koselleck, reinhart. crítica e crise - uma contribuição à patogênese do mundo burguês

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    R E I TU } { Antonio Celso Alves Perei raVICE~REI'r()Ri\ N i lc ea F re ir e

    E 1~ ) rr () I{ i- \ t - - ) f\ U N 1V I~{ S Ir ) ; \ I:) I ~ ~ I " ) ( )E ST A I ) o 1 ) ( ) R r o I) E JAN l': IR (Jco N S [ : ) _ J ito L~ I.)[Crt) I Z l A LE lo n L ag es L im aC~e rd BornheimIo Ba r bi e ri (Presidente)J or ge Z a ha r ( in m emo ri am )L ea nd ro K on de rP ed ro L uiz Pereira d e S ou za

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    Reinhart Kosel l eck

    Uma co n tr i bu ic a o apatogenesc d o m un do burgues

    THADU(;AO DO ORIGINAL A L EM A OLuc ia n a \ li l la s - Boas Ca s t e lo - B ra n co

    ( O n T R A P o n r o

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    TERCEIRO CAP I TULO

    Pertence a na tu reza da crise que uma decisao esteja pendente masainda nao tenha sido tomada. Tarnbern reside ell) sua naturezaque a decisao a ser to rnada perrnaneca em aberto. Portanto, a in-seguran~a geral de U1113 situacao critica e atravessada pela certezade que , scm que se sa iba ao certo quando Oll como, 0 fim do esta-do critico se apro xim a . A solucao possivel permanece incerta,111a s0 proprio fim, a tr an s fo rr na ca o das circunstancias vigentes................am eacadora , tem ida au desejada .")e certo. A crise invoca a

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    gumas hip6teses pre-adamitas e tinha seu corte, nao na apari-ca o de Cristo, mas no governo pacifico de Augusto, per todo emque a arte real se estendeu a Britania, que, tendo-se tornado des-de entao a nova Senhora da Terra," deveria levar a todos os po-vos a arte da paz. Os matrons transpuseram deliberadamentea obra de salvacao cr is ta para urn passado novo, por e les cria-do) que deveria legi t imar 0 seu Grande Plano Internacional. Emcornpensacao, mostrararn a necessidade e a evidencia do projetoa partir da concepcao de mundo newtoniana. A harmonia mate-matica e mecanicista da natureza imiscuiu -se no dominio da his-t6ria humana atraves da harmonia moral presente na cO!1cep

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    116 REINHAr~T KOSELLECK

    jeto ia e voltava das maos de Weishaupt para as de Knigge , os su-periores da ordem, e acabou resultando em urn elemento inerenteao programa de acao politica." 0 saber hist6rico-filos6fico e 0programa politico fazem parte do rnesmo segredo. A iniciacao aoarcanum da tomada indireta do poder era, ao mesmo tempo, umainiciacao a fi losofia da historia. Os pr6prios iluminados sao os"arquivos da natureza em qu e 0curso da hist6ria ja esta estabele-cido." Como em Rousseau, reina no inicio da historia urn estadode total inocencia; segue-se urn periodo de dominacao e opressao;finalmente, inicia-se a moral que Jesus ja havia ensinado, retoma-da pelas sociedades secretas para superar a era do dual isrno. Alto ebaixo, interior e exterior deixam de ser fenomenos historicos, poiscom 0desenvolvimentosucessivo da moral desaparece toda for-ma de autoridade e, assim, tambern 0 Estado ..19 Para os ilumina-dos, 0curso da hist6ria e ao mesmo tempo _.gracas a sua inicia-< ; a o a realizacao do seu plano secreto, de acordo com 0 qualesperavam eliminar 0 Estado ..0 curso dir igido da acao secreta,que consistia em minar 0Estado por dentro para elirn ina -lo -isto e , a acao politica fo i projetado em Ul11a linha temporal dofuturo, de modo que 0 cumprimento dos designios da hist6riaera, ao mesmo tempo) a garantia da vitoria nao violenta da moral,.da l iberdade e da igualdade, e, portanto, 0cumprimento da mis-sao politica dos macons.

    Desse modo , os i luminados estao em a li an c a c o m urn futu-ro que eles mesmos criaram e que se cumpriria com a mesmacerteza moral com que ag i am . A c on d uc ao i nd ir eta dos eventospoliticos a partir do foro interior moral e 0curso inexorave l dahist6ria ..0verdadeiro nucleo do arcanum, em que se cristali-zam diferentes funcoes proteger a sociedade, integra-la e con-duzi-la ao poder era, portanto, 0 arcanum de uma filosofiada historia.o insondavel plano divino de salvacao transforma-se em urnsegredo mant ido pelos p la n ej ad o re s d a f il os of ia da historia. Aodarem este passo, os iluminados conquistam uma certeza espe-cial: 0 plano de salvacao d iv ina e secularizado na filosofia dahist6ria racional . Mas 0 plano e ao mesmo tempo a filosofia

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    I Ida histor ia , que garante 0curso dos eventos, de agora enl dianteplanejados. A filosofia do progresso fornecia a cer teza DaOreligiosa au racional, mas especificamente hist6rico-filos6ficade que 0 plano politico indireto se real izar ia; inversamente, 0plan ejam en to racio nal e moral determinava 0 progresso da his-toria, 0ato de vontade dos planejadores ja continha a garantiade que 0p la no te ri a e xi to .

    Que significa esta identificacao do plano politico indireto e docurso da hist6ria? Es t a i d e nt if ic a c ao encobre a possibilidade darev olucao , m as) ao rnesm o tem po, a provoca.o foro interior moral , que num primeiro momenta se sepa-rou do Estado, agora 0 considera U111a carca

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    lecida e fixada pela c ons tr u< ;: a o do progresso como 0 verdadei rosentido da historia. A tensao entre Estado e sociedade descarrega-se, aparentemente, no futuro remoto ..Mas, esse adiamento dadecisao do hoje para 0amanha: conferia el a aos i lu m in ad os p ar arealmente ocupar 0Estado. ( ( T el 1 1 os a consciencia tranquila antequalquer repreensao) pois nao somos 0motivo da r e vo lucao ouda decadencia dosEstados e tronos, assim como 0hOlnem de Es-tado nao e a causa da decadencia de seu pais s6 porque a p revesern poder r emedia - I a . "22 A necessidade do planejamento) averi-guada e constatada pela filosofia da historia, os exime de qual -que r responsabilidade politica. 0 iluminado e fil6sofo da historian~ .medida em que permanece politicamente isento de responsa-b~ll~a~e. A revo~u~ao era dissimulada pela consrrucao de um ahistoria progressista, mas 0elemento efetivame11te revoluciona-rio isto e , 0 plano de ocupar e (elilninar" 0Estado ... , 'era fo -mentado por tal construcao. A dissilTIula

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    120 R E I N H A R T KOSELLECKI

    CRfTICA E CRI SE 121

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    tico", Certamente, sabia que Turgot nao t inha a intencao de go-vernar; mas, dizia, possuia a qualidade desagradavel e autoritariade nunca ver urn fa to como tal; emit ia secamente seus juizos, semlevar e m c on ta a s p es so as .V " Referindo-se a se u m e stre , Condor-cet dizia que havia conhecido 0 hornem, mas j ama is 0 indivi-duo.32b Com Turgot, urn censor moral entra no cenar io politico.Tinha, involuntariamente, urn pe fincado no I l umin i smo e outrono Estado. A precariedade desta situacao manifesta -se na dico-tomia que, a s vesperas da Revolucao , 0 teria conduzido a fron-teira do tragico, nao fosse ele ur n moralista.

    Anne- Robert-Jacques Turgot e urn tlpico representante da eli-te burguesa que buscava, de maneira indireta e em aliancacom 0 principe ) absorver 0Estado. Ele era, por assim dizer ,aquele qu e preconizava a fi losofia do progresso33 que correspon-dia a este proposito . No entanto, como t ambem enfrentava res-ponsabilidades politicas, essa filosofia na o 0 impediu de conl-preender claramente a situacao em qlle seu pais se encontrava.

    Nos estudos de juventude, ja t inha sido capaz de reconhecernao so que a ordern estatal absolut ista nao concedia espaco sufi-ciente a nova sociedade, mas que, muito pelo contrario, soberanoe sudito viviam em um a situacao de confli to permanente. "Es s ee 0destino dos hornens quando eles nao encaram religiosamentea justitra eterna como sua lei fundamental") escreve em 1753.E prossegue: "Carninhando entre a opressao e a revol ta , eles seusurpam mutuamente direi tos que nao tern. "34 N a F ra nc a, alter-navam-se medidas absolutistas e de "opressao", de um lado, e"revoltas" que eclodiam seguidamente, de outro. A despeito desua pouca importancia, elas motivaram 0Marques d'Argenson afalar, desde 1731, da arneaca de urna revolucao." A atitude doEstado en) re lacao aos movimentos de oposicao antiestatais foi,desde 0 inicio, p er ce bid a p or Turgot como portadora da ameacade uma guerra civ iL 0sentimento de que havia uma guerra civillatente pertencia a s verdades que guiavam su a ativ id ad e d e in -tendente e de homem de Estado. As medidas que tom a v a ti nh amsempre em vista contornar a arncaca da guerra civil, ou seja, evi-tar a eclosao de uma revolucao. Sua concepc;ao de f utu r o r ep o u-

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    12 2 RE INHART KC) S E LL E C K

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    CR iT ICA E CR ISE 12 3

    s av a n o plano d e u ma m on arqu ia c esarista qu e c on ce de sse e g a-rant isse , a o s c id a da o s l ib e r ai s, u r n espa

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    124 R E I NHAR T KOSELLECK C ]{ j r I C : A E C : I { ] S E 125.,

    os principes devem ter no espiri to continuamente.?" Se0rei naoatendesse a s reivindicacoes dos representantes da tolerancia reli-giosa, a guerra civil seria inevitavel. Por outro lado, ele previne 0rei contra qualquer fraqueza em relacao aos parlamentos feudaise deixa a cadeira de ministro com 0famoso progn6stico de que afalta de determinacao poderia leva-Io, como a Carlos I, ao cada-falso." A ameaca da guerra civil estava por tras de suas adverten-cias: "Todo 0meu desejo, Senhor, e que possais continuar a crerque enxerguei mal e que vos mostrei perigos quimericos, "42

    A historia provou que as previsoes de Turgot nao erarn fan-tasmagorias ..Ele havia compreendido 0estado de crise, que ine-vitavelmente exige uma decisao. Para usar as palavras de JacobBurckhardt, queria decapitar a crise, dentro do arcabouco de urnEstado que tinha a mesma estrutura formal do Estado de Hobbes.Turgot era urn defensor do Absolutismo csclarecido. Queria eli-minar todos os privilegios e instancias especiais dos estamentos e,sem considerar as diferencas religiosas, a lcancar urn Estado poli-tico uniforrne, baseado na igualdade juridica de todos os cida-daos.43 A frente desse Estado estaria urn monarca forte, que tives-se em suas maos 0 poder de decisao politica ..4 Turgot aceitavatotalmente a liberdade de decisao do soberano, como uma maxi-rna pratica, Na condicao de ministro, soube agir de acordo comela) como nos mostra a energica repressao ao levante de Paris e 0rapido desfecho da Guerra das Farinhas en) maio de 1775, contraa obstrucao do Parlamento."

