jürgen habermas - conhecimento e interesse (parte iii)

58

Upload: api-3797930

Post on 07-Jun-2015

1.862 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 2: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 3: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 4: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 5: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

210 CoNHECIMENTO E INTERESSE

173) Gadamer anaJisa essa recaida no objetivismo de forma excepcional;de qualquer maneira nao sou de opiniao qlle 0 possamos entenclerem base de urn div6rcio entre eiencia II filosofia vitalista.

174) VII, p. 213 et seqs.175) VII, p. 204.176) V, p. 317.177) VII, p. 219.178) VII, p. 213.179) Ibidem.180) VII, p. 146.181) I, 49/51 et seqs.182) V, p. 258.183) Cf. meu ensaio "Zllr Logik der Sozialwissenschaften", op. cit., cap.

III, p. 95 et seqs. ,184) VII, p. 188 (as notas entre parentcses sao do autor).

Ij,I

III

CRITICA COMO UNIDADE DECONHECIMEJ\TTO E INTERESSE

A redw;ao da teoria do conhecimento a teoria da clencia, a qualo positivismo mais antigo encenon pela primeira vez, foi inter­ccptada por uma contracorrente que tern em Pierce e Dilthey seusproccIcs m ais exemplares. Mas a auto-reflcxao 'clas cicncias danatureza c cIo cspirito apcllCls sustCl1l, mas l1zio intcrrompCll a mar..clla viloriosa do positivismo. .i\ssim se cxplica por q l1e os inte··resses orientadorcs do conhecimento, uma vez descobcrtos, pude­ram logo mais ser identificados como mal-entendidos psicol6gicos,e sucl1mbir a crHica do psicologismo; 0 positivismo mais recente,foi instaurado sobre os fundarnentos desta crHica na forma deurn empirisrno 16gico e determina, ate hoje, a autocompreensaocientificista das ciencias.

Pela recorrencia ao conceito do interesse da razao em Kant,e sobretudo em Fichte, 6 possivel darear a conexao entre conhe­cimento c interesse, descoberta metodologicamente, e preserva-lairentc as interpretag6es erroneas. Vcrdadc 6 que uma mera son­dagem historica junto a filosofia da reflexao nao e capaz de rea­bilitar a dimensao da anto-rcflexao. :E por isso que 0 exemploda psicamllise nos ira servir de demonstragao para 0 fato destadimensao irromper no seio do proprio positivismo: Freud elabo­rou uma moldura interpretativa para processos de formagao, per­turbados e obliterados, os quais podem, atraves de uma refIexaode orientagao terapcutica, ser condl1zidos para vias normais. Nao

Page 6: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

212 CoNHECIMENTO E INTERESSE CroTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 213

ha dllvida de que ele precisamente nao concebeu sua teoria comollDla auto-reflexao univenml ern termos sistematicos, mas comouma cicncia experimental em termos estritos. Freud nao formulacOllscientemente aquila que separa a psicanalise das ciencias queprocedem de acordo corn metodos emplrico-analfticos, nem da­quelas que operam exclusivamentc segundo criterios hermeneuti­cos; ele simplesmente atribui a psicanalise aos domfriios da tecnicaanalltica. Esta c a razao par que a teoria de Freud permanece umbocado que a 16gica positivista das ciencias, desde entao, em vaoprocura digerir e que 0 empreendimento behaviorista da pesquisainuUmente tenta integrar; de fato, porem, a auto-reflexao encober­ta, a qual constitui a pedra de escandalo da psicanaIise, nao se10ma reconhedvel como tal. Nietzsche e um dos poucos contem­poraneos que unem a sensibilidade para a amplitude das investi­ga<;6es metodol6gicas com a capacidade de se movimentar, semalardc, na dimensao da auto-reflexao. Mas exatamente ele, urndialctico do antiiluminismo, faz tudo para dencgar, na forma daauto-reflcxao, a for<;a cia reflexao, abandonando ao psicologismoos interesses orientadores do conhecimento, dos quais, na verda­de, ele estava plenamente convencido.

9. Raziio e interesse: retrospccgao -- Kant e Fichte

Pierce incentivoll a auto-rcflcxao das ciencias nalurais, DiIthey adas cicncias do espirito; ambos ate um ponto em que as interessesorientadores do conhecimento se tornaram palpaveis. A pesquisaemplrico-anaHtica e a continua<;ao sistematica de um proccssocumulativo de aprendizagem, 0 qual se exerce, ao nlvel pre-cien­1ifico, no drcllio fllncional do agir instrumental. A investigagaohermeneutica da uma forma met6dica a urn processo de com­preensao entre indivlduos (e da compreensao de si) que, na faseprc-cientffica, esta integrada em um complexo de tradi<;5es, pr6­prio a interag6es medializadas simbolicamente. No primeiro casotrata-se da produ<;ao de um saber tecnicamente explor6vel, nosegundo, cia elueidagao de urn saber praticamente eficaz. A ana­lise empirica descerra 0 pano da realidade sob a ponto de vistada disponibilidade tccnica possivel sabre processas objetivadosda natureza, enquanto a hermeneutica assegura a intersubjetivi­dade de uma compreensao entre individuos, capaz de oriental' aagao (horizontalmente, em vista da interpretagao de culturas es­tranhas, e verticalmente, tendo em vista a apropriagao de tradi-

1III

IIJ!

i

I

jII!\

j

<;6es pr6prias). As ciencias experimentais, em sentido estrito, es­tao submetidas as condi<;6es transcendentais da atividade instru­mental, enquanto as ciencias hermeneuticas operam ao nlvel deuma atividade pr6pria a comunica<;ao.

Em ambos as casas a constelar;iio da linguagem, da atividadee da experiencia e basicamente diferente. No circulo funcionaldo agir instrumental a realidade consitui-se como quinta-essenciadaquilo que, sob a ponto de vista de uma possivel disponibilidadetecnica, pode ser experimentado: a realidade objetivada ern con­di<;6es transcendentais corresponde uma experiencia restri tao Alinguagem dos enunciados empirico-anaHticos acerca da realidadetoma carpo sob as mesmas condic;6es. Proposi<;6es te6ricas fazemparte de uma linguagem formalizada ou, no mInima, passivel deformaliza<;ao. De acordo com sua forma 16gica trata-se de cal­culos que, par meio de uma manipula<;ao ordenada dos signos,n6s mesmos produzimos e cada qual pode reconstruir a qualquermomenta. Sob as condi<;6es de urn agir instrumental a linguagempura constitui-se como quinta-essencia de tais conex6es simb6li­cas, as quais podem ser engendradas atraves de um ato operat6riode acordo com leis estabelecidas. A "linguagem pura" deve-se auma abstra<;ao operada a partir do material desordenado dae; lin­guagens ordimlriCls, tanto quanta a "natureza" objetivac1a deve-sea 111l1a abstra<;ao fcita a partir do material ca6tico c1a cxpericnciacotidiana. Uma c antra, a linguagem restrita, nao menos do quea experiencia delimitada, sao definidas pelo fato de resultarem deoperag6es, sejam essas efetuadas corn signos ou corn corpos m6­veis. Assim como 0 agir instrumental ern si, tambem 0 empregolinglifstico que a integra e monol6gico. Ele assegllra as proposi­<;6es te6ricas uma coerencia sistematica entre si, e isso de acordocom regras dedutivas cogentes. A fun<;ao transcendental da ati­vidade instrumental e corroborada par processos relativos a arti­culagao de teoria e experiencia: a observa<;ao sistematica possuia forma de uma demonstra<;ao experimental (au quase experi­mental), permitindo registrar sucessos de opera<;6es mensuraveis.Estas tornam posslveis a predica<;ao irreversivelmente unlvoca deacontecimentos, constados par via operativa, a signos interligadosde modo sistematico. Caso ao quadro da pesquisa empirico-ana­Htica correspondesse urn sujeito transcendental, a medida seriaa realizagao sintetica que 0 caracterizaria de forma mais genuina.:f!. par isso que apenas uma teoria do medir pode esclareeer ascondig6es de objetividade de um conhecimento possivel no sen­tido das ciencias nomol6gicas.

Page 7: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

2.14 CoNHECIMENTO E INTERESSECIUTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 215

Na cantexta da agir inerente it comunicar;iio a linguagem ea expericncia nao se apresentam sob as condic;6es transcendentaiscia ac;ao enquanto tal. Pelo contrario, uma func;ao transcendentalcabe, muito mais, a gramatica da linguagem cotidiana, a qualregula, ao mesmo tempo, elementos nao-verbais de uma praxisvital exercicla habitualmente. Uma gramiitica dos jogos de lin­guagem entrelac;a simbolos, ac;6es e expressoes; ela fixa os esque­mas de apreensao da mundividencia e da interac;ao. As regrasgramaticais cIefinem 0 terreno de uma fragmentada intersubjeti­vicIacIe entre incIivfduos socializados; e nao poclemos engajar-nosnesse plano senao na mwida em que intcrnalizamos tais regras- como participantes socializados e nao como observadores im­parciais. A realidade constitlli-se ,na moldura de uma forma vitalexercitada por grupos que se comunicam e organizada nos termosda linguagem ordinaria. Nesse senticlo creal aquilo que podeser experJmentado de acorclo com a interpretac;ao de uma simbo­lica vigente. Nessa meclida podemos conceber a realidacle sobo ponto de vista cia manipulac;ao t6cnica possivel, e apreender aexperiencia opcracional correspondente como sendo urn caso li­mite. Este caso limite possui os seguintes caracteres: a linguagemesta clissociada cIas interac;ocs nas quais se encontra engajada e .tencIc a ser monol6gica; a atividaclc cst{l scparadacla cOlllunica- ,~:ao c recluzicla ao ato soliuhio de lima lltilizac;:fJo dc rccursosraciolwis-finalistas; pOl' fim, a cxpcri[:ncia biogr{t'rica inclivic1uali­zada csta cIiminada em favor cla expcricllcia repclitiva cIos Sll­cessos clo agir instrumental -- cm suma, as conclic;6cs c1a ativi­dade propria a comunicac;ao cncontram-se, precisamcnte aqui,suprimidas. 5c concebermos 0 quaclra transcendental cia atividacIeinstrumental desta maneira, como lima variac;ao extremada de·.mundos vitais constitufdos peia Iinguagem ordinaria (e, mais pre­cisamente, como reaIicIade na qual tocIos os mundos vltais, histo­ricamente incIiviclualizados, devem chegar a urn acordo no abs­trato), enHlo ficanl claro que 0 modclo cla atividacle cIe urn agirproprio a comunicac;ao nao exerce, para as cicncias hermenclI­ticas, lIma func;ao transcendcntal equiparavel iiquela quc 0 qlla­dro da atividade instrumental possui para as cicncias nomol6gicas.Pois, 0 domfnio do objeto das ciencias clo espfrito nao se cons­titui exclusivamente nas condic;5es transcendentais da metodolo­gia da pcsquisa; na verdade, deparamos com ele como algo jaconstitufdo. As regras de qualquer interpretac;ao estao, por certo,fixadas pelo modelo das interac;6es mediatizadas par slmbolos uni­versais. Mas 0 interprete, lIma vez socializado em sua linguagem ,

Ii

II~I

I

iI

materna e motivado, em termos genericos, para 0 exerdcio ciainterpretac;ao, nao opera em junr;iio de regras transcencIentais, masao nfvel dos proprios complexos transcendentais. Ele nao podedecifrar 0 conteudo da experiencia de urn texto, legado por tradi­dic;ao, senao em intimo contato com a constituic;ao transcendentalde urn mundo do qual ele, enquanto tal, faz parte. Teoria e ex­peri'encia nao se afirmam aqui, diferentemente do que ocOrrenas ciencias empfrico-anaHticas, como grandezas separadas. A in­terpretac;ao, que prccisa entrar em ac;ao no momento em queentra em crise uma experiencia comunicativa, comprovada sobos esquemas comuns da apreensao do mundo e da ac;ao, nao visaso as experiencias adquiridas no seio de urn mundo constitufdopela lingllagem ordinaria, mas tambem as regras gramaticais,correspondentes ao ato-de-constituir 0 munclo enquanto tal. Estainterpretac;ao e, simultaneamente, analise lingiifstica e experien­cia. Ela corrige, em consequencia, suas antecipac;6es hermeneu­ticas, apoiando-se sobre urn consenso de interlocutores, alcanc;adode acordo com regras gramaticais - tambem nesse sentido ex­periencia e percepc;ao anaHtica convergem de uma forma todaparticular.

Pierce e Dilthey desenvolvem a metodologia das cicncias danatureza e cIo espirito como logica c1a investigac;ao e concebcm,cacIa qua1 par sua vcz, 0 proccsso cia pesquisa a partir de llm

complcxo vital objctivo, scja este cntcncliclo como tecnica au comopraxis da vida. A logica cia cicncia recupera assim a dimensaocia teoria do conhecimento, a qual a teoria positivista da cienciaabandonara: como outrara a logica transcendental, assim ela pro­cura lima resposta para a questao das condic;5es a priori de todoconhecimento. Nao ha duvida, porem, que para a logica da cienciaestas condic;6es nao sao mais em-si, mas tao-somente para 0processo investigatorio. 0 exame logico-imanente do progressonas ciencias empfrico-analfticas e 0 avanc;o do modo explicativoda hermeneutica nao tardam a encontrar seus limites: sob 0 visorda 16gica nem a conexao dos modos-de-conduir, analisad01. porPierce, nem a dinamica circular da interpretac;ao, apreendida porDilthey, podem ser consideradas satisfatorias. Como sao possf­veis a incluc;ao, por urn lado, e 0 drculo hermeneutico, poroutro, isto nao pode ser mostracIo por intermedio da 16gica mas,cxdusivamente, nos termos de uma teoria do conhecimento. Emambos os casos trata-se de regras que objetivam a transformac;aologica de sentenc;as; sua valicIade somente se toma plausfvelquando as proposic;6es transformadas sao comprometidas, a priori,

Page 8: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

216 CONHECIMENTO E INTERESSE CRlTlCA COMOUNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 217

com determinadas categorias inercntes a determinadas expenen­cias no interior de urn quadro transcendental, seja este da ordemdo agir instrumental ou pr6prio a uma forma vital, constitufdapela linguagem cotidiana. Tal sistema de referencias possui urnpeso valorativo transcendental, mas ele determina a arquiteturados processos investigat6rios e nao a da consciencia transcenden­tal em si. A l6gica das ciencias da natureza e do espfrito nao seacupa, como a l6gica transcendental, com a organizaC;ao da razaopura e te6rica, mas com as regras metodol6gicas, tendo em vistaa arganiza<;ao dos processos de pesquisa. Tais regras nao con­tinuam tendo a status de puras regras trallscendentais; elas pos­suem urn peso valorativo transcendental, mas irrompem em co­nexoes vitais praticas: a partir da~ estmturas de uma especie quercproduz sua vida atraves de processos de aprendizagem, pr6­prios ao trabalho social organizado, da mesma forma do que pormeio de processos de compreensao, pr6prios a interac;oes mediati­zadas pela linguagem cotidiana. Na interdependencia de tais re­la<;oes vita:s subjacentes mede-se, por isso, 0 senti do da validadede proposic;6es que podem ser obtidas no seio dos sistemas dereferenda quase transcendentais dos processos investigat6rios nasciencias da natureza e do espfrito: 0 saber nomologico c tecnica­mente utilizavel da mcsma forma como 0 saocr hermeneutico ispraticamente eficaz.

Rcmctcr 0 quac1ro (las cic.ncias nOl1lC1I<.\gicas c hcrmcncuticasa um conjunto vital, bem como a corresponclente c1edlH;iio dosentido da validadc rclativa a enunciaclos provinclos de intcressescognitivos, torna-se necessaria no momento em que urn sujeitotranscendental is- substituldo por uma especie que se reproduz emcondi<;6cs culturais, isto C, que nao se cons/itl/i, ela propria, senaoem um proeesso de formaC;ao a constituir a esprxie.- Os proces­sos de pesquisa - e esta especie nos interessa, antes de tuclo,como sujeito de tais proeessos - sao partes do processo forma-.tivO global que perfaz a hist6ria clesta espeeie. As condi<;6es deoojetividade de uma experieneia possfvel, as quais cstao fixadaspela molclura transcendental do processo investigat6rio das cicn­cias da natureza e clo espfrito, nao apenas nao mais explicitamo sentido transcendental de um conhecimento finito, restrito asformas fenomenieas enquanto tais; das pre-molduram, muitomais, um determinado sentido dos modos met6dicos do conheeer,como tal; e isso, a cada vez, de acordo com um criterio proprioa conexao vital objetiva, a qual aflora de dentro para fora daestrutura de ambas as dire<;oes investigatorias. As ciencias em-

i

II!;,I'f

II

1IIi

I

pfrico-analfticas exploram a realidade na medida em. que esta semanifesta no raio da atividade instmmental; enunClados noma­16aicos acerca deste domfnio do objeto estao assim presos, deac~rdo com seu sentido imanente, a urn determinado contextode aplieac;ao - eles apreendem a realidade em vista de limadisponibilidade tecnica que, em condir;8es espedficas, e sempree em toda parte posslvel. As cicncias hermeneuticas nao explo­ram a realidade sob urn outro ponto de vista transcendental; elastern por objetivo, muito mais, uma elaboraC;ao transcendental dediversas formas faticas de vida, no interior das quais a realidadee interpretada de maneira diferente, em funC;ao de gramaticasque formulam 0 mundo e da atividade que 0 transform a; e porisso que, rastreando seu sentido imanentc, as proposic;oes da her­meneutica visam urn contexto de aplicac;ao correspondente ­elas apreendem interpretar;8es da realidade em vista da intersub­jetividade de uma compreensao mutua, suscetlvel de orientar a([r;ao para llma situar;ao hermeneutica inicial. Palamos, portanto,de urn interesse teenico ou prc'itico na medida em que, atravesdos recursos da 16g;ca da pesquisa, as conexoes vitais da atividadeinstrumental e das intera<;6es mediatizadas pelos sfmbolos pre­molduram 0 scntido da validade de enunciados possfveis de talforma que estes, enquanto representam conhecimcJlto:;, nao pos-­SUClll outra func,:50 senao aquela que lhes cOJlv':~m em tais C011­

textos vitais: sefem aplieavcis tccnicamente ou scrCll1 pratica­men te eficaze~_

o conceito do "interesse" nao deve sugerir uma reduC;aonaturalista de determinac;oes transcendentais a dados empfricosmas, pelo contrario, evitar que uma tal reduC;ao venha a ser ine­vitavel. Interesses capazes dc orientar 0 saber (0 que nao possoainda demonstrar aqui, mas apenas asseverar) mediatizam a his­t6ria natural com base na logica de seu processo formativo; masestes interesses nao podem ser invocados para reduzir a 16gica aalgllma base natural. Chamo de interesses as orientac;6es basicasque aderem a ccrtas condic;6es fundamentais cia rcproduC;ao e ciaautoconstituiC;ao possfveis da especie hnmana: trabalho e inte­rar;fto. :E por isso que cada uma destas orientac;oes fundamentaisnao visam a satisfac;ao de necess'dades emplricas e imediatas,mas a solu<';30 de problemas sistemicos propriamente c1itos. Naoh:i duvida de que aqni nao e posslvel falar em soluc;oes de pro­blemas senao em termos aproximativos. Pais, interesses capazesde orientar 0 conhecimento nao devem ser definidos em base deconstela<;6es problematicas; essas s6 podem irromper como pro-

Page 9: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

218 CoNHECIMENTO E INTERESSECRlTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 219

blemas no interior de urn quadro metodo16gico determinado paresses mesmos in teresses. Os interesses orientadores do conheci­mento deixam-se avaliar unicamente pelos problemas objetivosda conserva<;ao da vida, os quais receberam resposta atraves daforma cultural da existencia. Trabalho e intera<;ao englobam ipsofacto processos de aprcndizagem e de compreensao reciproca; ea partir de urn estagio determinado de desenvolvimento tais pro­cessos necessitam estar assegurados na forma de uma investiga<;aomet6dica, casu 0 processo formativo da especie nao deva correro risco de UIlla estagna<;ao. PeI0 fato de a reprodugao da vidaestar determinada culturalmente, ao nivel antropo16gico, pelotrabalho e peia intera<;ao, os iriteresses do conhecimento com­prometidos com as condi<;oes existcnciais deste trabalho e destaintera<;ao, nao podem ser concebidos nos quadros referenciais dabiologia, proprios a reprodugao c a conserva<;ao da especie. Arcprodu<;ao da vida social - os interesses orientadorcs do co­nhecimento nao passariam de um mal-entendido, fossem clesentendidos como mera fun<;ao desta vida ~ nao pode, de formaalguma, ser adequadamente caracterizada sem 0 recurso as fon­tes culturais da reprodugao, isto e, scm reconer a urn processo deforma<;ao que implica, sernpre jei, 0 conhecimento sob estas duasfOi·mas. :E por isso que 0 "interesse do conhecimento" per[azll1llit catcguria SIti gcnclis, il qual talllpouCO sc sujci\a it clislill~',\n

entcc dctc;rminac;i:)cs cllJpfrieas c transccnclentais ou fillicas e sim­b6licas como aqucla entre detcrminac;6es inercntes a motivaeaoe ao conhecimento. Pois, conhecimento nao e nem mero instru­mento de adapta<;3.o de urn organismo a um circum-ambiente emaltera<;ao, nem ato momentaneo de urn puro ser racional e, comocontempla<;3.o, subtraido as conexoes da vida enquanto tal.

Pierce e Dilthey defrontaram-se com os interesses· que cons­tituem a base do conhecimento cientifico, mas eles nao os refle­tiram. Eles nao elaboraram 0 conceito do interesse capaz deorientar 0 conhecimento e, na verdade, nao entenderam aouiloque tal conceito toma por objetivo. Nao h5 dltvida de que' elesanalisaram a constitui<;ao do fUlldamento cIa 16gica invcstigat6rianas condi<;oes gerais da vida; mas eles s6 poderiam ter ic1entifi­cado as orienta<;oes fundamentais da ciencias empirico-analiticase hermeneuticas como interesses a orientar 0 conhecimento noquadro que, a rigor, lhes era estranho, a saber: no interior daconcep9ao de uma his.t6ria da especie considerada como processoformativo. A idCia de urn processo de fonna<;ao no qual 0 su­jeito da especie tern, pela primeira vez, condi<;oespara se consti-

jIII

tuir, foi desenvolvido par Hegel e retomado por Marx em termosde pressuposi<;oes materialistas. Sobre a base do positivismo, 0 re­tODlO imediato a esta ideia deveria afigurar-se como urn retoDloa metafisica; deste ponto nao hci senao urn legitimo caminho devolta; este e percorrido por Picrce e Dilthey, na medida em queeles refletem sobre a genese das ciencias a partir de urn complexovital objetivo e praticam, assim, a metodologia nn perspectiva dateoria do conhecimento. Mas aquilo que fazem, isto ncm urn nemQutro percebem. Caso contn"irio eles nao poderiam ter-se sub­traido a experiencia da reflexao desenvolvida por Hegel na Fe­nomenologia. Pcnso aqui na experiencia da forc;a emancipat6riada reflexao, que expcrimenta ern si 0 sujcito na mec1ida em queela propria se torna, a si mesma, transparentc na hist6ria de sua'genese. A expericncia da rcflexao articula-se, em termos de con­teudo, no conceito do processo formativo; metodicamente elaleva a um ponto de vista a partir do qual a identidadc da razaocom a vontade resulta como que espontaneamente. Na auto-re­f1exao urn conhecimento entendido com 0 fim em si mesmochega a coincidir, por for<;a do proprio conhecimento, com 0

interesse emancipat6rio; pois, 0 ato-de-executar da reflexao sa­be-se, simultaneamcnte, como movimcllto da cmancipa<;flO. Ra­z;lo cncoutra-se, ao rnesmo tempo, submetida ao interesse pm c1amesma. Podemos dizcr que cIe persegue um interesse emanci­pat6rio do conhecimento e que este tem por objetivo a rcaliza<;aoda reflcxao.

As coisas por certo se apresentam da seguinte maneira: acategoria do interesse, suseetivel de orientar 0 conhecimento, echancelada pelo interesse inato a razao. Interesse cognitivo tec­nico e pratieo so podem ser cntcndidos isentos de ambigiiidadc ~isto e, sem decairem ao nivel de uma psicologiza<;ao ou reaviva­rem as criterios de um novo objetivismo - como intercsse orien­tador do conhccimento em base de sua conexao com 0 interes­se emancipaturio do conhecimento c1a reflexao racional. Pelofato de Pierce e Dilthey nao entenc1erem sua metodologia comoa auto-reflexao da cicncia, que cla na verdade e, eles nao atin­gem 0 ponto de intersec<;ao entre conhecimento e interesse.

.0 conceito do interesse da razao ja irrompe na filosofia trans­cendental de Kant; mas somente Fichte pode, ap6s haver subor­dinado a razao te6rica apratica, desdobrar 0 conceito nO sentidode urn interesse emancipat6rio, inerente como tal a razao em a<;30.

o interesse por excelencia e aquele do bem-estar que com­binamos com a ideia da existenr;ia de urn objeto ou uma a<;ao.

Page 10: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

220 CoNHECIMENTO E INTERESSECRITICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 221

o interesse torna por objetivo 0 existir, eis que exprime umarela~ao do objeto que interessa para com nossa capacidade dedesejar. 0 interesse pressup6e uma necessidade, ou entao 0 in­teresse engendra uma necessidade.1 A esta distin~ao correspondeaquela do interesse empirico e do interesse puro. Kant a introduzem vista da razao pnitica. 0 bem-estar pratico naquilo que cha­mamos de bern, isto e, a percepc;ao prazeirosa das a~6es deter­minadas pelos principios da razao e um interesse puro. Enquantoa vontade age par deferencia Irente as leis da raziio pratica, elapossui urn !nteresse no bern mas nao age par interesse:

"A primeira constcla<;:ao dcsigna 0 jntercsso prdtico na a<;ao, a segundao interessc palol6gico no objelo da a<;ao. A primcira apcnas Illostra adcpcndcl1cia da vontadc dos prilleipios da raziio em si, a scgnnda dosprineipios da mesma (razao) posta a scrvi<;o da inciina<;ao, cis que a razaoapenas indicia a regra priitica pela qual a nccessidade da inclina<;ao pooeser satisfeita. No primeiro caso me illteressa a a<;ao, no segundo 0 objctoda a<;iio (enquallto ela mc e gratificallte)",2

o interesse (patoI6gico) clos sentidos naquilo que e agrada­vel ou util decorre da necessidade; 0 interesse (pratico) da razaoIwquilo que c!lamamos de bcm desperta uma necessiclade. Noprimciro caso a faculdac1c de descjar 6 estimulacla por uma incli-·nu(;iio, no segunclo caso cIa 6 clcterminada pcIos IJlillcipios darazi1O. Em analogia com a inclinac;ao sensitiva, enquanto desejoshabituais, podemos falar de uma inclina~ao intelectual isenta deinfluencias sensuais, desde que cla se tenha cristalizado como umaatitudc pennamcnte a partir de urn intercsse puro:

"Embora onde dcva ser admitido um puro interesse da raziio niio possa.'lcr possivcl predicar-Ihc um intercsse (provido) da inclina<;ao, mcsmoassim poucmos, conformando-nos ao uso do linguajar corrente, concedera uma inciina<;ao, mesmo para aquila que s6 pode scr objeto dc urn pra­zer intelcetual, urn dcsejo habitual, e isso a partir do interesse puro daramo; tal inciina<;iio na0 seria, porcm, a causa mas, sim, 0 efcito destc(ultimo) intcressc; poderfaillos dcsigna-Io a inclin(/{;:ao livrc-dc-sl?lltidos(propcnsio intelleclwIlis)".3

A func;ao sistematica do conceito de interessc, peculiar arazao priltica pura, fica clara na ultima sec;ao dos Fundamentosda metafisica· dos costumes. Sob 0 titulo "Os limites extremosde toda filosofia pnitica" Kant exp6e a questao da possibiJidadeda liberdade. Explicar a liberdade da vontade e uma tarefa pa­radoxal, eis que ela e definida pela independencia frente aos im-

pulsos empiricos; uma explicaC;ao da liberdade s6 seria (assim)possivel atraves do recurso as leis da natureza. 0 que denomi­namos liberdade s6 se deixaria explicar pelo fato de qualificar­mos urn interesse que leva os homens a obedecer as leis morais.De outro modo a obediencia de tais leis nao equivaleria a umagir moral e, par conseguinte, nao seria urn agir livre, caso estaobediencia tivesse par base uma motivaC;ao sensitiva. Seja comofor, 0 sentimento moral atesta algo assim como urn interesse efe­tivo na execuC;ao das leis morais, a saber, a intenc;ao de que setome realidade "0 magnifico ideal de urn reino universal de finsem si mesmos (de seres racionais), aDs quais n6s nao podemospertencer como membros senao quando nos comportarmos zelo­samente de acordo com as maxim3s da liberdade COUlO Sc fossemleis da naturcza".4 Aqui nao pode tratar-se, por definic;ao, deurn interesse sensitivo; em conseqiiencia devemos contar com umintcresse puro, na verdade, com urn efeito subjetivo, 0 qual alei da razao exerce soble a vontade. Kant ve-se forc;ado a atri­buir a [aZaO uma causalidade em oposic;ao a faculdade naturaldo desejar; para ser pratica essa causalidade racional precisa sercapaz de afetar a sensitividade:

"Para que aigllcm, racion:!i c Silllult'llleamcnte afetaclo pcb scnsitivicladc:,CjlLcira aquilo que S0l11cn:c " r'lzao prcserevc como impewlivo para a a<;1I0,.Co scm dllviiJa neccssario que a razflO possua uma faculdade de the incutirurn scntimento de praz:.er eu de belll-eslar, ligado ao cumprimento dodcver; ern conseqiicncia, uma causalidade dela mesma, no scntido de de-­terminar a sensibilidadc de acordo com seus pr6prios prinC!ipios. Mas e'de todo impossivcl compreendcr, isto e, tomar conceitualmente claro,como uma simpies ideia, a qual nao contem nada de sensi.vcl em si, pro­dllza umascnsa<;ao de prazer ou de desprazer; pois, aqui se trata deuma especie particular de C3usalidade, acerca da qual nao podemos de­terminar absolutamentc nada a priori, como nao 0 podemos sobre qual­quer causalidade mas para 0 qual dcvemos, lmica e exclusivamente, re­correr It experiencia".5

A tarefa de explicar a liberdade da vontade rompe inespe­radamente 0 quadro da 16gica transcendental; pois, a maneira depor a questao - como a liberdade e passivel? - nos engodacom 0 fato de que, Irente a razao pr<'itica, nos estamos infor­mando acerca das condic;6es da liberdade real e nao da liberdadepassive!. Na verdade, esta questao p6e-se da seguinte maneira:como pode a razao pura ser pratica? Este e 0 motivo pOr .quesomos obrigados a nos referir a urn momento racional que, se---

Page 11: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

222 CoNHECIMENTO E INTERESSECRlTICA COMa UNJDADEDE CONHECIMENTO E INTEREssE 223-

gundo Kant, {; propriamente incompative~ com _as d~ter~i?ai;OeS

da razao, a saber: urn interesse cIa. raz~o. Nao. ~a duvI~a. deque a razaa nao pode estar submehda as cancllgoes e~p~ncasda sensitividade; mas a id6ia do estar-afetad~-da-senslt!Vld~~e

pela razao, tornando posslvel u~ inte:e~~e atraves de uma atIvl­dade que obedei;a as l~is m~raIs, tal l~e~a apenas aparel~temente

protege a razao contra mgredlentes empmcos. ,~aso 0 efelto destacausalicIade especial da razao, 0 bem-estar pratIco puro, fo:, a~e­

TIas contingente e, como tal, tao-s6 engendrado pe]a expenenCla,cntiio tambem a causa deste bem-estar s6 podera ser pensada,comO urn factum. A figura conceitual de urn interesse determi­nado unicamente pela razao pode distinguir tal interesse dosimpulsos meramente fatuais, mas isso sob a cOlldigao de injetarum momenta de faticidade no miolo cla propria razao. Um inte­resse puro nao e concebivel senao sob a pressuposii;ao de que.a razao, na medicIa em que ela inspire um sentimento de praz:r,-obecIega ela mesma a uma inclinagao, independente da questao,de saber alga sobre a difereni;a entre eSSa incJinagao e as chama­,das inc1inagocs imecliatas - no amago cla razao afirma-se a pul­'sao que visa a execu<;ao do que c racional. Isto nao ~, porem,conceblvcl nos termos das cIeterminai;oes transcenclelltals. E ou­tra coisa Kant nao concede nos limites extrcmos dc toda filo­sofia urMica: 0 nome cIe UIll interesse pnro cxprilllc cSle dadoinconc~~lJivc] --- uma re]agao eaus:I1 entre raziio e sensitividaclc,como GIo que garante a exisWncia do sentimento mora]:

'''Ora como esta {J1tima (causalidac1c) nflO podc ofcrcccr ncnhuma rcla<;ao,cntr; causa e cfeito senao aqucla entre dois objctos d<i cxpericIlcia, e.eomo aqui a r3zilo pura deve ser, atravcs de ideias simples (<is quais. naolibcram objcto algum para a expericncia), a causa de um cfeito (a saber,a satisfa<;ao que se tern ao cumprir 0 deycr) que, por certo, so Cllcontrana cxpericncia, a n6s homens permancce c1etodo impossiveJ expJicar por·que e como nos interessam, a lmiversalidade da maxima enquanta lei c,por conseguinte, (tambcm) a moralic1ac1e".G

o conceito do interesse puro possui urn peso va]orativo.sui generis no interior do sistema kantiano. E]e determina l~rn

fato sobre 0 qual nossa certeza acerca da re(llidade cIa :azaopratica pode se apoiar. Nao ha duvida de que este fato nao se'toma acessfvel em uma experiCncia comum, mas 6 atestado atra­'ves de urn sentimcnto moral que cleve reivincIicar a fun<;ao deuma experiencia transcendental. Pais, 110SS0 interesse em obe­,decer a lei moral e produzido pela razao e, ao mesrno tempo,

perfaz urn fato contingente que nao pode ser admiticIo a priori_Neste sentido urn interesse engendrado pela razao implica tam­hem urn momento que determina a razao. Tal raciocfnio conduz,porem, a uma genese nao-empirica cIa razao, ainda que nao intei­iamente dissociada CIa experiencia, 0 que na verdade constituiurn absurdo de acordo com as determinag6es cIa filosofia trans­cendental. Kant e conseqiiente ao abordar este absurdo nao comouma aparencia transcendental cIa razao pratica; cle se dii por sa­tisfeito em constatar que 0 bem-estar pnitico puro nos asseguraque a razao pura pode ser pratica sem que estejamos em con­cIic;:6es cIe compreender como isto seja possiveI. A causa da li­berdade nao c cmpfrica, mas ela tambCm nao e apenas intelee­tual; nos a podemos qualificar como urn fato mas nao a entender.o designativo "interesse puro" remete-nos a uma base cIa razao:somente essa garante as condic;:oes da realizai;ao da razao, muito,embora ela nao possa ser reduzida aos princfpios racionais;pe­10 contrario, como fato de uma ordem superior, esta base sus­tenta as prindpios da razao. Tal base da raziio esta comprovadapelos interesses da razao, mas ela e arredia ao conhecimento;caso esse chegasse ao nivel da libercIade, ele nao cleveria ser nemempirico, nem pum mas tanto urn quanto outro. :E por isso queKant previne contra a transgressao clos limites extrelllOS cia razaopma prMica, pais [[qui, diferentclllcnte do que ocone nos limitesdamz[to teulica aplicada, a l'azi"io DaO ultrapassa a expericncjamas, sim, a cxpericncia do sentirnento moral vai alem da razao.o "interesse pura" c urn conccito-limite que articula uma expe­ricllcia inconcebivel:

"Ora, como uma razao pura, scm outros impulsos senao nqueles engendra­dos POT cIa mesma, pode ser pnitica, isto e, como 0 simples principia da'validade universal de tadas as maxtmas enquanto leis ... , sem materiaalguma da yontade e na qual pudessemos dc antemao ter interesse, poc1econceder a 3i mesmo uma pulsao c produzir urn interesse que chamasse­mos puramente moral; ou, ern outros termos, como pode uma raziio seT'pratiea? Para cxplicar isto a razao humana e, em sua totalic1ade, nbso-·lutamente incapaz, e todo esfor~o e lat]or para encontrar uma cxplicacao.pcrm<inecem infrutifcros".7

Mas, curiosamente, Kant transfere 0 conceito do interessepuro, 0 qual ele descnvolvera a proposito da razao priitica, a to­das as potencialidades do sentimcnto: "A cada faculdade cIo sen­timento 6 pOSSIVel atribuir urn interesse, isto c, Um principio que'contern a condi9ao sob a qual, e exclusivamente, 0 exercicio cIo'

Page 12: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

224 CmnIECIMENTO E INTERESSE CRfTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 225

mesmo pode ser incentivado".8 A redu<;ao do intere~se a urn. prin~dpio ev:dencia, sem du\'ida, que 0 status do c~nceIto, alhelo aosistema, tern sido abandonado, e que se abstram 0 momento dafatic;dade inerente a razao. Tambem nao fica claro 0 que arazao tearica adquire ao Ihe adicionarmos urn inter:sse radonalpuro, caso este consista "no cOllhecimen.t0 do obJeto elevado,ate os prinefp;os a priori",9 sem qu~ aq';lI: como ocorre c~m .0interesse da razao pratica, possa ser Idenhfrcado uma expenenciade bem-estar. De fato, nao e facil compreender como uma sa­tisfa<;ao tearica pura possa ser pensada em analogia com ~ ,ra­zao pratica pura: pois, todo interesse, seja puro ou empmco,cletermina-se a si proprio em rela<;ao com a faculdadc por exce­lencia do desejar e se reporta, 'assim, a praxis possivel; tambemurn interesse especulativo da raz~o es~a:ia, com~ ,int~resse, detodo justificado pelo fato de a razao teonca ser. relVlr:dIcada ?clapratica sem, com isso, ficar alien ada de sua mten<;ao ~numa:

-conhecer pelo prazer de se eonhecer. Para que haja urn mtere,ssecoonitivo e necessario nao apenas promover 0 usa especulahvodab razao enquanto tal, mas tambem conectar a. razao e~p:cu!a­,tiva pura com a razao pratica pura, e isso a partIr das eXIgencias·clesta razao prMica:

"11a.g, de maneira algullla pock ser exigic10 da razao priitica subordinar-sci\ IilZiio espcculativa, invcrlc:ndo ilssirl1 a orc1crn, j{1 que todo intcrc.'Sse e,<kjJois de lUclo, pr{,tico, e I1lCSl1W aquelc da razi,o espcculiltiva (, (apc­nas) condicional e Uio-somcnte perfeito no ernprego pdltico (da razao)".10

Finalmente Kant admite que, em termos estritos, nao po~le

haver sentido falar de um interesse cspeculativo da razao sena,o,quando a razao tearica se alia com a pratica "para um conhecI­mcnto".

