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JUSTINO, O ADVOGADO DOS CRISTÃOS: ALGUNS ASPECTOS DE SEUS ARGUMENTOS CONTRA O PRECONCEITO RELIGIOSO EM SUA ÉPOCA ARZANI, Alessandro (UEM) 1. Introdução O presente artigo apresenta uma análise do discurso argumentativo de Justino de Roma, em sua I Apologia, onde tece a defesa dos cristãos devido às perseguições que vêm sofrendo dentro dos limites do Império Romano. ROSTOVITZEFF chama a atenção para as transformações socioeconômicas que se inter-relacionam à ascensão da religião cristã como ideologia principal do Império Romano entre os séculos I e IV. Esse processo histórico apresenta, no entanto, uma série de contradições marcadas por diversos testemunhos. O testemunho que interessa nesse trabalho é o de Justino, que foi também narrado por EUSÉBIO, bem como as oposições e perseguições que sofreram os cristãos. Justino dispondo de um significativo conhecimento filosófico – que muito interessa a GILSON – se apresenta como defensor dos cristãos nessas palavras dirigidas ao Imperador. Justino é um cristão que se põe em defesa de sua fé fazendo uso de suas habilidades filosóficas para condenar aquilo que por BOBBIO se entende por “preconceito”. Por meio de uma análise das ideias representadas no discurso de Justino – partindo do conceito de CHARTIER – pretende-se refletir sobre aspectos dos argumentos desse mártir. Antes de o cristianismo passar a ser religião oficial do Império os cristãos passaram por vários transtornos. Nesse trabalho limita-se a análise principal da I Apologia de Justino devido ao limites desse artigo. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa de referência bibliográfica e análises de seus conteúdos. 2. O advogado e seu réu Em que circunstâncias o cristão de admirada devoção que o conduziu ao martírio pode ser chamado de “advogado”? Certamente a partir do momento que decide explicitar

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JUSTINO, O ADVOGADO DOS CRISTÃOS: ALGUNS ASPECTOS DE

SEUS ARGUMENTOS CONTRA O PRECONCEITO RELIGIOSO EM

SUA ÉPOCA

ARZANI, Alessandro (UEM)

1. Introdução

O presente artigo apresenta uma análise do discurso argumentativo de Justino de

Roma, em sua I Apologia, onde tece a defesa dos cristãos devido às perseguições que vêm

sofrendo dentro dos limites do Império Romano.

ROSTOVITZEFF chama a atenção para as transformações socioeconômicas que se

inter-relacionam à ascensão da religião cristã como ideologia principal do Império Romano

entre os séculos I e IV. Esse processo histórico apresenta, no entanto, uma série de

contradições marcadas por diversos testemunhos. O testemunho que interessa nesse trabalho é

o de Justino, que foi também narrado por EUSÉBIO, bem como as oposições e perseguições

que sofreram os cristãos. Justino dispondo de um significativo conhecimento filosófico – que

muito interessa a GILSON – se apresenta como defensor dos cristãos nessas palavras dirigidas

ao Imperador. Justino é um cristão que se põe em defesa de sua fé fazendo uso de suas

habilidades filosóficas para condenar aquilo que por BOBBIO se entende por “preconceito”.

Por meio de uma análise das ideias representadas no discurso de Justino – partindo do

conceito de CHARTIER – pretende-se refletir sobre aspectos dos argumentos desse mártir.

Antes de o cristianismo passar a ser religião oficial do Império os cristãos passaram

por vários transtornos. Nesse trabalho limita-se a análise principal da I Apologia de Justino

devido ao limites desse artigo. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa de referência

bibliográfica e análises de seus conteúdos.

2. O advogado e seu réu

Em que circunstâncias o cristão de admirada devoção que o conduziu ao martírio pode

ser chamado de “advogado”? Certamente a partir do momento que decide explicitar

argumentativamente a inquietação que lhe provoca a “injustiça” cometida aos seus irmãos

cristãos, por aqueles que não os conhecem de fato.