    A concepcao que Turgot tinhado Estado opunha-se comple-tamente a ordem estabelecida. 0 Estado deveria se r urn sistemaordenado com urn soberano a frente, mas em favor lie um a bur-guesia liberal que reclamava a garantia de urna propriedade pri -vada sacralizada e queria praticar 0 livre comercio sob protecao.Apesar do reconhecimento formal do sistema politico absolutis-ta, a nova ordem econornica que Turgot procurava instaurar,para acabar com a divida publica, representava uma total trans-formacao do Estado existente . .Externamente defensor do Estadoabsolutista, estava, internamente, do l ado da sociedade nascen-te." Como fisiocrata e representante da sociedade, exercia a mais

    severa critica ao Estado vigente, de acordo com parametres detuna legalidade supra-esta ta l, natural e moral. COITIO ministrodesse Estado, procurava, atraves de suas medidas fisiocraticas,por urn filTI a crise que provocara sua critica,

    De que modo Turgor tornou consciente a diferenca entre Es-tado e sociedade, que eIe, na condicao de estadista burgues, porassim dizer , corporificava ern si mesmo? Corn que categorias acompreendeu? Sell pensamcnto estava confinado ao dualismom o ra l, q ue correspondia inteiramente a tomada indireta do po-der. Para cornpreender a funcao politica desse dualismo no esta-do enrico q ue ja tin ha sido reconhecido e preciso investigar maisde perto sua concepcao de realidade.

    C01110 born dualista, Turgot so conhece duas forrnas de di-reito: (A forca, se e que podemos chama-la um direito, e a jus-tica.":" C ? S l imites da forca sao os limites que outra forca th e im-poe: 0direito do qua l decorre e ao qual se atern. Este direito, qu eTurgot qualif ica de ateista, permanece urn direito do mais forte ,do poder puro e simples. Pela alternancia de forcas, acrescenta ,pode estabelecer-se urn equilibrio, tarnbern favoravel aos dife-rentes interesses; mas, p ela v io le nc ia , a i nju sti ca r)ode transfer-mar-se em ju stic a, d e 1110doque tal forma de direito se revelainjusta par principio. 0despoti smo que se declara legal e "urnsistema irnoral e forcosamente impio", Ao contrario do di reitoda "equite", pois este se funda na 1110ral, a verdadeira moral co-nhece outros principios . .Considera todos os homens da mesmaforrna.?" Turgot opoe urn direito moral, que e supra-esta ta l ev al id o p ar a todos os homens, independentelnente de sua forca ede seus interesses, a um direito da violencia, que e - COll1 clarasalusoes ao sistema absolut ista -- a expressao juridica da ordempolitica dominante.

    Sob 0mandamento da guerra civil, Hobbes identificou 0 po-der e 0direito, ao conferir validade a forca que daria fim a guerrac iv i l. E s ta unidade se partiu co m Turgot, ernbora el e reconheces-se a ameaca de guerra civil e aceitasse, 11apratica, 0 soberanoabsoluto. Aten l disso, fo i ma is l ange que Locke, sen mest re filo-,sofico, a n d e fi ni r direito e poder como antipodas uru do outro.

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    do Estado absolutista, que se constituiu a partir das guerras civisreligiosas ..Depois que esta ordem ja estava estabelecida, tal alicer-ce passaria a ser interpretado, a exemplo de Turgot, como umalacuna do sistema politico, que deveria ser preenchida de formanatural, racional ou no caso em questao - -pela moral/" Seo principe age contra a moral, comete urn "crime" nao apenasdiante de Deus mas diante do tribunal moral da sociedade.A moral retira 0carater politico da decisao do principe. Nao se

    presta obediencia ao poder que concede protecao, mas ao sobera-no que se submete a s exigencias da moral. Somente a legitimacaomoral transforma 0governante em soberano: "A ilegitimidade deurn abuso do poder nao impede que 0exercicio desse poder, re-duzido a seus justos limites, seja legitimo.I"? A legitimidade do reinao decorre mais de Deus nem esta fundada no pr6prio rei: seupoder s6 pode ser considerado legitime se ele agir dentro dos li-mites que Ihe impoe 0direito baseado na moral. Ha principiosmorais que tern a pretensao de reinar, independentemente da Of-c l em po l it ic a estabelecida, e que reclamam, como a sociedade es -clarecida, reinar de maneira totalmente apolitica. 0 rei absolutis-ta torna-se 0executor de uma legitimidade absolutamente moral,repetia Turgot diante do rei , do conselho de ministros e do Parla-mento, Nao 0rei, mas a legitimidade moral e que deveria reinarnele e atraves dele." Ao dar esta interpretacao moral a s tarefaspoli ticas do rei , Turgot ret ira da autoridade soberana a liberdadede decisao politica - isto e , a soberania absoluta. Mais que isso,el e a co n dena.

    Quando 0 direito se estabelece de forma puramente moral,fora d a e sf er a politica do Estado, e quando a propria sociedadetambem sedistingue do Estado, entao todas as violacoes do direi-to, que nao correspondem a moral , sao atos de pura violencia:"Nasce dai a distincao entre 0 poder e 0direito."?" Mas, se essedireito apolitico esta em vigor, a decisao politica do soberanoperde seu carater juridico. A fonte absolutista do direito, a sededa soberania, torna-se 0dorninio da pura violencia, Se esta vio-lencia agir conforme a moral, se for regida por criterios externos,extra e suprapolit icos, sua legitimidade e de natureza moral, e

    12 6 CR 1T ICA E CR ISE 12 7I o direito da equite e 0 direito r eiv in dic ad o p el a sociedade, ao

    qual se opoe 0direito reinante do Estado absolutista _ n _ a arbi-trariedade, a tirania."

    Como se relacionam as forrnas juridicas polarizadas porTurgot? Esta relacao fica clara quando direito moral e direitopolit ico cstao em conflito; urn caso que, en) seu tempo, Lockenao apreciou ao opor urn direito social e outro politico;" m asque) por causa do conflito vigente no Estado absolutista, cer-tamente se tornava um problema, isto e ) urn sintoma da criseque se armava.

    Turgot observa de modo racionalista, a sernelhanca de Hobbes,que em urn e spa< ;o juridicamente ordenado e impossivel have r umconflito entre 0 clever moral e as ordens soberanas: (0 cleverde desobedecer, por urn lado, e 0 direito de ordenar, por outro,sao uma contradicao em termos.""' 0 clevermoral de desobedecere 0 direito politico de comandar nao podern entrar em contradi-cao, A questao controversa ...0que, do POl1tO de vista dos cida-daos, e prejudicial a sociedade OU, de acordo corn a vontade dosoberano, util ao Estado - mostra onde reside a verdadeira fontedo direito. ({O direi to nao seopoe mais ao direito do que a v e rd a dea verdade .."52 0criteria para definir justica e injustica nao res idemais no poder soberano dos principes, mas na consciencia moraldos homens .."Tudo 0que fere a sociedade esta sujeito ao t r ibunalda consciencia.?" A verdadeira fante do direito e a instancia mo-rat a consciencia, e nao 0 poder estabelecido enquanto tal . 54 Aodeparar com uma s i tuacao diferente, Turgot inverte a concepcaoHobbesiana.

    Turgot nao somente elirninou os resquicios feudais e esta-mentais do Estado absolutista, mas , ao mesrno tem po CO In aexperiencia da legitimidade m oral m inou 0s is tema especif ica-mente polit ico desse mesmo Estado. No Estado absolutis ta a de-. )cisao politica do prlncipe, por si so, tinha validade de lei; 0 so-berano havia sido deliberadamente excluido de toda instanciamoral, para que se estabelecesse, de maneira puramente poli t ica ,uma ordem que repousava na concentracao de poder, que 0 re-presentante do Estado detinha em suas maos." Este era 0alicerce

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    nao mais polit ica, pois nao decorre mais do poder de decisao 50-berano. Por outro lado, se este poder e utilizado contra as leis damoral em vigor, como un1a decisao soberana do senhor, ele per-manece politico, no sentido tradicionaI; mas, por causa de suanatureza nova e da nova compreensao dorninante, ele e ilegitimo,pura violencia. Do ponto de vista moral, e imoral."

    Ao invocar a consciencia humana e postular a subordinacaoda politica a moral, Turgot inverte 0fundamento do Estado ab-solutista, pois sua posicao explicita 0segredo da polarizacao en-tre 0direito moral e 0direito da violencia. Mas, aparenternente,ele nao questiona a estrutura de poder externa do Estado. A s"leis" devem valer por si mesmas . .A legitimidade moral e , parassim dizer, 0esqueleto politico invisivel sobre 0qual a socicda-de se ergueu. Como nao pode, por si mesma, atualizar uma in-fluencia politica, a legitimidade da moral e imposta ao Estadoabsolutista como fonte de sua verdadeira legitimacao. 0poderdo principe e desti tuido de seu carater representat ivo e sobe-rano) mas isso se faz sem que 0 poder, enquanto funcao, sejaatingido, pois deve tornar-se uma funcao da sociedade.?' Dire-tamente apolitica, a sociedade quer reinar indiretamente, pelamoralizacao da politica.