Ha um exerefcio leoitimo da razao tearica em vista de umab ,

fin alidade pratica. 0 interesse puro pratico parece, aSSlm, assu-mir a fun<;ao de urn interesse que orienta 0 conhecimento. Dastres qucst6es para as quais convergcm todos os intercsses d~ nossaTazao, a terceira exige Um tal emprego da razao especulatlva emvista de um fim prMieo. A primeira pergunta - 0 que posso-saber? - c apenas especulativa; a segunda - que devo fazer?

, . 'd ?- e apenas pratica; a terceira - 0 que me e permlh 0 esp~rar.

- e pratica e simultaneamente tearica" de so:te que "a _ordem-pratica leva, apenas como fio condutor, a sOlufao da questao te~-

rica e, no momento em que esta desabrocha, a resposta ~a raz~o

,especulativa",l1 0 principio da esperan<;a cletermllla a mten<;ao

pratica, em vista cla qual a razao tearica e reivindicada. Vistodesta maneira, 0 conhecimento conduz, como sabemos, a imor­talidade da alma e a existencia de Deus como postulados da ra~zao pratica pura. Kant esforc;a-se em justificar este usa interes­seiro da razao especulativa, sem distender, ao mesmo tempo, 0

emprego experimental cIa razao pratica. 0 conhecimento rado­nal em termos praticos mantem seu status proprio, subalternofrente aos conhecimentos que a razao tearica, grac;as a sua pe­culiar competencia e sem ser impulsionada por um interesse pn'i­tico puro, pode represcntar:

"Se aquilo que chamamos razao pum pode ser pratico para si mesmo erealmente 0 e, como a cansciencia ela lei moral 0 atesta, a verdadeC que ela permanece sempre a unica e mesma razao que, seja sob 0

ponto ele vista te6rico, seja sob 0 visor pratico, ju]ga segundo principiosa priori; e assim nao h{l cIClvicla de que cIa, quando sua capacidacle deformular peremptoriamcnte cerlas asser<;:5cs c insuficiente c nem porisso cssas a contracligam, cleva precisamente aelmitir tais enunciados,descle que fa<;:am parle illdissolzil'el do interesse pratico cia razao pura;verclade e que a razao devc aceitar tais proposi<;:6es como uma propastaestranha, nao meclracla em seu solo, mas (por certa) suficientementecomprovacla e clevc, com taclo paclcr que lhe esta a disposi<;iio como razaocspcculativa, procurar compar{,-las c entrela~.a-Jas; ao precisar aelmitirislO, a razao (- ilO mesl110 tempo obrigac1a a ilccitar (0 fato) rk CjUG aCjuin:iel sc trata, prccipU:llllcl1te, de ,uas propria>; pcrecp"'h'.S, m:ls de Ulilit

exlCl1s;!o de seu (pr'}jlrio) empn:.go 1':\1" IlIll antro fim, isto t, para tunafinaJiclac1e priilica, e de que isto nao cOlltracliz, ck modo algum, seu cui­uaclo em restringir a lClllericlac1e especulativa (que a caracteriza) ".12

Kant nao consegue clesembara<;ar de todo 0 usa especulativoda razao, inspirado pclo interesse, da ambigUidade. Por urn lac10ele recorre aunidacIe cia razao, cOm 0 objetivo de evitar que a uti­liza<;ao pratica da razao tearica venha a se apresentar como umareestruturac;:ao ou mew instflll11entaliza<;ao posterior de uma facul­dade racional por meio de outra. Por outro lado, porem, raziiote6r:ca e razao priitica perfazem uma unidade tao pouco homo-'gcnc,t que os postulac1os cIa razao prMica pura permaneccm"ofertas estranhas" para a razao tearica, b por isso que 0 em,prego da razao que so atende ao sell interesse nao conduz a urnconhecimento cm sentido estrito; quem confundisse 0 alargamentoda razao para fins pn'iticos com a dilata<;ao da esfera do conhe­cimento tearico possIvel tornar-se-ia cumplice da "temeridadeespeclllativa", contra a qual a crftica da razao pura, em especialtodoesforc;o da dialetica transcendental, assestou sua argumenta-

Page 13: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

226 CONHECIMENTO E INTERESSECRiTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 227

~ao. 0 interesse pnitico da raza~ tao-so poderia. assumir a fun­~ao de um interessecapaz de onentar a conhecnnento em se~­

tido estrito caso Kant tivesse realmente tentado executar a Ulll­dade da ra~ao te6rica e da razao pnitica. Apenas se 0 int~re~seespeculativo da razao - que em Kant ainda tem par obJetlvoexercer de forma tautologica, a faculdade te6riea em vista doconhecimento - tivesse sido tom ado a serio como interessepnltico puro; a razao teorica scria obrigada a c~der sua eompe­tencia, ClljO ccrne consiste no fato cIe ela ser mdependente dointeresse da razao. .

Fichte da esse passo. Ele concebe 0 ato da razao, a intuigaointelectual como uma atividade refletida retornando a si mesmo,e convert~ 0 primado da razao prMica em urn prinefpi,?: a ;~a­lescencia acidental da razao pUIa especnlativa e da razao praticapura "em vista de urn ~onhecimento"_ da, luga: a d~~endencia ra­dical da raziio especulatlVa com relac;:ao a razao pratlca. A o.r~a­

nizagao da razao <5 snbmetida a intengao pr:'iti~a. d,e . urn sUJeltoque se engendra a si. proprio. Sob a J?rma ongmana da. auto­reflexao, a razao is lmedlatamente pratlca, como a doutnna cIaciencia 0 mostra. Ao se tornar transparente a si mesmo em seuoesto autoproc1utor 0 Ell liberta-se do dogmatismo. Este Ell ne-b' • 1cessita da qualicIade moral de uma vontade CI11~tl1Clpac.o_r<l.p~r',l

clcvar-se ale os cOllfins c18 intuigiio inlc]cciual. 0 JC1calIsta soPO(le conlcJJlplar nclc mcsl110 0 a:o clisp(.1l1ivcl ?O Ell, e pi1ri1 ]lo­del' pcreebc-lo, clc proprio 0 prcclsa realizi1I. Ele a pro(hl~, _nelemesmo, arbitrariamellle e com libcrdade".13 Em contraposIgao .atal alilmle a consciencia que se concebe como produto das COI­sas em se~ derreclor esta presa ao clogmatismo: "0 principio dosdogmaticos e a crenga nas coisas em fungao delas mesmas: por­tanto uma fe indireta em sen proprio Eu, disperso e, como tal,apen~s sustentado pelos objetos".14 Para po~er desvencilhar:sedos limites de tal dogmatismo e preciso apropnar-se antes do m­teresse pr6prio 11 razao: "A razao uIti~a d~ divergeneia ~ntre 0

idea1ista c 0 c1ogmalico e, assim, a dlVergenclR de. seu_1\1teres­se".15 Toda 16giea pressup6e a necessic1ade da emanClpag:lo e urnato orio-'nario de liberdade para que 0 homem se eleve ate 0 pon­to de ~sta idealista da maioridade emancipat6ria, a partir d~ ,ql1~1e possivel sondar de forma crftica 0 ?ogmatismo da cC:I1sclenclanatural e, em conseqUencia, os mecalllsmos ocultos da aut~eons­

ciencia do Eu e do mundo: "0 supremo interesse, a razao detodo e qualquer interesse, e 0 interesse_p(lr~ COlZo.SCO mcsmos.:g isso que se passa com 0 filosofo. Nao flcar pnvado de seu

proprio Eu no processo da averigua<;ao, mas conscrva-Io e afir­ma-Io, eis 0 tinico interesse que, invisivelmente, guia 0 pensa­TIlento",16

Tambem Kant, ao expor as antinomias da razao pura, citainteresses que orientam dogmaticos e empiricos, ambos dogma­ticos a sua maneira. Mas 0 "interesse da razao nesse seu COI1­flito"17 - 0 qual se volta contra amhos os contraentes e dosquais urn defende a tese e 0 outro a antftese - Kant nao 0

ve, depois de tudo, senao no abandono do interesse como tal:a raziio que se reflete a si mesma deve "despojar-se de toda par­cialidade",18 0 interesse pr:'itico, bem como seu interesse puro,permanecem assim, apesar de tudo, exteriores a razao especula­fva. Fichte reduz, pelo contrario, os interesses que se introme­rem na defesa dos sistemas filosoficos, a {mica opos;c,;:ao existenteentre aqueles que se deixam cativar pelo interesse cia razao naemancipac,;:ao e na autonomia do Eu e aqueles que permanecempresos a sua inclinaC;ao empfrica e, com isso, dependentes danatureza.

"Acollleee que ha duas categorias de huma!1idade; c no desenvolvimcntode nossa espccie, antes mcsmo de a ([\lima haver assomac!o it sllllCrficlC,cloi:-:: tiros l)fisico~; de hOIllCns. AIZlIllS, os quais (linda nao sc al\~arilrrl

ao pkllD sl:ntimento de Stla libcrdade e de sua autollomia ,Ibso]uia, n~lO

se encolltrarn senfto WI rcprCSCIlt:l\'ao tins coisas; cJes tiio-somclI(c possucmesta aulocollsciencia dispersa, presa aos objetos, composta da multipJiei­dade das coisas. Sua imagell1 Ihes e conferida apenas pelas eoisas, comosc tralasSe de um cspelho; uma vez subtraidas estas eoisas, elcs perdemao meSillO tempo seu IOu; eles nao sao capazes de dispensar, por amor:; si mesmos, a I6 na autonomia das eoisas: pois, elcs tao-somente subsis­1em com eslas eoisas. Tudo 0 que sao, des na realidadc 0 eonseguiramser alravcs do mundo exterior. Quem, de Iato, nao passa de um pro­duto das eoisas, este jalllais pucle eoneeber-se de forma diferente; e elctera i'aziio enquanto falar 3penas de si e daqlleles que Jhe sao seme­lhantes '" Mas quem adquire conseiencia de sua autonomia e de suaillclepcndeneia frente a tudo 0 que the e exterior - c isso so sc ficapelo Iato de Inzer-S8 a si mesmo, par forea propria, indepenclcnte dctudo - nao neecssita das coisas em tcrmos de apoio para set; proprioEu; as coisas the sao inaproveitflVcis, cis que clas eliminam esta suaalltonomia e a transformam em mera apareneia. 0 Eu que Ihe e proprioC 0 qual the interessa suprime toda e qualqucr ercnea nas coisas; de<leredita em sua autonomia por inslinto, ele se apoclera deJa por afeicao.A fe em si mesmo the e imediata".l9 .

A fixac,;:ao afetiva na autonomia do Eu e 0 interesse pela li­berdade revelam ainda a afinidade COm 0 sentimento pratico pu-

Page 14: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

228 CoNHECIMENTO E INTERESSECRiTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 229

ro do bem-estar em Kant: este adqu~rira, de fato, a co?cei~o dointeresse da razao proximo ao afeto mteressado na. realIz~<;ao doideal de um reino de seres racionais livr~~. ?ra, F~chte n~o con­cebe este impulso pnHico puro, a "con~clenc~a. do ImperatIvo ca­tegorico", como uma emana<;ao da razao pratI~a, mas como urnate da razao enquanto tal, como a auto-reflexao, na qual 0 E~

se torna transparente a si proprio como a<;ao que r~t.oma a Slmesma. N as realiza<;oes cia razao teorica Fichte identIfIca 0 tra­balho da razao pr<'itica e denomina de intui((ao intelectual 0 pon­to de interse<;ao de ambas:

"A intui<;ao intelectual, ua qual a' uoutrina cia cicncia ~ala, nao POSSU!o scr par objetivo mas 0 agir; ela nao sc cncontra nlcnclon<lcla em K<lnl(excc<;iio feit<l aquclas passagens, easo se qut;ira, oncle sc fala cle aper­cepr;lio para), Mesmo assim e possivcl dcmonstrar, ~om bastantc cxa­tidao, a passagcm no sistema ~antiano OJ~clc se .clevena t:r. f~lado cieslaquestao. Nao estii Kant conSClcnte do Impcratlvo categonco! De queconsciencia cntao se trata? Kant esqueeeu cle por tal qucstiio em ,deba~t;,

jii quc em parte alguma elc tematizoll 0 funclamcnto clc. tod~ ftlos,o~Ja;

na Critiea da radio pura cstii cm diseussiio apenas a (fllosofw) teoneae nessa 0 impcrativo catcg6rico nao podia apareccr; na Critiea da razaopTiitica Kant tao-somcntc ViSUilli70U a (l'ilosofia) priitica e neln se .tr,atavacxclusivamcntc de cxpor 0 contclldo; ai a pecgiillta ,Iccrca da eSjJcclc ciacOll~.;ci0nci(l l1iio pudia chL1.~jJr a s(~ imI)()I"'I/lo

Pelo fato de Kant haver concebic1o secretamente a razao pn'i-·tica de acordo com 0 modelo da razao teorica, a expericnciatranscendental do sentimento moral, isto e, do interesse que nosleva a seguir a lei moral, devia necessariamente confrontiHo coma seguinte problema: como e possivel que lim m,ero pensamento,o qual nao contem em si mesmo nada de senslvel, como po~e

ele engendrar uma sensa<;ao de prazer ou de clesprazer? Est.a dl­ficulclade bem como os recursos acess6rios de uma causaltdadeespecial da raZ<1.o, torna-se superIlua clesc1e q,u~, inv~:samente, _arazao pnltica libera 0 moclelo para a razao teonca. bs que entaoo interesse prcitico cla razao faz parte_da n~zao_enquanto tal: nointeresse pela autonomia do Eu, a razao se Impoe na. mesma me­dida em que 0 ato da razao proc1uz, como ~,l, aqu,tlo que cha­mamas liberc1ac1e. A auta-rejlex[io e percepfao senslvel e. eman­cipafao, compreensao imperativa e libertafao ~a dependetlCta d~g­

matica numa mesma experiencia. 0 dogmahsmo, esse que diS­solve a razao tanto em termo~ analfticos qua?t? p:atico~,.e umafalsa consciencia: erro e, por ISS0 mesmo, eXlstencra apnsIOnada.Somente 0 Eu, 0 qual na intuil;ao intelectual se fJagra como urn

J

I

sujeito que se afirma a si mesmo, adquire autonomia. 0 dog-.matico, pelo contn'irio, ao nao encontrar a for<;a que 0 pode levara auto-reflexao, vive na dispersao e, a moda de urn sujeito de­pendente, esta determinado pelos objetos e, ele proprio, coisi­ficado como sujeito: ele leva uma existencia nao livre, eis quenao chega a ter consciencia de sua propria espontaneidade re­£letida. 0 que denominamos. de dogmatismo nao e menos umaimperfei<;ao moral do que uma incapacidac1e te6rica; e pOl' issoque a idealista corre 0 risco de se elevar por sobre 0 dogmatico,escarnecendo dele em vez de 0' esclarecer. E neste contexto quese poe a famosa frase de Fichte, nao poucas vezes mal-entendidacomo psicologista:

"0 tipa de filosofi<l que se escalhe cIepcnue, partan ta, da tipa de homemque se e: pois, um sistema filos6fica nao 6 lim utcnsilio inerte, 0 qualSc passa aceitar au rCjcitar a bcl·prazer, mas cle esta anirnado pela alma00 harnem quc 0 possui. Um carMer f1acida por natureza au debilitadae cntorpecida pel<l scrvidaa do espirito, escravizado pelo luxo cia erudi9aoe da vnidadc, nao se ergucra jamilis ate os pinearas do ideaIisrno".21

Nessa formulac;ao enfatica Fichte exprcssCt, mna vez mais,a identiclacle da ntzao tc6rica com a pr:ilica. 0 TJaclrao que si­naliza cite. que ponto estamos impregnac10s pclo interesse cIa ra­zao, cativos clo afeto que busca a autonomia do Eu e amauure­cidos no exerefcio da auto-reflexao, determina ao mesmo tempoo grau de autonomia adquirida e 0 ponto de vista de nOSSa con­cep<;ao filos6fica acerca do ser e da consciencia.

A trajet6ria que, de Kant a Fichte, faz clesabrochar 0 conceitodo interesse racional conduz, a partir do conceito de urn interesseclitado pela razao prMica pOl' a<;6es c10 livre arbitrio, um conceitode interesse que visa a autonomia do Eu, e cuja eficacia se 10­caliza na razao enquanto tal. 0 ato-de-se-identificar razao te6rjcacom sua prfttica, quc Fichte realiza, fica esc1arecido ncste inte­resse. Como um ato c1a Jiberdade, ele precede 0 da auto-refJexao,bem assim como ele se afirma na dinamica emancipat6ria, pe­culiar a auto-refJexao. Tal unidade de razao e emprego interes­sada da mesma colide com a conceito contemplativo de conhe­cimento. Enquanto 0 sentido tradic:onal cle teoria pura seccio­na bas:camente 0 processo cognitivo das conex6es vitais, aquiloque chamamos de interesse deve ser apreendido como urn mo­mento antagonico da teoria, algo que se acrescenta do exterior e,obscurece, assim, a objetividade 90 conhecimento. A inter-rela~:<;ao toda particular de conhecimento e interesse, com a qual nos

Page 15: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

deparamos em 110SS0 percurso atraves da metodologia das cien­das corre constantemente 0 risco' de ser mal-entendida por umavers'ao psicologizante no momento em que for considerada so­bre 0 pano de fundo de uma teoria do conhecimento pur_o, con­cebida como copia; e isso indepcndentemente das vanac;oes queesta teoria possa apresentar. Somos tentados a compreender osdois interesses; capazes de orientar 0 conhecimento e anars~~osate aqui, como realidades superpostas a urn aparelho cogmhvoja constitufdo, como se tratasse de interceptar urn proc~s~o cog­nitivo, aIterando-o antecipadamente com base em urn cilrelto quefosse proprio a esses dois interrsses. 0 emprego da raZ30 espe­culativa em vista de fins praticos guarda, ainda em Kant, resquf­cios deste tipo cle interesse, muito embora nele 0 interesse quepretendc ser ativado seja ja entendido como urn interesse purode uma razao pratica, nao importa 0 que se cleva. ent~ncler ~01l1o desianativo razao pratica. b apenas no concelto frchtemanoda aut~-ref]exao interessada que 0 interesse, incorporado a ra­zao, perde seu carater de mero apendice e sc toma ~onstitutivotanto para 0 ato-do-conhecer quanta para 0 ato-do-agII. ? con­ceito cia allto-reflexao, cJesenvolvido lior Flchte como atlVlciacJeque retroarc SOlllC si mcsmo, possui lima signifjca<;flo sistematicapara a cat;~gori~l do interessc CJue orienta 0 conhecimento. TClm­!16m a esse nfvcl 0 interesse Clnteeede Cl COt1heCIlllento, bem aSSIJJl

(alias) como de sc e1etua exc!us;vamentc pOl' me;o deste conhe-

cimento.Nao seguimos as pegacJas cla intenc;ao sistematica cia ])ou-

trina da ciencia; ela fora pensada com 0 objetivo de si:lla.r sellSleitores, em virtllde de um ato solitario, no ponto nevralglco daautocontempla<;ao de um Eu que produz absolutame.nte 0 mUl1doe a si mesmo. Hegel escolhe, , com. razao, 0_ cam!nho comple­mentar da experieneia fenomenologica; esta nao delxa 0, (:ogma­tismo instantaneamente atras de si, mas percone os estaglOs daconseicncia que sc mostra como os estagios c1a refle~~o .. A auto­reflexao oriainaria de Fichte e distendida na expenencla do. re­flexao. Ta;;'pouco podemos seguir a inten<;ao d.a Fenomel1olo·'gia do esplrito, a qual e para' condllzir sell.s lCltores ao. saberabsoluto e ao conceito da eiencia especulatIva. 0 movlmentoda reflexao que toma a consciencia empirica por ponto de pa:­tida une por certo, raz3.o e interesse; pelo fato de estemov~­mento r~eneontrar em cada estagio, a dogmatica de lima mundl­videncia e de um~ determinada fonna de vida, 0 processo do~onhecimento coincide com 0 processo formativo. Mas nao po-

230 CoNHECIMENTO E INTERESSE

CRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 231

demos conceber a vida de urn sujeito que se eonstitui em termosde especic como 0 mo\imento absoluto da reflexao, eis que ascondi<;6es nas quais a especie humana se constitui nao sao ape­nas aquc1as que a reflexao poe em cena. 0 processo formativonao e incondicionado como 0 e 0 instaurar-se do Eu fiehtenianoou como 0 e a dinamica absoluta do cspfrito. E1c depende daseventuais condic;6es da natureza subjetiva, bem como da natu­reza objetiva; por urn lado, ponanto, dcpende de condic;6es dumasocietarizac;ao individualizadora de particulares interagindo e e,por outro, devedora as condj~oes da "troca metab6lica" entreos agentes comunicativos e UT:': meio que tecnicamente precisafazer-se disponfveI. Na medida em que 0 interesse da razao pe­la emancipac;ao, 0 qual e in\'estido no processo formativo do.especie e transpassa 0 movime:1to c1a rcflexao, volta-se para aefetivac;ao daquelas condi<;6es peculiares a intera<;ao mediatizadapor sfmbolos e proprias ao agir instrumental, ele assume a for­ma restrita do interesse inerente ao conhecimento pnltico e t6c­nico. De certa forma torna-se, inclusive, necessario reinterpretarmaterialisticamente 0 interesse do. raz50, tal como 0 idealismoo introc1uzira: 0 interesse emancipat6rio depende, Dor seu lado,dos interesses que o6cntam aqaes inter'sulljeliva" pa'sSlveis c con­troJam u:na possfvcI c1isponibilid2de ~ccIlica.

Os inlcrescs CjIle, a (.'se IlIY,,1, oricntam proccssos cognitivos:1[10 vigcrn para a existencia de objetos mas, sim, para a<;6eslllstrumentais e intcra<;6es bcm-sucedidas - no meSl1l0 sentic10 Kantdistiugllira 0 interesse puro, 0 qual adotamos nas a<;6es morais,daquele das inc1ina<;6cs empfricas, 0 qual c despertado peIa meraexistencia clos objetos das ac;6es. Mas, bCI1l assim como a razao,ditanclo ambos as interesses, nao e doravante mera l'azao prati­ca pura, mas uma razao quc une conhccimento e interesse naauto-reflexao, do mesmo modo os interesses voltados para a ati­vidade da comunicac;ao e da instrumentalizac;ao incluem necessa­riamente as categorias do saber que Ihes sao proprias: eles ad­CJuirem ipso facto 0 peso valor"ti\-o de interesscs capazes deorientar 0 conhec~mento. Tais fonnas de ac;6es nao podem, a ri­gor, ser estabelecldas a longo prazo sem que estejam igualmenteasseguradas as categorias do saber que acompanham estes inte­resses, os processos cumulativos de aprendizagem e as interpre­tac;6es permanentes, mediatizadas pela tradi<;ao.

. Temos mostrado que, no clrculo funcional onde se exereea atividade instrumental, se imp6e uma autra constela<;ao do· agir,da linguagem e da experiencia do 9ue no quadro das interac;6es

Page 16: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

232 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRlTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 233

mediatizadas simbolicamente. As condic;6es do agir instrumentale cIa atividade propria a comunicac;ao sao, simultaneamente, ascondic;6es da objetividade inerente a um conhecimento possivel;elas fixam 0 sentido da validade de proposic;6es nomologicas OUhermeneuticas. A inserc;ao de proeessos cognitivos em complexosvitais chama nossa atenc;ao para a func;ao de intyresses capazesde oriental' 0 conhecimento: urn complexo vital e urn conjuntode interesses. Mas, assim como 0 nivel, ao qual a vida socialse reproduz, tal feixe de interesses nao pode ser definido inde­pendentemente destas formas de ac;6es e das categorias corres­pondentes do saber. 0 interesse pela manutenc;ao cIa vida esta,no plano antropologico, comprometido com uma vida organiza­da pOl' meio da ac;ao e do conhecimento. Os interesses que orien­tam 0 conhecimento estao, portanto, determinados pOl' dois fa­tores: pOl' urn lado, eles atestam que os proeessos cognitivos ternsua oriaem em conjuntos vitais e neles exercern sua eficacia;mas, p;r outro lacIo, atraves destes interesses se expressa igual­mente 0 fato ele que a forma da vida, reproduzida socialmente,nao poeler ser caracterizada adequadamcnte senao pelo liame es­pecffieo entre conhecimento e interesse.

o interesse esta ligado a ac;6es que, se bem que em umaconstelac;ao eliferentc, fixam as conelic;6cs de touo conhecimentopossIvc], assim como estas, par sua vez, ckpendem de processoscognitivos. EscJareecmos tal intcrelepencll~llcia entre conhecimeJl­to e interesse ao examinarmos aquela categoria de "ac;6es" queco;ncidem com a "atividade" da reflexao, a saber: as ac;6es eman­cipatorias. Urn ato ela auto-reflexao que "aItera a vida" e limmovimento cIa emancipac;ao. De modo igual como aqui 0 inte­resse cIa razao nao pode corromper a forc;a cognitiva da razao~ cis que, como Fichte nao cansa de explicitar, cOnhecimentoe interesse estao fun didos em um zlnico ate - 0 interesse naopermanece exterior ao conhecimento Hi, onde ambos os momen­tos da atividacIe e do conhecimento ja se dissociaram: ao niveldo agir instrumental e do agir proprio a eOll1unieac;ao.

Mas, mesmo assim, nao ha dtivida de que nao podemos cer­tificar-nos metodologicamente dos interesses que orientam 0 co­nhecimento nas ciencias da natureza ou nas cicncias do espiritosenao depois de havermos penetrado na dimensao da auto-re­flexao. Aquilo que chamamos de raziio se apreende no momenlOem que ela, enquanto tal, se executa como auto-reflexiio. £, pOl'isso que nos deparamos com a reJac;ao fundamental entre conhe­cimento e interesse quando pratieamos metodologia de acordo

i

I'II

c.o:n a experiencia da reflexao, qual c: dissoluc;ao critica do obje­tivismo, a saber, da autocompreensao objetivista das cicncias aqual omite a participaC;a? da ativida,de subjetiva nos objetos p're­moldados de urn conheCimento posslveJ. Nesse sentiuo nem Pier­ce, nem DiIthey conceberam suas investigac;6es metodoloaicasco:n0 uma, a~to-reflexao. Pierce compreende sua logiea da °pes_qUlsa em mtImo contato com 0 progresso cientffico, cujas con­dic;6e~ ~ssa logic~ a.nal~sa: cIa e uma disciplina acessoria que­contnbUl para a mstltuclOnalizac;ao e acelerac;ao do processo in­ves~igat~rio _em seu c~njunto e~ como tal, promove a progressivaraclOnahzac;ao da reahdade. DlIthey entende sua l6gica das cien­cias ?~ espirito ~~ relac;a? com 0 avanc;o da hermeneutica, cujascondl.C;o~s sua loglca anahsa: ela c lima disciplina acessoria quecontr:bul para a propaga<;ao da consciencia historiea e para aatualizac;ao estetica de uma vida historica onipresente. Nenhumdos dois leva em considerac;ao se a metodologia nao reconstr6i,como teoria do conhecimento, experiencias mais radicais da his­toria da espeeie e nao conduz, assim, a um novo estagio da auto­reflexao no processo formativo da especie humana.