Ele nasceu na Galiléia, na cidade de Naplusa, cidade romana e pagã. Seus pais eram

colonos prósperos, de origem latina mais do que grega. Viveu em contato com judeus e

samaritanos. Em Naplusa freqüentou as aulas de um estóico; depois, de um discípulo de

Aristóteles, que logo abandonou, trocando-o por um platônico. Tendo ingressado no

cristianismo por volta de 130, o filósofo cristão afirma ter encontrado no cristianismo a única

filosofia segura, que satisfaz todos os seus desejos. Justino nunca foi padre. Viveu em Roma

como um simples membro da comunidade cristã. Em Éfeso, depois em Roma por volta de

150, Justino funda escolas filosóficas cristãs (HAMMAN, 1977, p. 27-29).

Por volta dos anos 70, há numerosas comunidades cristãs no Oriente – Síria, Ásia,

Macedônia, Grécia. Alexandria talvez tenha conhecido o cristianismo antes do fim do século

I. A expansão da igreja no Ocidente é mais lenta. No início do reinado de Trajano (98), Roma

é o único centro cristão comprovado: parece que o cristianismo foi recrutar adeptos

inicialmente entre os indivíduos originários do Oriente, de língua grega, a língua que oi o

primeiro veículo do Evangelho (PIERRARD, 1982, p. 26).

Durante um longo tempo, judeus e cristãos são confundidos na opinião pública. Em

64, quando três quartos da cidade de Roma foram devastados por um incêndio, a opinião

pública atribui esse fato à loucura de Nero. O imperador, no entanto, procura e encontra

“culpados plausíveis: os cristãos, que o povo conhece mal, tendo-os por misantropos, ateus e

homens dados a ritos orgíacos” (PIERRARD, 1982, p. 27).

A situação continuou a mesma no tempo de Domiciano (81-96). E depois da morte de

Domiciano, com Trajano (98-117). Ele – como comenta PIERRARD (1982, p. 27) – se

vangloria de manter a antiga tolerância romana. Respondendo a Plínio, o Jovem, procônsul na

Bitínia, que o consultara sobre a conduta a manter em relação aos cristãos, “Trajano fixa a

norma de conduta: os cristãos, com efeito, são ateus; desde que convictos, deve-se puni-los,

mas não se deve procurá-los e deve-se deixar de lado as denúncias anônimas: todo inculpado

que se arrepender deve ser libertado”.

Os grandes Antoninos, Adriano (117-138), Antonino Pio (138-161) e Marco Aurélio

(161-180), nada fariam para agravar a legislação anticristã. Mas devido ao poder local e as

manifestações de calúnias, sempre eclodiam insurgências contra os cristãos. PIERRARD

(1982, p. 27) aponta o que parece ser o mais provável: “é inegável que a cólera do populacho,

alimentada por maledicências, inveja, desgosto ou patriotismo exagerado, levou mais de um

cristão aos tribunais e ao suplício”.

Os mais “severos” foram os Severos. Sétimo Severo (193-211), em 202, assina um

rescrito visando ao mesmo tempo os judeus e os cristãos. Fica interdito ser cristão e fez outros

cristãos; e agora a justiça não deve apenas esperar as denúncias e sim procurar os cristãos.

Caracala (211-217), Heliogábalo, (218-222), e Severo Alexandre (222-235), deixam

adormecida a legislação precedente.

Outra onda de perseguição é desencadeada na época de Décio (249-251). Quanto a

esse período PIERRARD (1982, p. 27) comenta:

preocupado em fazer o envelhecido Império retornar às virtudes e ao culto da antiga Roma. No ano de 250, todos aqueles que, no território do Império, gozam do direito de cidadania romana são obrigados a manifestar expressamente (através de um sacrifício, uma libação ou a participação em uma ceia sagrada) sua adesão à religião oficial; certificados (os libelli) atestarão o fato; os contraventores poderão sofrer a pena de morte. A aplicação desse edito provoca não poucas renegações, mas também encontra resistências que dão origem a numerosos martírios em Roma, na Ásia, no Egito e na África.

Ao analisar a relação anticristã a partir das perseguições de Décio e Valeriano, no

século III, VENTURINI (2006, p. 213) considera que “‘as grandes perseguições’

empreendidas pelos imperadores justificavam-se, em grande medida, pelo não

reconhecimento dos outros deuses do panteão romano. Os cristãos não estavam proibidos de

cultuar o seu Deus, embora estivessem proibidos de se reunir em comunidades e igrejas”. O

não reconhecimento dos outros deuses pelos cristão é um ponto a observado com mais

atenção adiante. Quanto a “não estarem proibidos de cultuar o seus Deus” parece ser algo

mais profundo. A ausência de um documento que proíba categoricamente a ação individual de

adoração não significa que essa era uma ação lícita. E mais, proibir que os cristãos se reúnam

em comunidade significa proibir que adorem, pois a adoração cristã acontece

imprescindivelmente em comunidade, onde se celebra a Eucaristia. Isso não significa que os

cristãos não adorem com preces individuais, mas isso descaracteriza a fé.

