto

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Luís e as buzinas melódicas

O Luís e o Miguel estavam a usufruir dos últimos dias de férias no Brasil. Tinham alugado um pequeno aparta-mento só para os dois, adjacente ao apartamento dos pais do Luís. O Luís estava no quarto, a passar as fotografias da máquina fotográfica para o portátil. Havia muitas, muito bonitas. Já há largos minutos que ouvia sons que pareciam buzinas, ora de carros, ora de ambulâncias. Não tinha a certeza. Deduziu que o Miguel estivesse a ver televisão na sala.

— Miguel, aquela foto de ontem à beira-mar está tão bonita!

O Miguel não respondeu, devia estar entretido com o filme. Mas que filme seria esse, com tantas buzinadelas? Levantou-se da cama, pousou o portátil e a máquina na cómoda e foi até à sala. Espreitou directamente para a televisão, mas, para sua surpresa, estava desligada. E no sofá azul em frente à televisão não estava ninguém.

Não podia estar, num 5º andar, a ouvir barulhos dos carros na rua, ainda por cima numa rua tão sossegada. Escutou melhor e apercebeu-se que o som vinha da cozinha. Reparou que a porta estava fechada. Ao aproximar-se, as

Margarida Meira

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buzinas ganhavam um ritmo estranho, menos estridente e mais melódico. Assim que abriu a porta, escapou uma avalanche de música jazz, misturada com o som dos legumes na frigideira e do exaustor. Divertido, o Miguel cozinhava o almoço para os dois. Afinal, era o rádio que estava a tocar numa estação de jazz. Ficaram a terminar o almoço, a aproveitar esse ambiente de férias, ao som do maravilhoso saxofone que se ouvia do rádio.

Hábitos e Aprendizagem – Fora do contexto

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O Luís estava certo que o Miguel estaria na sala, provavelmente porque foi onde o viu a última vez. Assim, inferiu que o barulho que estava a ouvir vinha da televisão. Quando ouvimos determinado som, que não corresponde a uma palavra abstracta, como o som de uma buzina ou de um saxofone, temos sempre em conta o contexto em que o ouvimos. Só com o contexto filme a passar na televisão ou rádio ligado na estação jazz é que o Luís identificou (acertadamente ou não) o que estava a ouvir.

Da mesma forma que o Luís não estava a identificar o que estava a ouvir, a Kuya não estava a perceber que a estavam a chamar. Porquê? Porque estava num contexto muito diferente daquele em que normalmente a chamam. Estava no carro, com muitos cheiros e barulhos novos a entrar pela janela, e estava numa posição diferente do habitual relativamente à Rita.

Ao pegarem nela, mudando o contexto (da janela para o colo da Rita), a Kuya apercebeu-se que o som Kuya é o que a Rita costuma usar para comunicar com ela. Assim que conseguiu identificar este som aproximou-se ainda mais da Rita, toda contente, como normalmente faz quando ela a chama.

Margarida Meira

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Quando está a treinar algum exercício com o seu cão lembre-se de fazer todas as variações possíveis. Por exemplo o deitar. Faça-o com o gesto da mão, sem o gesto - só com o som deita, estando de frente para ele, ao lado dele, consigo em pé, consigo sentado, com ele afastado de si um metro, com ele na manta dele…

Dica de treino

Hábitos e Aprendizagem – Fora do contexto

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A IMPORTÂNCIA DA INICIATIVA

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Hábitos e Aprendizagem – A importância da iniciativa

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Kuya à mesa

Depois do almoço, o Tiago despediu-se, pegou nas chaves do carro e saiu. Ficaram os três à mesa, a Rita e os pais, a beber café e a comer uma deliciosa tarte de maçã. A Kuya aproximou-se, pôs as patas em cima da mesa e depois no colo da Glória, sempre com o focinho em direcção à sobremesa. Do outro lado, a Rita disse:

— Kuya, para o chão. Chão.A Kuya continuou com as patas da frente no colo da

Glória enquanto esta lhe dava festinhas na cabeça. — Vai lá, Kuya. — Reforçou a Glória. A Rita pegou na Kuya e pô-la no chão, levemente. Ao

pousá-la, apontou-lhe o dedo e disse:— Em baixo Kuya, no chão.A Kuya olhava-a sentada, mas bastou que a Rita se

sentasse para a Kuya saltar atrás dela, pondo as patas sobre a mesa. A Rita voltou a pegar nela e repetiu o processo. A Kuya nem se sentou, assim que pisou o chão correu para outro lado da mesa e voltou a inspeccionar o que havia lá em cima. Os três, à vez, apontaram para o chão e pediram à Kuya que fosse para baixo. Via-se que a Kuya os estava a ouvir, até virava a cabecinha para o

Margarida Meira

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lado e dava uma lambidela nas mãos que lhe tocavam, mas continuava com as patas em cima da mesa enquanto ninguém a colocasse no chão.

A Rita pegou então num biscoito que tinha trazido e voltou a repetir o processo de a colocar no chão. Desta vez a Kuya ficou mais tempo no chão enquanto se deli-ciou com o biscoito. Ainda o tinha na boca quando ouviu a voz do Mário, comentando qualquer coisa, e foi-se meter na conversa, saltando com as patinhas para o colo dele. O Mário parou o que estava a dizer e, com paciência, relembrou à Kuya que fosse para o chão. Mas ela só abanou a cauda e continuou com as patinhas em cima dele, até ele a baixar.

Hábitos e Aprendizagem – A importância da iniciativa

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Tiago sem direcção

O Tiago terminou a chamada com o Zé, ajustou o banco e os retrovisores, pôs o cinto e segurou o volante com as duas mãos. Teve uma branca. Já tinha ido com os pais ao parque natural tantas vezes. Tantos fins-de-semana que lá foram passar a tarde! Mas, por alguma razão, o percurso até ao parque não estava a chegar-lhe à memória. Ficou tão surpreendido!

Puxou pela memória. No parque da cidade, o rappel ficava à entrada, ao lado do estacionamento. Lembrou-se do percurso que teria de fazer se fosse de metro. Tinha lá ido com a Maria, há três meses; ia-se pela linha verde do metro, até à última estação. Mas e de carro? Fartou-se de puxar pela memória e não conseguia lembrar-se.

Decidiu arrancar, a ver se encontrava a memória pelo caminho. O carro pegou à segunda, estava com sorte! Sabia que tinha de sair do bairro pela rua principal. Decidiu, assim que chegou ao final da rua, virar à esquerda, sem grande certeza. Mas depois quatro cruzamentos decididos por pura adivinhação parou o carro, ligou os piscas e telefonou ao pai a perguntar o caminho.

Margarida Meira

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Por mais vezes que o Tiago tenha ido ao parque de carro, com os pais, foi sempre no banco de trás e nunca a conduzir. Não tendo as mãos no volante, nunca teve de ser ele a virar para a esquerda ou para a direita, e assim não memorizou o percurso. Parece que existe uma consolidação mais eficaz da memória se a aprendizagem for feita por iniciativa do próprio. Prin-cipalmente em aprendizagens que implicam memória mecânica, memória do corpo. Da mesma forma, se sempre que a Kuya deve ir para o chão o faz porque alguém pega nela e lhe coloca as patas no chão, é menos provável que ela memorize a associação entre o som para o chão e o movimento do seu próprio corpo até ao chão. Talvez comece a prever que quando aproximam as mãos das patas dela é provável que a coloquem no chão. Mas a aprendizagem de ser ela própria a movi-mentar o corpo para o chão não está a acontecer.

Há cães que só se sentam quando os seus humanos puxam a trela para cima ou empurram o rabo deles para baixo. Se não são eles a fazer o movimento com o corpo, tal como não era o Tiago que conduzia o carro

Hábitos e Aprendizagem – A importância da iniciativa

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até ao parque, é pouco provável que tenham realmente aprendido aquilo que queremos deles.

Parece que quando há iniciativa da parte do indivíduo, quando ele se movimenta por iniciativa própria, se cria uma memória mecânica que ajuda a consolidar a aprendizagem. Provavelmente, ter conduzido uma vez até ao parque será suficiente para que o Tiago decore o caminho. Pois, desta vez, foi ele que decidiu, no momento certo, onde virar, em vez de apenas observar o caminho enquanto o pai conduzia.

Se cada vez que a Rita e os pais quiserem que a Kuya ponha as patas no chão forem eles a pegar nela é pouco provável que ela memorize o significado de chão.

Margarida Meira

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Sempre que pede algo ao seu cão aguarde três gordos segundos entre cada coisa que lhe diz, principalmente se estiver a repetir o mesmo pedido. Evite que o cão aprenda que só ao quinto senta aliado a uma voz zangada e uma intimidação física da sua parte é que é para sentar. Ao invés, diga apenas uma vez, aguarde em silêncio, respire fundo, conte três segundos, e repita uma segunda vez.

Dica de treino

Hábitos e Aprendizagem – A importância da iniciativa

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CRIAR DEGRAUS DO TAMANHO DE CADA UM

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Hábitos e Aprendizagem – Criar degraus do tamanho de cada um

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Kuya na manta amarela

Passaram da mesa para os sofás da sala de estar e continua-ram a tarde de domingo em família. Talvez vissem um filme na televisão. A Rita colocou no chão uma mantinha amarela. Queria que a Kuya não aprendesse a ir para cima dos sofás, que a mãe tanto queria proteger de sujidade e pêlos. Numa mesinha alta, entre os dois sofás, estava a lata de bolachas que já tinha viajado por toda a casa desde essa manhã. Decidido o filme, recostaram-se confortavelmente para as próximas duas horas. O Mário tirou uma bolacha da lata e a Kuya, de pé, à frente dele, começou a cheirar o ar, investigando o que seria aquilo. O Mário achou piada e começou a atirar pedacinhos para ela apanhar no ar. Apanhou num salto o primeiro. O pedacinho seguinte escapou-lhe e escorregou pelo chão até perto da manta. Isso deu ao Mário a ideia de treinar a sua pontaria: além de tentar que a Kuya apanhasse no ar, tentava que ela o fizesse estando em cima da manta. Atirou um pedaço e teve sucesso. Logo a seguir, antes de ela acabar de comer, atirou outro pedacinho para a manta. A Rita e a Glória estavam entretidas entre o filme e este número de circo que observavam com um sorriso.

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No ecrã, o actor principal saltou de um carro em movi-mento e o Mário distraiu-se da Kuya. Ela começou a andar de um lado para o outro, mais perto dele, mas ele afastou-a sem tirar os olhos da televisão. Quando a cena terminou, pegou noutra bolacha e a Kuya deu uns passinhos para trás para se preparar para apanhar no ar. Por acaso pisou a manta com as patas de trás quando Mário atirou a bolacha.