10. Auto-retlexao como c?encia:a criiica IJsicanaZitica do sentido C7n Preud '

No fim cIo seculo XIX nasceu uma disciplina que, no infcio comoobra de um tinico homem, se movia, ja em seus prim6rdios, 110elemento da auto-reflexao e, assim mesmo, reivindicou de ma­neira convincente estar legitimada pOl' um metodo estritamentecientffico. De mouo diferente do que ocorre em Pierce e Dilthey,Freud nao e um l6gieo da ciencia. que se pode oriental' em umadisciplina ja estabelecida, refletindo a partir dela sobrc suas pr6­prias experiencias. Pelo contrario, ao desenvolver uma nova dis­ciplina Freud refletiu sobre suas premissas. Freud nao foi umfi16sofo. Sua tcntativa de mcdico em claborar um arcaboucoteor:co das neuroses levam-llo a uma teoria sui generis. Ele;(>se depara com pondera<;:6es metoclo16gicas na medida em que 0

fllndarnento de uma nova ciencia obriga, exatamente, a refle­til' acerca do novo ponto de partida: nesse sentido Ga­lileo nao apenas criou a nova fisica, mas tambem a co­mentou em termos metodolog:Cos. A psicanalise 6, para n'6s,relevante Como 0 tinico exemplo disponivel de uma ciencia quereivindica metodicamente 0 exerdcio auto-reflexivo. Com 0 sur-

Page 17: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

"A vida e historica na medida em que e apreendida em sua progressaotemporJl e no conjunto dinamieo no qual ela possui sua genese.. A pos­sibilidade de tal perspectiva esta 110 fato de se reconstruir este eursona mem6ria, 0 qual nao (apenas) reproduz 0 elcmcnto singular mas 0

·proprio conjunto e seus esUigios mais diversos. 0 que a recordac;ao rea·liza na ipreensao da seqiiencia da vida enquanto tal, isto c executado

gimento da psicam1lise abre-se, atraves do caminho peculiar itlogica da pesquisa, a perspeetiva de um acesso metodologico aesta dimensao disfarc;ada do positivismo. Tal possibilidade naose coneretizou, pais 0 auto-equfvoco· cientificista da psicanalise,inaugurado pelo proprio Freud, 0 fjsiologo por origem, obstruiuem germen esta possibilidade. a auto-equfvoco nao deixa, porcerto, de ter was raz6es. Afinal, a psicanalise combina a her­meneutica com realizac;6es que, a rigor, estavam reservadas aodomfnio das ciencias da natnreza.22

A psicanalise comec;a afirmando-se como uma forma espe­cial de interpretac;ao; ela libera pontos de vista teoricos e regrastecnicas para interpretac;ao de conjuntos simb6licos. Freud orien­tou permanentemente a interpretac;ao dos sonhos no modelo her­meneutico do trabalho filologico. Ele a compara, ocasionalmen­te, com a traduc;ao de um autor estrangeiro, assim por exempJo,com urn texto de Tito Uvio.23 Mas 0 obrar interpretativo doanalista nao apenas se distingue da atividade do fil610go pelaselec;ao de urn domfnio particular do objeto; urn tal obrar exigeuma hermeneutica espeeffica e ampliada, que leva em conside­rac;ao, frente it interpretac;ao habitual das ciencias do espfrito,11ma nova dimclIsiio. Nao foi por acaso que Dilthey tomou abiografia como pOlito de partie!;} dc sua an{tlisc do ato-do-com­prcencler; a reCOl\stnH.;ao de ml1 complexo autobiognifico, passf­vel de ser trazido amcmoria, <5 0 modelo par cxcclcncia da inter­pretac;ao de conjuntos simb6licos. Dilthey escolhe a biografiacomo modelo porque esta the parece ter a vantagem da transpa­rencia: ela nao apresenta aquilo que esta par ser recorc1ado aresistencia do opaco. Aqui, no foco da mem6ria autobiografica,coneentra-se a vida historica como "aquilo que 6conhecido apartir do interior; trata-se daquilo aquem do qual nao e posslvelrecuar".u Para Freud, em contrapartida, a biografia so e objetoda amlIisc na medida em que ela e, ao mesmo tempo, 0 conhe­cido e 0 desconhecido do interior; de maneira que se torna ne­cessaria ir a16m daquilo que constitui 0 recordado. Dilthey COI11­

promete a hermeneutica com a opiniao subjetiva, cujo sentidopoek ser garantido pela lembranc;a dircta e imediata:

234 CoNHECIMENTO E INTERESSE

II

I

II!

CRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 235

l1a hist6ria at raves de expressoes vitais, estas que abarcam 0 espiritoobjetivo por intermedio do congrac;amento estabelecido por tal sucessaoe seus efeitos".25

Dilthey ests. obviamente ciente de que, para a16m do hori­zonte cIa biografia atualizada, nao podemos contar com a garantiasubjetiva de uma memoria imcdiata. a compreender volta-se,por isso, tambem para as formas simb6licas c aos textos nosquais a estrutura do sentido se objetivou, com 0 objetivo de virem auxflio da memoria adulterada da especie humana, por meioda recomposic;ao critica destes textos:

"A primeira condic;ao para a construc;ao do mundo hist6rico e, assim,a purificac;ao das confusas e, sob muitos aspectos, corrompidas recorda­c;ocs cia especie burnam, nela mesma, at raves da critica que constituio correlato da intcrpretac;ao. E por isso qne a cicncia fundamental dahistoria e a filologia em sentido formal, como cstudo CiCLltifico das lin­guas· nas quais a trJdic;ao esta seclimentada, colec;ao da heranc;a oahumanidade passada, eliminac;ao clos ·erros que ela contem, ordenaC;aocronol6gica e combinac;ao, as quais poem tais doeumentos em intimarelac;iio uns com os outros. Filolcgia 1150 e, nesse sentido, urn recursoacess6rio para 0 historiador, mas assinala 0 primeiro raio de ac;iio deseu modo de proecdcr".2G .

DiltlIcy c011ta, igL\al a Frcud, com a pouca fic1cJidac1e e <J

~1CeJliuada confusflo da memoria subjetiva; arubos vrcl11 a neets·­sic1adc de uma crftica que restabelec;a 0 texto mutilado cIa tra­dic;ao. Mas a crftica filol6gica distingue-se· da psicanalitica pelofato de rcconduzir, pelo caminho da apropriac;ao cIo esplrito ob~

jctivo, ao conjunto intencional da opiniao subjetiva como baseultima da experiencia. Dilthey superou, sem dlrvida, a intelccc;aopsicol6gica da expressao em favor da compreensao hcrmeneuticapr6pria a intelecc;ao do scntido; "0 requintc psicol6gico cedeuIugar a compreensao de configurac;oes intelectuais".27 Mas a fi­lologia, voltada para a conexao simb6lica, permanece limitada auma linguagcm na qual se expressa conseientcmcntc aquila quesc prctende dizer. Ao tornal compreenslvcis as objetivac;6es, afilologia atualiza seu conteudo intencional no mcdium da expres­sao biografica cotidiana. Nesta medida a filologia Hlo-somenteassume func;oes adicionais a servic;o de uma forc;a da memoriaautobiogrMica que funciona em condi~6es norrnais. a que, atra­ves do obrar crltico, ela elimina pela elucidaC;ao de texto<; saodeficiencias acidentais. As omiss5es e alterac;6es, rctificadas pelacrftica filologica, nao possuem peso valorativo sistematico, pois

Page 18: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

236 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRfTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 237

a estrutura do sentido dos textos, com as quais a hermeneuticase ocupa, esti sempre apenas ameac.;ada por influencias externas.o sentido pode ser aniquilado pelos canais da transferencia, li­mitada de acordo com a capacidade e a eficiencia; sejam esSescanais proprios a memoria au a tradic.;ao cultural. I

A interprctac.;ao psicanalitica, pelo contrario, nao se volta paracomplexos de sentido, peculiares a dimensao daquilo que se in­tensiona conscientemente; seu trabalho critico nao elimina defi­cicncias acidentais. As omiss6es e as altera<;6es que ela suprimepossuem urn peso valorativo, pois os conjuntos simb61icos que apsicanalise procura compreender estao adulterados por influenciasinternas. As mutilac.;6es possuem, como tais, urn sentido. Umtexto adulterado dessa especie so podeni ser satisfatoriamenteapreendido em seu sentido depois que for possivel esclarecer 0

sentido da corrupc.;ao enquanto tal: e isto que caracteriza atarefaparticular de uma hermeneutica que nao se pode limitar aos mo­dos de proceder da filologia, mas unifica a analise da linguagemcom a pesquisa psicol6gica de complexos causais. A manifesta­,<ao parcial e deformada do sentido nao resulta, nesse caso, deuma tradic.;ao defeituosa; afinal, trata-se sempre ja de um sentidoinerente ao conjunto biogratico ao qual a sujeito nao tern mais<\ccsso. No interior do horizontc dc Ullla biografia atualizac1a arccordac;:ao falccc a tal POllto qnc os 8b,1105 func!onais (la mcm':l­ria post\llam, cnquanto tais, 0 rccurso ~l hermeneulica e cxigcm,par conseguinte, serew entendidos a partir de uma cOJlcxao obje­tiva de sentido.

Dilthey concebera a recordac.;ao autobiogrMica como concli­C;ao de uma intelecc;:ao hermencutica possivel e comprometeu,assim, 0 ato-do-compreender com aquila que e collscientementeintencionado. Freud depara-se com ofuscamentas da mem6riaque, por sua vez, expressam intenc.;6es; estas nccessitam, entao,transcender a dominio daquilo que perfaz a opiniao subjetiva.Com sua analise da linguagem ordinaria Dilthey nao fez mais doque tangenciar 0 caso-limite da discrepancia entre proposic.;oes,ac.;6es e express6es vivenciais; este caso-limite constitui, porem, aeaso normal para a psicanalise.

A gramatica da linguagem cotidiana nao apenas regula aeonjunto simbolico mas, igualmente, a imbricac.;ao de elementosda linguagem, modelos de ac.;ao e express6es. Numa situac.;ao nor:"mal estas tres categorias de expressao comportam-se de maneiracomplementar, de modo que aquila que denominamos de expres­sao verbalencontra-se, por urn lad0, "enquadrado" em interac.;6es

~'. p~r outro, ambas se "adequam" novamente a expressoes, eISS0 llldependentemente da questaa acerca do espac.;o necessariaqu~ urn grau incompleto de integrac.;ao reserva para informaC;'6es0drretas. Mas, no caso limHrofe, .? jogo da. linguagem pode de­smtegrar-se de tal forma que as tres categonas cia expressao naomais concorclam entre si: ac.;6es e express6es extraverbais des­mentem agora a que e expressis verbis asseverado. Mas 0 sujeitoque age desmascara-se tao-somente frente aos outros, as quaiscom· ele interagem e observam a seu clesvio das regras da gra­miltica, proprias ao jogo da linguagem. 0 agente, como tal, naopode observar a discrepancia au, quando a cansegue, nao esta emcondic.;oes de a entender, cis que ele mesmo se expressa nessadiscrepancia e, ao mesmo tempo, se desentende nela. Sua auto­compreensao precisa agarrar-se aquila que e entcndido conscien­temente, a expressao verbal, ao dado que sc verbaliza. Mesmoassim a conteudo intencional, que chega a superfkie na forma deurn agir e de urn expressar contraditorio, e introduzido no con­junto biografico do sujeito da mesma maneira como 0 sao assignificados sllbjetivos, apenas supostos pelo sujeito. Este e for­,<ado a se iludir acerca de tais express6es cxtraverbais, descoorde­nadas que estao com a cxpressao verbal; mas como de proprionelas sc objctiva, de acabara sc iluclinclo acer<:a de si mCSmo.

A intcqlrctac;:ao psicallalltica oCllpa-se COm ulis complcxossimbolicos nos quais um sujeito sc iluc1c acerca de si mesmo. Ahermeneutica das profui7dezas, a qual Freud contrapoe a versaofilologica de Dilthey, reporta-se a textos que indiciam auto-enga~

nos do autor. Alem do contelldo manifesto (e de comunicaC;6esindiretas mas comprometidas em termos intencionais com esteeonteudo) revela-se nesses tcxtos a conteudo latente de uma par­te das orientac.;6es proprias ao autor, mas que se Ihe toruou ina­cessivel e estranho, muito embora the pertenc.;a: Freud cnnhou af6rmula do "territorio estrangeiro interior"28 para caracterizar aexteriorizac.;ao de algo que, apesar disto, e parte constituinte dosujeito. Nao ha dllvida de que exteriorizac;6es simb61icas, perten­centes a essa c1assc de textos, dao-sc a conhecer par meio departicularidades que tao-somente emergem num amplo contextode ar!iculac.;6cs, envolvendo express6es vcrbais e outras formas de{)bjetivac;oes.

"Estou, por cerlo, infringindo 0 significado linguistico comum ao postu­lar 0 interesse do pesquisador cla linguagclIl para a psicanalise. Sob 0

termo linguagem cleve ser entendicla aqui nao apenas a expressao depensamentos em palavras mas, igualmente, a linguagem da mimica e

Page 19: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

238 CoNHECIMENTO E INTERESSE. CRiTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 239

toda sorte de express6es da lltividade psiquica, como por exemplo aescrita. Assim sendo, pode-se salientar que as interpreta,,6es da psicana·lise sao, antes de mais nada, tradu,,6es de urn metodo estranho de expres­sao para outro modo de expressao, 0 qual nos e familiar".29

E possIvel que 0 texto corrido de 110SS0S jogos de linguagemcotidianos (discurso e ac;oes) seja perturbado pot erros, apenasna aparcncia acidentais: atraves de omissoes ou deformac;oes que,quando se maritem no interior dos limites da tolerfmcia habitual,podem ser depreciadas como fortuit as e, como tais, esquecidas.Estes atos falhos, aos quais Freud soma casos de esquecimento,lapsos de Iinguagem, de escrita, de leitura, os equivocos no apa­nhar urn objeto e os chamados Fltos descuidados, sao indieadoresdo fato de 0 texto defeituoso revelar e, simultalleamente, enco­brir as auto-ilusoes do autor.30 Falamos de sintomas qu:mdo asinexatidoes do texto sao mais flagrantes e se situam na esfera dopatologico. Sintomas nao podem ser ignorados nem compreendi­dos. Mesmo assim eles sao parte de complexos intenc:onais: acontinuidade do texto dos jogos de linguagem cotidianos nao einterceptada pOl' influencias externas mas interrompida pOl' aba­los internos. 0 que chamamos de neurosc clistorce complexossimb6licos nas tres dimensoes acima mcncionadas: a expressaoverhal (rcprcscnla~:ao obsessjva), ac;ocs (compulsao a h:pctic;ao)e expn::ssao vivclIcial amalgamada com 0 corpo (silllom::s hisle-­rico-somaticos). No caso das pcrlurbac;clcs psicossomilticas 0 sin­toma esta, na verdac1c, de tal modo distanle do texto original queseu carater simb61ico necessita, antes de mais nada, de ser de­monstrado peld trabalho interpretativo como tal. Os sintomasncur6ticos em sentido estrito loca1izam-se, par assim dizer, entreos atos falhos e as doenc;as psicossomaticas: eles nao podem sel'bagatelizados como fenornenos oCaSiOIl<iis, mas tambem nao 6 pos-_sivel denegc'i-los a lange prazo em seu carater simb6lico; esse osidentifica como porc;6es isoladas de urn conjunto simbolico maior:os sintomas ncmoticos sao cicatrizes de um tcxto aclultcrado; 0aulor se depara com ele como se tralasse de um tcxto illcom­preensivel.

o modele nao patologico de urn tal texto 6 0 sonbo.31 0sonhador produz, cle proprio, 0 texto do sonho; provavelmentecomo urn complexo intenciona1; mas, uma vez dcsperto, 0 su­jeito nao mais compreende sua produc;ao, embora ele se identi­fique de certa forma com 0 autor do sonho. 0 sonho 6 cauda­tanG de ac;6es e express6es, 0 jogo de linguagem completo 6 ape­nas imaginado. B por isso que os atos falhos e os sintomas nao

I

I-I

\

se podem mostrar nas discrepancias entre manifestac;6es verbaise nao-verbais. Mas tal is01amento da produC;ao onIrica frente aocomportamento e, ao mesmo tempo, condic;ao de possibilidadepara 0 extremado espac;o de jogo das forc;as que implodem 0texto repercutente da consciencia diurna (os "restos diurnos"),transformando-os em urn texto de sonl1o.

Freud concebeu assim 0 sonllo como 0 "mode10 l1orma1" dasafeic;6es patologicas; a interpretac;ao dos sOl1hos permaneceu sem­pre como mode10 de explicac;ao em vista do esc1arecimento decomplex6es de sentido pat010gicas e deformadas. E1a ocupa, ade­mais, uma posic;ao neura1 no desenvolvimento de psicanalise, por­que foi atraves da decifrac;ao hermeneutica de textos oniricos queFreud deparou-se com 0 mecanismo da defesa e da formac;ao desintomas:

"A transforma.;;ao dos pensamentos oniricos latentes em conteudo omncomanifesto mereee toda a nossa aten"ao; trata-se do primeiro exemploque nos e conhecido de material psiquico que c transformado de urnmodo de expressao para Olltro, de urn modo de expressao que nos cimecliatamente inteligivel para outro que so poc1emos vir a entender coma ajucla de orienta"ao e esfor"o, muito cmbora tamb6m deva ser reeD­nhecido como uma fun"ao de nossa atividac1e psiquiea".32

Em face dos sonhos, Frend obriga 0 alla1ista a assnmir umarigorosa atitude dc inlerprelc. No imI)Qrtante capitn10 VII de "Ainterpretac;ao dos sOl1bos" ele dec1ara, nao scm satisfac;ao, a pro­posito de suas proprias interpretac;6es:

"Em suma, 0 que na opiniiio dos autores (precedentes) nao deve sermais do que uma improvisa"iio arbitd.ria, apressadamcnte cozic1a na per­plexidade (do momento) , isto nos tratamos como Se fosse urn texto sa­grado".33

Vista sob outro aspecto, porcm, a concepC;ao hermeneuticanao satisfaz; pois, sonbos pertencem aqueles textos com os qnaiso autor se ve confrontac1o como se fosse a1go estranho e incom­preensivel. 0 analista 6 forc;ado a recuar, atraves de perguntas,para aquem do conteudo manifesto do texto onInco para poderapreender 0 pensamento onirico latente que al se manifesta. Atecnica da interpretac;ao de sonhos vai, nesse sentido, mais al6mdo que a arte da hermeneutica, uma vez que ela deve nao apenasatingir 0 sentido de urn possivel texto deformado, mas 0 propriosentido da deformar;ao textual, a conversao de urn pensamentoonirico latente em urn sonho manifesto; portanto, na medida em

Page 20: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

240 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 241

que ela e obrigada a reconstmir aguilo que Freud denominou"trabalho do sonl1o". A interpretagao do sonho leva a uma re­flexao que transita pelo mesmo caminho que 0 texto onirico, aosurgir, teve que perconer: frente ao trabalho do sonho ela secomporta de forma complementar. No curso de tal operagao 0

analista pode apoiar-se no processo da livre associagao de ele­mentos isolados do sonho e sobre as participa'g6es complemen­tares espontaneas que 0 paeiente acrescenta posteriormente aotexto onirico original.

A camada superior do sonho, a qual desta maneira pode seridentificada e desobstmida, e a fachada onirica, 0 resuItado deuma elaboragao secundaria; esta, apenas comegou a operar depoisque a recordagao ol1irica assomou, como objeto, n superflcie daconsciencia do sonhador desperto. Esta atividade racionalizadoraprocura sistematizar contelidos obscuros, interpolando lacunas eaplainando contradig6es. A camada seguiute deixa-se reduzir aosrestos diurnos incomplctos; portanto, aos fragmentos dos jogosde Jinguagem do dia anterior, os quais depararam-se com obsta­culos e nao foram levados a termo. 0 que resta c uma cam adamais profunda, com seus contelidos simb6licos; Esses rcsistem aotrabalho da interpretac;ao. Preud chama-os de simbolos oniricospropriamente ditos, isto e, representayocs CIllC exprimell1 um COI1­

/c.{lclo la/cnlc. em tcrmos lJ1c/af6rieos Oll alcg6ricos 0\1 em ,tlgum;loutr:\ form:1 de disfaree sistematico. J\ proxima iniormag~io queobtcmos acerca de tais simbolos oniricos provcm cIa peculiar ex­pericncia da resislellcia, essa que se opoe ao traball10 interpreta­tivo. Esta resistencia, a qual Freud associ a a uma censura oniri­ca, mallifesta-se nao menos l1a earencia assoeiativa, no processohcsitante de associag6es e em associag6es que nao passam desubterfligios, do que no esqueeimento de fragmentos textuais, osquais postcriormente sao aereseentados ao texto onirico original;

"Durante 0 trabalho (analitico) c impossiveI nfto atentar para as mani­festa<;6es desta resistcncia. Em cleterminaclos pontos as associa<;ocs saoforuecidas sem hesita~ilo, e ja a primeira Oll sugullcla icl6ia que advcmespontaneamente iJ mente do paeiente proporciona a expliea<;ao. Em OlltroSmomentos ha uma interrup<;ao, e 0 pacicnte titubcia antes de formularuma associa~ao e, com isso, ha que escutar tlma longa cacleia de id6iasantes de poder contar corn algo que ajude a eOll1preender 0 sonho. Temosccrtamente raziio ao supor que, quanto mais demorada e repleta de snbter­f(lgios a eadeia assoeiativa for, tanto maior a resistencia. Idcntica influ­cneia podcmos dctectar no esquecimento dos sonhos. Nilo poucas vezesacontece que urn paeiente, apesar de todos os seus esfor<;os, nao consegue

evocar um de sellS sonhos. Mas, depois de termos side capazes de eliminar,no deeurso de uma parte do trabalho anaIitico, uma dificuldade que vinha.perturbando stla rela<;iio com a analise, 0 sonho esquecido assoma, 'derepente. a superfieie. Aqui cabem tambem duas outras observa<;6es. Fre'­qii~ntemente sucede que, no inicio, uma parte do sonho e omitida e, logo­matS, acrescentada na forma de urn apendice. Isto deve ser consideradocomo uma tentativa de esquecer esta parte do sonho. A cxperiencia mostraque esta parte e, precisamente, a mais representativa; supomos que nocaminho de sua eomunica<;ao tenha ocorrido uma resistencia maior do quenas demais por<;6es do sonho. Alem disso vemos ami(lde que 0 sonhadorprocura reagir contra 0 esqueeimento de seus sonhos, formulando-os porescrito logo apos estar desperto ...

De tudo isso concluimos que a resistencia, essa que fIagramos no trabalha.da interpreta<;iio dos sonhos, deve tambem tel' participado na genese destessonhos. Dc fato, podell1os fazer uma distin<;iio entre sonhos que surgiramsob tenue pressiio e aqueles que (em sua origem sob 0 efeito de umapressiio muito forte. Tal pressao varia, porem, tambem dentro de urnmesmo sonho, dependenclo do lugar em que se imp6e; essa pressiio e res­ponsuvel pelas lacunas, obseuridades e confus6es que podeill romper a con­tinuidade dos mais beIos sOllhos".34

Mais tarde FreucI concebeLl os sonhos PUJ1ItIvos igualmentecomo uma rcagao da ccnsura onirica frente aos desejos que osprceedcram.35 A H'.sislcncia, cnja cxpericJJcia 0 analista faz ao[enlar separm 0 p(~ns(llJ1c:nto lalcntc do sOllho ele sell disfarcc, ca chave para 0 Il1ccanisIl1o do trabalho onirieo. A resistcneiaC 0 siual mais segura de um confJito:

"Aqui deve haver uma for<;a que quer expressar algo c uma outra for<;aque se esfor.;a por cvitar sua expressiio. 0 que entao se impOe, em conse­qiicncia, como sonho manifcsto, pocle combinar todas as decisoes nas quahse conclensou essa luta entre as duas tendcncias. E posslvcl que num pontouma dessas for~as tenha tido sucesso em afirmar 0 que querin expressar.ao passe que nUIn outro ponto e a instfll1cia oposta que teve a sorte deeclipsar por completo a cOffiunica<;ao que se pretenc1ia expressar, ou subs­titui-Ia por algo que nflO revele qualquer tra<;o comUIl1 com essa for<;a. ascasos majs comuns e mais caracteristicos lla fOrlll<l~fIO oniriea sao nquclesnos quais 0 eonflito acabou em concilia~ao, de maneira tal que a instan­cia que participa (cfetiv<lmente) foi, por certo, capaz de expressar 0

que quis, mas nao na forma como quis;. na verdade, apenas numa formaatenuada, distorcida e irreeonhecive1. Quando, portanto, os sonhos niioformam UlU quadro fiel dos pensamentos onirieos, quando 0 trabalho in­terpretativo se faz necessario para trallspor 0 hiato entre ambos, entaotrata-se do sucesso da instancia renitente, inibidora e limitadora, a qualinferimos de nossa percep<;iio da rcsistencia em nosso trabalho da inter­preta<;iio dos sonhos".36

Page 21: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

242 CONHECIMENTo E INTERESSE CRfTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 243-

Podemos admitir que a instancia limitante, que durante 0 dia'controla 0 falar e 0 agir, relaxa seu domfnio durante 0 sono, £10

confiar na suspensao da motilidade, mas reprimindo os motivos,da a<;ao. Ela impede assim a efetiva<;ao de motiva<;oes indeseja­veis,' na medida em que retira do transito as interpreta<;oes cor­respondentes, a saber: representa<;oes e sfmbolos., Este transito'Consiste em intera<;oes bem ajustadas, comprometidas que estaocom a opiniao publica c1a comunica<;ao propria a linguagem or­dim'iria. As institui<;oes c1a permuta social nao autorizam senaocertos motivos de a<;ao; a outras necessidades fundamentais, igual­mente presas as interpret£l<;oes d£l linguagem cotidiana, c vedadoa caminho da a<;ao manifesta, s~ja pelo confronto direto COmuma for<;a alheia, seja por meio da san<;ao de normas socialmen­te inquestionaveis. Tais conflitos, no infcio apenas exteriores,prolongam-se, enquanto nao forem encaminhadas conscientemen­te, no interior do psiquismo, na forma de um conflito permanenteentre uma instfmcia defensiva, representando a repressao social,e (uma instancia de) motivos acionais inexeguiveis. 0 recursopsfguico mais eficaz para neutralizar as disposi<;6es indesejaveisdaquilo que chamamos de necessidade consiste em cxcluir dacomunica(,:Clo pllblica ~ isto e, em recalcar ~ as interpreta<;6es;tS quais CSS,iS necessiclaclcs estilo acoplaclas. Freucl dCIlomin3 cle<1 es,-,jos iIlCOJlscientes os slrnbolos baniclos e os motivos assimreprimiclos. :Motiva<;oes cOllseien1es, presellte.s no cmprcgo jlLlbli-­co da linguagem, sao transformaclas, pelo mecanismo cia rcpres­sao, em motivos inconscientes, em motivos por assim dizer ca­rentes de linguagem. Durante 0 sono, quando a censura podeser relaxada devido a suspensao c1a motilidac1e, os motivos recal­cados encontram uma linguagcm atl-aves da associa<;ao simb6licade fragmentos diurnos; seus sfmbolos sao publicamerite sancio­nados, mas trata-se de uma linguagem privatizada, "pois 0 sonhonao e em si nenhuma expressao social, elc nao perfaz um meioda compreensao (intersubjetiva) ",37

o texto clo sonho podc ser visto como lim compromisso_Ele resulta, por um lado, da ccusura social lDetamorfoseada noEu e, por Olltro, dos motivos inconscientes exclufdos da comu­nica<;ao. 0 fato dos motivos inconscientes penetrarem, sob ascondi<;6es excepcionais do sono, no estofo pre-consciente ~ sus­cetfvel a comunica<;ao publica ~ faz com que a linguagem dotexto onfrico se caracterize, enquanto compromisso, como umaglomerado sui generis de linguagem pllblica e privativa. A se­qUencia de cenas visuais nao esta mais ordenada segundo regras

sintati~as,_eis que o~ meios de ~iEer~n~ia<;ao, dos quais a lingua­gem dlspoe para articular rela<;oes loglcas, estao suspensos' mes­mo as regras elementares da logica encontram-se abolida~. Nalinguagem do sonho, carente de gramatica, as conexoes sao es­tabelecidas por intermedio da superposi<;ao luminosa e atraves dacompreensao do material sonhado; Freud fala de "condensa<;ao".Tais imagens comprimidas da linguagem primitiva do sonho pres­tam-se a transferencia de acentos signiEicativos e deslocam signi­fica<;6es origin£lis. 0 mecanismo do "deslocamento" esta a ser­vi<;o da instancia responsavel pela censura, em vista do desarran­jo do sentido originario. 0 outro mecanisme 6 0 da supressao depassagens inaceitaveis do texto. Com suas compress6es interliaa­das apenas superEicialmente entre si, a estrutura da 'ringuag~monlrica favorece igualmente as omissoes. '

A analise do sonho vc na omissZio e no deslocamento duasdiferentes estrategias de deEesa: 0 recalgue em sentido estrito di­rigido de forma repressiva contra 0 proprio Eu, e 0 disfarc~, ()qual pode igualmente vir a ser a base para uma proje<;ao do Euem clire<;ao ao exterior. Em nosso contexto e interessante obser­var que Freucl fez a clescoberta de tais estrategias defensivas pelaprimeira vez nas mutilar;;oes e deforma<;oes do texto. onirico. 0mccanisl110 ele clcfcsa esta, de fa to, voltado diretamente contra asintcrprcta<;c)cs de motivos acionais. Esses siio neutralizac10s pelofato c1e os Sflllbolos, corn os (lllais disposic):ies inercnlcs aquiloque cham amos llcccssiclaclc cstao comprometiclas, desaparecem dohorizonte cia cOlllunica<;ao publica. Com isso a tematiza<;ao da"censura" adquire um sentido bem preciso: a censma psicologica,como a oficial, reprime 0 estofo semantico e as significa<;6es nelearticuladas. Ambas as formas da censura servem-se clos mesmosmecanismos de deEesa: £lOS processos de interdi<;ao e recomposi­<;ao clo texto correspondem os mecanismos psiquicos da omissao(recalque) e do deslocamento.38

Por fim, 0 conteudo latente, 0 qual a analise do sonho nor­malmente libera, lan<;a uma luz sobre a flln<;ao da produ<;ao onf­rica cnquanto tal. Trata-se cia repeti<;iio de cenas prenhes de con­fWos, com rafzes na infdncia: "0 ato-de-sonhar 6 um fragmentoda vida psfquica inEantil que (ja) ficou para traS".39 As cenasinfantis permitem que se chegue a conclusao de que os desejosinconscientes mais produtivos provem de repress6es relativamen­te precoces, portanto, resultantes de conflitos nos quais a pessoainacabada e dependcnte da crian<;a, esteve submetida, de maneiraconstaute, a autoridade de suas pessoas de referenda e as exi-

Page 22: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

244 CoNHECIMENTO E INTERESsE CRlTlCA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 245

gencias SOCialS, pOl' elas representadas. Freud pode assim,Ja em1900, resumir 0 resultado de uma psicologia. dos processos oni­ricos na tese segundo a qual "a elaborayao de urn fluxo de pen­samento normal s6 entao ocorre, quando este se tomou apto atransferencia de urn desejo inconsciente, 0 qual se origina da in­fancia e se encontra em urn estado de repressao"}O Esta elabo­fCiyao e urn fenomeno tfpico ao sonho. A analise dos sonbos cabea peculiar tarefa de "levantar 0 veu da amnesia que oculta os.anos iniciais da infancia e trazer a memoria consciente as mani­festayoes do infeio cIa vicIa sexual infantil, neles contidas".41

A regressao noturna da vida psfquiea ao estagio infantil per­illite compreender 0 carateI' singularmente atemporal, pr6prio aosmotivos ineonscientes. No momehto em que sfmbolos isolados emotivos recalcados de ayoes podem tel' acesso - contra a censurainstalada, como este e 0 caso do sonbo - ao material apto acbegar a consciencia ou, como este e 0 caso nos sintomas dasdiversas neuroses, tel' acesso ao dominio da comunicayao publicae da interayao habitual, c1es vinculam 0 presente a constelayoesdo passado.

Freud transfere as determinayoes obtidas junto ao modelonormal do texto onfrico para aqlleles fenomenos cIa vicIa despena,cuja simb6lica csta, de maneira p~lrccicIa como a linf,uagcIl1 ca­rente de grarnatica do s01l110, 111l1[ilac1a c dcformac1a. Com issoas sfncIromes da 11istcria cIa COllvcIsao, c1a psiconcllrosc c c1asdivcrsas fobias apareccm somcnte como os casos pato16gicos li­mltrafes de uma escala de comportamentos falhos que, em parte,se localizam no -interior da esfera normal e, em parte, cxpoemcles proprios os critcrios para aqnilo que vige como normal."Falho", em sentido metodico estrito, e cada desvio do modeioa caracterizar 0 jogo de linguagem da atividade comunicaliva naqual coineidem motivos aeionais c intcnyoes, expressas pOl' meioda linguagem. Nesse modelo nao h5 lugar para sfmbolos isola­<los e para posiyoes psfquicas, correspondentes aquilo que cha­mamos de necessidade, intcrligac!as com tais sfmbolos; aclmite-seque c1as nao existam ou, caso existam, permaneyam sem efeitoao nfvel da comunica<;;ao publica, da intera<;;ao habitual e da ex­pressao observavel. Urn tal modelo so podcria, por certo, cncon­trar aplicayao generica sob as condiyoes de uma socieclacle naorepressiva. Deviayoes cIo modelo sao, pOl' isso, 0 caso normal sobtodas as condiyoes sociais conheciclas.

. Ao domfnio do objeto da hermeneutica profunda pertencemtodas aquelas passagens onde, devido a perturbayoes internas,o

textd: de nossos jogos cotidianos de linguagem e interrompido parsfmbolos incompreensiveis. Tais sfmbolos sao incompreensfveisporque nao obedecem as regras gramaticais da linguagem ordi­naria, as normas da ayao c aos modelos da expressao, cultural­mente sancionados. Eles sao ou ignorados ou camuflados, racio­nalizados pelo trabalho secundario (caso nao forem, des pr6­prios, resultados de racionalizayoes) ou reduzidos a perturbayoessomaticas externas. Freud comprova tais fonnayoes simbolicasderivadas, as quais c1e investigou exemplarmente no sonba, COmo termino medico sintoma. Sintomas sao renitelltes, normalmen­te so desaparecem quando substitufdos pOl' equivalentes funcio­nais. A persistencia dos sintomas e expressao de uma fixayao derepresenta<;;oes e modos comportamentais em urn modelo eons­tan te e constringente. Eles rcstringem a margem de flexibilidadedo discurso e da ayao comunicativa; e1es podem fazer decreseero conteudo de realidade de ccrtas percepyoes e pracessos men­tais, bcm como desequilibrar a cconomia dos afetos, submeter 0

comportamento a ritualiza~ocs ou limitar de forma direta asfunyoes somaticas. Os sintomas podem s;r concebidos com~ re­sultados de urn compromisso cntre desejos recaJcados, de prove­nicncia infantil, e interdiyoes de gratifieayoes do desejo, impostRspela ~:ociedacle. n por isso que, lIa m·aiOl-ja c1as \TICS, eles revc­lam amhos os mOIllcntos, ainela (lue em quantidadcs variavcis:cles Will 0 carateI' de fonnac;oes substitutas em vista de uma sa­tisfa~ao recusada e sao, igualmente, expressao da sanyao com aqual a instancia responsavel pela defesa psfquica ameaya 0 de­sejo inconsciente. Enfim, os sintomas sao signos de uma anto­alienayao especffica do sujeito em questao. Nas lacunas do textoprevalece a violcncia de uma interpreta~ao cstranha ao Eu, aindaque produzida pOI' estc Eu. Pelo fato de os simbolos que inter­pretam as necessidades reprimidas serem exc1ufdos da cOIllunica­~ao publica, a c017wnicarao do sujeito que tala e age esta inter­rotnpida com ele mesmo. A linguagcm privatizada dos motivosjnconscientes esta subtrafda ao Eu, muito cmbora ela Tetraajainternamcnte, com eficicncia, sobre 0 emprego lingi.ifstico do Eue sobre a motivayao de sua ativicladc ~ com 0 resultado de queo Eu se ilude foryosam~nte ace rca de sua identidade nas conexoessimb6licas que ele, conscientemente, produz.