A oposição no século II provém de preconceitos, de opções prévias, de ignorância e de

mal-entendidos que os escritores cristãos vão esforçar-se por afastar. Justino estabelece um

diálogo entre fé e filosofia, entre a Igreja e o mundo. O próprio EUSÉBIO (2002) o chama de

“sincero amante da verdadeira filosofia”.

Norberto BOBBIO (2002, p. 103) define preconceito como:

uma opinião ou um conjunto de opiniões, às vezes até mesmo uma doutrina completa, que é acolhida acrítica e passivamente pela tradição, pelo costume ou por uma autoridade de quem aceitamos as ordens sem discussão: “acriticamente” e “passivamente”, na medida em que a aceitamos sem verificá-la, por inércia, respeito ou temor, e a aceitamos com tanta força que resiste a qualquer refutação racional, vale dizer, a qualquer refutação feita com base em argumentos racionais.

Por isso BOBBIO considera o preconceito como algo que pertence à esfera do não

racional, ao conjunto das crenças que nascem do raciocínio e escapam de qualquer refutação

fundada num raciocínio. É uma num certo sentido, uma “inverdade”, ou, melhor dizendo, uma

afirmação que se opõe a uma verdade que pode ser captada pela razão.

Como BOBBIO (2002, p.103) mesmo afirma “o pertencimento à esfera das idéias que

não aceitam se submeter ao controle da razão serve para distinguir o preconceito de qualquer

outra forma de opinião errônea. O preconceito é uma opinião errônea tomada fortemente por

verdadeira, mas nem toda opinião errônea pode ser considerada um preconceito”.

Portanto, é nesse sentido que aqui será tomada por preconceito essa “opinião” que

causa tantos transtornos e mortes aos cristãos do segundo século. E assim, partir-se-á para a

observação de duas linhas da argumentação de Justino.

Justino começa seu discurso apelando à razão. A razão que exige dos que são

verdadeiramente piedosos e filósofos que, desprezando as opiniões dos antigos se estas são

más, estimem e, amem apenas a verdade. Pois essa é uma condição da sensatez: “que se

abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente, mas também que o amante da

verdade, de todos os modos e acima da própria vida, mesmo que seja ameaçado de morte,

deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiça” (I Apologia, 2). Ele põe em dúvida a

piedade e a sabedoria do imperador e é direto ao declarar que seu objetivo é “pedir-vos que

realizeis o julgamento contra os cristãos conforme o exato discernimento da investigação, e

não deis a sentença contra vós mesmos, levados pelo preconceito ou pelo desejo de agradar

homens supersticiosos, ou movidos por impulso irracional ou por boato crônico” (I Apologia,

2).

Seu pedido é que sejam examinadas as acusações contra os cristãos e que se faça um

julgamento segundo a razão. Justino pede um julgamento não pela violência ou tirania, mas

pela piedade e filosofia. O autor considera piedade e filosofia requisitos para que haja boa

relação entre governantes e governados.

A explicitação da existência de preconceito contra os cristãos se manifesta no fato de

não haver investigação contra eles. Além disso, a perseguição aos cristãos não é sistemática,

mas simplesmente por denúncias. Justino desmascara o preconceito religioso afirmando: “Não

se deve julgar que alguém seja bom ou mau por levar um nome, se prescindimos das ações

que tal nome supõe. Além disso, se se examina aquilo de que nos acusam, somos os melhores

homens” (I Apologia, 4).

Justino ainda lembra de que é dever das autoridades competentes se empenharem para

não se tornar responsáveis de castigo, condenando injustamente aqueles que não foram

convencidos judicialmente. Inclusive ele lembra que em outros casos as autoridades romanas

não condenam quaisquer pessoas sem antes investigar o caso.

Mas com os cristãos se procede diferente.