    Ao tracar uma divisao dualista entre a moral e a polit ica, Tur-got deixa delado uma questao concreta: como, e a partir de onde,o direi to moral e 0poder podem coincidir? Ou seja, qual a formapolitica de uma ordem moral do Estado? Ao deixa-la de lado, fazcom que ela seja ignorada enquanto decisao politica. E le quer queo rei reine em nome da moral, quer dizer, da sociedade; mas naodiz, nem precisa dizer, 0que, do ponto de vista polit ico, a socie-dade quer ditar em nome do rei) pois a sociedade e puramentemoral. A questao politica sobre 0 detentor da soberania, que jahavia sido resolvida moralmente, e deixada de lado. Cornpreen-de-se, entao, por que La Harpe pode dizer a respeito de Turgot:"Ele foi 0primeiro entre nos a transformar os atos da autoridadesoberana em obras de raciocinio e persuasao.T" Ao diferenciarintelectualmente a questao concreta ok quem reina realmente emnome da moral? -- Turgot dissimula 0 poli t icum propriamente

    dito, presente nas reivindicacoes civis. 0verdadeiro detentor dasoberania perrnanece anonimo.

    Contornando a ausencia do Estado, ganharam significado po-litico todos os conceitos a partir dos quais a nova elite pensava.o segredo politico do Iluminismo consistia no fato de que todosos conceitos, de maneira analoga a tomada indireta do poder, s6eram opacamente politicos. No anonimato politico da razao, damoral, da natureza etc . residiam uma peculiaridade e uma efica-cia politicas, Ser apolitico e seu polu i cum.

    A s ob e ra ni a t am b e rn se dissolve numa serie de conceitos extrae supra-estatais, qu e nao se concretizarn: na 1110ra l ,na conscien-c ia ) n o povo) na natureza e assim po r diante. "Nunca se pode di-zer que eles (os principes) detern 0direito de ordenar e julgar demodo geral, sem nenhurna excecao .. . e)a partir do mornento emque se supoe injusta uma ordern, tem-se a exce'rao.63 A autorida-de politica continua nas JUaOS do principe, mas nao e ele quemdecide; decide-sen 0que e justa ou injusto. Ainda que 0rei sem-pre decida, "decide-se" quando ele nao deve decidir . E a cons-ciencia que define 0 caso de excecao. Nao se expressa 0 pontode convergencia entre as leis da moral, eternamente validas evocacionadas a governar a consciencia, e os portadores social-mente concretes desta consciencia. A questao politica propria-mente relevante se evapora em urn "se" an6nimo. Aparentemen-te, Turgot permanece no terreno do Estado; ao mesmo tempo,suprime a estrutura politica, sem dize-lo,

    A dicotomia entre moral e politica significa e ai reside aforca ideologica desta polar izacao privar 0Estado absolutistade seus fundamentos polit icos e, ao mesmo tempo, dissimularesta conseqiiencia. A fidelidade ao Estado e 0 patriotismo sao,igualmente, critica e renegacao da ordem estabelecida.

    N a pratica, tal ambivalencia se manifesta no fato de que os re-presentantes da sociedade civil podiam moditicar os niveis da ar-gumentacao , conforme suas chances de eficacia, sem renunciar a svantagens de uma elaboracao dualista dos conceitos. Em Turgot,pode-se observar esse processo ate mesmo na formulacao das fra-ses. Diante do soberano, Turgot apela ao principe e ao homem,

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    130 R E I N H A R r r KOSELLECK CR t 1~ J CA E C R I S E 131

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    para que este 0 ajude a alcancar as diversas mctas da sociedade.o dualismo do homem e do principe, expressao estrita do grandedualismo da moral e da politica, era de uma forca revolucionariaextrema. Tal contraposicao j a aparece, e certo, nas origens doAbsolutismo e foi utilizada por te6ricos cat6licos do Estado parasubmeter, em virtude de sua condicao de homens , os principessoberanos a potestas i n d i rec ta da Santa S e .64 Mas , durante 0apo-geu do Absolutisrno, so se enlpregava essa contraposicao para ad-vertir 0 principe de seus deveres rnorais, s empre sob a condicaode que 0dorninio da politica necessariamente prevalecia sobre 0imperio da moral.f A contraposicao do hornern e do principe eretomada pela sociedade civil , em cujas maos se transforma emuma das armas ideo16gicas mais afiadas e eficazes." Isto se mos-tra no procedimento de Turgot nos casas seguintes.

    Como pioneiro intransigente da tolerancia, Turgot havia pro-vocado imenso desagrado na Corte de Luis XVI . EITI 1775~ quan-do ja era ministro, requereu urn edito d e t ol e ran c ia . Um olharsobre 0mapa-rnundi mostra um grande numero de religiocs, es-creveu ao rei, e cada Ulna delas acredita estar de posse da verdadeunica. No entanto, acrescenta, tambem e certo que a fe religiosa serelaciona ao alern, que e uma questao de consciencia e so diz res-peito a.ohomem privado, no isolamento de sua alma. Colocar istoa prova e , na verdade, uma perda de tempo, mas adotar 0pontode vista contrario 0 da intolerancia --- leva sempre ao derra-mamento de sangue. E m materia de re l ig iao, nao se deve jamaissubordinar 0homem a autoridade politica do principe. Para con-veneer 0 rei) Turgot contrapoe 0homem e 0 principe no sobera-no. "Cegueira deploravel de urn principe, alias bem-intenciona-do, mas que nao soube distinguir seus deveres de 1101nen1e seusdeveres de prlncipc"? Urn principe catolico, adrnite Turgot, estaindubitavelmente submetido a Igreja , "porern como homern, na scoisas que concernem a sua religiao, sua salvacao pessoal. ComoPrincipe, ele e independente do poder eclesiastico." A Igreja sopode dar ordens ao principe na condicao de homem: 0principenao the csta subordinado. Enquanto representante do "homem",Turgot apela ao "principc" no prtncipe, porque 0 homem no

    principe nao pertence aos seus, pais e cat6lico e intolerante."Alem disso, Turgot tambern apela ao soberano capaz de tomardecisoes. COfl10 principe, ele esta acima dos partidos religiosos e,deste modo, permanece dentro da esfera do Estado.

    Em virtude da autoridade do principe, a tolerancia religiosaseria 0dominio de uma neutralidade dentro do Estado e, nessesentido, 0ult imo sintoma de que 0Estado pas fim a guerra civilreligiosa.??

    Ao reclamar protecao contra a pcrseguicao religiosa dentro dodominio do Estado, Turgot apela ao prlncipe no principe. No en-tanto, como destaca expressamente em seu memoranda sobre atolerancia religiosa, se 0ponto de referencia da consciencia nao emais 0alem (com su a legalidade eterna), mas sim a justica tem-poral e 0proprio Estado (com sua estrutura social e politica), aenfase da argumentacao se altera subitamente. 0homem apo-litico, que 0Estado dcve tolerar, se transforma despercebidamen-te em uma autoridade humanitaria situada fora do ambito deUl 11atolerancia eclesiastico-religiosa, ou seja, no ambito das rei-vindicacoes politicas, Mas, por causa da concepcao dualista, eleexpressa esta exigencia politica com 0pathos da dignidade moral,de modo que 0acento politico continua encoberto pela generali-dade das reivindicacoes humanas. 0 representante dos homensnao apela mais ao "principe ' no principe mas ao homern. Ao to-mar posse do cargo de ministro, Turgot escreve ao rei: "VossaMajestade 1 1 a de lembrar que ... e a v6s pessoalmente, ao homemhonesto, ao hornem justo e bOll, mais do que ao Rei, que me en-trego. "700apelo a humanidade ' sempre urn apelo moral . .. .questiona a soberania absoluta, aparentemente, sem toca-la, poisnao privilegia 0 principe (politico) mas 0 homem (moral) ..Nacondicao de principe absoluto, 0principe podia ser tolerante ouintolerante, sem que sua decisao violasse sua soberania, pois a 50-berania manifestava-se precisamente na decisao. Na condicao dehomem, 0 principe estava previamente determinado. S6 podiaser uma coisa, au seja, humano, executor da humanidade. Se suadecisao nao fosse coerente com 0sentimento dos representantesda humanidade, 0 principe podia recorrer a sua qualidade de

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    principe, mas, nesse caso, diante do fo rum da humanidade, essadecisao nao era mais a de urn principe. E ra a de urn despota ou

    "d da i 71irano; do ponto de vista humano, era consi era a mumana,Se, contudo, os principes insistissem em sua soberania absolu-

    ta, cr iadora de direito, nao so confirmavam a n eg ac ao d a posicaomoral que lhes era atribuida: tornavam-se uma macu la no mun-do moral da sociedade. A concepcao de mundo dualista, associa-da a tomada indireta do poder, repercute ate no contorno de fra-ses insignificantes. Ela era uma f or ca i nv i si v el , corrosiva, lentamas letal , pela qual os burgueses consciente ou inconscien-temente destruiam 0 sistema absolutista desde dentro. Nomomenta em que 0principe, em sua qualidade de representantedo Estado, foi reduzido it categoria moral de hornem, a dialeticainerente ao dualismo forcosamente transformava esta categoriamoral em uma construcao politica, rnesmo que nao fosse reco-

    /. .nhecida como tal. A funcao politica, que 0 prIncIpe exercra na.. "h " 72condicao de principe, passava forcosamente para 0 ornem :Com a introducao da legitimidade moral) 0 direito de decisao,

    que ate entao cabia apenas ao soberano, estendeu-se potencial-mente a todos os representantes da sociedade, a todos os homens.Que este direito, em sua generalidade, tenha permanec ido politi-camente anonirno foi, a principio, a resposta, determinada pelasituacao do momento, ao sistema absolutista: nele, 0 poder dedecisao estava de tal maneira concentrado nas maos do monarca,que qualquer tentativa de moralizar esta instancia logo adquiriaurn significado politico, oposicionista, e em p ri n ci pi o r ev o lu c io -nario." 0mandamento hist6rico da situacao de par t ida consti-tuiu 0 anonimato polit ico e produziu, pelo dua l i smo moral CO[-respondente a situacao, uma resposta que apontava para alerndesta situacao, questionando 0Estado de maneira indireta e, parisso, ainda mais fundamental.

    U ma v ez estabelecido em sua posicao fora do Es tado , 0 cida-dao encontraria suas armas mais eficazes . A to ta li da de m o ra l e apretensao de exclusividade, que dela resulta, sao a resposta espe-ciflca ao sistema absolutista, resposta que conduziu a sua derru-bada e, posteriorrnente, determinou a v i d a po l it ic a .