O filme foi-se intensificando e o Mário foi deixando de atirar tantos pedaços de bolacha à Kuya. Esta tentou chamar-lhe a atenção, mas ele só a afastou com um shhh, sem tirar os olhos da televisão. Então, a Kuya lembrou-se de ir para o último sítio em que tinha recebido bolachas, a manta. Coincidentemente, o Mário tirou mais uma bolacha e partilhou um pedaço. Desta forma, o jogo de apanhar no ar as bolachas passou para o jogo de aguardar na manta.

O Mário, embora guloso, gostava de partilhar. Sempre que comia uma bolacha deixava o final para a Kuya. Foi assim, quase por acidente, que a Kuya ganhou o hábito de ficar na manta durante os serões em família, ora a ser regalada com um pedacinho delicioso que voava do céu, ora a dormitar descansada.

Hábitos e Aprendizagem – Criar degraus do tamanho de cada um

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Luís e Miguel em dois acordes

O Luís e o Miguel encontraram um café espantoso perto do bairro onde estavam hospedados. Um espaço familiar, com móveis de madeira antiga e almofadas de cores quentes. O mais curioso era a decoração, cheia de vinis e instrumentos pendurados nas paredes. Situava-se no mesmo prédio que uma pequena escola de música, da qual os clientes regulares eram quase todos alunos.

Sentaram-se na mesa mais perto da janela, perto de duas raparigas que ensaiavam algo com duas guitarras. Aperceberam-se que elas estavam a aprender a tocar uma música. Estudavam atentamente a letra e os acordes que tinham à sua frente. Uma delas ligou o telemóvel para ouvirem a música que estavam a estudar e o Luís reconhe-ceu-a imediatamente:

— É a Chega de Saudade! Do Tom Jobim… — Disse ele, baixando a voz para que as raparigas não se sentissem observadas. Elas ouviram, e riram-se. Não se importaram.

Pediram à empregada uma tapioca e um suco de açaí para cada um. O Luís continuou a observar as raparigas. A da esquerda, de pele morena e fita azul a cobrir quase todo o cabelo, tocou um acorde na perfeição e parou, tocou o

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seguinte e parou, apontando para o papel; tocou o terceiro acorde e parou de novo. Ficou assim, agarrando a guitarra sem lhe dar som. Olhava atentamente para o papel, como se memorizasse o percurso até ali. Parecia experiente na guitarra. Como se já soubesse, apenas olhando para o papel, como iriam ficar aqueles acordes na música.

A da direita, de saia verde e rosa que cobria toda a perna, cruzada sobre a outra, tocou e repetiu o mesmo acorde durante muito tempo. Enquanto a sua mão esquerda tentava manter esse ré menor inicial, a mão direita experimentava brincar com as cordas de diferentes formas. Assim, o acorde foi ganhando um som cada vez mais harmónico e natural. Depois, foi repetindo o processo com os outros acordes.

O Luís, numa agradável conversa com o Miguel, distraiu-se das raparigas. Mais tarde, quando pediam um sorvete de manga para a sobremesa, identificou o refrão que tanto amava. Vai minha tristeza, diz a ela que sem ela não pode ser… As duas raparigas tocavam agora, em conjunto, vários acordes de seguida, formando mais uma alegre memória destas férias no Brasil.

Hábitos e Aprendizagem – Criar degraus do tamanho de cada um

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Cada aprendiz tem o seu ritmo. A rapariga da direita ficou a treinar o mesmo acorde durante bastante tempo e só depois passou para o seguinte, como se fossem pequenos degraus numa subida íngreme de aprendizagem. Como é menos expe-riente, tem de consolidar bem cada acorde antes de passar para o próximo. Ao contrário, à outra rapariga bastava identificar o que tinha de fazer para conseguir tocar a música toda.

Sem se dar conta, o Mário criou degraus do tamanho ideal para a aprendizagem da Kuya! As primeiras vezes que lhe atirou pedaços de bolacha foram seguidas, mantendo a Kuya em cima da manta, consolidando esta primeira aprendizagem. O primeiro passo para ensinarmos um cão a ficar num sítio, como a caminha dele ou uma manta, é identi-ficar esse sítio.

Depois de se distrair com o filme, voltou a atirar-lhe um pedaço e, por acidente, atirou o pedacinho exacta-mente quando a Kuya estava de novo na manta. Assim, ela foi aprendendo a ir para a manta, mesmo passado

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algum tempo. Mais para a frente, com a barriga já empanturrada, o Mário foi demorando mais e mais tempo entre cada prémio (pedaço de bolacha). Assim, já sabendo que tinha de ir para a manta (primeiro degrau), a Kuya aprendeu a permanecer nela!

Só vale a pena ensinarmos o segundo passo (perma-necer na manta) quando o primeiro já está aprendido (ir para a manta). Independentemente de a rapariga da esquerda ter demorado mais em cada acorde, no final estavam as duas a tocar a música toda!

Hábitos e Aprendizagem – Criar degraus do tamanho de cada um

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Desconstrua o comportamento que quer do seu cão em pequenos exercícios. Por exemplo, antes de treinar o seu cão a trazer uma bola, treine o largar na sua mão; depois o trazer a uma curta distância e largar na sua mão; e só depois, treine o ir buscar, trazer e largar na sua mão. Se começar pelo fim é provável que o cão persiga a bola, talvez até a apanhe, mas que depois se desinteresse por não saber o que quer dele.

Dica de treino

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – Criar degraus do tamanho de cada um

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ARRANCAR O PENSO RÁPIDO?

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Hábitos e Aprendizagem – Arrancar o penso rápido?

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Kuya, qual panela de pressão

— Está na hora de ir para casa, pequenina. — Disse a Rita.

Pegou no peitoral e abriu o fecho, enquanto caminhava na direcção da Kuya para lho vestir. A Kuya começou a afastar-se de lado. A Rita aproximou-se e começou a endireitar o peitoral perto da Kuya. Não estava na posição certa e, entretanto, a Kuya afastou-se outra vez.

— Anda pequenina, vamos para casa.Aproximou-se dela novamente, mas voltou a demorar

algum tempo a endireitar o peitoral. Conseguiu pôr a parte que se enfiava pela cabeça, mas faltava pôr uma patinha. Reparou que a fivela estava ao contrário. Enquanto obser-vava qual era o lado certo, a Kuya aguardava com o corpo tenso. Nos segundos que demorou a perceber qual era o lado certo, a Kuya acabou por se sacudir do peitoral e afastar-se.

A Rita convidou-a a vir ao seu encontro, chamando-a enquanto se aproximava dela. A Kuya parecia querer ir ao encontro da Rita, mas também estava na dúvida. Lá se deixou apanhar e a Rita voltou a pôr-lhe a parte que se enfiava pela cabeça, enquanto a Kuya parecia congelada.

Margarida Meira

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Tanto mexer na pele dela deixou-a desconfortável e impaciente. Quase que se escapava novamente, mas a Rita fechou o último fecho mesmo a tempo e a Kuya correu para longe com o peitoral posto. Já afastada, sacudiu-se, como que suspirando depois deste momento tenso. Endireitou o corpo e olhou para a Rita. Estava pronta para saírem de casa.

Hábitos e Aprendizagem – Arrancar o penso rápido?

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Zé e as vertigens

No parque natural, depois de um café na esplanada, o Zé e o Tiago foram para o sítio onde fariam rappel. O Zé passou à frente do Tiago na fila.

— Chegas atrasado, ficas para último! — Brincou. O rappel era suspenso a partir de uma ponte velha, inuti-

lizada, que havia no parque. Quando foi a sua vez, o Zé subiu a escadaria que dava até à ponte. Caminhou pela estreita ponte de ferro até ao monitor, que tinha chamado o próximo.

— Olá! É a primeira vez que vens fazer rappel? — Perguntou ao Zé.

O Zé acenou com a cabeça e o monitor começou a explicar-lhe para que serviam as cordas, enquanto ele se segurava a uma barra de ferro sobre a cabeça. A vista lá de cima era impressionante. Mostrou-lhe o arnês que ele tinha de vestir e depois o mosquetão.

— A corda passa pelo mosquetão e o que tens que fazer é ir largando a corda aos poucos, à medida que queres descer com maior ou menor velocidade.

O Zé apercebeu-se que não estava à espera desta expli-cação demorada. Achou que era só chegar e descer. E esta

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conversa, ali empoleirado e com pouco equilíbrio, estava a deixá-lo nervoso. Não conseguia tirar os olhos do chão a dez metros de distância. Quando o monitor aproximou dele o arnês, deu por si a afastar-se num reflexo.

— Queres descer? Se não quiseres descer não há problema.Vendo a indecisão nos olhos do Zé, voltou a explicar como

é que se controlava a descida. Além disso, explicou que o seu colega lá em baixo tinha outra corda que poderia usar a qualquer momento caso o Zé tivesse algum problema.

Quanto mais tempo ficava ali, pior era. O monitor acon-selhou-o a descer e, se depois mudasse de ideias, podia voltar sem problema. O Zé caminhou então de volta pela ponte e desceu as escadas, passando pelo Tiago que lhe deu uma palmada de ânimo nas costas.

Ficou sentado a ver um rapaz alto descer, depois viu a rapariga seguinte e ainda outra. Levantou-se e voltou a pôr-se na fila. Quando chegou ao ponto de descida o monitor não se demorou em explicações. Ao invés, começou pronta-mente a dar-lhe indicações:

— Põe aqui a perna, segura-te aqui em cima. Está bem apertado. Pronto? Desce em 3, 2, agora!

Hábitos e Aprendizagem – Arrancar o penso rápido?

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Lançou-se. Uma vez no ar, a adrenalina carregou-lhe o peito e a descida fez-se muito bem. Até se divertiu a variar as velocidades de descida abrindo e fechando a mão por onde passava a corda. Combinou com o Tiago voltarem em breve.

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Todos nós já sentimos a tensão a subir quando estamos prestes a fazer algo que nos deixa nervosos. Parece que quanto mais tempo demoramos a fazê-lo, pior é. Pensemos em quando temos uma ferida na pele e precisamos de retirar o penso que a protege. Tirar o penso de uma vez (sem ser de forma bruta claro) é mais fácil do que fazê-lo aos poucos e sentir a dor prolongada na pele.

O Zé ficou cada vez mais nervoso: à medida que o tempo passava, mais as vertigens se apoderavam dele. Da mesma forma, a Kuya também tentou ficar parada à espera, enquanto a Rita lhe punha o peitoral. Mas, como é algo desconfortável, quanto mais tempo a Rita demorava, mais a Kuya acumulava stress, acabando por tentar fugir dessa situação.

À segunda tentativa do Zé, o monitor adoptou uma estratégia diferente. Não se demorou e disse-lhe só o que fazer. Isto não deu tempo ao Zé para sequer duvidar, acabando por avançar com confiança para a descida.

Note-se que tanto o Zé como a Kuya estão perante algo que gostam de fazer. A Kuya gosta de ir à rua e

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o Zé gosta de fazer rappel, mas a fase inicial deixa-os desconfortáveis. Assim, convém passar esta fase de forma calma, mas rápida.