Habitualmente 0 interprete tem a tarefa de mediar a comu­nica~ao entre dois interlocutores que falam linguas diferentes: cletraduz de uma lingua para outra e estatui a intersubjetividadeinerente a validade de sfmbolos e regras; cle supera dificuldades

Page 23: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

246 CoNHECIMENTO E INTERESSE

CRiTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 247de compreensao entre interlocutores separados por fatores hist6­rieos, sociais e culturais. Este modelo da hermeneutica das cien­cias do espirito nao coaduna com 0 trabalho psicanalitico cia in­terpreta<;ao. Pois, mesmo no caso patol6gico limftrofe da neuro­se, a compreensao entre 0 paciente e seu interlocutor, seja esteo cia conversal;ao (privada) ou da funC;ao social, nao esta dire­tamente perturbada, mas apenas limitada, de forma indireta, pelocfeito retroalivo dos sintomas. Na verdade as coisas se passamdo seguinte modo: tambem sob as condic;6es da repressao, 0 neu­r6tico zela pela manutenc;ao da intersubjetividade da compreen­sao cotidiana, e se comporta de acordo com as expectativas san­cionadas socialmente. Mas, para manter a comunicac;ao desem­barac;ada em tais circunstancias' da frustrac;ao, ele paga 0 prec;odo desnorteio da comunicar;ao nele mesmo. Caso, porcm, a Jimi­tac;ao da comunicagao publica, necessaria nas rela<;;6es de dOIll,­naC;ao, nao deva afetar a ilusao. da intersubjetividade de uma ati­vidade comunicativa isenta de coac;ao, os limites da comunicac2:oelevem ser erigidos no interior do pr6prio sujeito. Assim a por~:li;privatizada da linguagem excomungada, junto com os motivosindesejaelos da ac;uo, e condenmta ao silencio Ila pessoa do ncu­r6tico e se torna inacessivel para ele. Tal transtomo de comuni­cac;ao requer um interprete quc nao medcia cntre coniracntcs delIngnas difcrclltes, }JJilS 1lI1l intcrprete que emilla <\ mn s(> c mGSmo

snjeilo a comprcenckr sua propria lingua. InstrvSc10 pdo <\nalisla,o pacientc nprcndc a leI scns proprios tcxtos, pOl eIe mcslllo IllU­

til ados e dcformados, e a traduzir, 110 cliseurso cla comunicac;aopublica, os simbolos de urn eliscnrso disforme na linguagem pri­vacla. Tal tradllC;a.o descerra para a memoria, atc ai bloqueada,as fases geneticamente importantes ela hist6ria da vida, e tornao sujeito conscicnte de seu processo formativo: nesse sentido ahermencutica psicanaHtica nao objetiva, como a hcrmeueutica clascicncias do espirito, a compreensao de eomplexos simb6licos en­quanto tais; 0 ala do compreender, ao qual ela conduz, e auta­reflexiio.

A tese, segundo a qual 0 conhecimento psicanalitico faz par­te da auto-reflexao, pode ser faeilmente demonstrada nas investi­gac;6es cIe Freud acerCR da teenica analilica.42 Com efeito, 0 tra­tamento analftieo nao pode ser determinado sem a refercncia ~

expericncia da reflexao. 0 que cham amos de hermencutica rece­be seu peso valorativo no processo da genese da autoconsciencia.Nao e suficientc falar de tradu((ao de urn texto, traduc;ao como talc rcflexao: "TradUl;ao do inconsciente naquilo que e Coilscien-

te".43 Somente em virtudc da reflexao as repress6es podem ser-suprimidas:

"A tarefa Que 0 metodo psieanalitico procura resolver pode ser formuladade diversos modos; em sua essencia, por6m, eles sao equivalcntes. Assim,podc·sc dizer: a tarda do tratamento e remover as amnesias, dissolvendo­as, Quando todas as lacunas da memoria forem preenchidas, elucidadostodos os produtos enigmaticos da viclapsiquica, a continuidade e mesmoa reinciclencia do estado morlJiclo tornam-se impossiveis. Ou a condicaopode ser ('linda) formulacla de maneira diferente: todas as 1·cpress-6esclevcm ser desfeitas; 0 estaclo psiquico equivale, cntao, aqueJe em quetodas as amncsias foram preenchidas, Mais ousada e (ainda) uma outraformub~ao; trata-se de tomar 0 incollsciente consciclltc, 0 que acontecepela supcrac;ao das rcsistencias".44

. Ponto de partida da teoria e a experiencia da resistencia, pre­Cisamente esta forga que bloqueia e se contrap6e a livre e publicacomunicac;ao dos conteudos recalcados. 0 tornar-conscientc ana­lftico dernonstra-se como reflexao pelo fato de tratar-se nao ape­nas de nm processo que ocon'e ao nivel cognitivo, mas de urnprocesso que dissipa, simultaneamentc, resistellcias no plano afe­tivo. A limita<;,50 dogm(,tica de uma Ialsa conscj~ncja mede-~)c

nao arenas pcb {/Ilsellcia lll[lS V'La inaccsssihilidade espccifiea elainformac;ao; ela nao apenas pedelZ uma falba cognitiva, mas estacarencia ellcontra-se fixada em base de atitudes afetivas par Illciode criterios apropriados por costume. E por isso que a simplescomunica((ao de informac;:5es e a designac;:ao de resistencias naopossuem, por si, urn efeito terapeutico:

<IE tIma conccp~ao ha multo superada, fundada em aparenCIllS supcrficiais,a de 0 doente sofrcr de uma especie de ignorancia, e se alguclll conseguirremover esta ignorancia atraves da informa~ao (acerca das conexocs causaisdc sua doenp com Sua vida, acerca de suas vivencias de infancia, e assimpor diantc), ele dcva recuperar a salll]e. 0 momenta patologico nao cesso ignorar em si, mas a fundamcnta~ao do nao-saber em resistenciasintemas; foram estas que provocaram, pela primeira vez, a ignorancia eainda a fomentam. A tarefa da terapia esta no combate a essas rcsistenciasA participa~ao daquilo que 0 doente nao sabe, eis que 0 reprimiu, 6tao-somente uma das mcdidas preliminares para a terapia, Fosse 0 co­nhecimento do inconscientc importante assim para 0 doente como a pcssoainexperiente em psicanalise imagina, entao deveria scr suficiente para acura, que 0 doente ouvisse pre1c~5es ou lesse livros. Tais medidas possuem,porem, tanta infJucncia sobre os sintomas nelVOSOS do padecimento (psi­quico) como a distribui~ao de cardapios, numa epoca de cscassez de vlve­res, tern sobre a fome. A compara~iio '6, mesmo atem de sua· aplica~iio

Page 24: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

248 CONHECIMENTO E INTERESSE eroTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 249

imediata, aproveitavel; pois, a participa9ao do inconsciente ao doente(pelo medico) tern, em regra, por conseqiiencia que 0 conflito nele eointensifieado c seus dislurbios se tornam (ainda) mais agudos":15'

c: tr~balho do .Qna!ista parece, a primeira vista, equivaler aodo hlstona.dor; mals exatamente ao do arqueologo. Pois, suat~refa consl~te na re~O?stm<;ao dos primordios Itistori cos do pa­Clente. No flln da anallse deve ser possivel expor, nos moldes deu.m .r~lat?, eventos relevantes do passado esquecido do paciente,slgmftcatlvos para a historia da doen<;a; eventos nao conhecidosnem pelo medico nem peIo paciente no inicio da analise. 0 tra­balho intelectual e dividido de tal maneira entre medico e pa­ciente que aquele reconstroi a partir dos textos defeituosos do~a~iente, a .partir de s~us sonhos, de suas id€ias fortuitas e repe­tl<;oes daqUllo que esta esqueeido, enquanto este se recorda, esti­ll:ul,ado pelas constnl<;6~s que 0 medico the prop6e a titulo delupotese: Quanto ao metodo, 0 trabalho da constru«ao, proprioao anallsta, apresenta uma grande concardancia com reconstru­~6es que um arqueologo, por exemplo, empreende em luoares delllvestiga<;ao arqueologiea. Contuc1o, cnquanto a expositao his­t?rica de um processo esql1eeic1o Oll de uma "hist6ria" 6 0 obje­llVO elo anjlleologo, 0 "cmninho ljue parle cl<l eOllslru<;:flo do 'Ina­lisla ... " sc cneerra "na JCIJlCJl1or<l~:fio do analismlo".'JG I\penasa recarda<;ao do pacienle decide a pcrtincllcia da eonslruc;ao; easoconfira, ela deve poder "rccuperar" no paeiente U111 fraomenlo dabiografia perdida, isto e, deve poder oeasionar a ignic;~o para aauto-reflexao.

No inieio de cada etapa do obrar analitico 0 saber do medicoque constroi e diferente daquele do paciente que Ihe resistc. Vistasob a perspectiva do analista, a constru<;ao Itipot6tica, a qualcompleta os elementos dispersos de um tcxto mutilado e dcfor­mado em vista de um moclelo compreensivel, permanece tao-so­Jl:entc "para nos", ate que a eomunicac;ao cla eonstruc;ao ao pa­Clcnte se transfonnc: em esc1arecimenlo, a saber, em um "paraisto", para a conscieneia do paciente: "Nesse momenta /lOSSO

saber tornou-se, entao, tambem sell saber"y Freud denominade "elabora<;ao" 0 esfor<;o comum que supera a tensao entre ac?m~lI1ica<;ao e 0 esc1arecimento. Elaborafiio designa a parte di­nalTI!ca de urn empreendimento inteleetual; cIa so leva a identifi­cac;ao cognitiva do passado atraves da supera<;ao das resisteneias.

o ~nalista esta em condi<;6es de encaminhar 0 processo doesc1areclmento desde que the seja possivel reorientar a dinamica

do recalque de maneira tal que essa nao mais favore<;a a estabili­za<;ao da resistencia, mas opere a favor de sua remo<;ao critica:

"as impulsos inconscientes nao desejam ser record ados da maneira comoo tratamento quer que 0 sejam, mas esfor9am-se por reproduzir-se deacordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de aluci­I1fwao. Tal como acontece nos sonhos, 0 paeiente encara os produtos dodespcrtar de seus impulsos inconscientes como contemporancos e rcais;procura colocar suas paixoes em a9ao sem levar em conta a situa9ao real.o medico tcnta compeli-lo a ajustar esses impulsos cmocionais ao nexodo tratamento c da historia de sua vida, a submete-Io a considera9aointelectual e a compreende·los a !uz de seu valor psiquico. Esta luta entreo medico e 0 paciente, entre 0 intelecto e a vida instintual, entre a com­preellsiio e a procura da a9ao, e travada, quase exclusivamente, nos fooo­menos da transferencia" ,4S

o paciente encontra-se coagido a repetir 0 conflito originalsob as condi<;6es da censura; ele age seguindo os rastros das ati­tudes patologicas e das constela<;6es substitutas, as quais foramfixadas na infancia como compromissos entre as realiza<;6es dodesejo e aquilo que denominamos de defesa. 0 processo que 0

mcdico deve reconstruir nao se Ihe apresenta como lim aconteci­mcnto bistorico 11\as como 1111\ pocler ativCl e prc;ente. Ora, 0

irnpen\tivo cia siluac;~io analilica, sempre concebiclo ern lennos deuma tcntativa, consistc no seguinte: por lim laclo, trata-se de re­duzir os controlcs conscicntes (pelo relaxamento, pela livre asso­cia<;ao, pela comunica<;ao isenta de condi<;6es previas), debilitar,os mecanismos de defesa e fortalecer primeiro a necessidade do<lgir mas, par outro lado, deixar sem conseqiicncias tais rea<;6es.compulsivas trente a um interlocutor reservado, 0 qual se 3pre­senta como um opositor virtual, e permitir, com isso, que taisrea<;6es retroajam sobre 0 proprio pacienle. Deste modo a neu­rose comum e transformada em uma neurose de transferencia. Acompulsao patologica a repeti<;ao ]Jode, sob as condi<;6es con­troladas de uma doenc;a arlificial, scr transformada em "uma mo­tiva<;ao para 0 ato-do-recordar". 0 m~c1ico aproveita a oportu­nidade para dar aos sintomas uma nova significa<;ao transferen­cial e, "pelo trabalho da rememora<;ao, resolver 0 que 0 pacientegostaria de executar atravcs da ac;ao".4~ 0 controle, par ass:m.dizer experimental, da "repeti<;ao" oferece ao med' co, nas condi­'c;6es da situa<;ao analftica, uma possibilidade tanto de conheci­mento quanta de tratamento. 0 atuar na situa<;ao transferencial(e nas situac;6es cotidianas paralelas durante 0 tempo do trata­mento) conduz a cenarios que liberam indicios para a reconstru-

Page 25: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

250 CONHECIMENTO E INTERESSE

c;~o das cenas originarias, inerentes ao conflilo infantil do pa­Clenle. Mas as construc;6es do medico nao podem ser convertidas.em recordac;oes atualizadas do paciente, senao na medida em quecstc, confrontado com as conseqiiencias de seu atuar em Urna

situac;ao cuja gravidade encontra-se suspensa na transfer6ncia,aprende a se vcr com 0 olhar de Urn Olltro c a 'reconhecer nossinlomas os derivalivos de sell proprio comportamento.

. Parti:n?~ cIa tese segundo a qual 0 processo cognitivo dopaclente, lmcrado pelo medico, deve scr compreendido como umaauto-reflexao. A logica da situac;ao transferencial e a divisao detrabalho na cornunicac;ao, cnlre 0 medico que constrni e 0 pacien­te que converte 0 atuar em um prpeesso de recordac;ao, sllstentamesta t~se. A intelecc;ao analitica e complementar ao processoformatlvo que se desencaminhou. Ela deve seu suecsso a umprocesso de afrendiz~em compensatorio, 0 qrwl reverte os pro­cessos de desl~ltegrar;{lo. Em tal processo de fissao psfquica tra­ta-se ~~A se.lec;ao de sfmbolos em uso no linguajar pllblico; emco~seq~en~ra, de uma deformac;ao das regras da cornunica<;ao re­latl~as ~ Illlguagem privativa, por urn lado e, par outro, da neu­trahzil<;ao dos motivos acionais, vinculados a slmbolos isolados.A totalidadc virtual, fenc1ic1a pelo processo da scpafilc;ao, 6 re­prescntada ]lela moc1elo da Miviclmlc propria a e01llulJic:ac:fio pura.Dc acorclo COm essc moclclo, toclas as inlcra<;ocs scclimcntmlasp_or hiibito e tocla~ as inlerprct,H;6cs relevantcs p()[a a praxis vitalsao, a eada momcnto e com base no aparelho intcriorizado da11I;gl:ageJ? eotidiana inestrita, acessiveis para uma e0ll111niea<;aopubli.ca lS~nta de coa<;ao, de modo que tambem a transparenciada bIOgrafra que rememora fica garantida. Processos formativosq~e se afastam de tal modelo (e Freud nao cleixa qualquer d(l­Vida de que, nas concli<;6es rle um clescnvolvimento sexual caracteri­zado por urn .duplo _apogeu com latcncia far<;ada, todos os pro­cessos de ~oelalrza<;ao devem nesse sentido ter uma seqi.icndaa~ormal~ .sao 0 resultado de uma repressao exereic1a por install­clas. SOCIalS. Esta influencia extema e substituida par um mc­can:smo. de clef~sa. intrapsiqllieo, proprio a uma instfmcia erigidano Intenor do mdlViduo, de modo tal que se tome permanente.E:a eonduz, a longo praza, a acordos com as exigeneias da por­<;ao ~p~rtada, acordos que se realizam a eusta da eompulsao~atologlca e da auto-ilusao. Tal e 0 fundamento da forma<;ao dos~mtom~s; atraves dela 0 texto dos jogos cia linguagem eotidianae de:enorado de forma tlpica e chega, assim, a ser objeto de limaposslYel elaboragao analltica.

C!UTICA COMO UNfDADEDE CONHECIMENTO E INTEltEsSE 251

A analise possui conseqlieneias terapeutieas imediatas, cisque a supera<;ao crHica dos entraves da conseieneia c a repassa­gem das talsas objetiva<;6es dao inieio a apropriac;6es de Urn

fragmento perdido da biografia, revertendo 0 processo da divisaopsiquiea. E par isso que a conhecimento analltico e auto-reflexao.Foi par isso que Freud rejeiton a eomparac;ao entre psican.{tlisee analise quimica. A analise c a deeomposi<;ao dos eomplexosem Sl1as partes mais simples nao levam a uma multiplicidadc deelementos, a qual pudesse entao ser recomposta par via sintetica.o termo "psieossfntese" Freud 0 qualifea cle oeo, ja que nao atinacom a realizac;ao especffiea da auto-reflexao; nela a dissoluc;aonnalitica e enquanto tal, a sintese, 0 restabc1eeimento de lImaunidade corrompida:

"0 pacicntc ncur6tico sc nos apresenta com a psique dilaccrada, atassa­lhada por rcsistencias, c quando u unulisamos e eliminalllos as resistcncias,essa vida pSlquica sc unifica; a grande unic1ul1c, a qual chamamos de ego,ajusta-sc a todos os impu]sos instintuais que haviam estado scparados l1csrnunidacle e encontravam-sc aglutinados fora dela".[jo

Trc~ particulariclades sllplcmentarcs demollstram qne 0 co­llhccimcllto ,malltico 6 lima allto-refICx:lCl. }oleic cst50, (k sallhc de 1110(10 igual, incluicios dois lllO!l1cntos: 0 m011lcJllo cognitivoe 0 (lfetivo-motivador. 0 saber analltico, enquanto auto-reflex50,e eritiea no sentido de que a intelec<;ao do pacicnte possui, nelamcsma, 0 poder analitico de remover atitlldes clogmaticas. A crl­tiea culmina em lIma transformac;ao cia base afetivo-motivadora,bem assim como ela tem sell ponto de partida l1a nccessidadepor uma transformac;ao. A crftica nao teria 0 poder ele se imporsobre a falsa eonsciencia, caso nao fosseimpulsionada pOl' umapaixiio da critica. No infcio se loealiza a experiel1cia cia dor eda carcncia, e 0 interesse pela remoGao do estado pesaroso. apacientc procllra 0 medico porqne sc sente torlurado par sellSsintomas c gostaria cle sc vcr liberto de1cs - com isso tambema psicanalise pode contar. Mas difcrcntemcnle do que ocone coma tratamento terapclltico habitual, a impacto clo sofrimcnto e 0interesse na recuperac;ao da saude nao perfazem apenas a ocasiiioa determinar a inkio do tratamento, mas constituern, em si, apressllposir;Qo para 0 sucesso da terapia.

"Durante 0 tratamenlo os scnhores podem obscrvar que cada meJhora emsua condi<;iio' reduz a rapiclez da recupera<;ao e diminui a for<;a instin-

* do pacicnte (N. do T.)

Page 26: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

252 CONHECJ:MENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNJDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 253-

tua! que 0 impele para a cura. Nao podemos, porern, renllnciar a essafOr~a instinlual; sua reclu~ao coloca em risco a nossa finalidacle ~ a res­taura~ao da saude do pacicnte. Qual c, entao, a conclusao que inevitavel­mente se imp6e? Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o'sofrimento do paciente, em urn grau de urn modo Oll de Dutro efetivo;nflo acabe prematuramente. Se, devido ao fato de que os sintomas foramnfastados e perderam 0 seu valor, sell sofrimento se latenua, devemos.rcstabelece-lo alhllres, sob a forma de alguma prjva~ao apreciavel; casocontrario con-em os 0 risco dc jamais conseguir senao melhoras insignifi­cantes e transitorias".51

Freud pastula que a cura analitica se processe sob as con­dit;oes cla abstinencia. Ele gostari,a de evitar que, no decurso dotratamento, 0 paciente substituIsse prematuramente os sintomaspor uma satisfat;ao compensatoria, a qual exclua 0 carater pou­co gratifical1te da cura. N a pratica terapeutica habitual uma talexigcl1cia deveria pareeer absurcla; na terapia psicanalftica, po­rem, ela nao e desprovida de senticlo, eis que seu sucesso naodepende de Hma interVent;30 tecnicamente bem-sucedida do me­dico no organismo cloente, mas do avant;o de uma auto-reflexaodo paciente. Contudo, a auto-reflexao so se mantem em pro­cesso enquanto 0 saber analftico e instigado a superar as resis­tCllci,\s llJotivadoras atravcs do interesse pdo outoconhecimento.

Uma ou(ra pcculiarirlac1c da aniIlisc est;i in!:mamcnte ligadaa es(e aspee(o do lraiamento psicanalftico. Iircud nao se canSa deacentuar que 0 pacien(e, 0 qllal se submete a terapia psicanalftica,nao se cleve posieionar frente a sua doent;a como se essa equi­valesse a um sofrimento flsico-corporeo. Ele precisa ser levado,a considerar 0 evento cIa doent;a como uma parte de si mesmo.Em vez de encarar os sintomas e suas causas como algo exterior,o paciente deve estar disposto a assumir, de certa forma, umaresponsabilidade para com a doen~a. Freud discutiu este proble­ma a proposito do caso analogo da responsabilidacle perante 0,

conteuelo dos sonhos:

"Obviamentc temos que nos considerar rcsponsaveis pelos impulsos mausdos proprios sonhos (. .. ). A nao ser que 0 contelldo do sonho _ ... _.seja inspirado por cspiritos estranhos, ele faz parte de meu proprio scr.Quando procuro classificar os jmpulsos presentes, em mim, segundo padr6es.sociais, em bons e maus, tenho de assumir Tesponsabilidade por ambos os.tipos ese, desconversando, digo que 0 desconhecido, inconsciente e repri­mido em mim nao e meu 'ego', nao estou com as pes no terreno dapsicaniilise, nao aceito suas chaves interpretativas e posso ser corrigid0pela critica de meus semelhantes, ser obrigado a aprender por meio d05-

disturbios de minhas a~6es e atraves da confusiio de meus sentimentos.Possa fazer a experiencia de que aquilo que estou repudiando nao apenas.'esta' em mim mas, vez por outra, tambem 'age' de mim para fora (demim)".5\!

Pelo fato da analise exigir do paciente a expenencia da auto~

reflexao, ela postula uma "responsabilidade etica para com 0

conteudo" da doen~a. Pois, a intelee~ao afetiva, a qual a analisedeve cOllduzir, consiste, depois de tudo, apenas no seguinte: queo Eu do paciente se reconhe~a em seu outro, representado peladoen<;a, como em seu Eu-pr6prio alienado, e se ic1entifiq~e. comele. Como na c1ialetica da moralidade em Hegel, 0 enmlllOSOreconbeee em sua vltima sua propria essencia arruinada, uma.auto-reflexao, pela qual as partes abstratamente em conflito re­conhecem a totalidade moral esfacelada como sua base COmUIll'e, par intermedio de tal proeesso auto-reflexivo, retornam ~ tal.fundamento. 0 conhecimento analitico e, simultaneamente, mte­lect;ao etico-afetiva, eis que na dinamica da auto-reflexao a uni­dade da razao te6rica e da razao pratica ainda 11aO esta supressa.

Uma ultima particularidade da analise confirma tal carater.A exigencia de que ninguem deva exercer a pratica analitica, easanao se tenha antes submetido a uma an:Jlise diel:Jtica, patTce cor­resl)ollCler aos padre-ies eouentes cla qualificac;ao profis~;ion~il emIJ1f;elicina, IIa que 8IJreneler primeiro a profissaa que. se pre­tenda exercer. Mas a exigencia que acautela contra os nscos deuma analise "sc!vagem'.' postula mais elo que a necessi?ade deuma forma~ao adequaela. Do analista e exigiclo bem. maIS, a ~a­ber: que ele se submeta a analise na posi<;ao do pa.clCnte, a fll1~

de se libertar precisamente das doen~as que ele, maiS tarele, teraque tratar. Esta particularielade e digna de registro:

"Afinal de contas, ninguem sustenta que um medico scra incapaz d~ tratar'doen~as intemas, sc seus proprios 6rgiios intemos niio forem sadlOs; 80·

contrario, pode-se argumentar que hii certas vantagens no fat? de umhom em que foi ele proprio amea~ado pcb tuberculose se especIallzar notratamento dc pessoas que sofrarn dessa doerwa".53

Mas nao ha d(lvida de que a situat;ao anaHtica encobre pe-,rigos que nao sao tlpieOS a praxis terapeutiea conveneional ""fontes de engano a partir do paralelograma pessoal de fort;as '"o medico e inibido em seu trabalho de interpreta<;ao e erra na.elabora~ao das constru~6es corretas quando ele p;o~rio, sob ?'impacto de motivos inconscientes, projeta. suas angustras pessoals.

Page 27: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

254 CoNHECIMENTO E INTERESSECroTICA COMO UNIDADEDE CONHECIMENTO E INTERESSE 255

:sobre seu iriterlocutor ou nao percebe certos modos comporta­mentais do paciente:

"Enquanto for capaz dc c1inicar, urn medico quc sofre de uma doen<;ados pulm6es ou do cora<;ao niio se acha em desvantagem para diagnosticarou tratar queixas internas, ao passo que as condi<;6es espcc'iais do trabalhoanalitico fazem realmente com que os proprios dcfeitos do analista inter­firam em slla efetiva<;iio de uma avalia<;iio correta do estado de coisasem seu paciente e em sua rea<;iio a elas de maneira util".54

Numa outra passagem Freud atribui tal estado de coisas a"urn momenta especial, imanente ao assunto, ja que em pSico­logia, diferentemente do que ocone na ffsica, nao temos avercom coisas que tao-somente podem suscitar urn glacial interessecientffico".55 Na situa<;ao transfereneial, 0 medico nao se com­porta de forma contemplativa; antes pelo contrario, ele obtemmuito mais suas interpreta<;oes na medida em que assume meto­dicamente a fllnr;iio de quem participa do jogo: transformandoacompulsao neurotica a repeti<;ao em identifica<;ao transferen­cial, promovendo e, ao mesmo tempo, mantendo em estado vir­tual 'as transfercncias ambivalentes e, no momento oportuno,cksfazeJl{lo SUi! liga<;:flo com 0 paeientc. No clecurso c1cstas ope­nwoes 0 mc- rlieo faz-se, a si 111esmo, um instrumelllo de conheei­mcnto; Illas nao pclo lato dc eliminar sua subjetividade sen~lo,

,e precisamente por isso, pelo fato de engajlda de maneira con­trolada. 5G

Numa fase tardia de seu desenvolvimento Freud enquadrousuas suposi<;oes basicas em urn modclo estrutllral.57 A co-perten­'c;a das tres instfmcias - ego, id, superego - exp6e a conexaofuncional do aparelho psfquico. 0 nome das trcs instancias naose adequa satisfatoriamente a concep<;ao mecanicista fundamental,da estrutura da vida psfquica, muito embora esses nomes devamservir de explica<;ao para 0 modo como 0 aparelho psfquico ope­ra. Nao <5 por aeaso que as constru<;oes conceituais ego, id, Sll­

.perego mere<;am, a partir da expericncia da reflexiio, os desig-nativos que as nomeiam. Apenas posteriormente esses terminosforam alocados para urn quadro de referencia objetivista e rein­terpretados.

Freud descobriu as fun<;oes do ego em conexao com as duas-outras instancias, id e superego, ao interpretar os sonhos e no dia­logo analitico; portanto, ao interpretar textos especificamente mu­1ilados e deformados. Ele acentua que "toda a teoria da psica­nalise esta, em ultima analise, construfda sobre a percep<;ao da

resistencia que 0 paciente nos oferece ao tentarmos que seu in­consciente se the tome consciente".58 Na resistencia manifesta-seurn obrar defensivo sui generis; ele deve ser entendido tanto emrela<;ao a instancia da defesa propriamente dita quanto em reIa­<;ao ao material que e, enquanto tal, defendido e recalcado.

o que chamamos de resistencia signifiea: obstaculizar 0 aces~

so a conseiencia. Assim, nos contamos com uma esfera do cons'­ciente e do pre-consciente; este esta disponfvel no horizonte daconsciencia e e, a cada momento, capaz de ser evocado; alemdisso, ele esta acoplado com a comunica<;ao verbal e com a<;6es,comportamentais. Esta esfera satisfaz, em seu todo, os criteriosda chamada opiniao publica; isso quer dizer: ela satisfaz a ime­diatez da comunica<;ao, seja em palavras ou a<;6es. 0 que de­nominamos de inconsciente esta, pelo contu'trio, subtraido a co­mllnicafiio publica. Contudo, na medida em que se exteriorizaem simbolos ou a<;oes comportamentais, ele se mostra na forma­de urn sintoma, a saber, como mutila<;ao e deformac;ao do textodos joaos de linguagem, proprios a vida do dia-a-dia. A expe-'riencia

b

da resistencia e a oblitera<;ao espedfica de complexos sim­b6licos remetem, de maneira complemental', ao mesmo: ao in'-.consciente; por lllll lado ele c "recalcado", isto c, reprimicl0 emsua tenclcl1cia de se comunicar livremente c, par Olitro, eJe seintrometc no c1iscurso pllblieo c em comportarnentos observ{ivcisatraves de artifleios e "for<;a", assim, sua passagem at6 a cons­cicncia; em suma, repressao (para urn lado) e impulso (para 0­

outro) sao ambos momentos do "recalque".- Partindo das experiencias de comunica<;ao entre medico e

paciente, Freud apossou-se do conceito de inconsciente ao seapoiar sobre uma forma peculiar de distllIbio ~ue .afeta a co~.u­

nica<;ao da linguagem cotidiana. Para tanto tena sido necessana"a rigor, uma teoria da lingllagem, a qual nao existia na epoca ecujos contomos atualmente apenas comec;am a :er ~sbo<;~dos.Seja como for, hii assim meSillO certas observa<;oes lllstrutlvas.A especie humana se distingue do animal por uma

"complicac;iio ... , atraves da qual processos internos no ego podem ar1q~i- .rir, igualmente, a qualidade de ser-consciente. Tal C 0 trabalho da func;ao·da linguagem; ela conecta, de forma compacta, conteudos do ego comresiduos mnemicos, proprios a percep<;6es visuais mas, mais particular-.mente (ainda), a percepc;6es acusticas. Dal por diante, a periferia perce~­

tiva da camada cortical pode ser excitada em grau bern maior a partirde seu cerne mais intima, aeontecirnentos internos como seqU.encias C'.

processos de pellSamentos podem tQrnar-sc conscientes; c ji sc requer urn

Page 28: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

256 CoNHECIMENTO E INTERESSECRiTICA COMO UNJDADE DE CoNHECIMENTO E INTERESSE 257

.artificio todo especial para distinguir entre ambas as possibilidades - 0

.chamado teste da realidade. A equa~ao percep~iio-realidade (mundo exte­rior) nao faz mais sentido. Erros, que doravaTIte resultam com facilidade,e nos sonhos com regularidade, sao denominados de alucinw;:oes".o9

A fun~ao da linguagem, visualizada por Freud no texto ci­tado, equivale a uma estabilizac,:ao dos processos I de conscienciapelo fa to de 0 "interior" ser preso a simbolos e adquirir, destemodo, existencia "exterior". Ern base de tal fun~ao, os lirnitesimpostos as realizac,:6es da inteligencia animal puderam ser rom­pidos, e comportamentos meramente adaptativos foram transfor­mados em ativicIade instrumental. Freud apropria-se do conceitopragmatista de conhecimento co,mo uma atividade que ensaia,comO "uma apalpac,:ao motora com pouco dispendio energetico,de descarga".GO Com ajuda de simbolos semanticos podem-se ex­perimentar cadeias acionais, na verdade, calcula-Ias. :E por isso·que a linguagem perfaz 0 fulcro das realizac,:6es do Eu; delas de­pende a capacidade de se efetuar testes-de-realidade. Vistos umavez sob outro aspecto, tais testes s6 se tornam indispensaveis,·em sentido estrito, depois que necessidades, com antecipa~6es ver­bais gralificantes, forem amalgamadas em lermos alucinat6rios e,.assim, canalizadas como Ilecessidades cultural mcnte determina­.clas. r,: tao-SOlllcnte JIO medium da linguogcJll que se articula, soba forma dc ncccs.yidades in/Ciprc/olivos, a hcraI1c,:a da natureZn C

·da hisloria, propria ao potencial p](lstico do impulso, cllja oriCll­tac,:ao libidinosa c agressiva estel, por certo, antecipada mas, nomais, pennanece indefinida, uma vez que se encontra separadadesta motilidade hereditaria. Em nivel antropologico as exigen­·cias pulsionais sao representadas por interpretac,:6es, a saber, porsatisfac,:6es alucinatorias de desejo. Pclo fato das exigencias libi­.dinosas e agressivas serem disfuncionais tanto para a autoconser­vac,:ao dos individuos quanta para a da especie, estas exigencias,estatelam-se contra a realidacIe. A instancia cIo Eu, responsavel.pelo teste-cIa-realicIade, faz corn que esses conflitos sejam previ­siveis; cla reconhece aquelas moc;6cs pulsionais quc, ao motiva­rem ac;6es, provocariam situac,:6cs perigosas, tornando inevitaveis,conflitos externos. Estes impulsos instintuais 0 Eu as reconheceindirctamente, enquanto tais, como perigos. Ele reage com an­.gustia e com tecnicas proprias a angLlstia de dcfesa. Nos casos·onde 0 conflito entre desejo e realicIade nao pode ser solucionaelo.atraves de intervcnc;6es na realidade, so resta a fuga como alter­llativa. Se, porem, por ocasiao de um excesso constante de fan­;tasia do desejo frente as possibilidades reais de satisfac;ao, a situa-

<;3.0 normal nao oferece oportunidade alguma de fuga, a tccnicada defesa de angustia abandona 0 plano da realidade, enquantofonte imediata de risco, e volta-se contra as exigencias pulsionais,identificadas como origens indiretas de perigo.