    Aoexaminar e entao apelar para as le is d a m o ra l, da natureza eda razao, 0cidadao adotava Ulna posicao intelectual absoluta, in-v io la ve l e imutavel;" posicao qu e assegurava ao mundo social as .rnesmas quaIidades que 0principe absoluto reivindicava para si110dominio da politica. E verdadeiro 0 que nao tolera contradi-cao." Os representantes das posicoes morais certamente nao ternpoder politico, 111a5, ern cOlnpensa\30) adquirern uma forca cujocara ter exclusivo torna irresistiveL E n1 relacao a s leis do mundomora l , a re alid ad e so cia l e polit ica na o s6 e imperfeita, limitada evar iavel , 111aS irnoral, contraria a natureza e ir racional . A s ituacaode par t ida, inicialrnente a bstra ta e apolitica, permitiu qu e se ata-casse d e m a ne ir a radical e total U111a re alid ad e q ue p re cisa va , e mto d o c as o, ser reforrnada.

    P oliticam ente n eutra , a e xig en cia d e um a moral etcrna e taototal que as acoes e atitudes do r nundo politico, uma vez submeti-

    .das ao juizo moral, nao resistem e se transformam em injusticas.A totalidade moral destitui 0direito de existir de todos osque naoque iram subm ete r- se a ela. Como fornlulou Dupont, cornpa-nheiro de Turgot, UIU governo irnoral e "a parte adversa de cadaU11 1 " , 75 usando urn t opos median te 0 qua l a sociedade burguesacriticava 0gover110, 0 "partido contra todos". 0 ponto de partidamo ra l a cu sa v a a autoridade estabelecida de constituir um partido,lIm grupo d e pressao con1 "interesses par ticularcs" - " .nisso resi-di a a id eia in ic ia l d a critica que a sociedade e xe rc ia c o nt ra 0 de -tentor da autoridade do Estado }que nao tern lugar no interiorda totalidade moral da sociedade. 0governo torna -se 0 partidocontra todos, isto e ) u rn partid o qu e p e r d e f i n it i o n cm nao pode se rpart ido. Desde 0ponto de par t ida da critica, 0Estado estabele-c id o e sta condenado e aniqui lado. Assirn, extraiu-se a corisequen-c i a , apa re l l te n l en te e vid en te , d o sistema absolutista: diante dosveredictos d a c r it ic a nive ladora , 0pr incipc, na condicao de repre-sen ta nte d e todos, torna-se 0"partido contra todos",o Absolut ixruo p o li ti co p ro d uz iu , de rnaneira d ia le ti ca , u rnadversario totalmente moral, pelo qua l se viu moralmente ""eto ta lm en te M questionado. S e a autoridade estabelecida, s ituadan o s a n ti po d as da m o ra l, e ra su bm etid a a ju lg am e nto , entao 0E s-

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    tado convertia-se em um espac;o de ex ig e n c ia s totais, na o de cara-ter obrigat6rio pessoal, mas de natureza moraL A moralizacaointencional da pol iti ca no seculo XVII I significava d e f ac to umapolitizacao total do mundo do espirito, sem, no entanto, fazercom qlle fosse apreciada enquanto tal.

    Sob a tensao explicita entre moral e pol iti ca agravava-se, la-tente, a crise politica: a questao era se 0Estado continuaria a rei-nar ou, ao contrario, seria a vez do "espirito", da sociedade ..Nessasituacao, conturbada pela criti ca, Turgot se pas a t rabalhar . Mas)quando a critica moral, corn sua pretensao de exercer a autorida-de, entra ativarnente na cena politica, quando urn hornem dessamoral, aliado ao soberano, luta por uma ordem nova, 0rei se in-t imida.T O moralismo rigoroso de Turgot alimentou as esperan-cas dos iluministas," mas tambern levou Galiani a profetizar suaqueda. Turgot part ira em breve, ou tera que partir, escreve emsetembro de 1774 ,79 "e de Ulna vez po r todas nos redimiremos doerro de ter desejado conferir urn l uga r como 0dele, numa mo-narquia como a vossa, a urn homern muito vi rtuoso e rnuito pon-derado". Turgot teve de partir ..Mas, enquanto exerceu 0cargo deministro, com seu moralismo desagradavel e rigoroso, a questaoessencial, ate entao oculta, veio a tona: regiam, de fato, as leis dasociedade ou do rei absolutista que enfrentava um confli to, semgrande importancia, com 0Parlamentor" 0 que estava ern ques-tao nao era apenas a calamidade economica que dever ia ser re -mediada para evitar a guerra civil , mas a reforma. A salvacaomoralmente legitimada d a f al en ci a f in an ce ir a s ig ni fi ca va , em ul -tima analise, a supressao da estrutura pol itica do Estado exis-tente. 0Parlamento feudal e a camarilha da Corte certamente sa-biam disso, ao menos em parte) e 0 rei tambem deve ter se dadoconta , quando se desvencilhou da tutela ITIOra] de Turgor" e co-locou -se do lado do Parlamento. A crise se agravou.

    Com 0 minister io de Turgor, fracassou a unica tentat iva desatisfazer as exigencias da sociedade de uma maneira indireta ,isto e, formalmente, no terreno do Estado absoluti sta e em alian-ca com 0 rei." Desde a sua dernissao, que coinc id iu co m os diasda Declaracao de Independencia dos Estados Unidos -- - que a

    franco-rnaconaria em expansao se encarregou de propagar pelaFranc; :a83. -, consolidavam-se cada v ez m ais , sob as exigenciaseconornicas, as postulados politicos da sociedade e seu desejo deter uma "constituicao". A tensao, que Turgot ainda procurava re-solver indiretamente, agravou-se a ponto de tornar-se urn confli-to direto ent re a burguesia e 0Estado absolutista, e conduziu, porf im, a guerra civil .A guerra civil , este f im inesperado do Seculo das Luzes , hamuito tempo estava justificada. A forca explosiva revolucionariainerente ao d ua lism o m o ra l evidencia-se precisamente no fato dejustificar a guerra civil , nao de maneira aberta , m as indireta, e porisso mesmo muito mais segura. Ate mesmo Turgot n_, que, naqualidade de homem de Estado pratico, procurou evita-la- - aca-baria assumindo em relacao a guerra civil uma posicao corres-pondente a sua condicao de burgues ft l6sofo.

    Para 0Absolutismo, a subordinacao da moral a politica forao principio ordenador que encerrara e continuara a impedir aguerra civil, mas para Turgot este mesmo principio tornara-se 0sinal que anunciava a guerra civil .

    Se 0 soberano viola as leis da consciencia moral - os direi-tos da humanidade ,de agora em diante deve-se "prepararuma rubrica para despojar, por sua vez, a autoridade Iegitima" ..4A submissao da consciencia ao mandamento politico nao signifi-cava mais para Turgot, como para Hobbes, evitar a guerra civil ,mas, justo ao contrario, provoca-la: "Opor-se a voz da conscien-cia e sempre ser injusto, e sempre justificar a revolta e, por conse-guinte, sempre dar margem aos piores disturbios.?" Ao recorrera consciencia que v incu l a do mesmo modo 0homem e 0princi-pe, Turgot articula uma dupla constatacao: agir contra a VO~ daconsciencia, ser moralmente injusto, e justi ficar a guerra civil e,ao mesmo tempo, provoca-la. Ambas as conclusoes, que Turgotestende da consciencia a situacao politica, dirigem-se ao sobera-110, mas tambern prestam contas a s exigencias crescentes da so-ciedade. Negligenciar a sociedade que invoca a moral ja haviaconduzido uma vezao confl ito e a disturbios, pondo 0Estado emperigo. T - ur go t, q ue tinha como poucos uma visao perspicaz da

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    estrutura social, alegava que 0Estado nao podia ignorar 0peso dasociedade sem colocar a simesmo em questao. M as, an tes - pe lainvocacao da consciencia isto s ignificava legitimar mora lmen-te a revolta que eclodisse quando 0soberano nao se submetesse aconsciencia, Ser imoral nao so e "sempre injusto"; a imoralidadejustifica a rebeliao, Nesta equacao , Turgot, que como funcionariodo Estado procurou evitar a guerra civil, mostra-se u rn f i1 6 so forevolucionario . .0 dualismo da moral e da pol it ica assegurava, aoburgues, total inocencia no caso de 0 Es tado nao s e s u bm e te r amoral, irrompendo "por conseguinte" a revolta."

    Pouco importa quando 0detentor d a c o n sc ie n ci a se rebelara:quando 0fizer, estara e rn s eu direito. A i no ce nc ia d a conscienciapura e transferida para a acao e esta agora violenta e assimjustificada." Em caso de guerra, os papeis do culpado e do ino-cente ja estao distribuidos. Mas , a partir do momento em que 0soberano nao se submete a moral, j a se trata potencialmente deurn caso de guerra.o novo ponto de partida moral opoe-se tao fundamental rnen-te ao sistema absolutista, que a legitimacao politica do E stado -isto e, a subordinacao da moral a decisao soberana -- t ransfor -ma-se na legitimacao da r evo lucao . Por outro l ado , na medidaem que a autoridade soberana invoca seu direito de decidir liv re esoberanamente, eia incita, por si mesma, a guerra c i vi l. A autori-dade soberana", diz Holbach, "e tao-somente 0combate de urns6 contra 0povo, tao logo 0monarca ultrapasse as limites que avontade do povo th e prescreve ..88 Do ponto de vista da totalidademoral e social, a soberania absolutista j a e , em si mesma, a guerracivil . As id eia s d e Turgot s6 se distinguem da fo rm u la ca o r ad ic alde Holbach em grau, mas nao em principio. 0 que Holbach ex~pressa de maneira franca e direta ou seja, que a autoridade domonarca enquan to tal ja e a guerra (civ il) T u rgot a firm a demaneira indireta, ao legitimar moralmente a revol ta contra essaautoridade ..9

    Turgot nao quer que esta just ificacao indireta se torne direta-mente politica: era a favor da r evo lucao , concebida porem comouma transforrnacao progressista do regime e sta be le cid o. U m a re -

    v olu ca o d irig id a d e c irn a. Contudo, ele abr aca a vertente do s con-c e it ~ s d u a, li ~ ta s q u e l eg i ti m a v am morahnente enquanto suble-v a c ra? politica a revolucao qu e procurava d ir ig ir , i m pe di nd oprecls(~nlellte a sub l evac ;ao politica. Deste modo, a crise, que sean~I~cla. no, confronto da moral e da polit ica, reside na funcaopol it ica indireta do dualisrno m ora l que a sociedade desenvolveuno in te rio r d o E s ta d o a b so lu ti st a. E la se anuncia no confrontoagudo da 11~oraIe da polit ica, e se agrava de maneira especificap ar tal d ua lism o. A le rn da critica rad ica l e d a ocupacao indireta~ o .~stad~) a.ela v in cu la da , a fo rm a ca o d ua lis ta de conceitos pos-sibilitou indiretamente a l eg iti rn ac ao d a r ev o lu < ra o . Turgot reco-n he ce u a a rn ea ca d a g ue rra c iv il q ue se a pro xim a va , mas tarnberna le git~ nl0 u i nd ire ta m en to . E le e UITI caso tipico e rn qu e a forcaexplosiva, m as oculta , da tecn ica d e pensar iluminista aparececomo prenuncio de uma decisao que esta par acontecer.