O Zé percebeu o que o monitor disse quando este lhe deu indicações (põe aqui o pé, etc.). Sem esquecer que quem define o que é ou não difícil é o próprio aprendiz e que cada um tem o seu ritmo, é importante ensinar ao nosso cão determinados comportamentos que ele possa seguir nestas situações mais desconfortáveis. Comportamentos simples, como tocar com o focinho em algum sítio, manter-se de pé e ficar parado auxiliam muito a comunicação e aceleram estes momentos.

Margarida Meira

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Antes de sair de casa para um passeio, posi- cione-se perto da porta para pôr a trela ao seu cão. Aguarde que ele venha até si, demonstrando que está à espera dele para irem à rua. Evite ir atrás dele para lhe pôr a trela.

Quando lhe vai colocar o peitoral, ofereça-lhe comida com uma mão enquanto passa o peitoral pela cabeça dele com a outra. Depois, deixe mais bagos de ração (ou biscoitos) no chão enquanto aperta o peitoral e prende a trela.

Da mesma forma, quando voltam do passeio e lhe vai tirar a trela e o peitoral ou coleira, mostre a comida, mas dê-a só depois de lhe tirar tudo. Assim, ele vai aprender a esperar com calma em vez de fugir assim que sente que está livre.

Dica de treino

Hábitos e Aprendizagem – Arrancar o penso rápido?

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A LENGALENGA DA TABUADA

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – A lengalenda da tabuada

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Kuya a aprender acrobacias

Já tinham voltado a casa há um tempo e a Rita estava a divertir-se a treinar a pequenita, sobre o tapete fofo da sala. A Rita de joelhos, sentada sobre os calcanhares, com uma bolsinha com biscoitos, e a Kuya à sua frente, divertida com a ideia de os comer todos. Subiu a mão e disse senta. A Kuya seguiu a mão com o focinho e, como se fosse uma alavanca, sentou o rabo no chão. Recebeu um biscoito e umas festinhas. Repetiram. Com a Kuya sentada, a Rita pegou noutro biscoito e desta vez baixou a mão até ao tapete, com o focinho esfomeado a segui-la de perto. Quando mão e focinho chegaram ao chão, a Rita disse deita, ao mesmo tempo que os cotovelos da Kuya caíram. Biscoito recebido e festas de rebolar as costas pelo tapete.

Repetiu várias vezes o senta, logo seguido pelo deita. A Kuya ficou deitadinha quando a Rita teve a ideia de lhe ensinar o rebola. Levou um biscoito para perto do focinho e, num movimento circular para o lado, a Kuya seguiu a mão e rebolou com as patinhas no ar até pousarem no chão do outro lado.

— Boa!Depois de treinarem algumas vezes, estava tão contente

Margarida Meira

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que foi buscar o telemóvel para filmar a acrobacia. Pousou o telemóvel a filmar e pegou num biscoito para pedir à Kuya que rebolasse. A Kuya tinha-se levantado entretanto, mas continuava focada.

— Rebola. Kuya, rebola. — Disse a Rita, enquanto rodava o braço num movimento que achou indicar à Kuya o que queria dela. Mas a Kuya só saltava e depois ficou parada sem perceber.

A Rita pediu então o deita. Baixou a mão até ao tapete e repetiu deita várias vezes. A Kuya escarafunchou a mão da Rita a tentar tirar de lá o biscoito e, num movimento desistente, baixou os cotovelos, ficando a fazer uma espécie de vénia. Vendo que estava quase deitada, a Rita entusiasmou-se:

— Boa, deita, agora deita! — O que fez com que a Kuya se levantasse e desatasse aos saltos.

Sem entender a razão desta aparente falta de memória da Kuya, a Rita pediu-lhe para se sentar. Isto ela fez logo à primeira. Pediu para a Kuya se deitar e, para surpresa da Rita, desta vez a Kuya também se deitou à primeira. E logo acabou com a acrobacia do rebolar na perfeição!

Hábitos e Aprendizagem – A lengalenda da tabuada

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Maria e a coreografia final

Quando o Tiago apareceu em casa da Maria, depois do rappel, estava ela com duas amigas a rever a coreografia que tinham aprendido na aula de dança. A música tinha imenso ritmo e uma batida engraçada que combinava na perfeição com a dança. Era a coreografia que fariam no espectáculo de final de ano.

— Uau! Aqueles passos para o lado são muito giros! — Disse o Tiago quando elas terminaram.

— Qual, este? — Indagou a Maria, fazendo um círculo com o pé rente ao chão seguido de uma onda com o braço direito. O Tiago acenou que não com a cabeça.

— Este? — Perguntou a Susana, dando três passos para a frente, uma volta sobre ela própria e terminando com o levantar dos braços até cima.

— Não, aquele em que levantam o joelho e depois fazem círculos com a anca enquanto andam para o lado.

As três olharam umas para as outras. — Estás a inventar, Tiago… — Disse a Maria.O Tiago levantou-se de rompante, sacudiu o cabelo

que não tinha, colou a sobrancelha à testa com o dedo e deu tudo o que tinha ao imitar os passos que tinha visto.

Margarida Meira

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Desataram todos a rir e ninguém percebeu o que ele estava a fazer.

Voltaram então a pôr a música e fizeram a coreografia. A meio, quando estavam a fazer os passos maravilha, o Tiago saltou, apontando entusiasmado:

— Esse, esse!— Aaaaah! — Responderam elas em conjunto, deixando

a música continuar sem a dança. — Nem me lembrava que fazíamos este. — Confessou a Maria, e as outras concordaram, surpreendidas.

Puseram a música desde o início e continuaram o ensaio divertidas, enquanto o Tiago foi preparar o jantar.

Hábitos e Aprendizagem – A lengalenda da tabuada

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Alguns de nós aprenderam a tabuada na escola através de uma cantiga. Professor e alunos cantavam nas aulas de matemática na primária. Quando era a parte da lengalenga 1x6, 6, 2x6, 12… era fácil prever o que aí vinha e até parecia saber-se tudo de cor, mas quando chegava a sabatina de contas aleatórias, a história era outra. 6x9?… Decorar por sequência facilita tanto que havia até quem elaborasse uma cantiga só com os resultados de cada multiplicação: 6, 12, 18, 24.

Criar sequências é uma forma quase automática de memorizar. Então, por vezes, nem nos apercebemos que só sabemos a sequência, e não as partes sepa-radas, até termos de as isolar. Foi o caso da Maria e da Kuya. Ambas aprenderam uma sequência e repe-tiram-na tantas vezes que se formou uma memória só. Quando lhes pediram que fizessem só uma parte, tal não parecia ser possível sem o todo.

Muitas vezes, quando alguém quer mostrar o que o seu cão aprendeu, vemos o cão a fazer tudo de seguida, como que a acelerar a chegada do biscoito.

Margarida Meira

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Senta, estende uma pata de forma engraçada e depois atira-se para o chão num deitar final. É interessante variar a ordem dos exercícios para termos a certeza que o cão identificou cada um deles separadamente.

Hábitos e Aprendizagem – A lengalenda da tabuada

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Quando está a treinar posições com o seu cão, altere a ordem dos pedidos. Por exemplo, em vez de repetir sempre a mesma sequência, estar de pé – sentar – deitar, inverta a ordem!

Dica de treino

Margarida Meira

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Hábitos e Aprendizagem – A lengalenda da tabuada

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Conclusões:o que é a Kuya começa a aprender?

• Quando está sozinha, com os instintos a descoberto e sem a censura da Rita, a Kuya aprende que é divertido explorar a casa. Roer madeiras, destruir almofadas, saltar para a bancada… Todos sabemos de estórias de cães acrobatas e destemidos, mas que perto dos seus humanos nem sequer saltam para o sofá sem autorização. Associar estar sozinho a fazer o que quiser na casa é um hábito que poderá ser difícil de extinguir no futuro. É muito vantajoso que a Rita dê à Kuya brinquedos adequados para se entreter. Contudo, nesta fase é essencial condicionar a Kuya a certas partes da casa, para que não ganhe maus hábitos.

• Abocanhar coisas é algo tão natural para um cão como para nós é pegar com as mãos. Sabendo isto, é muito importante ensinar os cães a trazerem os brin-quedos até nós e a gostarem de brincar com eles perto de nós, ou directamente na nossa mão. Caso contrário, vão rapidamente aprender a gostar de fugir de nós com os objectos que descobriram.

Margarida Meira

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• Mesmo que a probabilidade de apanhar migalhas ou receber mimos da Rita seja baixa, se é divertido saltar e não há nada a perder, este comportamento existirá sempre que a Kuya tenha interesse no que se passa cá em cima, ao nível dos humanos. Infelizmente, a Kuya está a aprender a saltar quando tem curiosidade e quer interagir com quem não lhe está a dar atenção.

• Pelo contrário, se a Rita se baixa até ao chão com a taça com a comida, a Kuya vai aprender a aguardar na hora da refeição. Dar feedback instantâneo é essencial para a Kuya se comportar como a Rita gostaria.

• Os sinais visuais são um indicativo muito mais forte do que os sons que a Rita diz. Assim, quando a Rita pede um senta ou fica, numa outra situação que não tenha sido treinada com a mesma coerência do treino da hora de refeição, a Kuya não percebe o que deve fazer.

Hábitos e Aprendizagem

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• Isto acontece porque os sons não adquirem um sentido abstracto na mente dos cães. São memórias contextuais, e como tal é preciso treinar a Kuya em muitíssimos contextos para que consiga generalizar os sinais sonoros que corres-pondem aos comportamentos.

• Mexer e posicionar o corpo de alguém para lhe ensinar um movimento são técnicas de ensino que, impli-cando pouquíssima iniciativa por parte do aluno, não são guardadas eficazmente na memória. Ser o pai do Tiago a conduzir ou ser alguém a pegar nas patas da Kuya faz com que nenhum deles se lembre do que deve fazer se essas situações se repetirem no futuro.

• É importante lembrar que cada aluno tem o seu próprio ritmo de aprendizagem. Só respeitando o ritmo de aprendizagem da Kuya, é que a Rita poderá esperar um bom resultado dos treinos!

Margarida Meira

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• Enquanto a Kuya ainda não tem o treino bem assimi-lado, o melhor será facilitar as situações mais tensas, como pôr o peitoral e a trela. O ideal é um equilíbrio entre calma e rapidez, mas sem deixar de treinar fora destas situações, para que a Kuya possa aprender a aguardar e a deixar-se manusear no futuro.

• Como os cães aprendem por associação, o contexto e as sequências da interacção têm tanto peso como o contexto musical e a sequência de passos numa coreografia. Assim, é preciso ter atenção se a aprendizagem de cada sinal fica dissimulada num todo de comportamentos, uns a seguir aos outros. Nada como trocar a ordem para termos a certeza que o nosso cão sabe o que significa cada palavra.