Tomais o nome como prova, sendo que, se for pelo nome, deveríeis antes castigar os nossos acusadores. De fato, acusam-nos de ser cristãos, isto é, bons,mas odiar o que é bom não é coisa justa. Além disso, basta que um acusado negue com a palavra ser cristão, vós o pondes em liberdade, como quem não tem outro crime a ser acusado; mas quem confessa que é cristão, vós o castigais apenas por essa confissão. O que se deveria fazer é examinar a vida tanto daquele que confessa, como daquele que nega, a fim de pôr às claras, por suas obras, a qualidade de cada um (I Apologia, 4).

Embora recorra à boa conduta dos cristãos como um de seus argumentos a respeito da

inocência dos mesmos, Justino também reconhece que há cristãos reprováveis em suas

condutas e reprovados ou admoestados pela comunidade cristã.

Outro argumento em que demonstra medidas desiguais na condenação dos cristãos

relaciona-se ao fato não haver repugnância aos filósofos antigos que eram ateus ou que

simplesmente faziam duras críticas à religião. Pelo contrário, segundo Justino o conhecimento

desses escritores era motivo de honras.

Como explicar o fato de mesmo os cristão se devotarem a retidão moral e a justiça

serem mesmo assim perseguido? Justino também se encabula: “Nós fizemos profissão de não

cometer nenhuma injustiça e não admitir essas ímpias opiniões. Vós, porém, não examinais

nossos juízos, mas, movidos de paixão irracional e aguilhoados por demônios perversos, nos

castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por isso” (I Apologia, 5). Pode-se

considerar uma inter-relação entre a irracionalidade e o aguilhoamento por demônios nesse

trecho do discurso de Justino. A irracionalidade esta provavelmente vinculada ao

desconhecimento tanto das doutrinas e dos ritos cristãos quanto dos procedimentos morais dos

mesmos. E evidentemente Justino vincula a ideia de oposição das forças demoníacas aos

planos e propósitos de Deus para uma vida santa e justa com a irracionalidade que opera sobre

o preconceito em questão. Não há nada de estranho nesse argumento.

Note-se que a seguir Justino recorre ao exemplo de Sócrates. Através desse exemplo

ele analisa a situação dos cristãos:

Quando Sócrates, com raciocínio verdadeiro e investigando as coisas, tentou esclarecer tudo isso e afastar os homens dos demônios, estes conseguiram, por meio de homens que se comprazem na maldade, que ele também fosse executado como ateu e ímpio, alegando que ele estava introduzindo novos demônios. Tentam fazer o mesmo contra nós (I Apologia, 5).

GILSON (2001, p. 5) nota a forma direta de Justino justifica a relação entre salvação e

revelação. Justino considera que todo o gênero humano participa do Verbo. A verdade do

Verbo é então uma razão seminal. Dessa forma, conclui-se que todos os que viveram segundo

esse logos viveram segundo Cristo; aqueles, porém, que viveram segundo seus vício, viveram

contra Cristo. Por isso, ele pode livremente recorrer a Sócrátes.

Justino considera o cristianismo uma religião apegada à verdade e verdade esta

revelada pelo logos; logos este que não se limita a uma revelação particularista, mas que

comunica uma semente de si a todos os homens; e que, portanto, se opõe às mentiras e

ignorâncias provocadas pelos demônios e decorrentes da insensibilidade a essa revelação.

2. A informação como remédio para preconceito

Denúncias caluniosas eram acatadas pelas autoridades romanas que também

desconheciam os cristãos. Por isso, Justino recorre à informação para contestar as acusações

que os cristãos sofrem. Ele segue com uma série de explicações sobre algumas doutrinas e

ritos do cristianismo.

Semelhantemente às acusações a Sócrates, os cristãos são chamados de ateus. Justino

então começa a esclarecer as sombras sobre essa acusação. Não se trata de um ateísmo, mas a

afirmação da crença num Deus invisível e único. Ou nas palavras do próprio, a crença no

Deus verdadeiríssimo, pai da justiça, do bom senso e das outras virtudes, no qual não há mistura de maldade. A ele e ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com razão e verdade, e ensinando generosamente, a quem deseja sabê-lo a mesma coisa que aprendemos (I Apologia, 6i).

Outra característica dos cristãos apresentada por Justino é o apresso pela afirmação da

fé. Ele considera: está em nós a possibilidade de negar, quando somos interrogados. Todavia,

não queremos viver na mentira, pois, desejando a vida eterna e pura, aspiramos à

convivência com Deus, Pai e artífice do universo (I Apologia, 8).