    IIIo s ec ul o d a c riti ca e d o p ro gre ss o moral n ao conheceu a "crise"c om o u rn c on ce ito central. Al ia s , comprcende-se i ss o , e rn virtudeda d ia le tic a in ere nte a o p en sa m en to antitet ico que servia paraencobrir a decisao ex ig ida por essa estrutura de pensamento.Mesmo quando a p ole rn ic a c ri tic a, d irig id a contra 0 Estado,transforrnuu-se em r ei v in d ic a co e s proferidas conscientementono d om in io d a po litica , o u quando um a decisao politica ja pare-ci a inexoravel ao cidadao, a concepcao da realidade (atraves daqual se experimentava a tensao ) permanecia confinada ao dua-l ism o. T ra ta- se d a situ acao em qu e, com o diz ia L . S . Mercier;" avoz dos fil6sofos hav ia perdido seu poder, E m outras palavras, osc idadaos se deram conta de qu e 0poder do espirito, 0 poder damoral, h av ia c resc ido d e ta l fo rm a qu e dev eria ser po sto a provano campo aberto da politica . As s im , 0caminho do futuro nao eramais , somente, 0do progresso infinito, mas continha a questaoaberta de u m a d ec is ao p ol iti ca . Mostraremos agora como os ci-dadaos reagiram a esta questao e) nessa s it ua c ao c ri ti ca , trans-f or rn ar am e p ol iti za ra m 0 dua l i smo moraL Em outras palavras,

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    mostraremos como, por urn lado, viram a crise mas, por Dutro,continuaram a entende-la a partir do dualismo moral.

    Para os representantes intelectuais da nova sociedade, a reali -dade da crise c a tran sfe re ncia , pa ra a po litic a, d e u ma lu ta deforcas supostamente polares. A jurisdicao moral determinava aconsciencia politica nascente. A c ri se a gr av o u- se d es de qlle a dia-letica do dualismo, com suas divisoes, passou a determinar a vidapolitica. A decisao politica torna -s e 0resultado do julgamento deurn processo moral. Isto tambem agravou a crise moralmente;seu carater polit ico, no entanto, permanecell encoberto. Velaresta dissimulacao ainda e a funcao hist6rica da f i losofia burguesada historia. A hist6ria e experimentada como f il o s of ia d a hist6ria.

    A filosofia da hist6ria, mediante a qual 0burgues antecipa 0fim da crise, garantia que a decisao esperada expressava urn juizomoral, pois "a razao pratica reinante", como dizia Kant," era ca-paz de fornecer a interpretacao "autentica" da hist6ria --- umahist6ria como processo moralmente legal. Assim, a gue r ra civilfoi invocada na medida em que seu desenlace j a estava fixado.A crise, como crise politica, permanecia encobe r t a . Mostrar co-mo isso se deu e a ultima tarefa desta investigacao.

    Rousseau foi 0primeiro a dirigir sua critica nao somente con-tra 0Estado estabelecido, m as contra a sociedade qu e criticava 0Estado. Foi tambem 0primeiro a conceber as relacoes entre am-bos sob 0 conceito de crise. "Confiais na ordem atual da socie-dade") escreveu em 1762 no Emile , "sern pensar que essa ordernesta sujeita a revolucoes inevitaveis e que vas e impossivel prever

    III 1 d /' .. f i 1 h "91 Au prev en lf aque a que po era concerrur a V OS SOS1 _ o s . - 0[ -dem social esta sujeita a revolucoes inevitaveis. Alega-se quee impossivel preve-las ou irnpedi-las, mas ele , Rousseau, acha"impossivel que as grandes monarquias da Europa durem muitotempo" .94 A revolucao prognosticada por Rousseau derrubara aordem estabelecida. Os Estados nao se ext inguirao de forma apo-litica, transformados progressivamente por uma revolucao feliz,que Voltaire lamentava tanto nao poder testemunhar;" pelo con-trario, com a revolucao se iniciara 0 estado de crise. "Aproxi-mamo-nos do estado de crise e do seculo das revolucoes."?'

    CR IT ICA E CR I S E 139

    Em seu progn6stico da revolucao, Rous seau inclui 0conceitodecisivo de {(crise"..Distingue-se, assim, dos filosofos iluministasanteriores a ele, que tinham familiaridade com a "revolucao" e aprofetizavam com frequencia, mas mantinham encoberto 0 senp oli t icum - a guerra civil , pois a situavam no interior de suafe no progresso e baseavam sen conteudo politico na antitese damoral e do despotismo." Ao reconhecer a crise, Rousseau reve la -se urn pensador politico." A diferenca dos outros, nao ansiavautopicamente pela revolucao nem se limitava a pressentir suaaproximacao. Com sua chegada, esperava urn estado de insegu-ra nca e incerteza qu e se abateria sobre t odos oshomens, uma v ezque a ordem estabelecida estivesse derrubada: Quem sabera di-zer-vos em que vos transformareis entaoi""? A crise e reconheci-da..A revo lucao que Rousseau tern diante dos olhos e , ao mesmotempo, uma revolucao do Estado e da sociedade que nele vive;com 0advento da revolucao nao ocorrera somente uma grandemudanca";"" ela nao sera uma mera transformacao que conduzi-ra os interesses sociais a vitoria: a crise e a caracteristica decisivaque distingue a revolucao profetizada por Rousseau e uma revo-lucao progressista. 0 seculo seguinte trara inumeras revolucoes,o estado de crise persistira,

    Pelo que contern de progn6stico e diagn6stico, a expressao"crise" e urn indicador da nova consciencia. Mesmo se apreen-dessem os fatos com a perspicacia de D'Argenson ou Turgot, 101as anunciadores do progresso, confinados a concepcao politicada tomada indireta do poder, nao podiam enxergar 0fenornenoda crise enquanto tal. Toda crise escapa ao planejamento, aocontrole racional sustentado pela fe no progresso. 0 termo naoaparece nas publicacoes dos progressistas, mas nos filosofos quetern uma concepcao ciclica da hist6ria: em Rousseau, que viafechar-se com 0"despotismo' 0circulo que conduzira a urn no-voestado de natureza.!" e em Diderot, 0 amigo detestadovquedizia que) ao longo da vida, 0homem suportava 1 :1 ma guerra ci-vil no seu foro interior.l'" A representacao ciclica da hist6ria per-mitia conceber urn ponto de virada, uma peripecia, para a qualnao havia Ingar em urn progresso a que se visava. Mas esta con-

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    dicao, a principio formal, nao basta para esclarecer 0conceito decrise em Rousseau ..E preciso determinar 0papel historico qu eRousseau assumiu no processo conduzido ate entao.

    Enquanto genebrino, estrangeiro no Estado frances , e en-quanta pequeno-burgues, estrangeiro a boa sociedade, Rousseau,este primeiro democrata, era obrigado a ver sob nova luz 0pro-cesso fervoroso entre Estado e sociedade, "Os que querem tratarseparadamente a politica e a moral jamais compreenderao nadade nenhuma das duas."!?' Rousseau, que sempre temeu a revolu-cao que via aproximar-se, foi tambern 0primeiro a denunciar 0dualismo secular como ficcao, Contudo, ao querer reunir a mo-ral esclarecida e 0Estado, preparou como nenhum outro 0 ca-minho para a revolucao, Tambem ele permaneceu enredado nadialetica do Iluminismo, que, na medida em qu e avancrava noprocesso de desmascararnento, obscurecia 0seu pr6prio sentidopolitico. A despeito de toda perspicacia politica que demonstrou,Rousseau sucumbiu a ficcao ut6pica que os iluministas persegui-ram em seu estagio hipocrita.

    Rousseau fez a simesmo a pergunta sobre a fo rm a d e g ov ern o"pela qual cada urn esta unido a todos e,contudo, s6 obedece a simesmo, permanecendo deste modo tao l ivre quanta antes .105Ou seja, concebeu a constituicao em que a nova sociedade ocupao poder do Estado e, todavia, permanece 0que ela e . A solucaodeste paradoxo, que secompreende a partir desua genese histori-ca, e oferecida por Rousseau em seu Con t ra t o s o ci a l. .Membro darepublica das letras de Bayle , Rousseau imaginava que a contradi-< ; : 3 0 exasperadora entre sudito e homem so poder ia ser superadapor meio da submissao de todos a cada urn e de cada urn a todos.Em sua simplicidade, Rousseau levou a serio 0que os primeirosfilosofos iluministas na o ousaram fazer . A r ep ub li ca d as l etr as ,em que cada urn e 0soberano de todos, ocupa 0Estado. l ' " Desdeentao, a sociedade comes:a a processar-se a simesma ao perseguirurn dever-ser ir real izavel , N o "rnilagre" em que n in gu em re in a,mas todos obedecem e sao livresao mesrno ternpo.!" a revolucaoe soberana, Toda instancia representativa deixa de existir, masem compensacao a sociedade, entendida como nacao , ga nha 0

    direito de mudar sua Constituicao e suas leis quando, como eonde quiser.!" 0 conhecimento de Bay l e caiu ern esquecimento,mas sua republ ica esta prestes a veneer. Ela se real iza de maneirainsuspeitada: na revolucao permanente,