A forma de os cães aprenderem e comunicarem tem especial interesse quando queremos ensiná-los a andar ao nosso lado de trela. Vejamos como é que a Kuya se vai dar com a Rita quando vão à rua.

Hábitos e Aprendizagem

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Margarida Meira

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RELAÇÃO POR UM FIO

Relação por um fio

III

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É NORMAL

Margarida Meira

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Relação por um fio – É normal

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Kuya em modo cão de trenó

Depois de dias com a Kuya a ambientar-se à casa e à família, a Rita estava desejosa de a levar à rua. Tinha um peitoral e uma trela colorida a condizer. Assim que abriu a porta, já a Kuya estava com as patinhas no ar, a uns milímetros do chão, suspensa pela trela que a Rita segu-rava enrolada no pulso. Viu que ninguém passava junto à porta e saiu, fechando a porta atrás de si. Enquanto largava a maçaneta da porta, o seu outro braço levou um puxão para a frente. Um pombo esvoaçou para longe e a Kuya abanava a cauda, embora um pouco engasgada com a paragem brusca da trela, observando a sua presa fugir.

Apenas um metro à frente, estavam os caixotes do lixo do prédio, e lá se deu outro puxão impulsionado pelo olfacto apurado. A Rita parou para ajeitar o casaco e recompor-se quando alguém passou. Aparentemente, deixou a Kuya perdida de amores. Saltou e puxou na direcção da senhora que acabou por parar, deliciada, para lhe dar muitas festas e cumprimentos em voz mimosa.

Quando a senhora se afastou e a Kuya desistiu de a seguir, a Rita debruçou-se sobre ela para pegar na pata e desenrolar a trela. Ainda não se tinha endireitado e já

Margarida Meira

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a Kuya ia a todo o vapor na direcção de quem passava mais à frente. Felizmente, o caminho para o jardim, mais sossegado, era ao virar da esquina. Virada a esquina, a caçadora voltou à acção. Começou a ladrar e a puxar em direcção a um gato que nem se dignou a fugir, continuando deitado sobre o muro a apanhar banhos de sol.

Quando chegaram à relva, a Rita não teve outra hipótese senão pisá-la, e até alguma lama, pois a Kuya arrastava-a com o focinho colado ao chão até todas as árvores, arbustos e coisas apenas perceptíveis pelo seu olfacto.

O passeio assim continuou, o que fez com que a Rita começasse a considerar arranjar uma trela maior, para que a Kuya pudesse andar mais à vontade.

Relação por um fio – É normal

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Tiago e o adolescente impulsivo

Há meses que o Tiago comprara os bilhetes para ele e a Maria irem ver os Rock Breakers. Ela ficou radiante quando ele lhos ofereceu no aniversário de namoro:

— Tenho o melhor namorado do mundo! — Exclamou, entre beijos e apertos.

As luzes apagaram-se, assobios e gritos invadiram o pavilhão. A Maria deu-lhe um beijo na bochecha, entrelaçaram os dedos das mãos e atiraram os olhos radi-antes para o palco.

— Olá Lisboa! — Gritou o vocalista.Toda a gente gritou de volta e a bateria arrancou para

uma das músicas preferidas do casal. Sentiu uma pancada sem querer no ombro, de um rapazito que lhe pediu logo um desculpa despreocupado, enquanto se reequilibrava para rapidamente recomeçar a saltar e gritar, entusiasmado. Tudo bem, pensou o Tiago, e voltou a virar-se para a frente, abraçando a Maria.

Ainda não tinha acabado a primeira canção e o rapaz atrás de si voltou a cair num empurrão bruto sobre as costas do Tiago. Desta vez nem disse nada, tão embre-nhado que estava a saltar para ver e participar no concerto.

Margarida Meira

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À terceira vez o Tiago olhou para trás chateado. O rapaz arregalou os olhos um segundo, mas a excitação era tanta que se desmanchou logo num sorriso aberto e um encolher de ombros. Como quem diz adoro isto… preciso de ver! É verdade que havia muita gente e encontrões de todos os lados, mas este rapaz estava constantemente a fazer pressão sobre ele.

— É um concerto, faz parte. —Disse a Maria. Num suspiro que misturava frustração e empatia,

o Tiago apercebeu-se que o rapaz era bem mais baixo que ele, e que não lhes custava nada trocarem de lugar. Olhou de esguelha para ver se era possível fazerem a troca. Para além de ser viável, via-se bem o palco de onde eles estavam. Perguntou à Maria o que achava da mudança, e é claro que ela não se importou. Quando fez um gesto ao rapaz para que lhes passasse à frente, o miúdo parou e voltou a esboçar um sorriso gigante. Trocaram de lugar.

Já que lhe tinha feito uma boa acção, o Tiago queria ver se ele retribuía com boa educação. Até ao fim do concerto ficou a reparar se ele voltava a ser inconveniente

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e a incomodar os que estavam mais à frente. Nada disso. Com os olhos postos no palco, mesmo com um entusiasmo contagiante, entre muitos saltos e gritos, o rapaz não voltou a empurrar ninguém. Só queria ver (e viver) o concerto.

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Com o entusiasmo que advém da adopção de um cão, compramos logo todo o material, satisfeitos por termos tudo o que é preciso para receber o novo membro da família. A parte de andar com o cão de trela, para nós, é relativamente simples: seguramos numa ponta da trela e não há muito mais indicações. Mas os cães não sabem como funciona esse pedaço de tecido quando os prendemos pela primeira vez.

O rapaz do concerto deixou-se levar pela emoção e não se apercebeu que estava a criar desconforto ao Tiago. É normal, quando estamos entusiasmados, perder um bocadinho a sensibilidade em relação aos outros. Mesmo pedindo desculpa, mostrando que se apercebeu que estava a incomodar sem intenção de o fazer, o rapaz estava tão entusiasmado que continuou a criar desconforto a todos, pois estava muito aper-tado no sítio onde estava. Da mesma forma, a Kuya continuou a dar puxões na trela a cada avanço. Estava entusiasmada por conhecer, cheirar e interagir com todos os estímulos novos que não encontrava dentro de casa.

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Os cães como a Kuya, que nunca foram ensinados a andar de trela, isto é, que nunca aprenderam como é que chegam ao fim da trela e como é que podem evitar fazê-lo, vão fazer o que lhes é natural: avançar como se não estivessem atrelados a ninguém. Para passear tem de avançar, e é natural que o faça. Mas, ao contrário do rapaz do concerto, a Kuya não percebe que está a criar desconforto em quem está do outro lado da trela, pois desconhece a relação entre o seu avanço e o esforço que a Rita tem que fazer para a segurar.

Margarida Meira

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Dica de treino

Não faça as duas coisas ao mesmo tempo! Ensine o seu cão a andar de trela num ambi-ente calmo que ele conheça. Ensine o seu cão a interagir com o mundo lá fora sem tensões da trela. Por exemplo, leve-o à rua ao colo quando é cachorro, solte-o com frequência em parque vedados e utilize uma trela extensível de forma a que ele não leve puxões durante esta exploração.

Só quando o cão já aprendeu a andar ao seu lado é que poderá exigir que o faça também num ambiente cheio de estímulos distractivos.

Relação por um fio – É normal

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UM MUNDO À MÃO DE APERTAR

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Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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Kuya a amuar?

A Rita estava a adorar reparar nas expressões que a Kuya fazia enquanto passeavam. Entusiasmava-se com tudo e já estavam há quase meia hora na rua. Era bom estar a conhecer o mundo que tanto a estimulava. Tinham estado no jardim com outros cães e depois foram ao café, onde recebeu imensas festas de quem estava na esplanada.

Iam agora a caminho de casa, quando a Kuya parou de repente. A Rita puxou-a e ela fez-se pesada, ficando sentada e depois quase deitada no chão. A Rita acocorou-se e chamou-a. A Kuya olhou para ela, mas não avançou. A Rita olhou em volta para tentar perceber se podia haver alguma coisa que a assustasse, mas não viu nada. A Kuya lá se levantou relutante, mas mais à frente, quando a Rita puxou a trela para atravessarem a passadeira, a Kuya voltou a fazer o mesmo. Desta vez não se sentou, mas ficou parada, em pé, a fazer força na direcção contrária à trela. Avançou, finalmente; atravessaram a rua e a Kuya encontrou um raminho com que brincou durante uma parte da caminhada.

Quando, pela terceira vez, a Kuya fez força, parando e encolhendo-se a meio do caminho, a Rita lembrou-se de

Margarida Meira

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pegar noutro ramo que estava no chão e seduziu a Kuya o resto do caminho até casa.

Já tinha visto alguns cães fazerem isto. Estaria a amuar? — Não queres ir para casa, Kuya? —E a Kuya abanou

a cauda enquanto transportava o raminho na boca.

Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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Maria de saia apertada

A Maria estava entusiasmada com o primeiro dia de trabalho. Foi uma das poucas alunas do Curso de Desporto a passar à fase final de recrutamento da Novos Atletas e Associados. Aprovou-se ao espelho e um sorriso orgulhoso reflectiu-se de volta. Estava bem arranjada, com a saia preta até ao joelho e uns sapatos bonitos com um pequeno salto, que comprara com a mãe na semana anterior.

À saída do prédio sentiu um bloqueio na perna. Ah…a saia. Tudo bem, avançou com passos mais pequenos do que o costume. Pegou no carro e chegou bem ao trabalho. Já sabia onde era a sua secretária, perto de duas colegas de caras simpáticas. A primeira hora passou-se bem, entre e-mails, telefonemas, e cumprimentos de boas-vindas de quem passava pelo corredor.

A colega convidou-a para uma pausa na sala de convívio. A Maria organizou os papéis na mesa, fechou as janelas no ecrã do computador, olhou para a mesa à sua frente, como que a certificar-se que estava tudo profissionalmente organizado, quando na verdade estava apenas a saborear esse pequeno território que agora era dela. Levantou-se, de queixo erguido, e seguiu a colega.

Margarida Meira

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Não dera três passos quando a perna direita foi nova-mente bloqueada pela saia apertada. Estava tão acos-tumada ao conforto e facilidade dos ténis e calças de ganga… Talvez fosse boa ideia trocar essa saia por umas calças, igualmente formais, mas mais confortáveis para andar. Tinha visto umas giras na loja onde comprara a saia. Bom, mas para poder devolver a saia teria de ter cuidado redobrado para não a estragar. Passinhos curtos e controlados, então. Chegaram à sala de convívio.

Gostou da colega, que lhe explicou onde era o micro-ondas, as prateleiras de cada departamento e as manhas da máquina de café. Tinham produtos para fazer todo o tipo de café.

Entretida com a conversa, a Maria nem se apercebeu que estava a abusar dos pés numa posição pouco confortável por causa da saia e dos saltos. Desencostou-se da bancada e sentou-se delicadamente à mesa para beber o seu café. Experimentou café com leite de arroz e chocolate em pó. Estava terrível, mas o facto de se ter sentado equilibrou as sensações.