"Pareec, entao, claro que 0 processo (intrapsiquico) de defesa c amilogoil fuga par meio da qual 0 ego se protege de urn perigo que a amea~a .defora. (Est e) processo dcfensivo c uma tentativa de fuga de urn pengo

instintual."61

Esta tentativa de entender 0 processo interior da defesaseaundo 0 modelo da rea~ao pcla fuga leva a formulay6es que,su;reendentemente, concordam com os. posicioname~tos hermc­neuticos da psicamilise: 0 Eu que foge, lllcapaz que .e de se sub­trair a rcalidade e obrigado a se esconder frente a Sl mesmo. 0texto no qual 0' Eu se compreende a si proprio em sua ~it~ac,:.aoe, por conscguinte, purificado dos rep,resentantes das .exlg~ncJ3s

pulsionais indcsejaveis, isto c,. 0 texto e censura,do.. ~ Idenhdad~desta porc;ao censurada da pSlque com 0 E,u-p:~pno e de~egada,ela se torna, para 0 Eu, urn dado neutro, e relftcada ao myel deum isto-aquilo. 0 meSillO val~ para os !,~prescntantes de.ste neutroao nlvel cIo complexo simbolico punftcado, a saber. para os

sintomas:

"0 proccoso que, pc10 recalqll,', Sl' u~\I]sf()rlllOU em. 11111 siIltOjj]a, afilm,:<lgora sua cxistCoIlcia fora cia org<lIliza~~io do c,go, e. mdl'pcncll'ntc clcla. J~nilO apenas este processo, mas toclos os SellS :Jcn.va?os llsufrllem d Css:me-smo privilegio; pouer-se-ia dizer, .cla. extratcrntona1:dade; c on~le. ess~esderiv~tivos entram em contato assoclatlvo com lima parte da orgdDlza~a~

do ego, nao c de moclo algum certo que nao atraiam essa. por~ao para SI

proprios c assim se ampliem a cllsta clo ego. Uma .analogla , com a qualdl' h{] muito cstamos familiarizados, comparoll urn smtoma, com urn cor,r0-estranho que vinha mantcnclo lima succssao constante de cstlillUlos e rea90es

no tccido no qnal estava encravaclo. De fato, ocorreu algumas ve~~~ quea luta defensiva contra urn implilso instintual desagrad~~el e. elIm.madacom a formac;ao d~ um sintoma. Ate ancle se pode vCflflcar, IstO e fre~qiicntcmcntc possive! n<l conversflO hist(,rica. 1·1as em gcral 0 resll1ta~o.cdif~rente. 0 ato inicial ela repressao e <lcompanhado par uma sequenCiatediosa Oll interminavel; nela a 1l1ta contra 0 impulso instintual se pro·

Jonga ate (ser) unia luta contra 0 sintoma".62

A luta secundaria da dcfesa contra os sintomas mostra queo processo interno da fuga, com 0 qual 0 Eu se esco~de perantesi proprio, substitui urn adversario externo pelos denvahvos doiel, neutralizados ern corpos estranhos.

Page 29: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

"que a dislilli;iio real entre uma representac;ao (de urn pensamento) les'­(ineonscicllte) e uma Pes, (prc-conscicntc) consistc no fato de a primeira

Scr cfetunda erri algum material quc pcrmancce deseonhecido, cnquantoque a 11ltima c, alcm disso, vinculada com re[JTesentar;:oes verbais' (. .. ).A Pergunta 'como uma coisa se torna consciente?' soa, portanto, melhor.em vista de sua finalidade quando f6rmulada da scguinte mancira: .'~omoalgo se torna pre-conseiente?' E a resposta seria: 'Vinculando-sc as repre­sentac;oes verbais quc the sao correspondentes'''.G3

A fuga cle si mesmo do Eu e uma operafiio executadana ecom, a linguagem; nao fosse assim, scria imposlvel inverter her­meneuticamente 0 processo de defesa por intermedio de /lilla"analise da linguagem. Freud tentOll compreyncler 0 ato cia repres,.sao no quadro lingiilstico como sendo 0 apartamento das ideias,rcpresentantes da pulsao, cia linguagem enquanto tal. Para tantoele sup6e

Ora, " distin<;ao entre reprcsenta<;ao verbal e representa<;iioisenta de sfmbolos e tao problematica quanto e insatisfatoria a,hipotese de urn substrato nao-verbal, junto ao qual cstas repre..:senta<;6es, desatreladas da Iinguagem, "se realizam". Alem disso,nao se pocle ver bem cle acorclo Com que regras, caso nao foreroas da gramatica, as representa<;6cs inconscientes deveriam asso­ciar-sc com os rcsicllloS vcrbais. ACJl1i cai Clll vista a 311s<:ncia deumalcoriil dCSCJlvolvicb ele lill2,lwgc:rll. A Inim par<.;cc plausivelcomprccnder 0 ato cla reprcssiio como 11111 processo cle sclc<;ao queafeta as interprcta<;oes cia propria neccssidacle pulsional. A Iin­guagem agramaticaI e comprimida cm imagens, propria ao sonho,libera pontos cle refercllcia para tal modelo de excomunhao. Esteprocesso seria a reproclu<;ao intrapsfquica de uma determinaclacatcgoria cia puni<;iio; sua efieacia era particularmente evidenteCill termos arcaicos: 0 banimento e 0 ostracismo, 0 isolamento·do criminoso do grupo social cuja Ifllgua era tambcm a sua. Coma dissociafao de (cert~s) simbolos particulares da comunicac;iiop(tblica cstaria, ao mesmo tempo, estatufcla uma privatizat;(io deseu contczldo sem/intico. ~1 MeSl1lO assim uma conexiio logicaentre a linguagem de[ormada e a linguagem publica continua asubsistir ate aquele ponto ern que urn clialcto, limitado a esfcraprivada cia linguagem, e suscctfvel de ser ainda tracluzido ~ nistoconsiste, afinal, a atividade semfll1tico-anaHtica do terapcnta.

As constrw;:6es conceituais do ego e do id resultaram deuma interpreta!tao das expericncias que 0 analista fez junto a

258 CONHECIMENTO E INTERESSECRfTICA COMO UNIDADE DE CONHECL\1ENTO E INTERESSE 259

<Oresistencia" do pacicnte. Freud e,ntendeu 0 processo de, clcfes~

o 0 a inversao da reflexao, isto e, COmo 0 processo analogo a~u; pela qual 0 Eu se encobr~ fr~nte a si ~es~o. "Id" c, entao,() nome para a parte do pSlqmsmo extenonzado pela defesa,

t "Ego" e a instancia que executa a tarefa do teste-de-enquan 0 . . _ I' . trealidade e da censura pulsional. A dlstIn<;ao topo oglca. e~ ~e

inconsciente e consciente (e / ou pre-consciente) ??rece COLll~ldlf

com esta diferencia<;ao estrutural. Se for per~lltIclo dcnoml~ar

de reflexao a dinamica clo fazer-consciente, entao 0 ~rocess~ 1Il­

verso ao da reflexao devera transformar aquilo que e cons~;en~c

no que e inconsciente. Acontece que est~ mcsma expenenc13I' ."a da qual as constru<;oes do ego e do ld tomaram sen pon-e 1l1J_<, • ," • d om

to cle partida, mostra que a atividade cia lDstanCla ocupa a c2. defesa (psiquica) de forma alguma se processa. se.mpre cons­cientemente mas, antes pelo contrario, revela na malO,n.a das vezes

dinamica inconsciente. Tal fato torna necessano segundouma . " ".Freud a introdu<;ao da categona do superego.

- f d ecursos aSSOCla tlVOS des-"0 sin-II obJ'etivo da rCSISLenCla e 0 ato e seus r 'd' . d 1 ue esta sen 0 ven-f - leeerem ou se scpararem dem2.sJadamente 0 ema q . "

d _ b. b'ctlvamcnlc a resls-1)'laclo l;lc (0 pacientc) pode tambem recon ecer su J . d. , d-' Is' aJJl"OXlma 0t o. ", I'cll) f"to d' t~r sCJltimentos desagra avelS quanlo e ' ..

CJ1Cld .' , ~ b- ,t~ J)JZcmos[ ' 1'1 J;~tc l'dtill1o sinal pock, conlllc!o, cst"r tarn em allsrcn,..t;IJ,... I, "'a "ron em'Ill"rI) 'IIJ J1'-lCil'nte cluC inferilllLls dc slIa cOlllJuta que c c C~L" ", ': b

{ , , • • lJ l' ' 6 "C 'lpl'!C(, ec~tad()-c1c-resist0neia, c cJc responde (IU~ naua Sit e c ISS0 C. S ,_., '(A Si:l1)d , j'lf"lculclac!e CjUC tern cm lormular I1vrcmente suas aSSOC13C;oes, s_

<l C , . .' tambpm11\ostra-s~ Clue tinhamos razao; mas, neSSe caso, sua reslsle~cla era _ -t'

,. ,- . 'd remoc;ao es]-j"Ilconseieute tao inconsciente quanto 0 reprIml 0 em cUJa t' - [ . ta' dc que par emas trabalhando. Ha muito c!cvcnamos ter .Clt? a pe~gun. ... t'

da vida psiquica Sc origina uma tal rcsistcncla lll~onscI~nte? 0 P~JnC1P,laJ: ~

e n pSI'canalise lera dc imcdiato uma resposta: e preelsamentc d r~slst~n

[ " . ., I' S om ISS0 se.', d . onsciente Resposta ambigua e l11aprovcltavc. e cCAd 0 mc . , t'r' cerl'lentcnde que a resistcncb surg~ do reprimido, devemos aer:sc~n d. d >'-mente nao! DeYemG~, antes, atribuir ao reca.1cado um~ t:n~encl~ asce: ~~1;

Ie llm impulso d~ irromper na consciencla. A reslstenCIa s~ pod :.: :["S(',<,"\O cIa ego essc clUe originariamente [orc;oll a reprcssao c c!cs'-'Ja,

J11dn, v ('y' , - • D ~de',gor'J mantc-la, Ademais, esta c a opiniiio que sempre tlvcmos. e. I' , " . • ..' , 1 ' 0 supere"o 0 quaque chegal110s a <ldmll1r uma l11stancla especlil. ?O ego, . , . <0 ,

rcsenta as reivindicac;oes de carater restntlvo e obJctavels" podemosI"CP _, d . " e quc e executada ou por<lizcr que a repressao e obra esse supel ego, )" G5cle meSIllO, ou pelo ego, posto que esta as ordens dele (do superego .

A adaptafiio inteligente it realidade exterior, a qual poe 0

de efetuar 0 teste-de-realidacle, correspondc aEu em" condi<;oes

Page 30: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

260 CoNHECIMENTO E INTERESSECroTICA COMO UNIDADE ,DE CONHECIMENTO E INTERESSE 261

apropriar;ao dos papeis sociais atraves do processo da identifica­r;ao com outros slljeitos, que, frente a crian<;a, representam asexpectativas sociais sancionadas. Por meio da interiorizagao detais expectativas, em base da introje<;ao, da instaura<;ao de obje­tos-de-amor abandon ados, erige-se a illstancia do superego. Osrcsfduos, proprios a escolha de objetos ja desamp~rados, dao ori­gem it instancia da consciencia maral, que langa na estrutura dapersonalidade as raizes das exigencias repressivas da sociedade,opostas as reivindica<;6es plllsionais "excedentes" (do inclividuo)e as quais sao, por sua vez, identificadas como "perigosas", de­vido aos .conflitos que podem engendrar. 0 superego e 0 pro­longamento intrapsfquico da autoridade social, 0 Eu exerce en­tao Sua fun<;ao de censurar os ihlperativos puls;clI1ais, por assimdizer, a servf<;o do superego. Ate onde 0 E~l age como' orgaoexecutiyo do superego, J5 a defesa permanece inconsciente. Nistoa repressao se distingue do domfnio consciente da pulsao .. 0 Eudependente da crian<;a e, possivclmente,. fI<lgil demais' para· exe­cutar, com base em seus pr6prios meios, a defesa em cada casopartic.ular de tal maneira que seja tambem eficiente. Assim seinstaura no Eu-pr6prio esta insUlnc' a que for<;a 0 Eu a fugir coma mesilla violencia objetiva como, por outro laclo, os dcrivalivoselo icl lambcni Ihc ofcrecell1 objelivamcl1te rcsistencia como resul­tados ela rcprcssao.

Na vcrdacle, 0 CJue oconc e 0 scguintc: a internalizar;(jo denormas prCiibitivas parcce ser um proccsso c1a mesma ordem quea defesa de motivos indesejaveis.6G Isto fundamenta 0 parentescodo superego co~n 0 id: ambos permanecem inconscientes. Naoha d(rvida de que os processos da internaliza<;ao e da defesa com­portam-se de forma complemental': enquanto, no segimclo caso,motiva<;6es proprias a a<;6es socialmcnte indesejaveis sao repri­midas como fantasias de desejo que, originariamente, fazem parledo Eu, a<;6es socialmente desej5veis sao, no primeiro caso, im­postas de fora ao Eu que, par sua vez, Ihes resiste. A interna­liza<;ao pode ser comparada com 0 processo dc dcfesa da seguintemaneira: igual a este, cla subtrai a discussao os preceitos que,no irifcio, estao articulados em nfvel semantieo. Este isolamentonao esta, porem, ligado a uma deforma<;ao inerente ao linguajarprivativo. Em tal contexto Freud acentua·

"que 0 superego ( .•. ) nao pode denegar sua origem a partir daquilo queoU\·iu;·ele C. ·na vcrdadc, uma parte do Eu e permaneee, por essa SUEt.

1.\

i

,

II,\'1

origem em representa(:oes verbais (conccitos, abstra(:oes), acessivel a cons.cicncia; contudo, a energia da catexia nao chega a esses contelldos de.'supcrego a partir da percep(:ao auditiva, do ensino, da leitura, mas apartir das [antes localizadas no id".67

Ha indkios de que uma especJe de sacralizagao, afetandocertas proposi<;6es, imp6e-se pela interliga<;ao com motivos acio­nais libidinosos e recalcados. Deste modo os simbolos, os quaisexprimcm as preceitua<;6es do superego, nao se tom am, comotais, inacesslveis a comunicagao publica mas, enquanto enuncia­dos fundamentais prenhes de libido, sao imunizados contra quais­quer obje<;6es crfticas. Este fato explica, igualmente, a fraquezado Eu, responsavel pelo teste-de-realidade, £rente a autoridadeimpositiva do superego ao qual, mesmo assim, ele continua presona base de uma linguagem comum nao mutilada.

A dedllr;ao do modelo estrutllral a partir das experieliciasda situar;iio analftica compromete as· tres categorias ego, id e su­perego com 0 sentido espedfico de uma comunicagao na qualmedico e paciente se engajam com 0 objetivo de par em movi­menta urn processo de esclarecimento, conduzindo 0 doente aoexcrdcio auto-refIexivo. Em consequencia, nao faz scntido des­never, par sun vez, a reciprociclacle psiquica, a qual devcmoslTCOITer para cxplic,lf 0 ego, 0 id e 0 supcrego, com :ljucla domodclo cslrutural introelm:ido com csta finalidacle. Ii isso, porcm,que Freucl faz. Elc interpreta 0 labor de interprete do medico,'recorrendo as expressaes do modelo estrutural. Com isso a co­munica<;ao, descrita no infcio sob 0 ponto de vista da tecnica'anaHtica, parece ser entendida em termos te6ricos. De fato, po­r6m, a exposigao teorica nao contem elemento algum que vaalem da descri<;ao que a precedeu. Pois, a linguagem da teoriacont6m predicados basicos impossfveis de serem introduziclos, anao ser em rela<;ao com a apresenta<;ao pre-te6rica da t6cnica.A lingllagem da teoria e mais pobre do que a linguagem na quala Ie-cnica foi descrita. Isto vale, sobretudo, para as express6csque se reportam ao sentic10 espedfico da analisc. De acorc1o comesta linguagem, d:z-se que aquilo que se tornou inconsciente 6transformado em consciente e, assim, atribufdo novamente ao Eu.que mog6es pulsionais recaleadas sao detectadas e criticadas, queo Eu-proprio dividido nao mais consegue operar qualquer sfnteseetc.68 No modelo estrutural, porem, a instancia do Eu careceprecisamente desta capacidade, a qual se apela com tais expres­saes: 0 Eu exerce as fun<;oes da adapta<;ao inteligente e cia ccn­sura das puls6es, mas a realiza~ao especffica, cia qual 0 exerdcio

Page 31: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

262 CoNHECIMENTO 10 INTERESSE CRITICA COMO UNIDADE iDE CONHECIMENTO E INTERESSE 263·

de defesa nao 6 senao 0 lado negativo, esta ausente - a auto­rcflexao.

Freud distingue, por certo, entre deslocamento, como pro­cesso primario, e sublimac;ao; esta eurn deslocamento sob controledo Eu. De forma analoga ele distingue entre defesa, enquantouma reac;ao inconsciente, e dominio racional dd vida pulsional;este 6 lima defesa nao apenas atraves do Eu, mas tambem sob 0

controle do Eu. Mas a dinamica da reflexao, que transforma urnestado em aquelomro, 0 esforc;o emancipat6rio caracteristico dacrftica, 0 qual transforma 0 estado 'patol6gico da compulsao e da.auto-ilusao em urn cstado onde 0 conflito esta supresso e a lin­guagem excomungada reconcilillda - esta dinamica da reflexiionao assoma ao nfvel metapsicol6gico como uma das func;oes doEu. Nao pode deixar de cair em vista: 0 modclo estrutural de­nega a origem de suas pr6prias categorias, as quais se impuseram.a partir de urn processo de esclarecimento.

11 . a auto-equivoco cientificista da metapsicologia.A l6gica da interpretac;iio genbico-universal

filC~llll COll1eSSa em sua Aulobiogmjia que, jil nos ;mos de jllVCI1­

tudc, ,;cu interesse pela cicllcia sc reporlara antes "as rclat;ocsdos hornens entre si do que aos objetos naturais"; que nem ncstacpoca, ncm mais tardc tivera qualquer prefercncia emocionalpara a posic;ao e a atividacle de medico. Mesmo assim, 0 cst\!­dante nao encontrou "sossego e plena satisfac;ao" senao ]1a fisio­logia. Durante seis anos ele se ocupou, no laborat6rio de ErnstBriicke, com problemas de histologia que cnvolviam 0 sistemanervoso.GD Essa dualidade dc interesses tcnha possivelmentc con­tribuido para 0 fato de Freud haver, de fato, fund ado uma novaciencia do homem, mas tcr vist.o nela sempre uma ciencia rianatureza. Ainda mais: da nenrofisiologia, na qual c1e aprendcraa manuscar questoes relevantes em termos antropol6g'cos cOm mc­todos pr6prios as cicncias naturais e a medicina, Freud emprestaos· modelos determinantes para a formac;ao te6rica. Freud jamaisduvidou que a psicologia fosse uma eicncia c1a natureza.70 Damesma forma como os eventos naturais observaveis, processospsfquicos podem ser encarados como objetos de investigac;ao.71

As construc;6es conceituais em psicologia nao possuem peso va-- lorativo diferente do que em uma ciencia da naturcza; pois, tam­

bern 0 flsico nao libera informac;6es acerca da essencia da eJetri-

c

cidade, mas tao-somente emprega "eletricidade" como 0 PSICO.~.

logo utiliza "pulsao" como. urn conceito. te6rico.7~ Nao ha duvida­de que foi a psicanalise que,pela primeira vez, fez da psicolog~a!

uma ciencia:

"Nossa suposi,ao de que haja urn aparelho· ·psiquico a se estendcr no,cspa<;o, convenientemente arnalgamado, desenvolvido pelas cxigencias. da"vida, cIancIo origem aos fen6menos da consciencia apenas cm um deter­minado ponto e sob certas cimct'i<;5es, possibHitou-nos erigir a psicologia'em bases semelhantes aquelas de qualquer outra cicncia da natureza, po~'

cxemplo, a fisica".73 .

Freud nao recua frente as cODsequencias de tal equivalencia i

da ps'camllisc com as ciencias da natureza. Ell' naG exclui, em;prindpio, a possibilidade da aplicac;ao terapcutica da psicanalise:vir algum dia a ser substitufcla pelo emprcgo farmacol6gico da"lbioqufmica. A autocompreensao da psicanalise como uma cien-;icia natural sugere 0 modelo da explorac;ao tecnica de informac;6es'cientfficas. Se a analise apenas aparentemente se apresenta como~

uma interpretagao de textos e, na realidade, conduz a uma pos-·sibilidade de tornar 0 aparelho psiquico disponivel para 0 con-;trole tccnico, entao nao ha nada de surprccndcnte na icJeia deque a intcrvcl1gao psicol6gica vcnha algum clia a ser suhstitl1lc1ade forma mais eficaz pOl' tccnicas somaticils de tralamcnto:

"0 fuluro pode ensinar-nos a cxerccr influcncia direta, pOl' meio dc subs-,lancias qUlll1icas cspeciais, sobre as quantidadcs dc encrgia e sua dislri-'bui<;ao no aparelho psiquico (.".). De momento, porem, nada temos (kmelhor 11 nossa disposic;:ao do que a lccnica da psicanalise ( ... )".74

Tal enunciado ja revela, por certo, que uma concepc;ao tec­no16gica de analise tao-s6 se adegua a uma teoria que se libertouda moldura categorial, pr6pria a auto-reflcxao, e substituiu ummodelo estrutural, adaptado aos processos formativos, pOl' urnmodelo de repartir;ao energetica. Enquanto a teoria permanecer,de acordo com seu sCl1tido, relacionada com a rcconstruc;ao deuma parte perdicla da biografia e, assim, presa a auto-reflexao;sua aplicac;ao sera necessariamente pratica. Ela tern por efeito areorganiza<;ao da autocompreensao de individuos socializados,compreensao estruturada na linguagem do cotidiano e capaz deorientar a atividade destes individuos. Mas, nesta fun<;ao, a psi­canalise nao pode jamais ser substituida por tecnologias adquiri­das a partir de outras - em sentido estrito - teorias cientfficas daexperiencia. Pois, a psicofarmacologia apenas consegue operar

Page 32: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

264 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRITICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 265

alterac,:6es da consciencia na medida em que disp6e sobre func;6esdo organismo humano como se dispusesse sobre processos natu­rais objetivados. Pelo contnlrio, a experiencia da reflexao, indu­zida pelo esclarecimento, e 0 ato pela qual a sujeito precisamentese liberta de uma situa<;ao em que chegou a ser um objeto parasi mesmo. Esta realiza<;ao espedfica deve scr 9xigid<:l do sujeitocnquanto tal. Nada a pode substituir; nao pode haver, portanto,tecnologia que a substitua, mesmo que, DUm outro plano, a tec­nica sirva para dispensar a sujeita de suas pr6prias realiza<;6es.

Tomando como ponto de partida as conhecidos modelos daneurofisiologia da 6poca acerca do moyjmento tra<;ado pelos neu­ranios, Freud esbo<;ou, em ,seus primeiros anos, uma psi­cologia da qual, logo mais, viria a se distanciar.75 Na ocasiaoFreud esperava poder fundamentar a psicologia direta e imedia­tamente como uma ciencia da natureza, a saber, como parte es­pecial de uma fisiologia cerebral que, por sua vez, era pr6-mol­dada de acordo os parametros da mecanica. Ela tinha a fun<;aode expor "processos psiquicos como estados, quantitativame~lt.e

determinados, de particulas materiais passiveis de uma espeClh­ca<;ao" .7G Categorias como tensao, descarga, excita<;ao e inibi<;aoreferiam-se a reparti<;ao energetica no sistema nervoso e a eadc11­cia einctica clos 11c11ronios, cOTlcebic!os segllllclo a mcciinica decorpos s61ic1os. Tal programa fisicalis{a Freud 0 abanc!011011 eIIlfavor de um ponto de parlida psicol6gico em senticln mais estrito.Este C0l1SerY3, por sua vez, 0 linguajar ncurofisiolog" sta, mas tor­na, s11b-reptieiamente, seus predieac10s b{tsicos acessivcis a umareinterpretar;iio mentalista. A energia transfonna-se e111 cnergiapulsionaI, sobre cujo substrata somatico nao c possivel pr,o~erir

juizos mais exatos. Inibi<;ao e descarga das reservas cnergetlcas,bem como os meeanisrnos de sua repart"<;ao trabalhariam confor­me 0 modclo de um sistema distendido espacialmente; doravanterenuncia-se, porem, a localiza<;ao destes processos:

"A idcia, quc nos e posta il disposi<;ao, 6 a dc uma localizm;:iio [J5iqllica.Qucremos deixar sem maior comenUlrio 0 fato <k 0 aparelho psiquicodo qual aqui se trata, nos scr igualmellte cOllhecido ua forma de umap[epara~ao allatomiea e queremos evitar cuidadosamente 0 esfor<;o dedeterminar a loealiza<;ao em termos anatomieos. Nos nos mantemos noeampo psieologieo e so nos propomos a scguir as exigcncias de que deva­mos representar 0 instrumento que executa nossas realiza<;6cs pSlquicascomo algo semelhante a urn microscopio composto, como uma camera foto­grMica ou algo deste tipo. Nesta base, a localiza<;ao psiquica correspon­dedI a urn ponto do aparelho em que surge uma das etapas preliminares

de uma imagem. No mieroscopio c no telescopio, como sabemos, isto ocorreem parte em pontos ideais, em regi6es nas quais nao se aclta situadonenhum componente taIlglvcl do aparelho. Nao vejo necessidade parade.sculpar-me pelas imprccis6es desta ou de qualqucr outra imagem seme­lhante. Analogias desta espccie destinam-se apenas a auxiliar nossos esfor­90 S em tomar inteligiveis as complica<;6es do funcionamento psiquico,atravcs da disseca<;ao da fun<;ao e da atribui<;ao de seus difcrentes consti­tuintes a partes componcntes diferentes do aparelho (. .. ) .77

Por conseguinte, rcpresentamos 0 aparelho psiquico como urn illstrumentocomposto, a cujas partes queremos dar 0 nome de installcias OLl (por amora maior clareza) sistemas. A seguir, deve-se preyer que estes sistemaspodem ta[vez ficar numa rela<;ao espacial rcguiar uns com os outros, damcsma forma pela qual os divcrsos sistemas de lcutcs de um te1csc6pioestao dispostos um atras do outro. Falando de modo estrito, n5.o h:i ncees­sidade de SlljJor que os sistemas psiquicos estejam realmell te dispostos numaordem espacia1. Seria suficiente que fosse estabcIccida uma ordcm fixapelo fato de, num determinado processo psiquico, a excita<;ao passar atravesdos sistemas numa sequencia temporal especial".7S

Freud estabelece algumas correla<;6es elementares entre ex­periencias subjetivas e os dinamismos energeticos cOl1cebidos deforma objetiva. Assim, desprazer resulta de uma acumula<;ao decxcita<;ao; de acordo C0111 a id6ia de que a intensidade c1a exci­t3.<;ao cleva SCI' proporcional a lIma quantidac1e encrgctica; inver­sarnentG, 0 prazcr se impoc pOl' ocasiao da dcscarga de encrgiaacu111ulada, portanto, atravcs de uma dirninui<;ao da excita<;ao.Os movimentos do aparelho sao regulac10s pela tendencia de evi­tar uma progressiva acumula<;ao de excita<;ao.'9 Tal coordcna<;aode express6es mentalistas (pulsao, excita<;ao, desprazer, prazer,desejo) com processos fisicos (quantum energetico, tensao c des­carga de energia e, enquanto propriedade do sistema, a tendenciadeste a perda de energia) e suficiente para separar as categoriasdo consciente e do inconsciente do sistema referencial da auto­reflexao; estas categorias, adquiridas a partir da comunica<;ao en­tre medico e paciente, sao agora alocadas para 0 modelo da dis­tribui<;ao de energia:

"0 primeiro desejo pareee ter sido uma catexia alucinatoria da lembraw;ade satisfa<;ao. Tais alueilla<;6cs, contudo, se nao devessem ser mantidasate 0 ponto de exaustao, mostraram ser inapropriadas para oeasionar acessa<;ao da necessidade ou, por conseguiute, do prazer que se liga a sa·tisfa<;ao.

Uma segunda atividadc ~ ou, como dissemos, a atividade de um segundosistema - tornou-se necessaria, atividade que nao permitiria a catexia

Page 33: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

266 CONHECIMENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNIDADE. 1)E CONHECIMENTO E INTERESSE 267

'mnemica av:m<;ar tao lange quanta a percep<;ao e, daJ, sujeitar as fo[(;:aspSlquicas; em vcz disso ela desviaria a excita<;ao surgida cia necessidadeao longo de urn carninho indireto que, em ultima analise, atravcs domoyimento voJuntario, alteraria 0 mundo externo de uma maneira tal ques~ tor~a possivel chcgar a urna percep<;ao real do objeto da satisfa<;:ao.

,Ja delmeamos nosso quadro esquernatico do aparelho psiquico ate esteponto; os dois ~istemas sao 0 germen daquilo que, no aparelho intcgral­mente desenvolvlClo, estatuimos como 0 Inc. e 0 Pcsc.".80

Em colaborac;ao com Breuer, Freud havia publicado em 1895os E.stlldos sobre a histeria. Certos fenomenos patol6gicos ja erameXI?lIcados neste tcx~o de acordo com 0 modclo desenvolvido pos­tenormente. A pacIente de Breuer deixara perceber, em estadode hipnose, qu~ seus sintom~s tinham algo a ver com cenas pas­sadas de sua vida, nas quaIs cIa fora obrigada a reprimir exci­,tac;oes particularmente intensas. Estes afetos podiam ser conce­bid?s como quantidades transferiveis de energia, cujas vias nor­malS de descarga estavam bloqueadas e que, em conseqiiencia,deviam ser utilizadas de maneira anormal. Visto sob urn pontode vista psicol6gico, 0 sintoma surge, pela acumulac;ao de umafeto; tal dado e tambem passIvel de ser apresentado, no modeloem questao, como resultado da conversao de urn quantum ener­gctico inibido em sua tcndcncia de sc esvair total mente. 0 me­,todo terapcutieo, lltilizaclo pOl' Breuer, fora pCJlsac10 com 0 ubje­tivo de cunscguir "que 0 (juanfrml de al'cto, cmprcgado para ,l

manutenc;ao do sintOlna, quantumquc se havia clesencClminhadoC, por assim dizer, estrangulado, fosse dirigiclo para a via normal,.ande pudessechcgaJ;- a descarga (ab-rcac;ao)" .81 Freud nao tar­.dou a reconheccr os inconvenientes da hipnose e introduziu, emseu lugar, a tecnica da livre associac;ao. A "regra fundamcntal

..da analise" formula as condic;oes de urn rcservac1o" isento de re­pressao; nele a "situac;ao de perigo", isto e, a prcssao de sanc;ocssociais esta, de forma nao menos convincente do que exequfvel,suspcnsa durante 0 tempo em que medico e pacientc estao emcomunicac;ao.

A passagem da antiga a nova tecnica c cssencial. Ela naaprovem de considerac;oes que afetam a utilidade' terapeutica masresulta da intelecc;ao basica de que a rememoraC;ao do paciente,a qual foi identificada como relevarite para a tcrapia, cleva levara apropriac;ao consciente de urn fragmento recalcado da biogni.­fia do paciente - eis que a liberac;ao hipn6tica do inconsdentenao pode romper definitivamente a barreira que se opoe "ao es­forc;o da recordac;ao, uma vez que tal liberac;ao apenas manipula

processos da consciencia e nao responsabiliza 0 slljeito como talpOl' esse~ proc:ssos. Freud rejeitou a tecnica de Breuer pelo fatode a analise nao ser urn processo natural dirigjdo mas ao nivelda intersubjetividadc entre medico e paciente, estruturada em ter­mos de linguagem ordinaria, urn movimellto da auto-reflexao.Este elemento foi destacado pOl' Freud, sobretudo no ensaio jacitado "Recordar, repetir, elaborar"; e contudo: no final destemesmo texto elc compreende a dinamica auto-reflcxiva, induzidasob as condic;6es da regra b:isica da analise, segundo os criteriosdo antigo modelo de Breuer, a saber, recordar como ab-reac;ao:

";:Cst:l c~abor:lI;iio lbs resistencias pode, na pr{lxis, revefar-sc lima tarefaardua para 0 sujeito da analise c lima prova de pacicncia para 0 analist~.Todavia, trata-so daquela parte do trabalho que opera as maiares mudan<;agno paciente e que distingue 0 tratamento analitico de ql1alquer tipo detratamcnto par sugestiio. De um ponto de vista tearico pode-se correlaeici­l1i-b com a 'ab-rca<;ao' das colas de afeto estrangllladas pcla rep!l',sao,urna ab-rea<;iio sem a qual 0 tratRmcnto hipn6tico perrnaneeia ineficaz".8Z

Preso desde 0 infcio ao mal-entendido cientificista, Freudsllcum~e. a urn objctivismo que retorna, sem qualquer mediaC;ao,c10 estaglO da auto-reflcxao ao positivismo da cpoca, a moda deMarch, e assume, par isso mcsmo, uma forma particularmente{\:;pcra. Illc1cpcJ)cknte cIa biografia c1a obra, () c1cscaminho meto:­dol6gico dc Frcuc! pock scr rccoJJstruido m;\is au mcnOs c1a sc>guintc maneira: as catcgorias func1amel1tais cIa nova cIisciplina, asconstruc;oes conccituais, as hip6teses acerca dos complcxos fun­cionais do aparclho psiquico e sobre os mecanismos que afetamo surgimcnto dos sintomas, bern como os da remoc;50 de compul­soes pato16gicas - esta molc1ura metapsico16gica foi, primeira­mente, desenvolvida a partir de experiencias da sitnac;ao analfticae da interprctac;ao de sonhos. 0 sentido de tal constatac;ao e deordem metoc1ologica e nao se limita apenas a pcsquisa psicol6gi­ca. Com cfeito, tais categorias e conjuntos nao foram apenasdescobertos sob determinadas condi<;oes de uma comunicac;aQ>cspecificmncntc protcgida; na Ycrclac1e, indepcndentcmente delasnao h5 como explicita-los de modo algnm. As condic;oes dest3!comunicac;ao sao, assim, as condic;6es de possibilidade do co:­nhecimento analftico para ambos os contraentes, para 0 medicanao menos do que para a paciente. Talvez Freud tenha visto estetipo de implicac;ao ao qualificar como uma questao de homa dotrabalho analftico a fato de "nele coineidirem pesquisa e tratamen­to".S3 Sc, porcm, como mostramos' pelo exame de seu modele>

Page 34: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

268 CONHECIMENTO E INTERESSE CRlTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 269

estrutural, a moldura categorial da psicanalise esta presa, em ter­mos logico-cientfficos, as pressuposic;6cs de uma interpretac;ao detextos deform ados e mutilados, com os quais os autores enganam­se a si mesl11 os, cntao a farmac;ao da teoria permanece embutidano contexto da auto-reflexao.