Justino também afirma a aversão dos cristãos pela idolatria. Diz ele: sabemos que são

coisas sem alma e mortas, que não têm forma de Deus. Nós não cremos que Deus tenha

semelhante forma, que alguns dizem imitar para tributar-lhes honra (I Apologia, 9). Aliás, de

forma muito ousada Justino considera estupidez adorar imagens cinzeladas por artífices. É

pelo fato de não adorarem imagens que muitas vezes são confundidos com ateus.

Ainda afirmando preceitos cristãos declara que Deus não tem necessidade de nenhuma

oferta material. No entanto, afirma ser Deus o criador de todas as coisas de tal modo que não

há oposição entre a matéria e o espiritual. Mas os cristãos aguardam o momento em que serão

transformados e passarão para a incorruptibilidade. Por livre escolha, através das potências

racionais, com que ele mesmo nos presenteou os cristãos aguardam esse dia. E Justino

confessa ser do interesse de todos os homens “caminhar” por esses ensinamentos. Todavia, os

demônios tem se oposto a essa obra semeando calúnias e promovendo a ignorância.

E mais um assunto que causa interrogações é o reino de Deus a quem se referem os

cristãos. Justino diz: “Até vós, apenas ouvindo que esperamos um reino, logo supondes, sem

nenhuma averiguação, que se trata de reino humano, quando nós falamos do reino de Deus” (I

Apologia, 11). Quanto a esse equivoco Justino considera que se fosse esse reino aguardado

um reino humano, não haveria razão para se entregar a morte, antes procurariam viver

escondidos. A confusão do reino é parece um alvo significativo para suspeitas de conspiração

revolucionária dentro do Império.

Mas, poderiam os cristãos apresentar alguma ameaça ao Império?

3. O argumento pragmático: os aliados da paz

Justino não cria rodeios e desfere seu argumento mais pragmático:

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenção da paz, pois professamos doutrinas, como a de que não é possível ocultar de Deus o malfeitor, o avaro, o conspirador ou o homem virtuoso, e que cada um caminha para o castigo ou salvação eterna, conforme o mérito de suas ações. Com efeito, se todos os homens conhecessem isso, ninguém escolheria por um momento a maldade, sabendo que caminharia para sua condenação eterna pelo fogo, mas se conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude, a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos. De fato, aqueles que agora, por medo das leis e dos castigos por vós impostos, ao cometer seus crimes procuram escondê-los, porque sabem que sois homens e que, por isso, é possível ocultá-los de vós, se se inteirassem e se persuadissem de que não se pode ocultar nada a Deus, não só uma ação, mas sequer um pensamento, ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os modos, como vós mesmos haveis de convir. Todavia, até parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e não tenhais a quem castigar, coisa que conviria melhor a verdugos do que a príncipes bons (I Apologia, 11).

Tem-se aqui nesse argumento de Justino a justificação do cristianismo diante do

Império Romano por meio do apontamento dos benefícios que essa religião poderia lhe

fornecer. É por meio desse tipo de análise que se pode notar as implicações sociológica da

teologia cristã. Nesse caso, a onisciência de Deus é percebida como um elemento de

vigilância e de coerção. E justamente o valor prático das doutrinas religiosas que pesam nesse

argumento. Nessa balança, o cristianismo parece ter se apresentado mais denso. Por isso,

então, mais significante para a integração da sociedade.

ROSTOVITZEFF (1977) é quem analisa as transformações religiosas no Império, de

modo a percebe que quando as ideologias decorrentes da tradição romana já estavam

desgastadas o cristianismo é tomado como religião oficial. Muitos anos se passaram desde

esse argumento de Justino, mas ele foi tão profundo que se concretiza anos mais tarde. Não

significa que esse valor utilitário seja mérito exclusivo do cristianismo, significa que num

determinado momento o cristianismo que era motivo de preconceito se tornou motivo de

“conceito” de unidade e fé.

E Justino fecha seu argumento criando uma pressão psicológica:

Jamais supusemos que vós, amantes da piedade e da filosofia, façais algo irracionalmente. Mas se também tendes mais estima pelo costume do que pela verdade, fazei o que podeis; sabei, porém, que os governantes que colocam a opinião acima da verdade só podem fazer o que fazem os bandidos em lugar despovoado. [...] Com efeito, [...] não haverá homem sensato que aceite aquilo que a razão ordena não aceitar (I Apologia, 12).