— Maria Pereira? O chefe está à tua procura. Vai fazer

Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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uma apresentação da empresa aos novos colaboradores. — Informou um colega à entrada da sala.

Não terminou o café, deitou-o pela pia, lavou a caneca e deixou-a a secar. Quando chegou ao gabinete do chefe o mindinho do pé direito reclamava, mas ela nem quis saber.

— Maria, o que achas de vires connosco conhecer as instalações? Quero-vos mostrar os gabinetes e os campos de jogos no Estádio. Vamos a isto? — Perguntou o chefe.

Conheceu todos os espaços, cumprimentou muita gente. Adorou a pista de atletismo no estádio; não era propria-mente nova, mas era grande e cheia de luz, e reparou que era feita de materiais muito resistentes. Viu pessoas a correr na pista e o chefe explicou que todos os colabora-dores podiam usar os campos e o ginásio.

Regressou à secretária mesmo a tempo de ser nova-mente convidada a sair dela, uma vez que tinham prepa-rado uma actividade de team building, que decorreria logo a seguir ao almoço.

A fila para o almoço oferecia ao seu corpo uma certa paz. Parada não tinha de lutar com saias apertadas e bases finas para os pés. Durante a actividade de grupo é que

Margarida Meira

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começou a verdadeira complicação. Era um jogo com certeza divertido para quem não estivesse de saia e saltos. A Maria tinha de ir com pistas de um lado para outro, falar com diferentes pessoas e vencer desafios, para receber as pistas seguintes.

Ela queria jogar, estava com garra, queria vestir a camisola da empresa, aceitar todos os desafios. Este espírito de iniciativa fazia-a esquecer, constantemente, os repetidos apertos que a saia lhe fazia às pernas. Chegou uma pista às mãos da Maria – Banca C – olhou em frente, era do outro lado da sala. Um suspiro espontâneo trespassou-lhe o corpo, desde as sobrancelhas arqueadas aos joelhos descaídos para dentro. Havia cem porcento de probabilidade de tropeçar nesse percurso e trezentos porcento de probabilidade de dar passos maiores do que a saia permitia e de se magoar no processo.

No final da actividade, já se via a Maria ora em posições estrambólicas por consequência de mais um aperto ines-perado, ora parada com os ombros e joelhos descaídos por momentânea desistência, ora simplesmente encostada ou sentada para um curto repouso dos dedos dos pés.

Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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Nos dias seguintes, mesmo com calças confortáveis – e lindas! – via-se a Maria com momentos subtis de mini bloqueios, sem razão aparente. Era provavelmente o corpo, como que traumatizado, a impor-lhe umas para-gens bruscas, bem memorizadas pela experiência da saia no primeiro dia de trabalho.

Margarida Meira

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A forma como a Maria teve de conhecer o seu trabalho pela primeira vez é a forma como apresen-tamos o mundo aos cachorros nas primeiras idas à rua. Inundamo-los com um mundo estimulante a abarrotar de convites para explorar e interagir com o ambiente. Pombos, caixotes malcheirosos, barulhos, objectos, esquinas, plantas, animais, veículos, adultos, crianças! Há tanta coisa nova para conhecer, mas que lhes é apresentada de uma forma caricatamente cruel, através da trela.

Tal como a Maria, os cachorros não estão habitua-dos a ter os movimentos do corpo presos. Andar condi-cionado é algo que exige a qualquer um algum tempo para se habituar. Sem aprendizagem prévia, nem tempo de habituação, a não ser quando já estão no mundo a explorar, os cachorrinhos adquirem insegu-ranças e frustrações ao andar de trela.

É normal não notarmos isto, porque eles estão muito entusiasmados quando vão passear! Basta pegar na trela e dizer a frase mágica vamos à rua? para que eles fiquem com uma felicidade contagiante! E na rua?

Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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Só querem divertir-se e chegar a todo o lado! Como qualquer adolescente no concerto da sua banda favorita…

Assim, os cães têm contacto com algo que adoram, o mundo fora de casa, com entusiasmo e emoções galopantes, mas têm os movimentos condicionados de uma forma que não entendem como funciona. Talvez seja por isso que alguns cães, como a Kuya, começam a bloquear a meio do passeio, ou mesmo a fazer força na direcção contrária da trela, assim que esta lhes é posta.

Margarida Meira

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Avise o seu cão que o corpo dele vai ser bloqueado. Antes de: travar a trela extensível, ele chegar à ponta da trela, puxar a trela para evitar que ele continue em determinada direcção – avise-o – diga espera ou cuidado por exemplo. E evite fazê-lo ao mesmo tempo que puxa a trela. Diga espera antes de ele sentir a tensão da trela.

Dica de treino

Relação por um fio – Um mundo à mão de apertar

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BEXIGA DISTRAÍDA

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Relação por um fio – Bexiga distraída

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Kuya inunda a casa

Chegaram finalmente a casa. O raminho ficou à porta, do lado de fora. A Rita tirou a trela e o peitoral à Kuya. Enquanto tirou o casaco e o pendurou no cabide da entrada, a Kuya deu uma voltinha pela casa, foi beber água e no instante seguinte agachou-se e fez um xixi enorme que escorreu pelo chão, quase acertando no tapete.

— Ó Kuya, tanto tempo na rua e fazes xixi em casa?! — Exclamou a Rita, frustrada, pegando no balde e esfregona já prontos a serem usados.

Margarida Meira

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Tiago distraído no cinema

— A Maria? — Inquiriu o Zé, vendo o Tiago chegar sozinho ao cinema.

— Ainda está na empresa, começou hoje o novo trabalho! — Esclareceu o Tiago.

Foram para a fila dos bilhetes e aproveitaram para comprar pipocas e um refrigerante grande para cada um.

— Espera, tenho de ir à casa de banho. — Pediu o Tiago. — Não aguentas? Estamos atrasados.A verdade é que o Tiago não estava aflito e não queria

perder o início do filme. Avançaram para a porta e sentaram-se na bancada do fundo. O Tiago bebeu todo o refrigerante açucarado nos primeiros minutos do filme. Mesmo assim, não se voltou a lembrar da bexiga. Mas, depois da cena final, começaram a passar os créditos e o Tiago levantou-se um pulo.

— Calma, deixa as pessoas passar… — Disse o Zé, surpreendido com a inquietação repentina do Tiago.

Mas o Tiago não podia esperar e saltou de fila em fila, por cima das cadeiras, ultrapassando o mar de gente que saía calmamente pelo corredor. Correu até à casa de banho ainda antes de qualquer outra pessoa e felizmente encon-trou logo uma disponível onde se pôde aliviar.

Relação por um fio – Bexiga distraída

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Quando estamos entretidos, por vezes até nos esquecemos das nossas necessidades fisiológicas, como comer, beber, dormir ou ir à casa-de-banho. Para muitos cães, tal como para a Kuya, ir à rua é algo extraordinário e cheio de estímulos. Por isso, esquecer-se de fazer as necessidades é normal. E, para infortúnio dos humanos, ao contrário da rua, quando chegam a casa, os cães sentem que não há nada para fazer. É aí que eles se lembram, tal como o Tiago depois do filme, que tinham a bexiga bem cheia!

Se durante o passeio levarmos os cães para zonas mais calmas e ficarmos aí parados, em vez de estar sempre a caminhar e a dar-lhes novos estímulos, há maior probabilidade de os cães tomarem consciência das suas bexigas e aprenderem a fazer as necessidades no sítio certo.

Margarida Meira

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Sempre que o seu cão acorda, pára de brincar, acaba de comer e beber água leve-o para locais onde quer que ele aprenda a fazer as necessidades.

Dica de treino

Relação por um fio – Bexiga distraída

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SE FUNCIONA, PORQUE NÃO?

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Relação por um fio – Se funciona, porque não?

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Kuya com tracção a quatro rodas

Era apenas a segunda semana em que a Kuya ia à rua. No entanto, a dupla já ganhara alguns hábitos de passeio. A Kuya sentou-se, para a Rita lhe pôr a trela, e permaneceu sentada (com a trela bem segura e tensa na mão da Rita) enquanto a Rita abria a porta.

Durante o passeio, a Kuya já não dava tantos daqueles puxões aleatórios em direcção a tudo e todos. Por vezes, bloqueava. Quase nunca ficava para trás. E, sem boas notí-cias para o braço cada vez mais forte da Rita, estava quase sempre na ponta da trela. Parecia que assim que punha a primeira mudança era sempre a puxar pelo motor.

Caminhou, como já era seu costume, com o corpo inclinado para a frente. Já sabia onde viravam e onde paravam antes de atravessarem a estrada. Por vezes, parava para cheirar ou fazer as necessidades. A Rita ficava ao seu lado, à espera, e depois a Kuya voltava a avançar, levando tranquilamente a Rita pela trela até ao jardim.

Margarida Meira

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Mário, mini-criminoso na estrada

A Glória já nem dizia nada. Vezes sem conta reclamou com o Mário quando ele passava para lá do traço contínuo. Ele fazia um ar de tem de ser, não há paciência para, poucos segundos depois, se seguir um tinhas razão, mas agora já está. Por mais previsível que fosse este encadeamento, quase todos os dias se repetia a mesma situação. Não era nada de grave, mas não deixavam de ser contra-ordenações. A Glória certificava-se que tinha os óculos de sol prateados postos, não fosse alguém reconhecê-la no trânsito como parceira daquele transgressor do código da estrada.

É verdade que as coisas estavam mal feitas. A pouquís--simos metros de onde costumava começar a fila para quem seguia em frente, para a ponte, estava a saída em direcção ao trabalho da Glória. Na hora de ponta havia sempre imensa gente que seguia para a ponte. O trânsito ocupava todas as vias e quem queria usar aquela saída tinha que ficar preso no trânsito de quem ia em frente.

Bastava que quem fez as estradas tivesse pintado a via para a saída uns metros antes. Para poupar o quê? Uns 20 minutos, às vezes mais. O Mário não gostava de

Relação por um fio – Se funciona, porque não?

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desrespeitar o código da estrada, mas sentia-se frustrado por ter de estar parado, quando não fazia mal nenhum usar a via de emergência. Ele, como muitos outros condutores, usavam a via de emergência como se fosse uma terceira via à direita.

Margarida Meira

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Muitas vezes nos questionamos acerca dos motivos de os cães fazerem o que fazem. E a resposta é tão simples que não parece suficiente. O Mário, ao contrário do que se sabe sobre a Kuya, tem pensamento abstracto que permite a noção de deveres e moral. Mesmo assim, quando os seus valores morais não parecem estar a ser postos em causa, ele oscila nos seus deveres enquanto condutor e desrespeita o código da estrada.