Dnica alternativa oferece a tentativa de reformular as hipo­teses psican alfticas no cadinho categorial de uma cicncia experi­mental estrita. Assim, certos teoremas receberam nova formu­lac;ao nos quadros de uma psicologia da aprendizagem de cunhobehaviorista e, em conseqiiencia, foram submetidos aos habituaisprocedimentos vcrificatorios. Mais pretensiosa e a tentativa dereconstruir, com os recursos do funcionalismo modemo, 0 mo­delo da personalidade, desenvol'vido pela psicologia do Eu, masfundamentado numa dinamica pulsional, como urn sistema quese regula a si proprio. Em ambos os casos a nova armac;ao 1eo­rica possibilita uma operacionalizaC;ao dos conceitos, em ambosos casos cIa exige, em base de condic;6es experimentais, umaverificaC;ao das hip6teses deduzidas. Freud por certo supos, semfazer maior comentario, que sua Metapsicologia, a qual libertao modelo estrutural dos pressupostos da comunicaC;ao entre me­dico e paciente e, em vez disso, 0 entrelar;a com 0 mo(leIo dadistribuir;ao energetica atrav6s de mcras definic;6es, representa,nos molcles das cicncias cxpcrimcntais, uma forll1lila\~5.0 cstritadcsta cspccic.

SCll posicjonamcnto freutc a lllctapsicologi,1, da qllal vez Foroutra fala como se fosse uma "feificeira" para se defendcr con­tra seu inquietante carater especulativo, nao foi isento de ambi­valCncias. 84 Bem possivel que em tal ambivalCncia se escondiatambcm uma leve duvida quanto ao status desta cicncia, a qualele, no mais, sustentou de forma tao enfatica. Freud iludiu-seao achar que a psicologia, na medida em que se cntende comouma ciencia experimental propriamente dita, nao se pode satis­tazer com um modelo que mante.m uma terminologia fisicalistasem conduzir seriamente a hip6teses que possam ser operaciona­lizadas. 0 modc1o da distribuiC;ao energe.tica nao engendra maisdo que aparcncia, isto e, como se os enunciados psicanallticosse relacionassem com alterac;6es energeticas mensuraveis. Mas,nenhuma proposic;ao sequer acerca das grandezas quantitativas,deduzidas segundo 0 ponto de vista da economia pulsional, foialgum dia verificado de acordo com cdterios experimentais. 0modelo do aparelho psiquico esta concebido de tal maneira que'algo assim como verificabilidade is associado pelos acontecimen-

IIi,

to's em nfvel semantico mas, no plano dos fatos, esta verificabi­lidade nao se realiza jamais e tambem nao 0 pode seL

E 'possivel que Freud nao se tenha dado cont.a do_ alcanc,edesta limitac;ao pelo fato de haver considerado a sltuac;ao .anah­tica do dialoao como uma operac;ao de carater quase-expeTlm~n-

b .'" •tal e ter, par isso, concebido a base clflllca da expen~ncla comoum substituto capaz de satisfazer a verificac;ao expenmental. ~objec;ao de que a psicanalise nao tolera nenhuma demo~strac;ao

experimental Freud contra~6e 0 argument? d.a .astrOn?ml.a: essaciencia tambem nao expenmenta mas esta ltmltada aqullo <1ueobserva.S5 Mas a diferenc;a especifica entre a observac;iio dos as­tros e 0 dialoao analitico esta no fate de, no primeiro caso, aselec;ao quase-~xperimental das condic;6es iniciais permitir um.aobservacao controlada de eventos possiveis de serem pragnostl­cados, ~nquanto, no segundo caso, 0 plano do contrale dos su­cessos, proprios a ac;ao instrumental,S." estar ~ot~l.mente .ausente ~

ser representado,atraves do plano d~ l1ltersu~Jctlvldad.e,.l1le~-e~1le._a

compreensao mutua acerca do sentldo de slmbolos ll1mtehglv~l:.

Que Freud, mesmo assim, teime obstinadamente em ver no dla­logo analftico a unica base experimental nao apenas pa~a 0 de­senvolvimento da metapsicologia mas tambem para a va~ldade dateoria trai, por outro lado, uma consciencia do verda?elr? \TatuscJcsta ciencia. Freud por certo pressentia que a reahzac;ao con­:;eqiiente do programa de l1ma psicologia "ci~ntifjco.-n;:turalist<:"ou no minimo, sua exata execuC;~l0 cm tcrmos bchavlOTistas ten.aqu~ ter sacrificado a intenc;ao a qual a psican.alise deve, exclusl­vamente sua existcncia: a intenc;ao do esclareclmento - de acOl­do com' 0 qual 0 id deve vir a ser Eu. Verdade is que. Fre~dnao abandonou tal programa, ele nao entendeu a metapslcologlacomo aquilo que ela tao-somente no siste:na ref,e~encial. da auto­reflexao pode ser: como uma interpretar;ao geneTlco-ulllversal deprocessos que a/etam a formar;ao .da e.specie. . .,

Faria sentido reservar 0 deslgnahvo metapslcologm aq~e!as

hip6tescs fundamentais que se refere:n ao comple~o patologlcocla linguagcm cotidiana c cIa intera<;:ao, e os quals podem sere:xpu~ws t;1l1 urn monelO eSlnllUri:ll a ll~Z oa le,o~a aa 1l1lgUdgv Hl.

Nesse caso nao se trata de uma teona emprnca, mas de umametateciria ou, melhor, de uma meta-hermeneutica que elucida ascondic;6es de possibilidade do conhecimento psicanalf:ico. _A me­tapsicologia desdobra a l6gica da interpretar;ao na Sltuar;ao a,na­litica .do dialogo. Nesse sentido ela se localiza ao mesmo DIvelda n1etodologia das ciencias da natureza e do espfrito. Como

Page 35: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

270 CONHECIMENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 271

estas, ela retIete 0 quadro transcendental do conhecimento anali­tico como urn conjunto objetivo de defesa organizacla; e isso sig­nifica aqui, simultaneamente, como urn conjunto objetivo de pro­cessos auto-investigat6rios. Nao ha dllVida de que no plano daauto-reflexao nao pode haver, diferentemente clo que ocorre na16gica das ciencias da natureza e do espirito, algo assim comouma metoclologia separada de conteudos materiais, eis que a es­trutura da conexao cognitiva se confunde com 0 objeto a ser co­nhecido. Entendcr a situa<;ao da transferencia como condigao deum conhecimento possivel significa, ao mesmo tempo, compreen­cler um complexo patol6gico. Devido a tal conteudo material,os enunciados te6ricos, os quaifi gostariamos de reservar para ametoclologia, nao foram conhecidos como proposig6es metate6­ricas e, a rigor, tambem nao foram distinguidos das interpreta­<;6es empfricas significativas dos processos cle forma<;ao que, co­mo tais, se desencaminharam. Mcsmo assim ha que registrar umadiferen<;a no plano metodologico: as interpretag6es generico-uni­versais sao, como teorias cientffico-experimenta\ diretamenteacesslveis ao controle emplrico - nao importanclo a diferen<;ade sua base experimental - enquanto as hip6teses meta-herme­neutieas fUlldamentais sobre a atividaclc propria a comunica<;ao,sobre a dcformagao cia lingu8gem e a p'ltologia clo comporta­meillo l)rovem de uma rcflcxfu) posterior acerca das condigoes(](1 conhecimento Jlsicanalitico jlossivcl, (~ 'lpcn8s indirclarncntc,por assim dizer, poclem scr confirmadas ,\ luz de uma categori­zagao global de processos invcstigatorios ou, entao, spr final menterejeitaclas.

Ao nivel cia auto-reflcxao, a ll1etoclologia clas cicncias cia na­tureza pode fazer assomar a superflcic uma conexao especificaentre linguagem e atividacle instrumental, ao passo que a metoclo­logia clas ciencias do cspirito pode trazer a luz uma relac;:ao entrelinguagcm e intera<;ao; ambas podcm reconhece-Ia como urn com­plexo objetivo e determina-la em sua fun<;ao transcendental. Amctapsicologia trata igualmcnte de uma rela<;ao fundamental, asaber: daquela entre deformac;iio cIa lingllagcm c patologia docomportamento. Ao faze-lo, ela pressupoe uma teoria cia lingua­gem ordinaria, cuja tarefa consiste nao menos em c1arear, sob 0

fundamento de urn reconhecimento mutuo, a valiclade intersub­jetiva de simbolos e a media~ao verbal das intera<;6es, do quetamar compreenslvel a aquisi<;ao societaria da gramatica dos jo­gos de linguagem como processos de individuac;:ao. Como, deacordo com esta tcoria, a estrutura da linguagem determina da

mesma forma a linguagem e a praxis da vida, as motivos acionaissao concebidos tambem como necessidades interpretadas pela lin­guagem, de sorte que as motivac;:6es nao representam impulsosque agem retroativamente mas, sim, inten<;6es que orientam sub­jetivamente sao mediatizadas simbolicamente e estao, ao mesmotempo, ligadas umas as outras. -

A tarefa da metapsicologia e, portanto, demonstrar que estccaso normal e 0 caso-limite de uma estrutura de motiva<;iio quedepende, concomitantemente, de interpreta<;6es que afetam tantonecessiclades comunicadas publicamente quanto nccessidades re­primiclas e privatizadas. Os sfmbolos isolados e os motivos re­calcados par meio dos mecanismos de defesa clesenvolvem seupoder por sobre a cabec;:a dos sujeitos, e for~am a imposic;:ao desatisfa<;6es e slmbolos substitutos. Desta maneira eles obscure­cern 0 texto dos jogos cla linguagem cotidiana e se destacamcomo perturba~ao das interac;:6es habituais: atraves da compul­sao, da mentira, e pela incapacic1ade de corresponder as expecta­tivas sociais obrigat6rias. As motiva<;6es inconscientes adquiremassim, em face clas conscicntes, 0 carater de Uma pulsao, agincloas costas destas motivac;6es conscientes, 0 carater daquilo que epuls'onal par excelcncia. E como os potenciais motivadores, tan­to aguc]es que sc acham incluldos no sistema social cla auto­cO]1Servilc;'ao coletiva quanto aqucJcs que nilo sc cncontram inte­grad os ncssc sis lema mas sao reprimic1os, rcvelam claramentetendencias agressivas c libidinosas, llma teoria da pulsao se tornainc1ispensavel. Importa, porcm, mante-Ia isenta de um falso obje­tivismo. Ja 0 conceito de instinto, 0 qual e relacionado ao com­portamento animal, c adquirido privativamente da pre-compreen­sao de um mundo humano, restrito por certo, mas sempre ja in­terpretado no horizonte da linguagem ordinaria - em termosmais simples, adquiriclo a partir das situa<;6es da fome, do amore do oclio. Tal vinculagao com as estruturas de sentido do mun­do da vida, por mais elementares que sejam, nao percle sua vi­gencia para 0 coneeito ua pulsao, transposto para 0 homem apartir clo que chamamos de animal. Trata-se de inteng6es enco­bertas e erraticas que, de motivos conscientes, se inverteram emcausas, submetendo assim 0 agir oa comunica<;iio a causalidadede circunstancias asselvajadas. Esta causalidade e a do destinoe nao a da natureza, eis que cIa exerce poder por meio dos rccursossimbolicos do esplrito, razao por que ela tambem so pode serdominada pela for~a da reflexao.

Page 36: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

272 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRfTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENto E INTERESSE 27J

Atraves da obI'a de Alfred Lorenzcr, 0 qual entende a ana­lise de processos dinamico-pulsionais como amllise da linguagemno sentido de uma hermeneutica profunda,87 estamos em condiltoesde focalizar mais acuradamente os mecanismos decisivos da pa­tologia da linguagem, da deforma<;ao das estruturas internas daa<;ao e da linguagem, bern como os de sua dissolll<;ao analitica.A analise semantica, a qual decifra nos silltomas os motivos in­conscientcs da· mesma forma como eIa, em base de passagensdeformadas, de lacunas de urn texto, decifra 0 sentido rcca1cadopela censura, ultrapassa a dlmensao do sentido supostamente sub­jetivo da atividade intencional. Tal analise vai alem da lingua­gem e, na medida em que esta a, scrvi<;o da comunica<;ao, penetranaquela camada simb61ica, onde os sLljeitos iludem-se a si mes­mos com a lingl1agem e, ao mesmo tempo, nela se traem. E porisso que a analise pac1ua COm conexoes causais; estas se impoemno momento em que a linguagem, uma vez excluida da comuni­ea<;ao publica pOl' !Deio da repressao, reage com uma compulsaocomplemental' e obriga a conscicncia e a a<;ao comunicativa ase dobrarem frente aos il1lperativos de uma scgunda natureza.NU111 lado das extremidades de tais encadeamentos encontram-se,norma]mente, expericneias trmnnatieas cleo 11l11aCena infantil c,]lO outro, as a!1era(;llCS da realicl,\<!c, pcrpcluaelas sob 0 impactoda COlJ1PUJS~lO a rcrcti~:iio, c atitucks cOll1portamcntais anormais.Numa situac;:ao infantil 0 processo o.riginal dc dc(csa acontececomo fuga diante de um contraentc superior. Tal proccsso sub­trai a cOlDunica<;ao pllblica a interpreta<;ao lingiiistica do motivoque levou ao comportamento dcfensivo. Com isso, a eoercnciagramatical da linguagem pllblica permanece intacta, cnquantopartes dcste conteudo semantico sao privatizadas. A forma<;aode urn sintoma equivalc a cria<;ao de um substituto para um sim­bolo, 0 qual possui agora urn peso valorativo aIterado. 0 simbo­10 eliminado nao c totalmente banido dos conjllntos pr6prios alinguagem piiblica; mas esta pertcn<;a gramatical fica scnelo, pOl'assim dizcr, mua conexao subterrfmea. Sua for<;a persuasiva lhcadvcm pelo fato de embaralhar a 16gica do uso publico da lin­guagem atraves de identifica<;oes semanticas erroneas. 0 simboloreca1cacIo continua, pOl' eel' to, inteligivel ao nivel do texto publi­co quando visto a luz de criterios objetivos que, como regrasformais, sao 0 resultadd/ de circunstfmcias contingentes da bio­grafia; mas este sfmbolo nao e mais posto em rela<;ao COm regrasintersubjetivamente reconhecidas. E pOl' isso que 0 sintomaticoencobrimento do sentido e a correspondente perturba<;ao da in-

\)

tera<;ao sao, de inicio, incompreensfveis tanto para 0 sujeito quan­to para seus semelhantes. Essa alteraltao torna-se compreenslvelno plano da intersubjetividade, a qual precisa ser, antes de maisnada, estabelecida entre 0 sujeito, como Eu, e 0 sujeito, comoId; e isso na medida em que medico e paciente rompem con­juntamente a barreira da comunica<;ao. Tal tarefa e facilitadapela situa<;ao transferencial, uma vez que 0 agir inconsciente fren­te ao medico permanece sem resultado, de maneira que 0 conflitorenovado ricocheteia contra 0 pr6prio doente e, uma vez reco­nheeido seu carateI' compulsivo COm 0 cOncurso interpretativo doanalista, pode vir a ser conectado COm as cenas indefinidamentereiteradas fora da analise e, finalmente, ser reconcluzido ao cena­rio infantil de origem. Esta reconstrultao dissolve as falsas iden­tificac;:6es existentes entre express6es pr6prias a linguagem pUbli­ca e expressoes pr6prias ao linguajar privado, e permite que secompreenda 0 elo gramatical encoberto entre urn sfmbolo isoladoe urn texto publico distorcido pOl' urn OU mais sintomas. 0 en­trela<;amento entre simbolos lingiilsticos, gramatical em sua es­sencia, impoe-se em seu modo de aparic;:ao como urn encadea­mento causal entre eventos empiricos e caracteres sedimentadoscia pcrsonaliclac1e.88 A auto-reflcxao remove-o; com isso a de­Iormac;ilo que caraetcriza a lingmlgcl11 privac1a dcsap~\rece cia mes­llla mane;ra como a sintomatica satisfac,:ao substituta de motivosacionais rccaJcc:clos mas, agora, acessivcis ao controle consciente.

o 1110delo das tres instiincias - Eu, Id, Superego - possi­bilita uma apresenta<;ao sistematica da estrutura da linguagem eda patologia do comportamento. Os enunciados meta-hermeneu­ticos podem ser organizados neste modelo. Eles elucidam 0 qua,­dro metodol6gico no qual as interpretac;:oes, empiricamente rieasem conteudo, dos processos formativos podem ser desenvolvidos.Estas interpreta<;oes generico-universais precisam, porem, ser dis­tinguidas da moldura mctapsicol6gica. Trata-se de interpreta<;oesrefcrentes ao desenvolvimento cIa primeira inf3.ncia (relativa agenese da base motivadora e da forma<;ao pat'alela das fun<;6esdo Eu) c que servem de matrizcs narrativas que, em cada casoparticular da biografia, devem ser encaradas como esquemas deinterpreta<;ao, a fim de que possa ser encontrada a cena primevado conflito nao resolvido. Os mecanismos de aprendizagem, comos quais Freud conta (escolha de objeto, identifica<;ao com 0

modelo, introjeltao de objetos-de-amor abandonados), tornamcompreensiveis a dinamica do surgimento de estruturas do Eu aoDivel de intera<;oes mediadas simbolicamente. Os mecanismos de

Page 37: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

'274 .CONHECIMENto E INTERESsE CRiTICA COMO UNIDADE DE CONHECThIENTO E INTERESSE 275

dcfesa intervem no processo na medida em que as normas SOC131S,cncarnadas pelas expectativas frente as primeiras pessoas de re­ferencia, confrontam a Eu da crianya com um poder insupor­lavel e faryam-no a fugir de si mesmo rlllllO a objetivayao de sipr6prio. 0 processo de farmayao da crianya e determinado parproblemas de cuja soluyao depende se e em que grau 0 processoulterior de soeializayao sera entravado pela heranya de conflitosnao resolvidos e onerado por limitayoes de funyocs do Eu e,<lssim, par meio de um ponto de partida predeterminacIo, serlevacIo a uma aeu111ulayao de enos, de coac;oes e de fracassos ­au, se a processo formativo possibilita um cIesenvolvimento reIa­tivamente estavel da identidade dO Eu.

As interpretayoes generico-universais de Freud contl~m hi­p6teses acerca cIe diversos mocIelos de interayao entre a crianyae suas primeiras pessoas de referencia, sabre as conflitos· corres­pondentes e sabre faunas apropriadas para resolve-los, al6m demodelos acerca das estruturas cIa personaIidacIe, resultantes de tais'soluyoes ao final do processa cIe socializayao da primeira inffmeia.Tais interpretayoes apresentam, par seu lado, fatores potenciaispara a biografia posteriar, permitindo que se fayam prognosesparciais. Como os processos de aprencIizagem se realizam pelasvias da at;ilo COllJUllicat'lva, a teoria poc1c assumjr a forma de urnailarrw;fio, a Cj\HI expoc nanativarncnlc 0 dcscnvolvirncnto psico.dinamico cIa crianya como uma seqjjencia continuada de ayao:com uma cIivisao tipica de papCis, conflitos basicos que se impoemsucessivamente, modelos de interac;ao que tornam a voltar, enfim,com perigos, crises, soluyoes, com triunfos e derrotas. Como,par outro lacIo, no plano da metapsicologia as conflitos sao com­preendidos sob a ponto de vista da defesa, e as estruturas dapersonaIicIacIe entencIicIas cIe acordo com a relac;ao reciproca deEu, Id e Superego, esta hist6ria e apresentacIa esquematieamentecomo um processo formativo que segue seu curSO atraves das di­vcrsas etapas cIa auto-objetivac;ao e que possui seu telos na auto­cOllsciencia de uma biografia, cnja apropriaC;ao se cfetu<J pelaauto-reflexao. ,! ,f,1

Somente a pressnposiC;ao da metapsicologia permite uma ge­neralizar;ao sistematica daquilo que, de resto, permaneceria merahist6ria. A metapsicologia fornece uma scr~e de categorias e dehip6teses fundamentais que, a rigor, englobam complexos de de­formayao da Iinguagem e de patalogia do comportamento. AsinterjJretayoes generico-universais, cIesenvolvidas neste quadro,sao a resultado cIe multiplas e repeticIas experiencias clinicas:

eIas foram adquiridas de acordo com a metoda elastica das ante­cipayoes hermeneuticas circularmente comprovadas. ]VIas, mes­mo tais experiencias ja estavam sob a influencia generica do es­quema antecipado de processos de formar;iio perturbados. Ade­mais, qualquer interpretayao que reivindique 0 status da "univer­salidacIe" subtrai-se ao metoda hermeneutico, pr6prio a continuaconeyao da pre-compreensao junto ao texto. Diferentemente doque ocone com a antecipayao hermencutica do fil610go, a inter­pretac;ao generico-universal 6 "constatada" e, enquanto teoria uni­versal, precisa ser confirmada atraves de prognoses dedutivas. Sea psicanaIise propoe uma matriz nanativa, sobre a quai processosde formayao interrompicIos podem ser completados, tornando-seassim uma hist6ria sem lacunas, as progn6sticos que sao adqui­ridos com sua ajucIa, servem para reconstruir a passado; mas,tambem eIes sao hip6teses que podem gorar.

Uma interpretayao generico-universal determina processos deforma~ao como uma sucessao regular de estados sistemicos, al­ternados de acorcIo com as respectivos pontos de partida. E parisso que as variaveis gencticas, historicamente reIevantes, poc1emser analisacIas em seu todo, sempre em vista da dependencia dosistema. ;\ coerencia objetivo-intencional da biografia, a qualnao sc torna accsSlvcI senan atravcs ~Ja aUlo-reflexiio, naD 6 pOl'

ecrto funcionalista Ill) scntido usual du tenno. Os eventos cle­mentarcs silO, muito mais, cen{lrios de um elrama; eles nao semostram sob a ponto de vista instrumentalista cIa organizac;aod~ meios em relayao a sua utilizayao ou, cntao, em vista cIa com­portamenta acIaptativo. A relaC;ao ele conjunto funcional e illter­pretada de acordo com a modelo cenico: as cenas elementaresaparecem como partes de um conjunto de interayoes, atravesdas quais se realiza a que denominamos de "sentido". Este sen­tido nao 0 podemos equiparar aos fins pr6prios do modelo-de­artesiio, os quais sao executacIos atraves de meios especiais. Naose trata tambem ele uma categoria de senticIo emprestada cIa fUl1bi­to funcional da atividac1e instrumental, como cste c a caso, parexemplo, cia manuten<;ao de um estado sistcmico que se encontrasob condiyoes externas varifiveis. Trata-se de tlln sentido que,muito embora nao seja visuaIizacIo como tal, forma-se par meioda atividacIe cia comunicac;ao e se articula, reflexivamente, comoexperiencia biogrMica. Assim 0 "sentiel0" vai-se descobrindo amedida que 0 drama de densenrola. No processa de nossa pr6­pria formac;ao somas, par certo, atores e crfticos numa e na mes­ma experiencia. No fim 0 sentido do pr6prio processo deve

Page 38: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

276 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRlTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 277

poder chegar criticamente a consciencia, a nos que estamos en­volvidos no drama da nossa pr6pria hist6ria-da-vida; 0 sujeitocleve poder narrar sua propria historia c tel' compreendido as ini­bic;6es quc Ihe estavam postas no caminho da auto-reflexao. 0estaclo dcfinitivo de um processo formativo s6 esta, assim, a1can­<;ado quando 0 sujeito se recorda de Sllas iclentificac;6es e aliena­<;6es, de suas oujetivac;6es impostas e de suas reflex6es conquis­tadas, como caminhos atravcs dos quais ele se tern constituido.

Somente a Idst6ria sistematicamente universalizada e meta­psicologicamente fundada do desenvolvimento da primeira infan­cia, com suas variantes tipicas, da ao mcd:co condic;6es de comporas informac;6es fragmentarias, obtiqas no curso do dialogo analf­tico, de tal maneira que possa reconstruir as lacunas da recorda­<;:ao e antecipar, em termos de hipoteses, a experiencia da rcflexao,a qual 0 pacicnte c incapaz de fonnular no inieio da analise. Eleprop6e intcrpretac;6es para uma historia que 0 paciente nao podecontar; mesmo assim, tais interpretac;6es so podem ser corrobo­radas peIo fato de 0 pacientc as aceitar e, apoiando-se neJas,narrar sua propria historia. A interpl'etac;ao de urn caso nao serevcIa concluclente senao ao permitir a continuaC;ao bem-slicedidade urn processo de formac;ao que se acha interrompic1o.

Intcrpretclc;6cs gcncrico-ulJiversais possuem 11l1la posir;ao tocIaespecial (;ntrc 0 :;njeito {jUC invcstiga e () r!ol1Jlnio do objcto invcs­tigado. Encju(lIJ[O que, cm C,ISOS ltulIllais, ci quc dClJoJllil1amos detcoria contcm proposiC;6cs acerca de um clominio de objeto aoqual estas, como enunciados, pcnnanecelll cderiores, a validadede interpretac;6es gencrico-ulliversais depende, precisamente, dofato dos enunciados sobre 0 dominio do oujeto serelll apJicadosa eles mcsmos pelos "objetos", a saber, pelas proprias pcssoas emquestao. As informac;6es cientlfico-experimcntais comuns s6 fa­zem sentido para os que participam do processo de pesquisa e,a segllir, para aqueles que lItilizam tais informac;6es; em ambosos casos a validade das informaC;6es mede-se ullicamente peloscritcrios cla cocrencia e cla pcrtinencia empirica. EIas aprcselltamconhecimentos quc, pela aplicac;ao a rcaIidacIe, tern sido cxpcri­mentados junto aos objetos; mas elas tao-somente possuem vi­gcncia para os sujeitos. Intelecc;6es analiticas, pelo contrario, sopodem ter validade para 0 analista depois de haverem sido, en­quanta conhecirnentos, aceitas pelo analisado como tal. Pois, apertinencia empirica de interpretac;6es gencrico-universais naodepende de lima observac;ao controlada e da posterior comuni­cac;ao dos pesquisadores entre si mas, {mica e exc1usivamente, da

<luto-reflexao executada, seguida por lima comunicadio ent 0. . d ". '" relIlveshga or e seu obJeto".

_ Pod~r~se-ia. objet~r que a validadc empirica das interpreta­'foes generl~as, 19ual aquela das teorias universais, c determinadapor Ulll~ relterada apIicac;~o as reais condic;6es iniciais, e que ela,na medld~ .em que tem sldo demonstrada, c obrigatoria para to­dos os sUJeltos que, de um~ ou outra forma, estao abertos aquiloque chamamos de conhecllnento. Esta formulac;ao correta en­cob:e, contudo, a diferenc;a especffica: aplicac;ao de hipoteses areahdade permanece, no caso da verificac;ao de teorias atravcsda observac;ao (portanto, no drculo funcional do agir instrumen­tal), assunto do respectivo sujeito que investiga; mas, no casodo exame de interpretac;6es generico-universais atraves da auto­r~flexao (~ortanto, no quadro de uma cOI11unicac;ao entre me­dl~o c paClel1te). a aplicac;ao transI11uta-se em auto-aplicac;ao doobJeto da pesq.Ulsa 9ue participa do processo cognitivo. 0 pro­cesso de pesqUlsa nao pode conduzir a informac;6es validas senaoao se tral1sformar ern uma auto-investigac;ao do paciente. Teoriassa.o valid~s~ caso o. ~ejam, para todos aqueles que podem assu­1111: a p~slc;ao do sUJelto que examina. As interpretac;6es gencrico­UnIversals valem, caso valham, para 0 sujeito investigador, e paratodos os que podem assumir seu lugar, apenas na meclicla emque aCJl1clcs que s50 kitos objctos de illtcrpreta~~ocs particularess~ rc<.:onIJCc;:am .a. si proprios em tais intcrpretac;oes. 0 sujcitonao pode aclqumr um conhecimento do objeto sem que este sehmlvessc ton~ado um conhecimcnto para 0 objeto e este, atravesdaquele, se bvesse libertado e tornado urn sujeito.. Esta :onstel~c;ao nao C, a rigor, tao surpreendente. Cadall~te~retac;ao pertmente, tambCm aquela das ciencias do espirito,so e - pelo fato de rcstabelecer uma intersubjetividade pertur­bada da ~on;preensao mutua - possivel em uma linguagem co­mum ao lllterp~e~e e a seu objeto. Ela deve, por conseguinte,valer para 0 sUJelto e 0 objeto da mesma maneira. Por certoque, l~ma ta! posi~ao do pensamento possui, para as interpretac;6esg~llcnco.-un~vers31s do. processo de formac;ao, conseqliencias quen:ao se ImpoeT? p~ra mterpretac;6es na area das ciencias do espf­nto. Corn efelto, lllterpretac;6es genel'icas e teorias universais ternem c?mum a prete1Jsao mais ampla de permitirem explicac;6escausals e previs6es condicionais. Mas, diferentemente do queoc~rre nas ciencias experimentais estritas, a psicanalise nao podes~bsfazer tal pretensao sobre a base de uma separac;ao metodoJ6~glca exata entre 0 dominio do objeto e 0 plano dos enunciados

Page 39: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

278 CONHECIMENTO E INTERESSECRfncA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 279

te6rieos. Isto nao fica sem eonseqiieneias; primeiro, para a cons­tru<;ao da linguagem interpretativa; segundo, para as eondi<;6esdo exame empirico e, terceiro, para a I6gica da expIana<;ao en­quanto tal.

Como toda interpreta<;ao, assim tambem as ehamadas inter­preta<;6es generieo-universais (I) permaneeem presas a dimensaoda Iinguagem eotidiana. Elas cOlJstituem, pOl' certo, narra<;6es sis­tematieamente generalizadas; mas, mesmo assim, elas permane­cern hist6rieas. A exposi<;ao hist6riea serve-se de enuneiados nar­rativos. Tais enuneiados ehamam-se narrativos porque apresentamaeontecimentos como elementos de uma hist6ria.80 Explieamosurn evento narrativamente quandp mostramos como urn sujeitoe envolvido em uma hist6ria. Em eada bist6ria surgem nomesde incJivfduos, pois sempre se trata de mudan<;as-de-estado deum sujeito ou de urn grupo de sujeitos, os quais se entendemcomo solidarios. A unicJade da hist6ria e fundada pela identidadede um horizonte de expeetativas, possivel de ser atribuido a estessujeitos. A narrativa relata, COm efeito, a influeneia mocJifica­dora de aeontecimentos experimcntados subjetivamente, esses queirrompem em urn mundo-da-vida c adquirem significa<;ao parasujeitos que agcllJ. Em tais historias os sujcitos cIevem podercOlllprecnder a si proprios, cia mesma forma como cIevem pudercnlcl1l1cr sell mundo. A significa~~ao hisl6rjca ele gua]quer acon­tecimenlo eslet sempre rc1acionada, cIe .forma illlpllcjta, com aeonexao de sentido de uma biografia, cuja coesao c manfda pelaidentidade cIo Eu, ou de llma hist6ria coletiva, determinadapeIa identicIade do grupo. B pOl' isso que a exposi<;5.o narrativaesta comprometida com a linguagem ordinaria; pois, somente areflexividadc sui generis do Iinguajar cotidiano pcrmitecomunicaraquilo que c individual em express6es que, inevitavelmente, saouniversais.oo

Cada hist6ria e, peIo fato de representar urn conjunto indi­viduaIizacIo, uma hist6ria particular. Cacla cxposi<;ao hist6rica im­plica a exigencia pOl' unicidade. Ainda que nao abandol1c 0 pla­no da exposi<;ao narrativa, uma interpreta<;ao generico-universalprecisa, pelo contnlrio, romper esta limita<;ao do que e hist6rico.Ela possui a forma de uma narra<;ao, porque deve servir a su­jeitos que reconstroem sua pr6pria biografia na forma de umanarrativa; mas ela so pode ser matriz para muitas destas narra­~6es, porque nao deve tel' vigencia exclusiva para urn caso indi­vidual determinado. Eia e uma historia generalizada em tamossistematicos porque fornece 0 esquema de urn sem-numero de

~

I

hist.6rias a sc desenrolar de acordo com alternativas previsfveismUlto embora cada uma destas hist6rias eleva, entao, poder apre~se~t~r-se novamente com a pretensao de scr a encena<;ao autobio­grafI~a d~ um indivfduo particular. Como e possfvel uma tal ge­nerahza<;ao? Em cada hist6ria, por mais contingente que seja,esconde-se um elemento universal, pois de cada historia urn outropod,e ~cstilar algo de exemplar. Hist6rias sao tanto mais compre­cnSlvelS, cOmo urn exemplo, quanto maior for· 0 carater tfp:co elesua ~a1Ta<;aO. a conceito do tipo designa aqui uma qualidadedaquI10 que pode ser traduzido: uma hist6ria e tfpica em umadada situa<;ao e em relac;ao a urn publico determinado quandoa "a<;ao" pode facilmentc ser destacada de seu contexto originale transferida para uma outra situac;ao, igualmente individualizacla.P?dem?s . apllcar 0 "caso tfpico" a nosso proprio caso: somasnos propnos quem empreendemos a aplicac;ao, abstrafmos 0 com­paravel do distinto e, respeitadas as circunstfll1cias especiais donosso casa, concretizamos 0 modelo derivado pela via destaabstraC;ao.