Justino demonstra-se com esse argumento seu brilhantismo retórico e considera que

poderia por terminar por aqui, mas que prefere seguir para persuadir da verdade.

Numa espécie de profissão de fé que busca corrigir os enganos a respeito do

cristianismo o autor considera o seguinte: Os cristãos não são cristãos, pois cultuam o Criador

do universo, que não necessita de sangue, libações ou incenso; em lugar disso há louvor, com

força oração e ações de graça; além disso, se reúnem para aprender mais sobre a fé que

professam; aprendem sobre Jesus Cristo, que foi Mestre, crucificado sob Pôncio Pilatos,

procurador da Judéia no tempo de Tibério César. Jesus é considerado o Filho verdadeiro de

Deus.

Em seguida, recorre ao argumento da transformação moral pela qual os cristãos

passam. Vinculado a esse argumento está a doutrina de Cristo, que quando recebida com fé

proporciona essa transformação.

E quanto àqueles que não dão testemunho da graça regeneradora de Deus Justino

afirma: “Aqueles, porém, que se vê que não vivem como ele ensinou, sejam declarados como

não cristãos, por mais que repitam com a língua os ensinamentos de Cristo, pois ele disse que

se salvariam, não os que apenas falassem, mas que também praticassem as obras” (I

Apologia, 16).

Ele lembra que os cristãos não deixam de faltar com o tributo e que procuram “dar a

César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Ao falar da morte, Justino tenta mostrar que há consciência após a morte. Para

confirmar seu argumento Justino recorre as casos de necromancia, aos oráculos de Anfiloco,

de Dodona, de Piton, as doutrinas de Empédocles e Pitágoras, Platão e Sócrates, a caverna de

Homero, a descida de Ulisses para averiguar essas coisas. Ele também recorre a ideia da

transformação do corruptível em Sibila e Histapes, bem como entre os estóicos. Somam-se

também os exemplos de Zeus e Hermes, Asclépio e Dionísio e outros. A imortalidade é

afirmada como um período eterno junto a Deus ou eternamente separado de Deus no fogo

eterno.

Ele continua a sua defesa.

Ao comparar alguns aspectos do Cristo a outros já conhecidos da cultura greco-

romana Justino mostra como é preconceituosa a rejeição de Jesus. Jesus aproxima-se muito do

que se sabe sobre Hermes o mensageiro. E quanto ao sofrimento do filho de Deus, isso se

assemelha ao que aconteceu aos filhos de Zeus. E o fato de ter nascido de uma virgem, já era

conhecido pelo que se conhecia de Perseu. E ainda, a cura de coxos, paralíticos e enfermos e a

ressurreição de mortos, também isso é semelhante a Asclépio. Portanto, a não a intolerância

aos ensinos Cristãos é algo difícil de se compreender além do preconceito.

Outro argumento repousa sobre o fato de que

“os cristãos são os únicos odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida, sem termos cometido crime algum, como se fôssemos pecadores. E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam árvores, rios, ratos, gatos, crocodilos e uma multidão de animais irracionais. O interessante é que nem todos cultuam os mesmos, mas uns são honrados num lugar, outros em outro, de modo que todos são ímpios entre si, por não ter a mesma religião. Esta é a única coisa que podeis nos recriminar: não veneramos os mesmos deuses que vós e não oferecemos libações e gorduras aos mortos, não colocamos coroas nos sepulcros, nem celebramos sacrifícios sobre eles” (I Apologia, 24).

Justino clama por um julgamento justo. Enquanto os cristãos eram perseguidos outros

grupos e pessoas que se dedicavam à religiões ou práticas religiosas estranhas e não eram

punidos.

Em segundo lugar, Justino considera que antes cultuávamos a Dioniso, filho de

Sêmele, e Apolo, filho de Leto, “deuses que por seus amores perversos fizeram coisas que,

por decoro, nem se podem nomear; os que dentre nós adoravam a Perséfone e Afrodite, que

foram aguilhoados de amor por Adônis e cujos mistérios ainda celebrais, ou Asclépio, ou

algum outro dos chamados deuses, agora, apesar de sermos ameaçados com a morte,

desprezamos a todos eles por amor a Jesus Cristo” (I Apologia, 25).