A Kuya é muito inteligente e capaz de sentir várias emoções, incluindo empatia por quem a passeia. Contudo, não aprendeu nenhum código da estrada… Assim, se ao fim de uma semana o padrão que ela experiencia é se puxo ando para a frente, porque não irá ela puxar quando quer andar para a frente? Rever-tendo a pergunta de porque é que os cães puxam a trela, a pergunta que fica é exactamente esta: porque é que os cães não hão-de puxar a trela? Se funciona, se é assim que o passeio continua…?

Observando a maioria de nós, nos passeios, quase todos mantemos a trela tensa, e assim o cão aprende que andar implica sempre puxar, mesmo que levemente.

Relação por um fio – Se funciona, porque não?

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Assim que a trela fica tensa, isto é, assim que a trela deixa de fazer um u, páre. Não avance atrás do seu cão a não ser que a trela esteja relaxada.

Está a pensar que vai passar a parar a cada dois segundos? Então repare se está a utilizar as dicas de treino anteriores.

Dica de treino

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Relação por um fio – Se funciona, porque não?

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SEI QUE ESTÁS AÍ

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Relação por um fio – Sei que estás aí

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Kuya de trela vermelha

Ao fim de quase um mês de passeios, a Rita percebeu que a sua pequenita precisava de mais liberdade para poder brincar com os outros cães na rua. Rapidamente se enro-lava toda, com a trela normal, e não conseguia brincar com os cães que encontrava. Além disso, havia partes de relva mais sujas, que a Rita não queria pisar, embora quisesse que a Kuya fosse lá cheirar e correr.

Num sábado, foi a uma loja que tinha encontrado no bairro, onde havia muitas coisas para cães. Deduziu que médio seria o tamanho ideal, escolheu a cor vermelha e comprou uma trela extensível até três metros.

Estreou-a no passeio dessa tarde. Antes de saírem, a Kuya sentou-se para a Rita lhe pôr a trela e depois, enquanto uma mão abria a porta, a outra mão trancava a trela o mais curto possível. Caminharam como sempre pela rua estreita, com a Kuya a 50 centímetros de trela da Rita, não fosse passar alguém ou a Kuya disparar a correr. Quando chegaram ao jardim, a Rita destrancou a trela e aguardou a reacção da Kuya. A Kuya fez o seu xixi já habitual e começou a cheirar a relva toda. Chegou a uma ponta que ultrapassava a extensão máxima da trela e a Rita avançou pelo jardim.

Margarida Meira

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Para insatisfação da Rita, a Kuya continuou o passeio, entre cheiros e avanços, sempre na ponta da trela. Antes a um metro da Rita, e agora a três. Na volta para casa, a Rita voltou a manter a trela curta e a Kuya continuou na ponta.

Relação por um fio – Sei que estás aí

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Glória e as bolsas coloridas

A Glória era uma mulher sofisticada. Acreditava que os acessórios eram a parte mais importante da imagem de alguém. Davam um toque de classe, uma cor para cada dia. As bolsas, por exemplo, condiziam sempre com a roupa, os brincos e a sua disposição. Tinha bolsas lindas, duas de cortiça, uma com bordados requintados, e muitas de tecidos mais comuns, mas cada uma de cor diferente. Não resistia a malas com pega pequena, para usar no braço, na curva do cotovelo. Não gostava de malas com pegas grandes, de pôr ao ombro.

Quem a visse sem uma bolsa até estranhava. Tinha sempre alguma pendurada, como se fosse uma extensão do corpo. Cotovelo junto à anca e pulso revirado para cima com alguma pulseira lindíssima, como que a abrir alas para todo o seu glamour passar.

A personalidade artística da Glória, comprovada pela estética, tinha como revés um defeito que muitos dos que têm espírito criativo têm: era uma cabeça no ar. E a Glória sabia-se assim. Então, juntava o estético ao prático. Tinha um saco arrumador onde cabia tudo o que é essencial e punha-o na bolsa que usasse nesse dia.

Margarida Meira

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Neste fim de setembro, depois de todo um Verão de passerelle para as bolsas da estação, começou a sentir dores no ombro direito. Não era grave, era uma dor subtil, mas daquelas que mói, constante e cansativa. Falou sobre o assunto numa consulta com o médico do trabalho. Depois de vasculharem possíveis quedas, o médico descobriu que o problema era simples: as bolsas da Glória.

— Essas malas podem fazer-lhe tão mal como estar horas com uma má postura à frente do computador.

— Ó doutor, mas não pesam nada…— Não pode ser, tem de mudar isso. Já está a ficar com

uma contratura feia.— Não posso tomar algum analgésico? — Suplicou a

Glória.— O seu ombro precisa de descanso e anti-inflamatório.

Fazemos assim, daqui a um mês volta cá e revemos. Até lá poupe-o ao máximo. — E a sanção não podia ser pior: — Vai ficar um mês sem pesos nos braços, nem sequer bolsas.

O facto de não poder expressar-se com bolsas lindas foi rápida e facilmente substituído por outros acessórios

Relação por um fio – Sei que estás aí

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como colares espampanantes! Mas surgiu um problema. A Glória sentia a constante necessidade de olhar para o braço, para o chão ou para trás, à procura da sua bolsa, porque, apercebendo-se da falta do peso no braço, sobressaltava-se, com medo de ter perdido os seus bens. Rapidamente, lá recordava onde os tinha deixado e que estava tudo controlado. Mas, passado uns minutos, vinha novamente o sobressalto. Parecia que sentir o peso a deixava descansada. Uma sensação de segurança e certeza de ter com ela a carteira, o telemóvel, as chaves e o batom. Sem o peso destas coisas essenciais sentia-se incompleta.

Passadas duas semanas, os sobressaltos eram menos frequentes e passavam mais rapidamente. Lá estou eu! Tenho a carteira no bolso das calças… Mas no dia seguinte já não era no bolso das calças, era na bolsa da cintura, e no seguinte tinha deixado as coisas em cima da mesa enquanto ia ao gabinete da colega.

Finalmente, chegou o dia da consulta. Estava desejosa de usar as suas lindas bolsas. Já tinha um conjunto pronto para usar: com aquela bolsa avermelhada, usaria a camisa florida e os brincos brancos pendentes. O ombro estava

Margarida Meira

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melhor. Teria de ter cuidado e monitorizar a sua postura, mas tinha autorização para voltar a ser deslumbrante. A bolsa avermelhada foi a escolha perfeita para o dia seguinte. Lá foi a Glória, de bolsa no braço, pulso erguido, queixo para cima e, finalmente, olhos em frente.

Relação por um fio – Sei que estás aí

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Para os cães, além de puxar a trela ser funcional (porque avançam para onde querem ir), também lhes permite ter a certeza que o resto da família os segue lá atrás.

Tal como a Glória sente uma espécie de segurança com aquela presença física da mala no braço, pode ser que também se crie um hábito nos cães relativa-mente a sentir a tensão de quem caminha com eles. Assim, a maioria dos cães parece ter uma tendência para manter a trela tensa, como que a controlar melhor o que se passa lá atrás, enquanto continuam a olhar para tudo o que de interessante lhes passa pelos olhos e pelo nariz. Há até cães que assim que alguém lhes põe a trela se inclinam de forma a manter a trela tensa, mesmo sem andar!

Adicionalmente, quando surge stress – outra conse-quência desta forma de conhecer e lidar com o mundo – há ainda mais vantagens em manter o foco no campo de batalha. Mais uma razão para manter a trela sempre tensa, mantendo a certeza que o resto da família os acompanha nesta demanda.

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Ande com calma, aprecie o passeio. Fale com o seu cão (sem lhe exigir nada). Vai ver que ele deixará de estar tão alerta, ficará mais relaxado e, consequentemente, mostrará menos necessidade de ter as costas quentes.

Dica de treino

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EM MODO ZAPPING

Margarida Meira

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Relação por um fio – Em modo zapping

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Kuya a treinar o junto

Há dois meses que a Kuya estava com a Rita. O passeio adquirira um padrão regular: saíam de casa pela rua que seguia para a direita, faziam o caminho estreito até à passadeira e do outro lado da estrada continuavam pela esquerda até chegarem ao jardim. Demoravam apenas cerca de cinco minutos até ao jardim, onde a Rita deixava a Kuya estar mais à vontade no relvado.

Há uns dias, tinha ouvido os vizinhos a conversar sobre treino no jardim. Diziam que um cão deve andar ao nosso lado. Decidiu que a Kuya também já tinha idade para começar a aprender a andar ao lado. Abriu a porta com a Kuya já com a trela posta. Tinha-a curta, como era costume ao sair de casa, e assim a manteve até chegarem ao jardim. Tinha de fazer muita força, porque a Kuya queria cheirar os canteiros e parou uma vez ou outra a olhar em volta, com o focinho no ar e as orelhas a esvoaçar para algo que ouvira. Assim que começaram a atravessar a estrada, a Kuya avançou na ponta daqueles cinquenta centímetros de trela. A Rita seguiu com o braço esticado, mas fez logo força para si quando passaram por quem atravessava em sentido contrário, para evitar que a Kuya incomodasse.

Margarida Meira

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Quando chegaram ao outro lado, o focinho da Kuya parecia um íman colado à esquina do prédio. A Rita puxou-a, para ela andar ao seu lado. Pensou para si que daí a pouco tempo ela poderia cheirar tudo o que quisesse no jardim.

Passou um cão com o pescoço tenso na ponta da trela, em direcção a elas, em sentido contrário. O rapaz também mantinha a trela curta para que ele não incomodasse ninguém. Como viu que o rapaz não deixaria o cão aproxi-mar-se, aproveitou e também manteve a Kuya ao lado. Foi difícil. Tinha de andar sem chocar com ninguém, ao mesmo tempo que tinha de puxar a Kuya a cada vez que ela se inclinava ligeiramente para o cão. Logo a seguir, veio uma criança a correr. A Rita ficou com medo que a Kuya, que já começava a ter algum tamanho, derrubasse a criança, e acelerou o passo. A Kuya olhou para a criança e levou um pequeno puxão que a fez acelerar ao ritmo da Rita. A criança achou-lhe piada e parou a rir para ela. A Kuya ia fazer uma vénia, mas acabou por não se baixar e avançou com uma corridinha de alegria, desafiando a criança a brincar. Em meio passo chegou ao limite da

Relação por um fio – Em modo zapping

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trela, num travão desagradável. A Rita apercebeu-se que ela se podia ter magoado com aquele solavanco e parou.

— Pequenina, que estás a fazer, assim magoas-te! Já vais brincar no jardim. Vá, junto. Junto. — Disse a Rita ao avançar.

A Kuya foi levada pelo pescoço torto enquanto olhava para a criança que ficou para trás.

Daí em diante a Rita fez um esforço para treinar a Kuya a andar assim na rua. Tinha sempre atenção para manter a Kuya ao seu lado. Cada vez que dava puxões para si dizia junto, para que a Kuya aprendesse a andar ao lado.