    Sem perceber , Rousseau desencadeou a revolucao permanen-te em busca de urn verdadeiro Estado. Buscava a unidade da mo-ral e da politica, mas acabou encontrando 0Estado total, a revo-lucao perrnanente sob 0manto da legal idade. 0 passo decisivo,d ad o po r Rousseau, c on si sti u e m aplicar a vontade soberana (queo s i lum in i st a s antes d e le h a vi ar n excluido d a l eg a li da d e geral) aa uto no m ia m o ra l da sociedade. E le reivindica para a sociedade avontade una e incondicional, entao atribuida a decisao soberanado soberano absoluto. 0 resul tado disto e a volonte generale, av o nta de g era l absoluta, que estabelece, para si mesma, a l ei . 0so-b e ra n o v i si v el , 0detentor d e u rn poder condenado a corrupcao, edestronado; 111a sa vontade geral, enquanto principio de decisaosoberana, e preservada e transferida para uma sociedade que, en-quanta tal , n ao d isp oe dessa von tade . Pois a soma de vontadesin div id ua is n ao p ro du z Ulna vontade geral , assim como a somad e in teresse s particu lares n ao resu lta ern u rn interesse geral . ' ? "A vontade geral e a ernanacao de UI11a totalidade, a expressao deU 1 1 1 a nacao q u e s o se constitui enquanto tal pela propria vontadcgeral . 0 paradoxo 16gico de Hobbes, segundo 0qual 0Estado re-

    . pousa ern urn con trato m as continua a existir como construcaoautonoma, pode re aliza r- se p oliticam en te n a m ed id a em qu e re-t irou a vontade soberana do soberano, representante do Estado.o paradoxo de R o us se au , p or er n, segundo 0 qual a nacao ternum a v on ta de g era l qu e f az d e la Ul11anacao , n ao p od e re al iz ar- sepol it icamente de m a ne ira d ire ta : libera uma vontade que, aprin cipio , nao ten ) urn executor. Como nao pode ser delegadaou representada, 110 a von tade soberana desaparece no invisivel.A id en tid ad e d o Estado e da sociedade, da instancia de decisaosoberana e da totalidade dos c id ad ao s, e sta desde 0 inicio conde-n ad a a pe rm an ec er u m m isterio .

    A vontade pura enquanto tal, em si mesma a meta de sua reali-zacao , e 0verdadeiro soberano, An t ec ip a .. .e a ss im a m e ta fi si ca d a

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    pessoal , mas porque, em relacao a vontade geral hipostasiada, emais esclarecido que a soma dos individuos, A tarefa do chefee criar a identidade fict icia entre moral e poli tica, 0 povo quersempre 0bern, mas nao 0conhece: "L e p e up le v eut le b ie n q u'i l n evoit pas" . Para mostrar-lhe 0born caminho e preciso ,,_.. bern no'espirito das lojas maconicas - mais do que a autoridade abso-lutista, que s6 abrange 0exterior. A autoridade mais absoluta eaquela que penetra no interior do hornem."!" E preciso guiarnao somente as acoes, mas sobretudo as conviccoes . .Uma vezque a autoridade da vontade do principe e substituida pela von-tade geral, e preciso impor a unidade do interior e do exterior..,"E nas vontades, mais ainda que nas acoes, que ele [0 verdadeiroestadista] alarga seu imperio respeitavel."!" 0postulado inicialdo coletivo e precisamente al se revela sen carater ficticio ..~-precisa ser realizado pela adesao dos individuos. 0 terror e seucaminho; a ideologia, sen modo. 0"maquiavelismo" dos sobera-nos absolutos, que repousava na separacao da moral e da politi-ca, era uma ernanacao do comportamento soberano liberado poresta mesma separacao as principes tambern podiam dispor deoutro modo. Mas 0chefe da democracia de Rousseau e coagido auma ideologizacao permanente, a fim de impor a unidade ficticiada conviccao e da acao. 0chefe deve mostrar constantemente 0caminho ao povo, que nao conhece a sua verdadeira vontade;deve faze- lo ver as coisas como elas sao ou como devem lheparecer .. 20 0 reino da conviccao, da opiniao publica, esperadopar tanto tempo, s6 se realiza na medida em que se estabelece acada momenta 0que deve ser considerado born em materia deconviccao ..Depois que 0 Iluminismo suprimiu toda diferencaentre interior e exterior e revelou todos os arcana, a opiniao pu -blica tornou -se ideologia. A conviccao reina na medida em que efabricada. Rousseau estatizou a censura moral, 0censor publicotornou-se 0 ide61ogo chefe.!"

    Em Rousseau, fica claro que 0 segredo do Iluminismo I ...a dissimulacao do seu poder tornou-se 0principio da politica,o poder do Iluminismo, que se desenvolveu de maneira invisivele secreta, sucumbiu a pr6pria camutlagem. Mesmo tendo alcan-

    CRfTICA E CR ISE 14 342 I{ E 1N H A I ~ T K o S E I~. E ( ~ K

    revolucao permanente. 0resultado e 0Estado total, que repousana identidade ficticia da moral civil e da decisao soberana. Todamanifestacao da vontade do todo e Ulna lei geral , pois s6 podeambicionar 0 proprio todo. I I A vontade geral, que e absoluta enao tolera excecao, reina sobre a nacao. Soberana pelo simplesfato de existir, e sempre e totalmente!" 0 que deve ser.A vontade geral que nao tolera excecao e a excecao pura e simples.

    Assim, a soberania de Rousseau revela-se uma ditadura per-manente.":' E congenita da revolucao permanente ern que senEstado se transformou. A s fu nc oe s d a ditadura sao real izadas po raquele que conseguir executar a vontade geral hipostasiada. Pres-suposta como novo principio politico, a v o lo n t e g e n e r ai e trans-forma radicalmente 0detentor deste principio, isto e ) a socieda-de, que se torna urn coletivo estatizado. 114 0 coletivo surge dasoma de individuos, mas so depois que estes absorveram 0Esta-do que, a principia, permitiu que se constituissem como indivi-duos politicos. A nacao, 0coletivo que e senhor de si mesmo, su-poe uma vontade geral qtle sebaseia ern urn coletivo criado antes.Ao explicar estas entidades uma pela outra, Rousseau conseguefazer com que a unidade postulada para as duas apareca COll10uma realidade coerente. Mas essa totalidade racional contemuma falha em que aparece a realidade pura e sitnples: 0cidadao56 adquire liberdade ao participar da vontade geral, mas, comohomem, nao sabe jamais quando ele mesmo, internamente, coin-cide com a vontade geraL Os individuos podem enganar-se; avo lon t e genera t e , jamais.!" Assim, a totalidade racional do coleti-vo e da sua vo lon t e genera l e impoe um a correcao permanente darealidade, isto e , dos individuos que ainda nao foram integradosao coletivo ..l6 Esta correcao da realidade e a tarefa da ditadura.A ditadura distingue-se do Absolutismo na medida em quedeve abarcar 0 foro interior privado que Hobbes havia excluidodo Estado. 0 Estado absolutista sucumbe a sequela remanescen-te da guerra civil religiosa que agora, ern uma situacao modifica-da, des~nc.adeara mais uma vez a revolucao. 0 povo, incapaz em~(ua.ma~?rla de reconhecer sua verdadeira vontade, 117 precisa degu id e s , de chefes. 0 chefe nao reina em virtude de uma decisao

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    cado 0 poder, e precisamente nesse estagio, a opiniao publicaoculta 0soberano. A tarefa mais importante do novo legislador,da qual todo 0resto depende, consiste em substituir a autoridadepelo poder da opiniao publica. 0chefe so se ocupa desta tarefaem segredo.!" Sua mais alta realizacao reside na habilidade deocultar seu poder e conduzir 0povo tao pacificamente como se0Estado nao precisasse de conducao. " E certo, pelo menos, que 0maior talento dos lideres e disfarcar seu poder para torna-lo me-nos odioso, e conduzir 0 Estado tao pacificamente que ele naopare-ya necessitar de condutores."!" 0 Iluminismo s6 reina namedida em que obscurece sua propria autoridade ..A identidadepostulada entre liberdade moral e coercao politica, corn a qualRousseau esperava eliminar os males do sistema absolutista, re-vela-se a ditadura ideo16gica da virtude, cuja autoridade desa-parece sob a mascara da vontade geraL A suposta identidade dohomem e do cidadao revela-se como 0processo de uma identifi-cacao compuls6ria. 0 soberano sempre ja e 0que deve sere Todosacreditam saber 0 que ele deve ser, mas, por isso mesmo, nin-guem sabe quem ele e . 0sudito transforma-se em cidadao, masRousseau de modo algum eliminou a diferenca entre homem ecidadao, pais todo homem vive na r n a consciencia em relacao aoque ele e verdadeiramente enquanto cidadao, A "vontade geral"tern sempre razao e, enquanto tal, esta sempre espreitando a vidaprivada do cidadao soberano, por sobre seus ornbros. Os ho-mens, na condicao de cidadaos, dispoem aparentemente da von-tade geral; mas, na realidade, quem dispoe dela sa o os chefes, quesabem como ocultar seu verdadeiro poder mediante a pressaopara a conformidade. A moral do cidadao e a politica do Estadoestao longe de ser congrucntes, de modo que a ilusao ideol6gicaque afirma a identidade de ambas ameaca constantemente se des-fazer. Para preservar a ilusao como rcalidade, perpetuam-se os

    ,meios da identificacao: 0terror e a ideologia, is to t \ a ditadura, 0estado de excecao. 0soberano sempre ja e 0que ele deve ser.

    Ao levar osveredictos ate entao proferidos mais a serio do qlleos pr6prios juizes morais, Rousseau desenvolveu de maneiraconsequente todos os elementos da revolucao permanente que,

    desde 1789 ) determinaram a crise, agindo com forca variavel,mas crescente ..Ele perpetuou os conceitos que se superavarnconstanternente enquanto preconceitos ..Ulna vez estabelecida apossibil idade de pensar e desejar uma vontade geral que estavasenlpre fundada em seu pr6prio direito, impoem-se 0 terror e aideologia, as armas da ditadura, para corrigir Ulna realidade per-turbadora. Assim, elevou-se a principio politico 0metoda da cri-tica progressista, que consiste em considerar 0que e exigido pelarazao diante da qual 0presente desaparece como se fosse arealidade verdadeira. Emitern-se constanternente notas promis-sorias, a dcscoberto, contra 0 futuro ..E rn busca da ficcao de Ulnarealidade planejada racionalmente, a revolucao avancara de talmodo qtle produzira a ditadura para honrar suas prornissorias.