. T~l c tambem 0 procedimento do medico que rcconstr6i ablO!?rafla do doentc COm a ajuda de LIm material dis]Jonfvel; 0

P~lCIClIlC, como tal, nflCl proccc1e de oulra mancira quando, com'I.l llcla do esquema proposlo, IlalT,l Slla hi~;i{lIja-de-vjda, tambemem SCllS c1etalhcs <lte cnUio csqucciclos. Ambos nao se orientam,par ccrto,. em um cxemplo, mas - cxatamente - em urn esque­ma., Na Il1telvreta<;ao gencrico-univcrsal faItam os trac;os indivi­dU,<lI~ cIo exemplo, 0 passo em dire<;ao a abstra<;ao ja esta feito;mechco e pacientc nao tem mais 0 que fazer senao ativar 0 es­qu.ema. A generaliza<;ao sistematica consiste, portanto, no se­gumte: em experiencias hermeneuticas precedentes ja se abstraiude l11uitas hist6rias tfpicas, tendo em vista a muItiplicidade doscasos individuais. A interpreta<;ao gcnerico-universal nao conternnome de individuos, apenas papeis anonimos; ela nao contem cir­cunstancias contingelltcs, mas constela<;6es que retornam sempre~e novo,.c modelos de a<;ao; ela nao contem urn cmprego idioma­tlea da Imguagem, mas urn vocabulario estandardizado. Ela naoapr~senta urn processo tfpico senao que descreve, em conceitos­de-tIpo, 0 esquema para uma atividade com variantes condicio­nais. :E desta maneira que Freud exp6e 0 complexo de Bdipoe suas soIu<;6es: com a ajuda de conceitos estruturais com eui~,e supereg? (os quais foram obticIos a partir de experiencias d~dlaIO~O anahtIco); recorrendo a papeis, pessoas e modelos da in­terac;ao (resultantes da estrutura familiar) _e, finalmente, pelo

Page 40: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

280 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRlTlCA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 281

recurso a rnecanisrnos da a~ao e da cornunicac;ao (como escolhade objeto, identificac;iio e inter:oriza~ao). 0 ernprego de wnalinguagem ordinaria nos rnoldes de urna tenninologia nao carac­teriza urn csUigio fortuito de desenvolvimento da psicanalise. An­tes pelo contn'irio, todas as tentativas de dar a metapsicologia umaforma mais precisa fraeassaram porque as condic;6es da aplica~ao

de interpretac;5es generico-universais exchiem uma formalizac;aoda linguagem do dia-a-dia. Com efeito, os terminos que al saoempregados estao a servic;o da cstruturac;ao de narrativas; a elesse recorre, procurando contato corn a linguagem usual do pacien­te, quando ambos, medico e paciente, completam 0 esquema ana­Htico da llarrac;iio nos termos de' urn a historia. Ao introduzirnomes de indivlduos ern lugar de papeis anonimos, e preenchen­do modelos de interac;ao para deles fazer cenas vivid as, eles de­senvolvcm ad hoc uma nova linguagcm; nesta, a linguagem dainterpretac;ao universal e posta de acordo com a do paciente.

Esta etapa faz com que a aplicafiio se revcle como umatradufao. Isto permallece encoberto, enquanto a linguagem ordi··naria da teoria, formulada segundo uma terminologia especifica,vern em auxflio da lingllagem do paciente sobre 0 pano de fundosocietario comum, proprio ,) provcniel1cia burgucsa c a formac;aocscolar de \1111 ginasjano. 0 problema c1a tl,\ciuC;flO torna-se ex­plicito, COllJO tal, quando a c1istancia soci,l] cIa lingllagc,m seacentlla. Freud tcm conscicncia dcste fato. Isto sc mostra pOroeasiiio do debate acerca da possibilidade de a psicanalise, nofuturo, encontrar uma difusao ao nlvel das massas :

"Defrontar-nos-emos, cllUio, com a tarefa de aclaptar a nossa tccnica 11<;.novas cOIlc1ic;Ocs. Nao tcnho duvidas de que a pertincncia de nossas novasllip6tcses psico16gicas fani boa impressao tambCm sobre as pessoas poueoinstmidas; mas precisarcmos buscar as formas mais 5imples e mais facil­mente intetiglveis de expressar as nossas doutrinas tc6ricas".~1

Os problemas da aplicac;ao, com os quais 3S tcorias cicntlfi­co-experimentais se confrontam, sao apcnas aparentcmente ana­logos. Na aplicagao de hipotescs nomol6gicas as condic;5es ini­ciais de uma operac;ao, os eventos singulares, expressos em pro­posi~6es de existencia ("esta pedra"), sao igualmente postos emrelac;ao com as expressoes universais das proposiC;5es teoricas.Mas este tipo de subsunc;ao nao apresenta maiores problemas, eisque os acontecimentos singulares so entram em considerac;ao namedida em que precnchem os criterios dos predicados universais("esta pedra" esta, par exemplo, para "massa"). Em conseqiien-

cia, basta constatar se 0 acontecimento singular corresponde adefini~ao operacional pela qual a expressao teorica e determina­da. Esta aplica~ao operacional move-se, nccessariamente, noquadro do agir instrumental. Ela DaO satisfaz, portanto, a apl~ca­

<.tao de expressoes teorieas que afetam interpreta<;5es geneneo­universais. 0 material, ao qual estas interpretaC;5es sao aplicadas,nao consiste em eventos singulares, mas se comp5e de expressoessimb6licas, proprias a uma biografia fragmentiiria; portanto, departes constituintes de urn complexo individualizado em termosespecfficos. Neste caso, depcnde da compreensao hermeneuticadaqueIe que libera 0 material, se urn elemento de sua biografiafor ou nao adequadamente interpret ado por uma expressao teori­ea proposta. Esta aplicafao hermeneutica movimenta-se, neces­sariamente, na Dloldura de uma comunicac;ao inerente a lingua­gem cotidiana. Sua realiza<;ao nao e, porem, a mesma da aplica­<;ao operacional. Enquanto nesta se decide se, para a teoria, con­dic;5es empiricas disponlveis podem servir de apJicaC;ao - a me­eanismo da deduc;ao te6rica permanece aqui, enqllanto tal, in­tacto - a aplica<;ao hermencutica prop5e-se a tarefa de trans­formar a matriz narrativa das interpreta<;6es gencrieo-llniversais,em lIma narra<;ao; parlanto, sc ocupa em fJlcnificar 11ll1Cl hist6ri ajll(jividuaI, fazcndo deIa lIma exposiyiio narral;va: as eonciiyCicsreJativas a aplica<;iio definem uma execur;:ao cIa interpretac;ao que,no plano da interpretac;iio generico-universal, deve, como tal, serevitada. As deduc;6es te6ricas estao, por certo, mediatizadas poru~la comunica<;ao com 0 medico; l1a verdade elas precisam, po­rem, ser empreendidas pelo paciente enquanto tal.

Isto tern a ver com a particularidade metodologica (II), asaber: interpretac;6es generico-universais nao obedccem aos mes­mos criterios de refutac;iio que sao proprios as teorias universais.Se uma prognose condicional, deduzida de uma hipotese nomo­16gica e de ccrtas condic;5es iniciais da operac;fio, for falsifieada,;) hipotese poder{l ser vista como rcfutacla. Uma interpretac;aogencr:co-llniversal 110S a poclemos verificar de forma anMoga, de­duzinclo uma construc;fio a partir de suas (pr6prias) deduc;6es edas comunicac;5es do doente. A tal constmc;ao podemos dar· aforma de urn prognostico eondicional. Caso ele confira, 0 pa­ciente sera levado a prodllzir deterrninadas recordac;5es, a refletirurn certo fragmenlo de sua biografia esquecida e a superar asperturba<;5es da comunicac;ao e do seu comportamento. Mas,nesse caso, 0 caminho da falsifica~ao nao e 0 mesmo das teoriasuniversais. Pois, se 0 paciente rejeitar uma constru<;ao, a inter-

Page 41: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

282 CONHEc;IMENTO EINTERESSE CRlTlCA COMO UNJDADEDE CONHECIMENTO E L"lTERESSE 283

prelar;ao, da qual esta construr;ao foi deduzida, nao podera, japar isso, scr vista como refutada. Hip6tcses psicana1fticasrepor­tam-sc, depois de tudo, a condi<;oes onde a experiencia esta sus,:pensa, l11uito cmbora elas deval11-se corroborar exatamente juntoa cssa expericncia: a experiencia da reflcxao 6 a unica instanciano. qual aquila que chamamos de hip6tcses rode vir a ser confir-··mado au falsificado. Quando esta instancia nao se impoe, ficascmpre ainda uma alternativa: au a intcrpretagao 6 falsa (isto c,a te01ia au sua aplicar;ao a. este caso particular) ou, pelo con-·tn1rio, as resistencias, corretamellte diagnosticadas no mais, sao'demasiadamente fortes. A 'nstancia, na qual construr;oes erroneaspoelcm fracassar, nao coincide nely! com uma observar;ao contro-.lada, nem com uma expericncia comunicaliva. A interpretar;aode Urn caso nao se corrobora senao, unica c exc1usivamcnte, relacontinuar;ao de urn processo de forrnar;ao, isto 6, junto it auto-re·flexao que se executa e nao ja, com certeza, naquilo que 0 pa­ciente profere au na maneira como ele se cornporta. Sucesso. einsucesso nao sao aqui, como no horizonte do agir instrumentalno quadro da ativiclade comunicativa, cada vez constataveis emtermos intersubjetivos. Mesmo a desaparecimcnto dos sintomasnao pcrmite quc se cheguc a uma conc1usao irrcvogavel: dcs po­clcriam 1IJuilo bcrn tcr sieJa subslitofc1os par ootros sintolllas, ini··cialnlen!e inacessivcis 1anlo a ol)scl'V;t\~IU CjllCllllo it cX]Jcri(~ncia

cla illterar;ao. Tambcm a sin10ma CS({l basicamente comprome­tielo com a significar;ao que ele possui para a sujeito engajado naclcfesa contra e1e; de esta incorporaclo ao complexo cla auto-objc­1ivar;ao e da auto-refJexao e nao posslli, a16m deste, nellhum po­cler falsifieatorio au vcrificat6rio. Freud estii conscicnte dcsta di­ficuldade metodo16gica. Elc sabc que a nao do analisado, destequc reje:ta uma construr;ao proposta, c ambiguo:

"Em alguns raros casos ric mostra ser a expressflO de uma rccusa legi­tima. Muito mais freCjiicntemeute, cxpressa uma resistencia que pode ter'~iclo evocacJa IJclo tema geral da cOlLSlru'·.[LO que llw foi apre~clltada, masqUe, de modo igualmentc faeil, pock ter surgiclo de algum outro fat orda complexa situac;ao analltica. Um 'nflO' de urn paeiente, portanto, naaeOlls:itui prova de corrcc;ao de urn" construc;ao, ainda que seja perfeita­~l1cntc compativel com cIa. Uma vez que toda construc;ao desse tipo eIl~eomplcta, pois abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esque­cld~)s, cslamos livres para SUpOI" que a pacicnte nao esteja de fato, dis­CU.tlll~() 0 que Ihc foi dito, mas baseando sua contradic;ao na parte (dop.sl<jlmmo) que :linda nao foi rcvelacla. Via de regra, nao dara seu assen­tlllll'uto nte que tenha sabido de toda a verda de, e esta abrange amillde

urn campo muito grande. Desta maneira, a lmica interpretac;ii.o segura deseu·· 'nao' e que ele aponla para a qualidade de nao ser completo; naopode haver duvida de que a construc;ao nao Ihe disse tudo.Parece, portanto, que as elocuc;6cs diretas do paciente, depois que the foiofcreeida uma cOl1struc;ao, fornecem muito poueas provas sobre a queslaode saber se estivemos certos ou errados. E do maior interesse que existamformas indiretas de confirmac;ao, que sao, sob todos os aspectos, fidc­dignas".g~

Freud pensa nas associa~5es corrbborantes do sonh:ldor, 0

qual libera fragmcntos de textos ate entao esquecidos au sonhanovas sonhos. Par outra parte, surgem duvidas se as sonhos naopodem estar influenciados pela sugestao do medico:

"Se um sonho traz a tona situac;6es que podem ser inlerpretadas comorcfercntes a cenas do passado do sonhador, parece em especial importanleindagar se a infJueneia do medico tambem pode desempenhar algum papc~

em conteudos de sonhos deste tipo. E essa questao e a mais urgente detodas, no caso dos sonhos chamados corroboratil'oS, que, por assim dizer,'seguem atnis' da analise. Com alguns pacientes, esses sao os lmieos sonhosque se consegue. Tais paeientes reproduzem apenas as exigencias passadasde sua infflncia depois de have-las construido a partir de seus sintomas..assoeiac;6es e outros sinais, e proposto a eles essa~ construc;6es. Seguem-~e.

en tao, os sonhos eorroborantes acerca dos quais surge, contuclo, a dllviclade saber ~e n:1O podem ~cr i!lteirauICllte despic10s (!G vzdor probat6rio, ell\yi.,ta cla possil>ilidade de lercm ~ido imaginados em ~ubmissf\o ;lS palavra~

~lo analista, ern Jugar de trazic10s a 1m: c1csdc 0 inconsciente do sonhador.Nflo Be pode fugir a essa situac;ao ambigua na analise, de vez que, comesses pacientes, e II menos que se interpretc, construa e proponha, jamaisGblemos acesso ao que nelcs estii reprimido".v3

Freud esta convencido de quc a sugestao cia medico encon­tra seu limitc no fato de 0 mecanismo da fonnar;ao do sonho naopodcr, como tal, ser influenciado. Mas, mesmo assim, a situa<;aoanaHtica concede um pcso valorativo especial nao apenas 0.0 "nao"mas tambem ao "sim" do pacicnte. Tarnbcrn as confirma<;5esdo pac·cnte, a meclico nao as pocle cncarar cOmO sc fassem mocdadesprovic1a de valor. Ccrtos crfticos acllam que 0 analista naofaz outra coisa do que induzir uma reinterpreta~ao da interpre­tar;ao - ate a1 valicla - da biografia, ao sugerir 0.0 pacien~e

uma nova terminologia.91 A isso Fi"eud objeta que, para a ven­ficar;ao da construr;ao, a corrobara<;ao do paciente nao possuiautro significado aEara a de sua denegac;ao:

"E verdade que l1ao aceitarnos plcnall1ente urn 'nao' do analisado, masmenos ainda concedemos a seu 'sim' a validade de seu valor nominal

Page 42: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

284 CONHECIMENTO E INTERESSECRIrICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 285

Nao ha justifica<;fw para que nos acusem de que reinterpretcmos inva·riavelmente sua cxpressao em uma confirma<;ao. Na realidade as coisasnao sao tao simples assim, nao simplificamos de tal maneira que umackcisao nos seja facil.

o 'sim' c1ircto c imcdiato do analisado e ambiguo. Na verdade, pode sersinal de que ele reconheee como correta a constru<;iio que Ihe foi feita,mas esse 'sim' pode tambcm nao tcr sentido ou aimJa ~ 0 que podemosehamar de 'hipocrita', porquanto e mais comodo para sua resistencia ~que, por meio de lima tal anuencia, a yerdadc (ainda) nilo descobertadeva continuar encoberta. Urn valor este sim apenas possui quando a eJeseguirem confirma<;oes indiretas, quando 0 paciente produz, como adendoimediato a seu sim, novas lembran<;as, as quais comp1ctam e ampliam aconstru<;ao. SOmente em tal caso reconhecemos 0 'sim' como arrematedo ponto em questiio". llG I

Mesmo a confirma<;ao incIireta atraves cIa assoeia<;ao naotern senao um valor rclativo, caso for cOllsiderada isoladamente.Com razao Freucl insiste que apenas a continua<;ao cIa analisepode decidir alga sabre a utiliclade au inlltilidade de uma cons..:'tru<;ao: tao-somente 0 contexto do processo cia forrnayao em' seutocia possui a poder de corroborar OU de falsificar.%

Mesmo no caso em quc se trate de inlerprela<;6cs gencrico-,uJlivcrsais, a vcrificCl<;:UO ele hip6tescs SC} poc!c obcclcccr :tCj\!ch\srcgras que s;\o adcCjuaclas a siluac;uo do ex,lme; SOI11Cllte cstasgcnClntel11 rigorosa objetivic1ade da valiclade (cientifica). Quem,pdo contn'irio, reclama que interpretac;6es generieas sejam trata~

das como as interpretay6es filologieas de textos au como teoriasuniversais e sejam,' em conseqiicncia, submetidas a criterios que,do exterior, detcrm'nam 0 cursa da investigac;fio - quer se trateclos criterios do jogo da linguagem em vigcneia, quer dos critcrios.da observac;ao controlada - coloea-se de safda fora da dimensaoda auto-reflexao, 0 {mico domfnio no qual os enunciados psica­nalffcos pocIcm fazer sentido.

Uma ultima particulariclacle da logica, propria as intcrpreta­yoes gencrico-universais, resulta (III) do vinculo cia compreensaohermencutica com a explicac;ao causal: 0 ato-do-compreender ac1­quire, ele proprio, pocler explanatorio. A circunstflllcia de as cons­truc;6es poderem assumir, em vista dos sintomas, a forma de hi­p6teses explicat6rias revela a parentesco com os procedimentosanalitieo-causais. 0 fato de uma construc;ao ser, enquanto tal,uma interpretac;ao, e a instancia da vcrificac;ao um ato da reme­mora«ao e da anuencia do paciente, mostra, ao mesmo tempo, a

diferenc;a para com ~s proceclimentos allalitieo-eausais c, de qual­quer forma, certa afillidade com 0 metoclo expliealivo-hermeneu­tieo. Freud retoma esta questao sob urn aspectomedico, ao' se'indagar se a psicamllise pode ser seriamente chamada de (uma)terapia causal. Sua resposta e ambfgua; a pergunta em si pareceter sido mal posta: '

"Na mec1id" em que a tcrapia analitica nao' se prop'oe, como sua', tareYaprimeira, remover os sintomas, cIa sc comporta como uma tcrapia causal.'Em outro SCfltido, os scnhores podem dizer, ela nao 0 c. Ocorre que, ha.,muito tempo atras, rastreamos a origem da sequencia das causas dadoen<;a, ,das reprcssiies as disposi<;oes instintuais, suas intensidades reJati.vas, ate IB constitui<;iio enos dcsvios de curso de seu desenvolvimento.Supondo, agora, que fosse possivel, talvez, por algum meio qnimico ill­tcrferir ne5S3 mecanismo, anmentar on diminuir a' quantidaete 'de libido'presente em determinada cpoca, Oll refor<;ar um instinto 'lJ custa .deoutro, tal eoisa seria, entflo, uma terapia caus(ll no verdadeiro sentidoda,palavra, para a qual noss;> analise teria efetuado 0 indispensiivel trabal1lO'pr~liminar l1<: rcconhecimcllto. No momenta atual, como sabem, '1;50CXlste seme.]hallt~ ~]ctodo d::: inflllcnciar os processos ,libidillais;coni'nossa tcrapI'! pSlqUlca atacamos, em conjunto, diferentcs 'pOi1to;' ..,. n50exatamclltc os POlltos quc sabemos scrcm as ra'lzes do fA" ", ". .. . ' s cnomenos, mas.fllnda, a:Slrll, Dem dlstillltC's dos sintomas; os ,pontos CJue sc nos tornai';n\~\CeSS1VC1S t.k';Jc!o a .1h.?,LlIlI:lS circllllsl,'111Cl"1" 'IS''']'l pecll]' . "')"~- . '. (. .::), . ",'. " la 1es .' I. ' :

'. \ • v'

A comp~ra:ao cla psicanalise com a analise bioCJufmica Tfve-:Ia que suas hlpoleses nao abarcam conex6es causais entre eventos:empfric~s observ~v~is; nao fosse assim, as informaC;6es cientfficasnos danaJ:l COn~lyOeS de alterar uma determinada situayao pelamera mampulac;ao de sellS dados. A psicamilise nao nos concedeuma disponi?ilidade tecnica sobre a pSiqU:SIllO doente, 0 qual sejasemelhante aquela que a. bioqufmica exerce sobre a organismo,enfcrmo. E, m~smo asslm, ela realiza mais clo que urn merotratament? de smton:,as p~rque, aincla que nao seja ao nlvel cleeventos f!SlCOS, cIa lJaa delxa de abranger cOl1exocs causais ~ cisso em urn ponto "que se nos tornou acessivcl por meio de cir­cunst~ncias assaz peculiares". Este e, precisamente, a ponto emque lillguagem e comportamento sao patolooicamente deformaclospela causalidade de sfmbolos isolaclos e motivos reprimic1os. ComHegel podemos cIistingui-la cIa causalidacle da natureza e chama­la de uma causalidade do destino; pois, a relac;ao causal entrecena ~rimeva, defesa e sintoma naa esta ancorada, segundo leis.naturalS, em uma invariancia da natureza mas, de forma asselva-

Page 43: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

286 CONHECIMENTO E INTERESSECRiTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 287

jada, em uma invariancia da biograjia, representada pela com­pulsao a repcti<;ao, mas suscetivel de ser removida pelo pader da

reflexao.As hipoteses que deduzimos, a partir de interpretayaes gene-

ricas, nao se reportam anatureza, como e 0 caso das teorias uni­versais, mas a csfera que, pela auto-objetivat;ao" tornou-se uma'segunda natureza, a saber: aO "inconsciente". Este termo foi pen­sado para designar a c1asse de todas as coa<;6es motivadoras, in­,depenclizadas de seu contexto, que emanam daque1as disposit;6es,da necessidade, desautorizadas pela sociedade e cuja existenciapode ser evidenciada na conexao causal entre, por urn Iado, a-sitllat;aO da frustrat;ao origimhia e, por outro, certas atitudes;anormais da linguagem e do comportamento. 0 peso de motiva­c;6es desta especie constitui uma medida para ava1iar perturba­'c;6es e desvios do processo formativo. Enquanto, pe1a disponibi­lidade tecnica sobre a natureza, fazemos com que esta, em vir­tude de nosso conhecimento acerca das conexoes causais, trabalIlepara nos, a inteIect;ao anaHtica envolve a causalidade do incons­dente como tal: diferentemente clo que ocorre na medicina so­matica) "causal" que e em sentido cstrito, a terapia nao repousa~obre um ato-do-reivindicar a perlincncia dos conltccidos c10s,causais; pdo contr{trio, a tcrap'a deve l11uito mais sua cfic{tcia ?tsupres.I'iio das CO!1CXOCS causais em si, A mctapsicologia contCI11,de qualquer mancira, hip6tescs refcrcntcs ao mecanismo da de-­fesa, da disjun<;ao de simbolos, do recalque de motivos, a16m dehip6tescs sobre 0 modo complementar do trabalbo cia auto-re­flexao, isto 6, hipoteses que "explicam" a genese e a remot;ao delima causalidade do destino. Um complemento para as hip6tesesnomo16gicas das teorias univcrsais seriam, em conseqiicncia, asbipoteses basicas da metapsicologia acerca cla estrutura da lin­guagem e do agir; mas exatamentc estas sao desenvolvidas emnivel metate6rico c nao possuem, assim, 0 status de hip6teses

nomol6gicas ("comuns").o conceito de uma causalidadc do inconsciente permite, ou-

trossim, comprecnder 0 efeito terapcutico da "analise"; uma pala­vra na qual, nao por acaso, somaram-sc crWca como conheci­mento e eritica como mudanc;a, Uma analise causal s6 atinge as.consequencias imediatamente praticas da critica pelo fato de 0

.complexo empirico, 0 qual ela abarca, ser simultaneamente um

.complexo intencional, passivel de llma compreensao e recons­:tru<;ao segundo regras gramaticais: podemos conceber, antes de

mais nada, uma constru<;ao proposta pelo medico ao .. , ., pacienteco~o. uma. blpotese exphcat~v~, deduzida de uma interpretat;aO'genenco-uTIlversal e. de condl<;oes suplementares; pois,a conexaocausal em_ debate vlge. entre \Ima situa<;ao conflitante do passadoc as rea<;oes compulslvarnente reiteradas no presente (sintoma).Mas, q;uanto ao conteudo, as bipoteses referem-se ao conjunto-,de-~eutido, o. qual esta determinado pelo conflito, pela defesa.f~ente a deseJos. capazes ~e gerar contrito, pela segregagao do.slmbolo de ~eseJo, ~c1a satisfa<;ao :;ubstituta do desejo censurado,pela forma<;ao do smtoma e pela defesa secund{uia. Em termos'h'poteti.cos, urn comp.lexo cal/sal e formulado como um conjl'tIlto..de-sent/do hern:e_neutlcamente ~Ol:zpreetzs[vel. Tal formula<;~o pre­enche as co~dJ(,;oes de uma hipotese causal e, ao mesmo tempo,.as .de um~ mterpreta<;ao (em vista de urn texto deformado pormelO doc smtoma). A... compreen~ao iaerente it hermeneutica pro­funda a,,~~mc a fun<;ao da exphcagao. Ela corrobora sua for<;aexplanatona na m~to-ref]cxao, suprimindo uma objetiva<;ao queenten.de e, concomitantemente, explica: csta e a efetuac;ao crfticadaqll1lo que Hegel subsumiu sob 0 titulo do compreender ("aaar­rar peIo pensamento"). C> .

,. D~ ~corc1o com sua forma logica, a cornpreensao exphma­tOlla dIStl!lgUC-sc, por certo, em um ponto clecisivo cia explicadioforllluh:~LI em tcrmos rigorosamcnte cicnt!fico-cxperimcntais. Am-'bas ~p~Jam-se sobrc enunciados causais, adquiridos com ajnda de~OI1dIc;o.es suplemcntares a partir de proposi<;5es universais, istoe: ~le mterprcta?6.es deduzidas (variantes conclicionais) ou de'hI~~teses nomologlca,s. Ocorre que 0 conteudo das proposic;6esteOl~cas permanece malterado frente a aplicar;ao operacional areahdade; nesse caso podemos apoiar as explicac;oes sobre leis \sem ~~ntexto. ~o ca,s~ de uma cxplicac;ao hermeneutica, pelocontrano, asser<;oes teoncas sao traduzidas de tal forma na ex­posi<;ao _narr~tiva de uma hist6ria individual que 0 enunciadoc~usal naa cna corpo scm cste contexto. Interpretat;5es gencricasso. podem, abstratamentc, manter sua prctensao par lima validadeumversal porque suas cledu<;6es sao, aIem disso, determinadas pelocon:exto. As expl.ica<;5cs narrativas distinguem-se das operac,;5esestntamente deduhvas pelo fato de os cventos au as circunstan­cias, para as quais reivindicam uma rela<;ao causal recebercmuma determin~<;ao suplementar no curso de sua aplic;c;ao. 0 quechamamos de mterpreta<;6es gencrico-universais nao autorizam emconseqiiencia, expliea<;5es isentas de urn contexto.98 '

Page 44: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

288 CoNHECIMENTO E INTERESSECRfTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 289

12. Psicana'zise e teoria societaria.A reduc;iio dos interesses doconhecimento em Nietzsche

Freud entendeu a sociologia como uma psicologia aplicada.oo

Em seus escritos teoricos sobre civiliza<;ao e cultura ele pr6priotentou afirmar-se como sociologo. Foram quest6es de psicanalise.que 0 conduziram ao campo de uma teoria da sociedade.

Ao conceber determinados disturbios da comunica<;ao, do,comportamento e dos orgaos como sintomas, ~ analista recor~e

.a urn canceita preliminar de normalidade e desvlO. Mas este pre­.canceita esta, possivelmente, determinado em termas culturai:, enaa pade ser definido pela mera referencia a urn estada-de-cOlsasj5 fixada (canceitualmente):

"Vimas que nao c cientificamente viavel tra<;ar uma Jinha demarcat6ria-cntre 0 que e psiquieamcnte normal e anormal, de maneira que estadistio<;ao, apesar de sua imporlancia prMica, possui apenas urn valor con­vencional".100

Caso, porCIll, Ctquilo que a cada vez dcvc ser cOllsic1erac1o>('01l10 processo formativo normal on desviaclo determina-se uni­,camcntc segundo os erit6rios do quadro illstitueiollal de ltrlla:socicdade, csta poderia, cornparada com outras, encontrar-se elamesma, possivelmente em seu todo, em um cst ado patoI6gic~,

muito emboracla fixe para cada caso particular, a cIa subordl­nado, os parametras daquilo que chamamos de llarmalidade:

"Numa neurose individual tomamos como nosso ponto de partida 0 COJl­

traste que distingue 0 paciente de seu meio ambiente, 0 qual Se presume-ser 'norma]'. Para um grupo, no qual todm os membros estejam afetadaspelo me-smo distllrbio, nflO )"lode haver esse pano de fun do; ele teria deser bnscado em UIII outro Iugar qualquer",lOl

o que Freud denomina de diagnose das neuroses coletivas-pastula uma investigac;ao que vai alem dos criter' Os da moldurainstitucional dada e visualiza a historia do desenvolvimenta cul­iural da cspecie humana, a "processa civilizatorio". Tal perspec­-tiva filogenetica e, ademais, sugerida por uma reflexao adicianal,iambem cIa advinda da psicanalise.

o fato central da defesa frente a ma<;6es impulsaras indese­ja"eis remete a urn canflita fundamental entre fun<;6es, por urn

lado, da autoconserva<;ao - que, sob os imperativos da naturezaexterior, precisa ser garantida atraves do esfor<;o caletiva de in­dividuos sacializados - e, par outro, do potencial exuberante danatureza interior, das necessidades libidinosas -e agressivas. Alemdisso, a insU\ncia do superego, edificada sobre identifica<;6es pos­teriormente abandanadas com as expectativas das primeiras pes­soas de referencia, atesta que urn Eu, camandada por seus dese­jos, nao e imediatamente confrontado com a realidade do mundoexterior; a realidade com a qual ele se defronta, e frente a qualas moc;6es pulsianais prenhes de confJito aparecem, elas pr6prias,como fontes de perigo, e 0 sistema da autoconserva<;ao, e a sacie­dade cujas exigencias institucionais sao represcntadas peIos paispara 0 individua em formaC;ao. A autoridade externa, pralongadaintrapsiquicamente pelo surgimenta do superego, possui assim umabase economica:

"0 m6vel da sociedade humana e, em ultima analise, de ordem economl­ea; como nao disp6e de meios de vida suficientes para manter vivostoclos os seus membros, a menos que trabalhem, ela C obrigada a limitaro numero de sells membros e c1esviar suas energias cia atividade sexual,reorientando-as para 0 trabalho_ Em suma, defronta-se com as eternas epriIllevas exigcllcias da vida, ,!S qll;lis nos assecl;arn ate 0 dia de hojc",102

1\'1a5, se 0 confJita fundamental csta dcfinido pclas condi<;6csdo trabalho material, pela penuria economica e peIa carencia debens (de produ<;ao e de consumo), as frllstra<;6es impostas poresse confJito perfazem uma grandeza historicamente var;avel. Apressao da realidade e a correspondente dose de repressaa socialdependem, entao, do grau de disponibiJidadc tecnica sabre asfor<;as da natureza, bem como da organiza<;ao das bens expla­rados e da distribui<;ao dos bens produzidos. Quanto mais au­menta a poder de dispor tccnicamente sobre a natureza e en­fraquece a imperativo da realicJade, tanto mais sc debirta acensura pulsional, imposta pelo sistema da autoconscrvac;ao, tan­to rnais se avaluma a organizac;ao do Eu e, com ela, a faculdadede exercer um cantrole racional sabre as frustrac;6es. Sendo assim,nao h5 por que nao comparar a processo historico-universal dasocietariza<;aa com a processa de sacializac;ao do individuo. En­quanta a caa<;ao da realidade e toda-poderosa e a arganiza<;aa doEu fn'igil, de modo que a renuncia pulsional naa pade ser im­posta seniio atraves de far<;as efetivas de repressaa, a especie en­contra, para 0 problema da defesa, soluc;6es colctivas que seassemelham as salu<;6es neuroticas em nfvel individual. As _JIles-

Page 45: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

290 CONHECIMENTO E -INTERESsE - . ,,:' -~ CroTICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 291

mas constelac;6es, as quais levam oindivfduo a neurose, motivama sociedade a erigir suas institui<;6es. Aquila que caracteriza -asinstituic;6es constitui, ao mesmo tempo, sua similaridade -comform as patol6gicas. Assim como a compu]sao a repetic;ao do in-'­terior, a violencia institucional provoca, do cxterior, uma repro­duc;ao imune a crftica e relativamente rigida; propria a um COD1­

portamento constante e inalterado:

"Nosso conhecimento das docn-;;as neur6ticas· dos individuos foi dc gran­de auxiiio para a compreeusao tlas grandcs institui~6es sociais; pais; asneuroses mostraram ser tentativas de encontrar solu<;;6es individuais paraa problema de compensar as desejps insatisfeitos, que par intermedio -da,~

institui(,:6es dcvem receber uma solu~'ao social".103

Disto resulta tambem a ponto de vista para decifrar a patri­manio cultural da tradic;ao. Nele se sedimentaram Os contelldosda projec;ao das fantasias de desejo, as quais exprimem intenc;5esrcprimidas. Tais conteltdos poc1em ser concebidos como sublima­c;6cs que apresentam satisfac;ues virtuais e garan tem uma· inc1el1i­zaC;ao publicamente autorizada para a renlmcia imposta pela cul­tura (c civilizac;ao).