Margarida Meira

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Tiago, ditador da televisão

A Glória gostava das suas novelas e o Mário do tele-jornal e do futebol. Mas, verdade seja dita, a coisa era muitíssimo harmoniosa. Todavia, quando o filho Tiago pegava no comando, caía o Carmo e a Trindade. Ficavam com os nervos em franja. Era um irrequieto, nunca via nada até ao fim. Parecia que, mais importante do que o que estava a ver, era manter aquele ritmo de mudança de canal. Passava pelos canais de notícias, a uma velocidade média, depois os de desporto, rapidamente, os de docu-mentários ainda mais rapidamente, para depois abrandar nos canais de filmes e de séries.

O miúdo estava naquela idade em que se um ouvisse algum sermão desaparecia no quarto durante uma semana. Assim, a Glória e o Mário tinham estabelecido, telepaticamente, uma temporada de tréguas para manter o Tiago por perto enquanto ele não desaparecesse para o quarto ou para a rua com os amigos. Eram umas tréguas relativamente movediças e certamente difíceis de garantir, porque a irritação dos dois era palpável.

— Deixa lá no canal em que estava! — Exclamou o Mário.

Relação por um fio – Em modo zapping

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— São anúncios pai, já lá volto depois do intervalo. — Respondeu o Tiago.

Mas, quando voltava, já o Mário se tinha deixado agarrar pelo filme, que, claro está, tinha apanhado a meio, em mais um zapping do filho. Além de que já teriam, com certeza, perdido o fio à meada quando regressassem ao canal onde estava a dar o programa que ele gostava de ver. Não conseguia saborear nada. E, quando conseguia, era traído por mais uma mudança de canal.

Assim, bastava o Tiago segurar no comando para que as narinas do Mário dilatassem e a pele da Glória arrepi-asse. Ficava uma tensão a pairar no ar. Às vezes, a Glória ia até à cozinha, abria a porta do frigorífico e voltava de lá sem nada, só para desanuviar do serão em família.

Quando o Tiago começava a ficar muito interessado no telemóvel surgia um sabor agridoce no coração dos pais. Era provável que ele estivesse em combinações para ir beber um copo com os amigos. Se sim, o Tiago espre-guiçava-se, levantava-se, olhava-se ao espelho da casa de banho e despedia-se.

— Não voltes tarde querido. — Recomendava a Glória.

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— Vou só ali ao café. Mas não esperem por mim. Até logo.— Até logo! — Respondiam os pais em coro.Depois da preocupação normal se dissolver com o fechar

da porta de casa, um peso delicioso puxava os ombros de ambos para o sofá.

Até pareciam ficar mais atenciosos um com o outro. — Escolhe tu. — Dizia a Glória, com ternura na voz.— Não, escolhe tu o que quiseres, deve estar a dar agora

a novela, não é? — Respondia o Mário com genuína serenidade.

O prazer de ver calmamente alguma coisa até ao fim, fosse o que fosse, desde que se mantivesse agradável e fácil de ver, proporcionava o descanso merecido depois de um longo dia de trabalho.

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A Rita, tal como a maioria de nós, ao fim de poucos meses com os nossos cães, fartou-se de a Kuya não andar ao seu lado. Por isso, começou a ter em mente que a devia manter assim para ela aprender.

Mas se, para que ela aprenda, é a Rita que tem de a manter ao lado, a Kuya não tem escolha nem iniciativa, logo, o treino não é eficaz. Além disso, se o que a Rita usa para a manter ao lado é a trela, a Kuya vai acabar por se habituar a andar com a trela sempre tensa. Esta tensão vai ensiná-la a manter-se na ponta da trela, pois reforça a ideia de que andar implica puxar. Vai também manter a ideia de que a Rita está atrás da Kuya e o hábito de não olhar para trás. Mas, sobretudo, vai criar um enorme desconforto e stress associado a andar de trela na rua. Este stress deriva tanto da frustração de não saber como vai ser bloqueada (tal como a Maria de saia apertada), como do facto de muitas vezes não conseguir chegar onde quer.

O passeio é algo que se quer fazer com prazer. É uma coisa boa, divertida ou calma, mas boa. A Kuya quer conhecer quem passa, quer cumprimentar os cães do

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bairro e precisa de perceber o que são os cheiros e os barulhos que acontecem ao seu redor.

Os pais do Tiago também querem saborear o seu momento de lazer sem pressão, sem zapping! Se têm de manter o ritmo alucinante do filho, tal como a Kuya se mantém a um ritmo que não é o dela através da força de uma trela, é normal que fiquem irritadiços, quase com os cabelos em pé.

Relação por um fio – Em modo zapping

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Ao treinar o junto seja previsível, coerente e tenha tempos de treino definidos de início e fim da sessão. Intercale momentos de treino com momentos de lazer, por exemplo, momentos em que o cão pode ir explorar à vontade ou ficar tranquilo no mesmo lugar.

Dica de treino

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Relação por um fio – Em modo zapping

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O IMPACTO GIGANTE DE UMA MINÚSCULA MELGA

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Relação por um fio – O impacto gigante de uma minúscula melga

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Kuya e os mini puxões da Rita

A Kuya continuava traquinas e amorosa em casa e com uma energia inesgotável na rua. Já não fazia investidas quase nenhumas no passeio até ao jardim. A Rita tinha desenvolvido um bom músculo no braço direito. Aceitou que fazia parte do passeio aquela pressão em manter a Kuya a seu lado. A verdade é que era só até ao jardim. No regresso ela vinha sempre tranquila, mais cansada.

Ao sábado o passeio era maior. A Rita levava sempre a Kuya consigo ao mercado biológico que havia durante a manhã. Tinha que prestar atenção às bancas, às pessoas, aos sacos e à Kuya. A Kuya tinha, claro, outros interesses, e muitas vezes não estava a prestar atenção à Rita.

Invariavelmente, a Rita dava pequenos toques na trela. Ou porque senta, ou já chega de cheirar isso, ou sai de perto da estrada, o que é que estás a fazer?, chega-te mais para cá, anda, querida, espera, está quieta, olha quem está ali, larga isso, não ladres, pára de puxar, vai lá ter com o teu amigo… Não que ela dissesse todas estas coisas em voz alta, mas eram estes pensamentos que a faziam puxar a trela, que era como uma extensão do seu braço para melhor comunicar com a Kuya. Por exemplo, às vezes puxava a trela, depois de estar à conversa

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com um vizinho, assim só um toque amigável, como quem diz vamos andando? Fazia-o mesmo antes de se mexer para continuar o passeio.

A Kuya nunca sabia quando é que ia levar um puxão. Eram leves e não eram no pescoço, pois usava um peitoral. Mas esta forma de comunicação era tão generalizada que não havia forma de prever quando é que ia levar um mini-puxão na trela. Eis que começou a mostrar um compor-tamento novo, começou a descarregar umas mordidelas na trela. A Rita achava que ela queria brincar e arranca-va-lhe a trela para fora da boca – o que era muito compli-cado porque a Kuya saltava e não largava a trela a não ser com muito esforço. A Rita ficou esperançosa que fosse um comportamento passageiro, mas volta e meia lá ia a Kuya a roer a trela durante o passeio.

Relação por um fio – O impacto gigante de uma minúscula melga

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Zé e a carrinha comercial

— O que é que se passa contigo? — Perguntou o João, colega do Zé.

Estavam a regressar da faculdade. Como de costume, o Zé dava boleia ao João, que vivia no mesmo bairro. A viagem decorria tranquilamente, com o trânsito típico da hora de ponta, mas sem motivo para preocupações. Contudo, naquele momento, o João sentiu o Zé estra-nhamente irritadiço: estava inclinado para a frente, suspirava aqui e ali e balançava ligeiramente para os lados como se quisesse ver para além da carrinha que tinham à frente.

— Já se sabe que a esta hora é assim. Relaxa! — Disse o João.

O Zé encostou-se ao assento e lançou o sobrolho para o João.

— Este homem não me sai da frente...Uma carrinha comercial, completamente normal. O João

tirou uns segundos para observar, mas não havia nada a apontar. Não estava a atrasar o trânsito, nem fazia viragens ou paragens bruscas... Com o silêncio, o Zé tentou explicar:

— Como não vejo o que se passa à frente da carrinha,

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preciso de espaço para poder abrandar com tempo antes de travar. Mas se dou muito espaço sou facilmente ultra-passado por algum chico-esperto.

Não era típico dele, devia estar só mal-humorado. O João decidiu mudar de assunto. Comentou o trabalho que tinham adiantado e a conversa aligeirou-se para as boas perspectivas do fim-de-semana.

Um porra!, um bater com as mãos no volante e o sobrolho novamente franzido tiveram lugar logo após uma travagem. O João não fez caso, mas o Zé justificou-se.

— Irrita-me ter um carro à frente que não me deixa ver o que se passa ali adiante. Tanto pára-arranca é uma chatice!

Pouco depois, a auto-estrada fazia uma grande incli-nação. Assim a descer já era possível ver como o trânsito estava mais à frente. Isto fez com que o Zé relaxasse e conti-nuasse a conversa, tranquilamente. No final da descida, a carrinha pôs-se à direita, encaminhando-se para a saída seguinte. Foram o resto do caminho até casa atrás de um carro mais baixo que o deles, que permitia ver quando os carros mais à frente abrandavam ou aceleravam.

Relação por um fio – O impacto gigante de uma minúscula melga

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Ao fim de algum tempo atreladas, a Rita começou a ganhar um hábito que muitos de nós adquirimos com os nossos cães: comunicar com os cães através da trela. O problema é que, tal como o Zé, a Kuya não sabe quando é que a Rita vai puxar a trela. Por serem in- coerentes e imprevisíveis, os puxões deixam um alerta nervoso em quem os recebe. Como o Zé, que por não saber quando é que teria de travar de repente, ficou irri-tadiço enquanto seguiam atrás da carrinha comercial.

Por mais tolerável que seja um puxão e uma travagem, ou algo tão simples como o zumbido de uma melga, quando não conseguimos prever quando é que vai acontecer, e acontece repetidamente, começamos a desenvolver uma espécie de extra-sen-sibilidade. Mesmo que a Kuya não sinta praticamente nenhum desconforto e que o Zé esteja confortável no carro, o facto de terem de parar sem controlo pode fazer com que fiquem irritadiços.

Margarida Meira

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Não se esqueça que a função da trela é apenas manter a segurança. A trela não é um meio de comunicação com o seu cão. Se for preciso enrole a trela à sua cintura para ter a certeza que ela não estica a não ser como consequência do afastamento que há entre os dois.

Dica de treino

Relação por um fio – O impacto gigante de uma minúscula melga

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Conclusões:o que aprende a Kuya sobre a rua e sobre a trela no seu corpo?

Sem um bom entendimento entre a Kuya e a Rita, com exercícios de obediência básica mal aprendidos e maus hábitos criados, chegamos ao culminar do problema no passeio à rua!