    Nesse sentido, Rousseau e 0primeiro executor do Iluminismoa tef uma ascendencia sobre a nova gera

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    R E I N l- ! A [{ TKO S t: L I_ J r~ : K (~RtTICA E C:RISE 147do .por Rousseau ao sentido de anarquia politica, a crise comoruptura de toda ordem, como desrnoronamento de todo regimede propriedade, l igada a convuls6es e ag itaco es im prev isiv eis ' _Oll seja, a crise como crise politica do Estado como um todo .. ,nao representava de modo algum a forma C01110 se exprimia aconsciencia burguesa dessa rn e sma crise. Ao contrario , a cons-ciencia pre-revolucionaria da crise se alirnenta da forma especi-fic a d e critica p olitic a fe ita p ela b ur gu esia a oE sta do a bso lu tista .Isso tambern fica claro quando se observa como Rousseau che-gou ao seu progn6stico d e c ris e, isto e ) (01110 el e compreendeu eformulou 0conceito de uma c r is e p o li ti c a,

    Antes d e p r of et iz a r 0 retorno do s Estados ao es tado de na-tureza presente em sua o rig em para usar U l na e xp re ss a o deHobbes '--, Rousseau alude expressamente ao medo da 1110rteque, como em H o bb es , d om in a 0homem. A natureza, diz, com-pele 0hornem a usar todos os meios a sua disposicao para escaparda morte.!" Deste mandamento natural , que se origina do medoda morte, Rousseau DaO d ed uz , c om o H o bb es, 0c le v er d e se refu-giar no Estado. Ao contrario, af i rma que a ameaca mortal vern dopr6prio Estado.!"

    Rousseau levou ao extrema a revalorizacao do estado de na-tureza, r ea li za da s ob a protecao da ordem publica;"? para ele) 0.estado de natureza nao e mais um a guerra civ i l , mas 0 re ino davirtude e da inocencia, ao qual confronta polemicamente nao so-mente 0 Estado mas t ambem a sociedade: "Se ha no mundo Ul11Estado rniseravel onde ninguern pode v iv e r sem fazer 0 mal , eonde os cidadaos sao d es on esto s pa r n ec ess id ad e, n ao e 0malfe i-tor qu e sc dcve enforcar, m as aquele que 0 forcou a vi r a se-lo."!"

    Do reino da natureza) pelo qual conduziu ate cntao Elnile)Rousseau conclui, dialeticamente, a desumanidade do Estadoestabelecido. Do ponto de v ista da inocencia m ora l, revela-seque e precisamente este Estado que impede 0hornem de exercersua virtude natural, que 0 impede de "viver". Isto quer dizer,polemicamente, qlle 0 Estado 0 obriga a ernpregar todos osrneios para conservar sua v ida e , por isso, derrubar a a u to ri -dade imoral.

    o dualisnopuramente moral e abandonado e transformadoern dualismoplitico. A oposicao ao Estado nao decorre mais deuma relacao nlireta. A sociedade esclarecida sentia a autoridadee GI nO im o ra l n as achava qu e ela mesma estava em sen direito.R o u ss ea u v a in a is lange: a autoridade nao e somente imoral, masta mb er n fo ro sociedade, 0homem, a ser imoraL 0Estado esta-belec ido corcnpe 0 hornem. Sendo assim, Rousseau s6 podeexigir a dernlada dos Estados ..Fez exatamente 0 contrario ~oque buscava:omo executor do Iluminismo, acabou sucumbin-do a su a hipcisia.

    Rousseaueoca a imagem do homem natural, espontaneoe enquanto t. l m oral , diante da qual a sociedade existente e 0Estado estab lcido desmoronam. Esta visao utopica do "hommet so le" , possu h pela inocencia de sua origem fora do Estado, e 0flo condutorf:ticio a partir do qual Rousseau elabora seu prog-n6stico. Ainl, que ele tenha concebido 0 conceito de crise demaneira estrt.mente politica, 0 tom e 0 andamento da sua pro-f ec ia e VOCa lT I execucao de ur n juizo moral. Senhores e s er vo ssao iguais. Ncrise, os homens retornam a suas origens, sao co-locados a pn\l interna e externamente, e somente 0 homemb Ih _, ~ 131verdadeiro e -ituoso, 0homem que tra a a, saira vitorioso.A partir do 'eu d'homme" inocente, Rousseau invocou comouma crisc rncI a crise politica do Estado, contra a qual sempre

    ~ 13 2 advertiu nos ,jUS escntos sabre seu tempo. Expressou assimaqui la qu e o.sus contcmporaneos cornpreendiarn e, finalmen-

    ~ .te, qllerlam C11r. . .o termo cie, em seu sentido provocador, so apareceu efeti-vamente n o m m en to em que se exigiu que 0 juizo constante-mente profci: pelos iluministas fosse executado, em virtudedos postuladepoliticos que anunciava. Na Franca, par volta de1770, dialctic.icntc instigado pela monopolizacao do poder nasmaos do sobnno absoluto, 0comportamento apolitico istoe , indiretamoe politico ~.- da nova el ite em relacao ao Estadopassa ao estai. de uma consciencia politica autonorna ..3 3 ': vin-culacao teorirda autoridade soberana aos interesses da socl~da-de acrescent.-e, cada ver. mais, a vontade de vincular efetiva-

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    148 RE I N HA RT KOSELLECK CRfTICA E C:RISE 149

    mente a autoridade politica- mediante osparlamentos ou sob aforma de uma constituicao .. a s leis que a sociedade descobre eanuncia. Com seus postulados, a nova elite ingressa no campo doconflito politico com 0Estado estabelecido. A posicao moral queassegurava a superioridade e a inocencia interior nao fo i de modoalgum abandonada, mas, pelo contrario, ainda mais reforcada.Acentua-se a disjuncao polemica entre, de urn lado, urn reino na-turalmente born e) de outro, a politica existente, declarada ~mediante esta separacao -como dominio da pura violencia , Elaserve para assegurar a inocencia do ataque. A te esse mornento,segundo uma obra de 1780, 13 4 as forcas teriam s e m a n ti do emequilibrio na Franca a burguesia ja se compreendia como UIT Ifator politico independente J e a "acao da forca e a reacao dasvontades" constituiam urn "equilibrio de poder". Com a cons-ciencia de uma paridade politica, a nova sociedade confronta 0Ancien Reg ime e, deste modo, a vontade burguesa continua aocultar sua agressividade, sob a necessidade e a inocencia de umamera reacao. 0fermento revolucionario da ideologia burguesareside precisamente no fato de ela se compreender como merareacao. Pois a inocencia _. e aqui se manifes ta a influencia deRousseau, que se somou aos filosofos do progresso e trouxeas forcas do coracao e do sentirnento para 0 debate polftico -,a inocencia impoe a revolucao, Para Rousseau, a ameaca da guer-ra civil nao vern dos descontentes ou dos f il 6 so f o s i lum in i st a s:ela aparece no personagem do homem virtuoso. Seu juizo moralnao se restringe mais ao dominio do descomprometimento po-litico, mas 0 ohr iga a realiza-lo, "Pois a virtude se exaspera e seindigna a ponto de chegar a atrocidade. Catao e Brutus eram vir-tuosos; so tiveram que escolher entre dais grandes atentados, 0suicidio on a morte de C e s a r . > J I 3 5

    A sociedade ergue-se nao somente para se conservar a si mes-rna como juiz moral. 13 6 Para poder continuar a existir, ve -s e obri-gada a executar sua sentenca, Suicidio ou morte do senhor, eis aescolha. Assim 0 dualismo moral se acentuou, em seus postu-lados, em uma questao decisiva. As categorias polarizadas saoaplicadas a situacao politica e, na medida em que a determinam,

    criam um a situacao de "ou isso ou aquilo", Ul l l a situacao sem sai-da . A cr ise e d ete rm in ad a p elo dualismo politico. Emque medidae este 0caso , mostra-se nos progn6sticos que a burguesia faz deum futuro incerto.

    Os progn6sticos da burguesia dao testemunho da realidade dacrise mas, ao mesrno tempo) fixam a sua natureza ..Os espiritos seexaltaram, escreve Diderot!" a Princesa Daschkoff em Sao Pe-tersburg o, qu and o Lu is XV cassou 0 Parlamento de Par is em1771 e parecia el irninar 0 que res tava de uma protecao juridicacontra 0poder arbitrario, 0 fogo se espalhou, ele continua, e osp rin cipio s d a lib erd ad e e d a independencia, ate entao ocultos nocoracao dos homen s pensantes, cstabeleceram-se de modo aber-to e desvelado. E le lanca seu olha r sobre 0tempo passado; 0espi-rito do scculo e 0da liberdade c, de agora ern diante, e impossiveldeter sua ofen s iva: "Ulna vez que o s h0l 1 1 el 1 Sousem atacar a bar-reira mais portentosa qu e e xiste , e a mais respeitada, e impossivelque se detenham. A partir do momenta em que dirigern olharesarneacadores a majestade do ceu, nao faltara, depois disso, 0mo-mento elTI que as dir igirao contra a s ob era nia d a Terra."!"o processo seguido a te en tao pelo Iluminismo, quer dizer ,p ela c ritic a a o Estado e a Igreja qu e constituiram 0duplo ad-v e rs ar io c o nt ra 0 qua l a a u to c on sc i en c i a da burguesia se desen-volveu!" - ameaca agora, aberta e cruamente, a soberania es ta-belecida. C om a a rn eac a a soberania do principe, reconhece-se acrise politica. "Esta e a n o ss a situacao atual, e quelll podera dizerp ara o nd e isto 1105 levarai" A c erte za d a lugar a inseguranca, e asituacao c ri ti ca i nv o c a a q uesta o d o fu tu ro . Diderot conhece ar es po st a, e s ua r es po sta e u niv oc a, M as ela e tambern dualista, e en a dualidade que reside 0 se u carater univoco: "Beirarnos umac ri se q ue l ev a ra a escravidao ou a liberdade."!" 0 p ou r e t c en t re "d o p ro ce ss o c ri ti co torna-se, d esd e q ue 0Estado fo i envolvido, 0"ou isso o u a qu il o" de uma cr ise que inevitavelmente forca umadecisao pol it ica.