Em terceiro lugar, ele considera que mesmo depois da ascensão de Cristo ao céu, os

demônios levaram certos homens a dizer que eles eram deuses e estes não só não foram

perseguidos por vós, mas chegastes até a decretar-lhes honras. Como é o caso de Simão,

samaritano originário de uma aldeia chamada Giton, tendo feito, no tempo de Cláudio César,

prodígios mágicos, por “obra dos demônios” – como considera Justino – que nele agiam na

cidade imperial de Roma, foi considerado deus e como deus. Foi por vós honrado com uma

estátua, levantada junto ao rio Tibre, entre as duas pontes, com esta inscrição latina: A

SIMÃO, DEUS SANTO.

Esse “advogado” argumenta, ainda, que os cristãos, por outro lado, zelam pela moral e

sequer expõem suas crianças como é costume de muitos.

Justino também recorre ao cumprimento das profecias como uma evidência da

verdadeira fé dos cristãos. E parte para uma verdadeira evangelização através de seu discurso.

Outro esclarecimento era a respeito da Eucaristia, que grava muitas polêmica entre os que não

conheciam os cristãos.

E termina seu trabalho de defesa do réu fazendo uma última observação para aguardar

a sentença: “Não decreteis, porém, pena de morte, como contra inimigos, contra aqueles que

nenhum crime cometem. De fato, vos avisamos de antemão, que, se vos obstinais em vossa

iniqüidade, não escapareis do futuro julgamento de Deus. De nossa parte, exclamaremos:

"Aconteça o que Deus quiser" (I Apologia, 65).

4. Considerações finais

No decorrer deste artigo buscou-se analisar alguns aspectos do discurso argumentativo

de Justino contra o preconceito de sua época, que faz com que os cristãos sofram

“perseguição” sem um julgamento justo, ou sequer uma causa justa.

Justino defende sua fé. Ele fala em nome do que crê. Utilizada retórica e da filosofia

para argumentar. Posiciona-se como um advogado do cristianismo, e defende-o até a morte.

Dentre as duas vertentes do argumento de discurso de Justino está o combate ao

preconceito através da informação. Por essa vertente, Justino parte esclarecendo a ritos e

doutrinas do cristianismo que possam ser alvo de comentários maldosos. Como o preconceito

é um campo da irracionalidade teimosa, Justino se esforça por apontar as contradições desse

preconceito.

E na segunda vertente de seu argumento que ele parte para a parte pragmática. Nesse

estágio ele não faz rodeios. Vai diretamente apontando a incoerência que existe em perseguir

aqueles que são, na perspectiva dele, os melhores súditos do Império. Justino mostra como o

Império Romano poderia ser beneficiado com o fato de muitos aderirem ao cristianismo. Os

cristãos procuram agir pela justiça e são sempre obedientes e, principalmente, estão sempre

vigiados pelo temor de um Deus que sonda todas as coisas.

Talvez esses argumentos não tenham muito efeito na época em que foram escritos.

Mas dois séculos depois alguns notaram o quanto seria conveniente tornar o Império Cristão. Referências

ROSTOVITZEFF, M. História de Roma. 4. ed. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1977.

EUSÉBIO de Cesaréia. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002.

CHARTIER, R. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

PIERRARD, Pierre. História da igreja. São Paulo: Paulinas, 1982. 297 p.

BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

MIGNE, Jacques-Paul. Patrologiae cursus completes: Série graeca. Index Iocupletissimus. Paris: Theodor Hopfner: Geuther, 1928.

GILSON, Etienne. A filosofia da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. JUSTINO de Roma. I Apologia. Traduzido por Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995. Disponível em: < http://www.ictis.cjb.net > acesso em 25 de marco de 2009. VENTURINI, R. l. B. Paganismo e Cristianismo no mundo romano. In: MELO, J. J. P.; PIRATELI, M. R. (org.) Ensaisos sobre o Cristianismo na Antiguidade: história, filosofia e educação. Maringá: Eduem, 2006. p. 203-227.

i Para uma consulta a fonte grega do texto MIGNE, Jacques-Paul. Patrologiae cursus completes: Série graeca. Index Iocupletissimus. Paris: Theodor Hopfner: Geuther, 1928.