• Não tendo um ensino prévio de como lidar com a trela, a Kuya faz o que lhe é intuitivo: anda em frente para avançar, mesmo trazendo a Rita atrás dela.

• Quando a imersão nos estímulos da rua começa a afrouxar, por se tornar familiar, o corpo dos cães cede à necessidade de contrariar esta trela que aperta e impor-tuna o movimento. Assim, numa tentativa de fazer desa-parecer o desconforto de estar presa, a Kuya bloqueia e pára de repente a meio dos passeios.

• A Kuya aprendeu que depois da confusão (boa e má) da rua, já pode fazer as necessidades no seu porto seguro – em casa.

• A Kuya aprendeu que puxar a trela aumenta a proba-

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bilidade de chegar à frente. O feedback que ela recebe está ao contrário do que a Rita queria – sempre que ela puxa, avança, mesmo que com a trela a magoar-lhe o corpo. Assim terá tendência para puxar a trela quando quer chegar a algum lado.

• Com tanto a acontecer e com a certeza de que tem que puxar para andar na rua, a Kuya apercebe-se de ainda outra vantagem de manter a trela tensa – é que assim, ela mantém a certeza de que a Rita vem com ela onde ela for.

• Para além de estar sobre-estimulada quando vão à rua, de não entender como funcionam as paragens, de ter que se manter com a trela tensa, a Kuya fica também sem conseguir chegar onde quer, tendo que se adaptar ao junto da Rita, num passeio com um ritmo pouco natural. O stress vai-se acumulando.

• Na ilusão de que a trela é um canal de comunicação com a Kuya, a Rita começa a usar a trela para falar com ela. Isto acrescenta ainda mais stress aos passeios de trela.

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De notar que a Kuya nunca chegou a aprender a andar junto. Onde estão as falhas?

Faltou uma comunicação clara e respeitadora do corpo e espaço da Kuya, para servir de base de relação entre professor e aluno. Faltou criar os degraus adequados ao treino da Kuya (primeiro em ambientes familiares e depois em ambientes novos e com distracções). Faltou ensinar os sinais de junto tendo em conta que a Kuya utiliza mais a visão do que a audição, que aprende por contexto e sequências de associações. Faltou criar contextos que permitissem que a Kuya tivesse iniciativa e que rece-besse um feedback claro dos nãos e dos sins. E, finalmente e com igual importância, faltou um ambiente essencial a qualquer aprendizagem: um ambiente tranquilo e alegre com um aluno relaxado e sem stress.

Entendemos agora os motivos por trás de tanta desobe-diência, reactividade e agressividade nos cães que passeiam nas ruas das nossas cidades.

Margarida Meira

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A família continua a crescer

O cheiro do refogado pela casa toda antevia uma festa animada. O primeiro aninho da Kuya seria celebrado ao jantar, na casa da Rita, com toda a família. A Glória rodeava a Rita, ora arrumando loiça acabada de usar (e quem sabe ainda a ser usada), ora apontando para mais trinta ideias de acompanhamentos e sobremesas que poderiam fazer para o jantar daí a meia hora. O Mário estava a cantarolar enquanto petiscava tostas com húmus e fazia perguntas para o ar.

— Porque é que não tens televisão em casa?Mas só a Kuya tentava responder. Sentada de frente para

o Mário, com a cauda a varrer freneticamente o chão, a língua caída para fora da boca e os olhos esbugalhados, toda ela ansiava por pedaços de atenção e migalhas de tosta.

— Tem-te a ti, é isso? Tu és uma boa substituta da tele-visão, sim senhora! — Disse o Mário, enquanto lhe dava umas festas animadas e uma tosta inteira.

Tocaram à campainha e Glória foi atender, de avental à cintura. O Tiago e a Maria traziam uma sangria feita por eles. A Glória tinha-lhes dito que sumo talvez fosse melhor, mas o Tiago achou que vinho caía bem em

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qualquer festa. A Kuya veio a correr e encheu-se de festas dos dois, pulando e oferecendo baba e pêlos para a troca, neste maravilhoso reencontro. A Glória reparou que a poucos metros da porta o Zé montava a bicicleta, pronto para partir.

— Zé! Onde vais? Anda cá, és mais do que bem-vindo! — Não quero incomodar, é um encontro de família. —

Mas, com os abraços envolventes e as animadas pancadas nas costas da Glória e do Mário, o Zé lá entrou a seguir ao Tiago e à Maria.

Com a lasanha no forno, quase pronta, a Rita respirou fundo. Segurava o coração, relembrando a si própria que se os seus pais tinham feito tão bom trabalho na sua educação, seriam com certeza dignos de confiança para não deixarem a Kuya sair porta fora. Mas logo que ouviu a Kuya a ladrar, largou colher de pau na bancada da cozinha, juntamente com a confiança. Viu o pai a reclamar com o Tiago acerca de como a san-gria estragava o vinho e a Kuya a ladrar ao Zé que aca-bara de entrar. O Zé inclinou-se sobre a Kuya e tentou convencê-la que o seu tamanho era sinónimo da grande

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amizade que teriam no futuro. A Kuya acalmou-se, deu-lhe uma cheiradela à mão e voltou a ser a cachorra mais alegre do mundo.

De repente, a Kuya levantou a cabeça e dirigiu o olhar para a porta. Soou a campainha. A Rita foi em direcção à porta, esperando encontrar o Luís e o Miguel que também vinham jantar, mas antes de abrir ouviu um ganido do lado de lá. As sobrancelhas ao alto, paradas, da Rita, contrastavam com a cauda irrequieta da Kuya. A Rita abriu a porta e viu ao colo do Miguel um cão amoroso, todo preto.

— Olá! Temos uma surpresa para partilhar. Este é o Tejo!

FIM

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Nota final da autora: responsabilidade e controlo.

Ficou-lhe um pequeno aperto no peito? Um descon-forto ao considerar que talvez tenha estado a utilizar uma educação menos respeitadora do que imaginava?

Porque será que somos assim com os cães? Se gostamos tanto dos nossos cães, porque é que acabamos por ter estas rotinas no dia-a-dia? Rotinas que lhes causam stress e os tornam reactivos…

Bom, só pensar que um cão pode reagir mal (rosnar, ladrar ou investir sobre alguém) faz com que o queiramos controlar. Ou, certamente, faz com que lhe ralhemos depois de terem feito estas coisas.

Porquê?Primeiro, porque mesmo sendo muito mais pedagógico

não ralhar, e até recompensar quando o cão parou de fazer uma coisa destas, para que ele possa distinguir o compor-tamento errado do certo, é humano ficarmos tristes e chateados com este tipo de ameaças de qualquer amigo e companheiro.

(Note-se que, se um cão que ladra ou rosna fica na expectativa de receber uma recompensa, seja atenção, contacto ou comida, não faz sentido recompensar após

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o comportamento errado. Além disso, é muitíssimo pedagógico sermos naturais para qualquer convívio entre seres sociais. Não vale a pena fingir que não estou chateada se efectivamente estou. E uma das maravilhas de viver com animais sociais é esta capacidade de empatia que temos uns pelos outros. Mas atenção, isso não é o mesmo que usar as emoções como forma de afectar/influenciar alguém.)

Mas, há outra razão para mantermos esta atitude de pulso firme permanentemente com os nossos cães: queremos dominar o cão, ser o líder. Porquê?

Porque o cão precisa? Claro que não. Os cães precisam tanto de um líder como nós precisamos de uma pessoa que indique o caminho para chegar a um sítio que nunca fomos. Se essa pessoa não se sabe expressar ou falar com justa causa tenderemos a ficar na dúvida sobre se a queremos seguir ou não. Em todo o caso, podemos sempre pedir indicações a outra pessoa – possibilidade que não oferecemos aos nossos cães.

Então, porque temos esta ideia de que temos de dominar e controlar?

Margarida Meira

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Porque, no âmago de qualquer convívio e relação, quere-mos segurança. E se, para tal, tenho ao meu alcance uma trela e a capacidade de controlar através da força física e da intimidação, serão essas as ferramentas que tenderei a usar.

Efectivamente, a trela, tal como um açaime ou um biscoito, são ferramentas que podem ser usadas numa educação que promova a harmonia e segurança no convívio com cães. É da responsabilidade de cada pessoa manter-se, a si, ao seu cão e aos que os rodeiam, em segurança. (Porque é que é nossa a responsabilidade? Simplesmente porque somos nós quem detém conhecimento dos riscos (dos carros na estrada, da possibilidade de os cães se perderem em trilhos e ruas, da fragilidade de algumas pessoas como crianças e idosos). Por isso, sendo responsáveis pela segurança e bem-estar, temos de ter a capacidade de controlar o cão. Tal como com os humanos, a liberdade do cão acaba quando afecta o bem-estar e segurança de outro ser.)

Só que ser o responsável pela segurança de todos, está longe de ser uma boa razão para que alguém se sinta submisso na minha presença. A intenção era boa, mas o resultado não.

Kuya, o dia-a-dia de um cão

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Conviver em segurança e harmonia não é igual (aliás, acredito que seja antagónico) a conviver através de sistemas de poder, assumindo papéis de dominância ou submissão. A responsabilidade e consequente controlo não têm de passar pela submissão. De todo.

Chegou o momento de largarmos a ideia de que um cão treinado/educado é um cão obediente e submisso. Ambicionemos por um cão que nos corresponda – algo muito maior e maravilhoso! A prova de que o controlo que temos sobre o cão, provém de uma boa relação. (Relação esta, construída sob fortes pilares de comunicação e compreensão.)

Por fim, é igualmente importante ter em conta que a nossa liberdade também acaba quando a segurança e o bem-estar do cão são postas em causa. Para sabermos interpretar o bem-estar do cão, é essencial compreen-dermos o que significa ser cão, um livro de cada vez. (Muito obrigada pela aposta neste!)

Margarida Meira

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Este livro está acessível a todos!

Não obstante, se a sua leitura foi útil e ajudou a melhorar a sua relação com cães, considere retribuir.

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Margarida Meira

Com a missão de entender a mente, começou por estudar Psicologia na Universidade de Lisboa, concluindo com um mestrado em Cognição Social. Depois, passando por cursos de Treino e Comportamento Canino, de Terapias Assistidas por Cães e outros temas caninos como Agressividade, Detecção de Odores, Medo, foi-se consolidando uma visão do cão com uma maior compreensão e respeito por este. A gestão de grupos de cães (em canil e ATL) tornou clara a necessidade de estudo contínuo sobre a comunicação canina. O trabalho com a dupla humano-cão intensificou a necessidade de uma abordagem pedagógica, construída com a ajuda de um curso de Formação de Formadores. Nos últimos anos, o padrão de problemáticas colocadas pelos clientes que procuram um treinador, faz entender que mais do que conhecer a espécie canina, é necessário espelhar a espécie humana, para que esta se aperceba, e se eduque, para uma convivência harmoniosa com a primeira.

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