    Para Diderot, a c rise n ao e somente ur n periodo sem autori-dade, Ul11 periodo de anarquia; 14 1 pois ao longo da crise poli ticaja se fo rm ula urn progn6stico dualista de escolhas!" que ante-

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    cipa 0 seu possivel fim. 0 resultado da crise e a l iberdade ou aescravidao, ou seja, 0 fim da crise corresponde ao entendimentoque uma epoca tinha d e si mesma, do qua l t ambern se or igina 0progn6stico. A visao da crise como anarquia, como estado de in-seguranca e mesmo como guerra civil certamente faz par te doprognostico, mas a natureza da cr ise e de te rminada a partir deseu fim. De fato, ela e somente 0 fim do processo crit ico que asociedade, separada do Estado, moveu contra este Estado. A cri-se transforrna-se em um tribunal moral cujas leis estao escritasnos coracoes dos criticos burgueses.!" 0inicio da c ri se n a o acar-reta apenas urn periodo d-e i nseguranca, cujo fim -~ como emRousseau seria imprevisivel; a crise e , ao cont rario, urn mo-mento transitorio, cujo desenlace ja esta inscrito nas categoriasda critica burguesa. A distincao critica entre a inocencia moral ea autoridade transformada ern v io le nc ia i m ora l determina a de-cisao politica. E m . D i de ro t fic a aparentemente em aberto como eem favor de quem ela ocorre, mas quando ela ocorrer - e certa-mente ocorrera s6 havera duas possibilidades: 0 despotismoou a liberdade. 0auto-entendimento moral, politicamente indi-reto, da nova elite, que ate aqui deterrninou a critica, tambemdetcrrninou, desde que essa elite se empenhou em confrontar di-retamente 0Estado, 0 fim da cr ise. Os dilemas dualistas e as in-citacoes para que se decidisse radicalmente entre escravidao eliberdade sao inumeros; mas raramente se menciona 0 fato po-litico da crise -- ...da crise como guerra civil ligado a esses di-lemas e incitacoes. l44A consciencia que a burguesia esclarecida tern da crisc, deter-

    minada pela critica poli tica , reside nesta arnbivalencia: por umlado, afronta-se 0Estado, nao mais de maneira indireta mas dire-ta, para incitar tIm conflito dentro deste mesmo Estado; por DU-tro) continua-se a conceber esse processo politico como urn tri-bunal moral, cuja decisao, de um modo ou de outro, antecipa 0seu resultado politico.

    Se, para a critica r igorosa, a existencia da soberania estabe-lecida havia se tornado urn crime, para 0cidadao, artesao da que-da desta soberania, a crise s6 poderia ser urn trib un aL A te esse

    momento, por exemplo , 0Abbe Rayna l afirma que 0equilibrioreinante "impediu as explosoes e as violencias de que resultam atirania ou a liberdade do povo" .145 Mas, de agora em diante, es-creve em 1780, os despotas nao podem mais contar com a impu-nidade eterna, pois a sociedade e as leis iriam vingar-se deles:"Assim, quando a sociedade e as leis vingam-se dos crimes parti-culares, 0 homem de bem espera que a punicao dos culpadospossa prevenir 110VOS crimes."!" 0 progn6stico dualista de esco-lhas , em qu e se exprime a incerteza da ameaca de uma guerra ci -vil , evidencia-se como urn prognostico determinista, que, a se -melhanca de urn ultimato, antecipa a execucao do juizo moralproferido sobre mundo antigo. 0 fim da crise reside no castigodos criminosos. A guerra civil e invocada no presente, exatamen-te a medida que seu decurso e compreendido como 0exercicio deuma jurisdicao moral,

    Asinterpretacoes dualistas que os "ph i losophes" concederam acrise, seus progn6sticos que culminavam em um "ou issoou aquilo", sao a aplicacao, a hist6ria, de categorias forenses daconsciencia esclarecida, isto e , a aplicacao de juizos rigorosospronunciados por uma justica moral. A crise torna-se urn pro-cesso moral. Deste modo, 0carater problematico da situacao cri-tica foi eliminado; a crise foi velada e, assim, agravada. 0en-cobrimento da crise como crise politica e seu agravamento,precisamente por permanecer encoberta ao agravar-se. A crisedo seculo XV I I I reside de tal modo nas categorias dualistas- ,queaparentemente eliminaram a esfera politica )que se pode dizerque ela provern da dialet ica da moral e da politica, Ao mesmotempo) ela e esta dialetica. E m outras palavras, a crise s6 existiuenquanto tal porque seu carater politico permaneceu encoberto.

    Dissimular esseencobrimento era a funcao hist6rica da filoso-fia ut6pica da historia. Ela produz urn agravarnento, por assimdizer, adicional da crise, pois fornece a evidencia de que a decisaopendente deve ser efetivamente tomada no sentido de urn juizomoral. E la d a provas do carater inexoravel da hist6ria, com 0qualos cidadaos se identificam para executar seu juizo moral, emalianca com a historia concebida de maneira hist6rico-filos6fica .

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    A filosofia da hist6ria faz com que os cidadaos tenham eli!e segu-ranca para provocar a crise como urn tribunal mora l ,

    Para tornar isso mais claro, passemos a palavra a urn hornemque teve enorme influencia nos dois decencies antes da Revolu-cao: 0Abbe Raynal.!" Raynal fo i urn autentico profeta da criseem urn duplo sentido: da crise como ameaca de uma guerra civile da crise como tribunal moral. Ele a invoca com a certeza histo-rico-filosofica de que ela transcorrera de acordo com seu prog-n6stico determinista. "Era como se eu houvesse conversado coma Providencia Divina", observou Frederico 0Grande a respeitode Raynal, ap6s uma conversa cuja ironia escapou completa-mente ao refugiado, perseguido pela policia francesa."" Rayn a lera urn tipico " p hi lo s o p he d e I 'h is t oi r e " que dificilmente teve umaideia original. Mas, como assiduo frequentador dos saloes pa-

    I id ".. 1 I 149risienses, compilou com ze 0 as 1 eras que ne es CIfCU avam.Precisamente enquanto obra coletiva dos principais represen-tantes da republica das letras, seu opus e urn termometro para afilosofia da hist6ria que reinava em toda parte. E m seus desejos..privados e em suas esperan

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    descricao do movimento de independencia das colonias amer i ca -nas e culmina com 0progn6stico de sua liberdade definitiva.!"Para contribuir com 0 movimento de independencia, 25 milexemplares da obra de Rayna l foram distribuidos nas coloniasamericanas.l'" A resistencia invencive l dos colonos, ao mesmotempo pr6ximos da natureza e esclarecidos, os l ibertara do jugodos despotas de alem-rnar. "Forcados a optar entre a escravidao ea guerra", 161 tornarao as armas, e a inocencia americana ccrta-mente vencera. A futura independencia poli tica dos colonos vir-tuosos sera 0 fim de urn processo consideradp como hist6rico,mas dotado de uma dimensao moral, que opos 0Velho e 0NovoMundo. A separacao entre Amer i c a e E uro pa fo rm a urn desviogeograficamentc evidente, pelo qual a separacao critica (ia morale da politica conduzira a vitoria da .nova sociedade.

    Todos os fatos hist6ricos e geograf icos ganharn sent ido e coe-sao in t e rna gra

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    seus grilhoes, tenha entregue seu destino a decisao da espada, elesera obr igado a m a ssa cra r se u tirano, a e xte rm in ar su a ra

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    )f",,r

    m ao s, em U lna f il o s o fi a d a historia g loba l qu e c u lm i n av a n e ce s sa -riamente n a c ri se de d o is m u n do s.

    "Sao uteis as revolucoesi" Es ta pergun t a critica sabre a s itua-

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    160 CRIT ICA E CRI SE 16]. , .em seu plena direito. Da maneira mais natural do mundo, os ci-

    dadaos apoliticos, alienados da historicidade, consideram que sedeveria anular a historia, pecado original da natureza. A partir deentao, a hist6ria s6 pode ser concebida como filosofia da historia,urn processo da inocencia que se devc realizar. Da critica sobera-na nasce, de maneira aparentemente desimpedida, a soberania dasociedade. Na condicao de autor, 0intelectual burgues acreditavaser t ambem criador de autoridade . .A ameaca da guerra civil ) cujotim era imprevisivel, ja estava moralmente decidida para 0bur-gues. A certeza da vitoria, que residia precisamente n a c o ns c ie n -cia extra e suprapolitica a principio, uma resposta ao Absolu-t ismo . ,_.exacerbou-se em uma garantia ut6pica. Condenado adesempenhar urn papel apolitico, 0 cidadao refugiou-se na uto-pia , que the conferiu s egur an ;a e poder . .Ela era 0poder pol it icoindireto por excelencia, em cujo nome 0 Es tado absolutista foiderrubado.

    No be llum o mn ium c on tr a o rn ne s da republica das tetras, amoral sempre inventava novas razoes para prevenir a acao sobe-rana, para a qual nao ha urn motivo, no sentido proprio do ter-mo. Ela vivia trocando constantemente sua argumentacao, paisnao tinha, por natureza) acesso ao poder. Finalmente, teve quedecapitar 0monarca. Desesperada por nao reconhecer a naturezado pode r , refugia-se na violencia pura. Usurpa 0pode r com a rn aconsciencia de urn moralista para quem 0 senti do da hist6ria etornar superfluo 0poder.

    A utopia, como resposta ao Absolutismo, inaugura 0proces-so dos tempos modernos, que ha muito havia deixado sua si-tuacao inicial para tras, Mas a heranca do Iluminisrno ainda eonipresente,A transformacao da hist6ria ern unl processo forense provo-

    cou a crise, na medida em que 0novo homern acreditava poderaplicar sua garantia moral a hist6ria e a politica, au seja , na medi-da em que era filosofo d a historia. A g ue rra c iv il, so b c uj a le i v iv e-mos ate hoje, foi reconhecida, mas rninimizada, par Ulna filosofiada hist6ria para a qua l a decisao politica pretendida nao pas savado fim previs ivel e inexoravel de Ulll processo suprapol it ico e

    m oral. M as, ao mimmiza - I s , agravava-se a crise ..Concebido apartir de Ul11a visao dualista do mundo, 0 postulado dos militan-tes burgueses isto e ) a nl0raIiza