"'1'ocla a hist(lrja da cLl1tura (C!OLl civiliza,:ilo) Jlacla l1lais C do (11I(' umrdata acerCi! clos clivcrsos call1iullOs que 00 homeDs teut~lram trilhar afim de sujcitar SCllS dcscjos insatisfcitos sob as comli<;;6cs cambianles ._­e alteradas pelo aval1(,:o tccnico - da garantia e da frustra<;f1o pOl' parteda rcalidade")Q.1

Esta e a chave psicanalftica para uma teoria societaria qlIC,por um lad0, converge de maneira smpreendente com a recons­truc;ao marxista da historia da espccic e, sob outro aspecto, traza tona pontos de vista especificamente novas. Da mcsma formacomo Marx com 0 terma sociedade, Freud comprcende com"cultma" aquila pdo qual a espccie humana se eleva para al6mclas condiC;6es cia existCncia animal. Ela c litH sistcma de auto­conservac;ao que, antes de mais nada, preenchc duas func;6es: acia afirma~ao do homem contra a natureza e a da organ:zac;ao dasrelac;6es clos homens entre Si.105 Igual a Marx, Freud distingue ­ainda que sob outros terminos - as forC;as proclutivas, as quaisindiciam 0 estagio da disponibilidade tecnica sabre as processosnaturais, das rela<,:6es de produc;ao:

"A civi1iza~ao humana, expressao pela qual quero significar tudo aquiloern que a vida hurnana se elevou acima de sua condi9ao animal, e dife-

[

re da vida dos animais -- e desprezo ter que distinguir entre cultura eciviliza(,:ao - apresenta, como sabemos, dais aspectos para 0 observador.Por urn lado, inclui todo a conhecimento e toda a capacidade que oshomens adquiriram com 0 fim dc controlar as forc;as da natureza eextrair a riqueza dcsta para a satisfa~ao das neccssidades humanas; parOlltro, engloba todas as institucionaliza<;;6es necessarias para ajustar asTela<;;6es lios homens uns com as outros e, espccialmcnte, a distribuic;:iioda riqueza disponivel. As duas tendencias da civiliza~5.o nao sao inde­pendentcs lima da outra; em primeiro lugar, porque as rela<;;ocs mutuasdos homens sao orofundamcntc influenciadas pela quantidade de satis­fa~ao pu:sional, a qual a riqueza cxistente torna possive!; em segundolugar, porque, individuaimente, um homcm pode, ele pr6prio, vir a fun­cionar como riqueza em relac;:iio a outro homem, na medida em que a<JU tra pl:ssua faz uso de sua capacidade de trabalho au 0 escolhe comoobjeto sexual; em terceiro lugar, ademais, porque todo individuo e vir­tualmcnte um inimigo da civilizac;:ao, embora se snponha que essa devaconsliluir um interesse humano lll1iversal". 10~

A llltima formulac;ao, a sabcr, que cada um c um inimigovirtual cia civiliza~ao, remete ja para uma cliferenc;a entre Freude Marx. Este concebe 0 quadro instituc;onal como uma regula­mentac;ao dos interesses que, no pr6prio seio cia sistema do tra"balho social, silo fixaclos com base ndS rela~6es existcntcs entreincknil-aC;'(lcs sociais c obrigar;(lcs socialmente impoSlas. Em COll­

~cqi.icncia, () pocler c1as instiluiC;()cs proY6m, para 1\1arx, do fatode cstatulrern uma distribllic;ao de compcnsac;6es e cllcargos; estadistribuic;ao 2ssmta sabre a violencia e esta deformada em ter­mas espcdficos de c1asse. Freud cntende, pelo contrario, a mol­dura institucional 11a conexao existentc cntrc ela c a rcpressao clasmo<;6:2s pulsionais; esta repressao precisa, segundo Frcud, ser im­posta ao sistema da autocollservac;ao de maneira geral, indepen­dente do fato dc haver uma distribuic;ao cle bens e encargos, deacordo com critcrios espec/ficas de classe (pelo menos enquantolima cconomia de cscassez por sabre cada satisfac;flO a sinetecoercivD da cornpcnst\(,:ao):

"E digno de rcgistro que, par ponca que as !lomens sejam capazes decxistir isoladamcntc, sin tam, nao obstante, como um pcsaclo fardo as sa­crificios que a civiliza~ao dclcs espera, a fim de tamar possivel a vidacomunitaria, A civili2a~ao preeisa, portanto, ser dcfendida contra 0 indi­vlduo; c seus r;:guI2.r1Ientos, iJlstitui~oes e imperativos poem-se a servi<;;o detal tarcfa. Nao apenas objetivam efetuar Un1<l certa distriblli~ao da riquc­za, mas tarnbcrn manter essa distribui~ao; na verdade, tern de protegcrcontra os impulsos hostis do, lIomens tudo a quc contribui para a con­quista dariqueza e a sua produ~ao. As cria<;;6es humanas sao facilrnentc

Page 46: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

292 CoNHECIMENTO E. INTERESSECRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 293

destruidas. e a ciencia c a tecnica, que as eonstrulram, tambem podeOlser utilizadas para sua aniquilai;ao".107

Freud demarca os limites daquilo que chamamos de institui­c;oes em um contexto diferente daquele que caracteriza 0 agirinstrumental. Nao e propriamente 0 trabalho mas, sim, a coer­<;ao para 0 trabalho socialmente dividido quenccessita de s.erregulamentada:

"Com 0 reecnhecimcnto de que toda civilizai;ao rcpousa nurna compul­sao ao trabalho c numa rcntmcia it pulsao, provocanclo, portanto, incvita­velmente, a oposii;ao dos atingidos por essas exigencias, tornou-se claroque a civilizai;ao nao pocle consistir, principal ou unicamentc, na propriariqucza, nos meios de aclquiri-la e' nas disposi<;6es para sua clistribui<;ao,cle vez que essas eoisas sao ameai;aclas pela rebeldia e pela mania de,,­trutiva clos participantes cia civiliza<;ao. Junto com a riqueza cleparamo­nos agora com os mcios pclos quais a eiviliza<;ao pode scr clefenclicla:meclidas de coer<;ao e outras, que se clestinam a reconciliar os homen"corn cIa e a recompensa-Ios par scus sacrificios. Estas ttitimas podem serclcseritas como 0 patrimonio psiquico da civiliza<;ao".108

A arma<;ao institucional do sistema clo trabalho social scrvea organiza<;ao cIo trabalho, 11a meclicla em que se trata da coope­ra<;ao e da divisao do trahalho, hem como cia distribl1i,,:iio de bellS,i510 c, desde que se trate de inserir 0 {{kir r(/ciollo[-jiflo[isla elllutfl cOlllplexo de i/lter((~J;es. Esta rcck do ag:r, pr6prio i\ cornu­nica<;ao, serve, SCm duvicla, tambcm as ncccssicIacles funcionaisdo sistema do trabalho social; mas, ao mesmo tempo, cIe precisaser consolidado aO nfvel das institui<;oes, eis quc, sob a pressao darcal;dade, nem toclas as necessidacles interpretadas cncontram suasatisfa<;ao, e nem toclos os motivos acionais, a transborclar os li­mites sociais impastos, poclem ser recalcados conscientemente,mas apenas com a ajuda de for<;as afetivas se deixam reprimir.E por isso que 0 quadro institucional consiste num feixe de nor­mas obrigat6rias; elas nao apcnas legalizam necessidades inter­pretadas par meio cia linguagem, mas tamhcm as rcorientam,metamorfosciam e reprimem.

A domina<;ao das normas SOCIalS repousa sobre uma defesaque, enquanto e devedora a mecanismos inconscicntes e nao cstasubmetida a urn controle consciente, pastula, par sua vez, satis­fa<;6es compensat6rias c engendra sintomas. Estes adquirem sencarater institucional estavel e imperscrutavel precisamente pormeio da compulsao 11eur6tica coletiva, a coer~ao encoberta, essaque substitui a violc11cia manifesta das san<;oes abertas. Ao mes-

mo tempo, uma parte destas satisfa<;oes compensat6rias pode serreelaborada em legitima<;ao de 110rmas vigentes. As fantasias co~

letivas cle desejo, as quais compensam a renuncia imposta pela:cultura, pdo fato de nao serem privadas nlas possuirem, comotais, uma existcncia isolada ao nivel da comunica~ao publica, 11averdade, uma existcncia subtrafda a crftica, essas fantasias sao.ampliadas, adquirindo a cIimel1sao de interpreta<;oes de muncloe, como racionaliza<;oes do dominio, sao pastas a servic;o dasnormas sociais vigentes. E a que Freucl clenomina "0 patrim6nio·psfquico da civiliza<;ao (e/ou cultura): mundividencias religiosas'e rilos, ideais e sistemas de valores, estiliza<;oes e produtos artfs-~

ticGs, .a mundo da forma<;ao-em-proje<;ao e cia aparcncia objeti-.va; em suma, a mundo das "ilusoes". .

Freud par certo nao e temenlrio a ponto de rcduzir a supe­restrutura cultural a fenomenos patol6gicos. Uma ilusao que, soba plano da tradi<;ao cultural, assumiu uma forma objetiva, comopar exemplo a religiao juclaico-crista, nao e uma ideia delirante(alucina<;ao) :

"Para <IS iJus6es pcrmanece earaetedstieo 0 fato cle derivarcm de clesejoshllmal1os; nesse sentido elas se aproximam clos dclhios psiC]lIiatricos, masdeles t"mb~il1 clifcrern, it parte cia cstrlltur'a mais cOIl1plicacb clos clclirios.No coso (kites enfatizilmos como esscIlcial a cOIltracJi\~fio com a re;llic1adc;~l ilu:;;lo 1120 prccisa SCI' llcccssariarncntc falsa, au s~ja) jrrcnliz~ivcl ouestar em cOl1tracli~ao corn a re<lJiclacle". 109

Para a individuo, 0 quadro institucional cIa sociedade estabe­lecido e uma realidade inamovfvel. Desejos incompatfveis comessa realidade mantcm 0 carater de fantasias de desejo, transfor­mados que sao em sintomas e for<;ados a encetar a caminho dasatisfa<;ao compensat6ria. Para a espccie em seu conjunto, porem,os limites da realidade poclem ser dcslocados scm maiores pro­blemas. 0 grau de repressao, socialmente necessaria, mede-se peloalcance variavel do domfnio tccnico CJue uma socieclacle clelermi­nacla disp6~ sabre as processos cia natureza. Assim, a quadroinslitucional que regula a distribui<;ao de cncargos e compensa­<;oes, estabilizanclo uma ordem social assentacla sabre a domina­<;ao e a renuncia imposta pela civiliza<;ao, pode, a medida queo progresso tecnico avan<;a, distender-se, transformando em rea­lidade por<;oes sempre maiores da tradi~ao cultural, antes de tudoessas que possuem urn conteudo-de-proje~ao, isto c, traduzi11dosatisfa<;oes virtuais em satisfa~6es sancionaclas pelas institui<;6es.As "ilus6es" nao sao apenas falsa conscieneia. Como naquilo que

Page 47: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

294 CONHECIMENTO E INTERESSE CroTICA COMO UNIDADE "DE CONHECIMENTO E INTERESSE 295

Marx chama de ideologia, ha nelas tambem 0 que chamamos deutopia. Descle que 0 progresso tecnico abra a possibiJidade obje­tiva de recluzir as repressoes socialmente inevitaveis a urn nfvelinferior aquele postulado pelas institui~oes, 0 conteudo ut6picopode ser liberaclo de sua jun~ao com os elementos alucinat6rios,ideo16gicos, pr6prios a legitima~ao" do poder, e passar a criticados complexos de domina~ao historicamente obsoletos.

Em tal contexto, tambem a luta de classes encontra seu lugar.Enquanto 0 sistema de domina~ao que assegura as repressoesgerais, impostas a todos os membros da sociedade de forma igual,for administraclo por uma classe social, priva~oes e frustra~6es

gerais virao acopladas com carcncias e decep<;oes especificas declasse. Tradi<;oes que legitimam a domina<;ao de uma classe saoobrigadas a indenizar a massa da popllla<;ao tambem por tais frlls­tra<;oes especfficas, as quais vao alem das priva<;oes gerais. E porisso que sao sempre primeiro as massas exploradas que nao tole­ram ser oprimidas por legitima~oes que se tornaram precarias,invertcnclo contra a cultura estabelecida os conteLIdos ut6picos riatradi<;ao:

"Se nos vo:tarmos pari! :IS rest[J,'ocs Cjlle s6 sc i!pliei!111 a ccrtCls classesda soeic;r1:1e1c, encontrarclllOS 11m ('starlo elc cois~s Cille C flagrante c CJuej:nllnis ckixClll de ,lOr rccll111HTido. J'c de csperar (jIlL' cssas ci<Jsscs s11bpri,vilcgi:Hlas ill\"cjClll os pri,"i1('gios clas favorlOcirl:is C' fa~:am tudCl 0 qllcpoell'l11 para sc libcrtarcm ck ,'ell proprio cxccsso c\c privll,·iio. Onuc issonao for possivci, lima pcrmanlOnte parcel:: ck deseontentamento persistira110 seio desta cultura, a que pocle conelilzir a ]Jcrigosas revoltas. Sc, po­rvrn, uma cu:tura n50 foi a!6m cia pcr-ito em que a satisfa<;ao dc limaparte clc scus partieipantc, c1cpcnclc da opressfto cia outra parle, partccsta talvez maior - c esle 6 0 caso em tocbs as culturas atuais - CcODlprccllslvcl que <15 pcssoas assim oprimiclas desenvolvam' lima intcllsahostilielacle para COlli uma cultura cujaexistclleia cbs tornam TX1SSlvclI'elo SCLl trabalho, mas de cuja riCjllcza nao possuem mais do que lima'minima parceia. ( ... ) Niio 6 preciso aecntuar CJuc lima eiviliza<;ao queclcixa insatisfeito 1I111 I1lUl1Cro liio grande ell' SClIS partieipalltes c as im­pulsiona it revolta, niio tcm m'm merecc n pcrspcetiva dc um~1 Cxistcl1ciadur'1c1oura".110

Marx havia claborado a idcia cia ato-da-autoconstitlli<;3.o daespecie humana em cluas climensoes, a saber: como um processode autoprodur;ao, impulsionado pela ativic1ade daqueles que par­ticipam clo trabalho social, 0 qual e acumulac10 nas for~as pro-'c1utivas; e como lim processo de formar:;ao, levac10 em frente pelaatividade crftico-revolucionaria c1as classes, 0 qual e conservado

nas experiencias da reflexao. Por outro lado, Marx nao pode pres­tar contasao status da Ciencia cuja fun<;3.o, enqllanto critica, seria"a dereconstruir 0 ato-da-autoconstitui<;ao da cspccie: sua con~cep~ao materialista de sintese entre homem e natureza continuavalimitada a arma~ao categorial da atividade instrumentaJ.lll Emtal arma<;ao conceitual um s,aber de produc;ao podia ser justifi-,cado; mas nao 0 saber inerente a reflexao. Tarnpouco 0 modelo'da atividade produtiva era adequado para reconstruir as rela<;oes,:entre domina<;ao societaria e ideologia. Na metaps:cologia Freudadquiriu, em contrapartic1a, urn quac1ro de atividade comunicativadeformada; este permite que se apreenda a genese c1as institu'<;oes,se avalie 0 peso valorativo clas ilusoes; portanto, que se entendadomina<;ao e ideologia num e no mesmo complexo. Freud podeexpor 'uma conex3.o conceitual, () qual Marx nao chegou a flagrarem sua intimidade.'

Frend concebe as institui<;6es como urn poder que substituiuma aguda violencia exterior" pela constante compulsao internade uma comunica~ao c1eformada e autolimitadora. De maneira'correspondente, ele entende a tradi~ao cultural como um incons­ciente coletivo, de uma ou outra forma sempre censurado e vi­rado ao avesso; nele os sfmbolos isolados orientam para as viasc1a satis[ac;:ao virtual os motivos que, embora cxilmlos dOl csfcradJ comllnica~~ao, silo COllstalltemente rcativaclos. Estes Tl1ojivosconstituem as fon;as que, em lugar cia arneac;a de fora e do pe­rigo da san~ao imediata, for<;am a conscicncia a ficar presa aoinevitavel, ao legitimarem a domina<;ao enqllanto tal. Mas dessao, simultaneamente, as for~as das quais a conscif~neia cativadas ideologias pode vir a ser libertada pela auto-reflexao, nomomento em que urn novo aerescimo no potencial de domina<;aoda natureza desacreclite as antigas formas de legitima~ao.

Marx nao pode flagrar dominar;iio e ideologia como lIma co­munica~ao distorcida porque pressupos que os homens se distin­guiram dos animais no dia em que come<;aram a produzir seusmeios de subsistencia. Marx estava convencido de que a cspeciehumana se elevara outrora sobre as conc11~oes animais da CX!sten­cia pela fato de haver ultrapassado os limites da inteligcncia ani­mal, poclendo, em consequencia, transformar urn comportamentoadaptativo em urn agir instrumental. Como base natural da his­t6ria the interessa, pOI' isso, a organiza~ao corp6reo-especificadada especie sob a categoria do trabalho possivel: 0 animal que fa-,brica instrumentos. 0 olhar de Freud, pelo contrario, nao estavavoltado para 0 sistema do trabalho social mas para a famllia. Ele

Page 48: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

295 CONHECIMENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNIDADE DE CoNHECIMENTO E INTERESSE 297

SllPOS que os homens se d;stinguiram clos animais no momento emque tiveram sucesso em inventar uma agencia que socializasse aprole biolog'camente ameavada e depenclente por um perfoclo re­Jativamente !ongo. Freud estava convenciclo de que a especie hu­mana se e!evara outrora sobre as condic;oes anima:s da existenciJpelo fato de haver ultrapassado Os limites cia societarjzac;ao ani­mal, podendo em conseqiiencia transformar um' comportamentoregulado pelo instinto em um agit pr6prio a comun:cac;ao (Jmma­na). Como base natural da hist6ria the in teressa, por isso, a orga­nizar;ao corp6reo-especif;cada da especie sob a categoria do excc­dente impulsional e sua respectiva canalizac;ao: 0 animal inibidoem suas pulsoes e que, ao mesmo tejnpo, fantasia. 0 desenvolvi-'mento da sexualidade humana com seus clois zenites, interrompiclopelo pedodo cia lateneia em base da' repressao edipal, e a func;aoda agressividade no estabelecimento da instancia do Superego, fa-"zem com que 0 problema antropol6gico bas'co nao the parec;a sera organizar;iio do trabalho, mas 0 desenvolvimento de instituir;8escapazes de resolver, de forma estavel e duradoura, 0 conflito entreo exeedente pulsional e a coerr;ao da realiclade, E pOl' isso queFreud nao comec;a rastreando aquelas funr;oes clo Ego que se de­senvolvem, em nlvel cognitivo, no quadro da atividade instrumen­tal. E1e concentra sua atenc;ao sobre a genese do fukro l11otivador,pr6prio a alividacJc da conl\l11ica\ao, Jnlcrcssa-J!Jc cOl11prccndcr 0

dc:;t"Jlo dos potcllciais prill1{lrios da pulsao nos I11camhos dc ll1l1,1

interac;ao entre 0 scr que sc clesenvolve e sell me'o ambiwtc, illte­rac;ao detenninada peIa estrutura fal11:Car da qual cste ind'Vlcuo­que-eresee fica dependente durantc uma longa fase cle aclestra­mento,

Mas casu a base natural da esp€cie humana estiver esseneial­mente determinada pelo excedente puIs:onal e pela prolongacla de­penclclleia infantil, e se 0 surgimento das instituic;oes pucler ser,com base nessa inteleec;ao, eompreendido a partir das conex6es deuma comunieac;ao deformada, entao aquilo que ehamamos de do­minac;ao e ideologia adquirira uma outra fllnr;ao, um peso valora­tivo mais substancial do que aque1cquc Marx the predicara. Comisso a 16giea da dinamica reflexiva,' dirigida contra dominac;ao eideologia, receben-doseus impulsospelo progresso que ocorre nosistema do trabalho, social (cicllcia e tecnica), torna-se intelec­tualmente aeesslvel: trata-se da 16giea da tentativa e do erro, mastransposto para 0 plano da hist6ria 'universal. Sob os pressllpostosda teoria de Freud, a ehamada base natural nao faz uma promessa- a saber: pelo desenvolvimento das forC;as produtivas haveria a

possibilidade objetiva de Iibertar totalmente 0 quadro institucionaldo car.ate; ~epressivo qu~ Ihe e peculiar - mas tambem nao pode.em pnnelplO, desencoraJar uma tal esperam;a. Freud indicou cla­ramente qual a direc;ao de uma hist6ria da especie determinada,ao mesmo tempo, por um processo de autoproduc;ao sob a cate­goria do trabalho e por um processo de formac;ao sob as condic;oesde um,a comunieac;ao deformada: 0 desenvolvimento das forc;asprodutIvas engendra, em cada etapa, a possibilidade objetiva deatenuar a violencia do quadro institucional e "substituir a baseafetiva de sua obedieneia civilizat6ria por uma (base) racional".l1.2Cada passo no caminho da realizac;ao de uma id6ia, posta em cenacom (; contradic;ao de uma comunicac;ao deformada pela forc;a, emarcado pela transformac;ao da moldura institueional e pela des­truic;ao de uma ideologia. 0 objetivo e "a fundamentac;ao racionaldas preseric;oes culturais", portanto, uma organizac;ao das relac;oessociais de aeordo com 0 principio de que a validade de toda equalquer norma, com conseqiiencias de C'Tdem polftlca, venha ~

depender de um consenso, obtido por meio de uma comunicar;aoismta de dom:nac;ao.l 13 Mas Freud insiste em que toclo esfon;o nosentido de ineorporar tal id€ia no plano da ac;ao e de promover,em termos revolueionario-critieos, 0 progresso do csclareciment9est{l rigorosamentc eompromctido com a I1cgac;ao dctcnninada,pr('pria ao sofrimcnto f,leilmcntc icknlific{lVcl -- e chama atenc;aopara a cCl!lseicncia hipotetico-pratiea, a saber: executar 1lI11 cxpe-­rimento que tambcm pode nao dar em nada. '

As idcias do iluminismo provem da reserva das ilusoes trans~

mitidas historieamente; razao por que devemos entellder as ac;oesdo iluminismo como a tentativa de testar, em circunstanC'ias dadas)os limites de exeqiiibiIidaeIe do conteuclo ut6pico, pr6prio ao pa,­trimonio cultural. Nao ha duvida de que a 16gica da tentativa edo erro exige que se fac;am restric;oes no plano da razao, algo quya 16giea do controle cientlfico-experimental pode dispensar: em ufI?teste que se proponha experimentar as condic;oes de uma posslve}"restric;ao do sofrirnento", 0 risco de urn aumento do sofrimentonao deve fazer parte do programa em questao. Dcssas pondera,c;oes resulta a prudente precauc;ao de Freud frente ao "grande ex;­perimento cultural que se encontra atualmente em fase de aplica,C;ao no imenso paIs que se estende entre a Europa e a Asia".l14 Qprogresso do conhecimento na dimensao das c:eneias, bern com\>o da crftica, funda a esperanc;a "de que seja passlvel adquirir, pell?trabalho cientffico, um saber sobre a realidade do muneIo atrav6sdo qual possamos aumentar nosso poder e em vista do qual ,po~-

Page 49: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

298 CONHECIMENTo E INTERESSE CRlTICA COMO UNlDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 299

samos organizar nossa vida". Esta esperan~a, e somente essa, se­para basicamente a inten~ao de uma filosofia com·rafzes iiurninis­tas das tradi~oes dogll1aticas: "minhas ilusoes nao sao inconigIveiscomo as ilusoes religiosas, elas nao possuem 0 caniter alucinatorio.Caso a experiencia mostrar que nos enganamos, renunciaremos anOSS3S expectativas. Considerem, pois, minha tentativa a partir da­quilo que elae ... "; na verdade, como algo que pode ser prati­'camente revic1ado. Tal precall~ao nao empena a ativjc1ade crf­tico-revolucionaria, mas :nterdita a certeza totalitaria, a saber: aideia) pela qual essa certeza se dejxa orientar, e rc.alizavel sobqualquer circunstancia. Para Freud domina~ao e ideologia pos­suem raizes c1emasiadamente profunc1as para que, em lugar de umalogica da esperanya func1ac1a e c1a tentat:va controlada, ele possaproc1amar llma confianr;a (irrestrita no futuro da human:dade).ll'i

Esta e a vantagem de uma teoria que incorpora, na base na­tural da historia, a heranya f1cxIvel de uma historia natural, patri­manio de urn potencial instintnal que engloba tanto tenc1enciaslibidinosas e agressivas quanto a possibiIidacJe de romper 0 meca­nismo da satisfayao imediata. Mas, paradoxalmente, este mesmoponto de vista pode, igualmente, levar a uma construyao objetivis­ta cla historia, a qllal condllZ Freud a UI11 est{tgio ele reflexao an­ierior ilCjllele que Marx atillgira, C 0 impede cIe daborar a inte­Icc<Jio b{lsica el,) psie;m{llisc eIll tenno;; de uma teo!ia cia soeic­dade. llo Pelo fato de Marx haver comprometido 0 ato-da-anto­constitui~ao da especie com 0 mecanismo clo trabalho social, eleDunea sc viu secluzido a dissociar a dinamica do desenvolvimentohistorico cla ativic1ade c1a espccie, enquanto um sujeito, e a conce­ber assim tal autoconstituiyao nas categorias da revoluyao natura1.Freud, pelo contrario, introduziu, ja em nIvel mctapsicologico, urnmodelo energetico de dinamica pulsional que visualiza naquilo quechamamos de objetivo sua objetividade preferida. Assim Freud vetambem 0 P1'OCCSSO cultural da especie como uma realidade presa:a clinamica das pulsocs: as for~as libic1inais e agrcssivas, potestac1espr6-historicas da evoluc;ao, perpDssam por assirn dizer 0 sujeito daespecie e determinam sua 11isto1'ia. Ocone que 0 moclelo biologicoda filosofia da hist6ria nao eoutra coisa do que a sombra refletidado modeloteologico, ambos igualmente pre-crfticos. As pulsoescomo primum mavens da historia, cultura como resultado de sua'luta - uma tal concepc;ao teria esqueeido que acabmnos de ad­'quidr privativamente 0 conceito do impulso pulsionaI, unica c cx­:clusivamente, a partir cia dcformayao da linguagem e da patologiado comportamento. No plano antropologico nao deparamos com

necessidades que naa estejam ja interpretadas em termos de lin­guagem e nao. es!e!am simbolieamente fixadas em a<;oes virtuais. A~eranya da 11lstO!la natural, a qual consiste em urn potencial delmpu1sos desprovldos de qualquer especializa<;ao, determina as con­diyoes iniciais de reprodu~ao da especie humana, mas os meios detal :e?roduya~ societaria emprestam, de saIda, a conservar;iio daespeae a qu,altda.de da alltoconservar;ao. Verdade e que devemosacres.cent~r lr:r,edlatameu.te que a, experiencia da autoconserva<;ao~olel.lva fIxa. Ja .0 concelto da pre-compreensao, a partir do qualmfenmos pnvatIvamente algo assim como conserva<;ao da especieem vista da pre-historia animal da especie humana. Seja como for,uma reconstruyao da historia da espccie, a qual nao abandone 0

teueno da crftica, precisa recordar-sc da base de sua experienciae conceber aespecie a partir do "instante" em que esta nao podereproduzir sua vida sellao em condiyoes culturais, como um slljeitoque necessita, antes de mais nada e de qualquer forma, de se re­produzir como slljeito..

Marx, nesse sentido herdeiro da tradi<;ao idealista mantevetacitamente a sIntese como ponto de referencia: a sinte~e de umaporyao de natureza subjetiva com uma natureza objetiva para estasintesc; isso supoe que as condiyoes contingentcs da sintese reme~

tam ,1 lUna nMmeza j{j expIoracJa em si. "Natureza cm si" 6, po:·rem, lima COJlSlru<;~lO; c1a c1esizn<l llma natil!'l7 nailll'ml,\" que cngcn­droll do mesmo modo a natureza subjetiva como aquela que se Ihcop6e como natureza objetiva, mas sempre de tal maneira que n65"enquanto sujeitos cognoscentes, nao possamos, em principio,to­inar posi~ao fora ou ate "por baixo" da divisao da ehamada "na~

tureza em si" em uma natureza sllbjetiva e uma natureza objetiva.Os potenciais reconstruIdos do impulso natural fazem, como tais,parte da natureza incognoscfvel; mesmo assim tais potenciais saoacessfveis ao conhecimento na medida em que determinam a cons~

telayao inicial do conflito, em cuja soIu<;ao a cspecie humana est3.engajada ao ponto de esmorecer. As formas pelas quais 0 conflitoe deeidido sao, pelo contnlrio, depcmIentes das concli~oes culturaisde nossa cxistcncia: trabalho, linguagem c poder. Certificamo-nosdas estruturas do trabalho, da linguagem e do poder nao de umaforma ingenua, mas gra<;as a uma auto-reflexiio do conhecimento;essa toma como seu ponto de partida uma teoria da ciencia, assunwposteriormente uma versao transcendental e, por fim, certifica-se daconexao objetiva dessas estruturas.

o processo de investiga~ao das ciencias da natureza esta or­ganizado no quadro transcendental da atividade instrumental, de

Page 50: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

302 CONHECIMENTO E INTERESSECRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 303

pode ter por objeto dire;o. e ime?iato .a r~produ<;ao ,da. vi~a daespecie cis que esta especle preCIsa pnmeno, ela propna, ll1ter­pretar ~ que merece ser vivido sob as condi<;6es de existencia dacultura. Estas interpreta<;6es orientam-se, por sua vez, nas ideiasda vida quc e boa em e para si mesma. 0 "bern" nao e aqui nemuma conven<;ao nem uma essencia, ele e, muito' mais, fantasiado;na verdadc, ele 0 deve ser com tal precisao que reencontrc earticule 0 interesse que subjaz a essa fantasia. Isto significa aqui:recncontrar c articular 0 interesse pela por<;ao emancipat6ria quehistoricamente forpossivel tanto sob as condi<;6es disponiveisquanto sob as condi<;6es manipuh1veis do momento. Enquanto!louver homens que necessitem conservar sua vida por meio detrabalho e de intera<;ao sujeita a renuncia pulsional - portanto,sob a coer<;ao pato16gica de uma comunica<;ao distorcida - 0

interesse pela autoconserva<;ao assumira necessariamente a formado interesse da razao, 0 qual Uio-somente se desenvolve na cri­tica e se confirma pelas conseqiiencias priiticas de tal exerciciocritico.

Apenas no momento em que esta unidade de conhecimento einteresse for percebida em sua perten<;a reciproca, junto aquelctipo dc~ saber que caracteriza a cicncia critica, a predicm;ao depOll los de vista illvesligalc!rio-itallscclldciltais nos interesses oricl/­tadores do conhecilllcnto poc!e ser cntenclida como UIlla rclac;iioncccssaria. Como a reprodlH;ao da vida social esta vinculada ascondi<;6es culturais do trabalho e da intcra<;ao, 0 interesse pelaautoconserva<;ao nao tern por objetivo imediato a satisfa<;ao denecessidades -empfricas mas, sim, as condi<;6es de funcionamentode trabalho e intera<;ao: este interesse abarca de modo igual ascategorias imprescindiveis a esse saber, os processos aCUl~ul.ativos

de aprendizagem e as interpreta<;oes permanentes, medrahzadasatravcs da tradi<;ao. Desde 0 momento em que esse saber coti­diano cstiver assegurado em uma forma met6dica adequada, eciesta maneira estiver tambcm distendido, os processos corres­pondentcs cle pesguisa sc irao inscrir nas coordenadas de talinteresse.

Enguanto 0 interesse da autoconserva<;ao continuar um mal­entendido naturalista, sera diffcil compreender como ele possaassumir a forma de um interesse gue oriente 0 conhec;mento egue, mesmo assim, nao permane<;a exterior a fun<;ao deste co­nhecimento. Aeonteee que mostramos, a partir de um exemplode ,cicncia critica, gue 0 interesse da autocollserva<;ao nao poceser pensado de forma consegiiente senao como urn interesse que

"

I'

age <ltrnves da pr6pria razao. Mas, se conhecimento e interesseconstituem uma unica realidade na dinamica da auto-reflexao,entao tambern a dependencia de interesses tecnicos e praticos doconhecimento, a qual caracteriza tanto as condi<;6es transcenden­tais das ciencias da natureza quanta as do espirito, nao pode im­plicar uma heteronomia do conhecimento. 0 gue uma tal depen­dencia visualiza e 0 fato de os interesses orientadores do conheci­mento, os quais determinam as condi<;6es de objetividade da vali­dade de enunciados, serem eles mesmos racionais, de sorte que 0

sentic10 do conhecimento, e com isso tambem 0 eriterio de suaautonomia, nao pode, de forma alguma, ser elucidado sem umretorno aquela inter-rela<;ao que une conhecimento e interesse.Freud reconheceu esta conexao de conhecimento e interesse, COllS­

titutiva do conhecimento enquanto tal; mais ainda, de a susten­tou contra 0 mal-entendido psicologizante, de forma tao incisivacomo se a demonstragao da validade de tal mal-entendido fosseequivalente a uma deprecia<;ao subjetivista do conhecimento:

k"Tentou-s~ desva!orizar 0 esfor~o eientifico de uma maneira raclical, pelaconsiclera\ao cle que, aehando-se ele ligado as conclic;:6es de sua propriaorgafliza\ao, nao pocleria produzir nada rnais senao rcsultaclos subjetivos,enCjllanto a natureza renl c1as coisas, exterior a nos, lhe permaneee inn­Cc'SSlvc! M"s isso significa cJcsprcwr divcrsos fatores ckcisivos para ac()[I)prCL'l1;;;;";O do trZlbaiho cicntifico. Ern prin1eiro lug;Lf, 1l0SSll org~lJliz,-1­

~'~io, j.::to C, nussa ':lpZlrc1ho psfquico, dcsC'Jlvolvcu-sc exatalllcnlc atravcsdo csfc)r\o cle explorar 0 JOunc!o cxtcrior c, portanto, (hovc tel' Tealizac10em sua estrutura um certo grau de senso lltilitarista; scgunclo, nossoap~relho psfquico c parte constituinte do mundo que nos dispusemos aiflvestigar e que ele admite, sem maiores problemas, uma tal investiga­<;:ao; tcrcciro, a tarefa da cicncia estara bern clescrita se a limitarmos ac1cmonstrar como 0 munclo nos cleve aparccer em conseqiicneia do carateI'cs[:ecifico de flossa organiza~ao; em quarto lugar, os derradeiros resul­tados cia ci~ncia, precisamente pOl' causa do modo pelo qual for am alean­«aclos, nao "penas estao detcrrninados POI' nossa organizac;:ao, mas pOl'aCjllilo que exerceu influencia sabre esta (nossa) organizac;:ao; e, final­mente, 0 problema clo modo-cle-ser-constituiclo clo munclo nao passa dellJlla abslrac;ao vazia, despida de (CJualquer) interesse pnltico, caso naolevarmos em conta nosso aparelho psiquico perceptivo.Nao, nossa cicncia nao e uma ilusao ( ... )". 117

Foi precisamente isto gue Nietzsche, em oposI<;ao a Freud,tentou demonstrar. Nietzsche viu a intima rela<;ao entre conhe­cimento e interesse mas, ao mesmo tempo, a psicologizon, esta­tuindo-a como elemento basico de uma dissolu<;ao metacdtica dop~6PIio conhecimento. Nietzsche levou a cabo aquilo que ,Hegel

Page 51: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

304 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRfTlCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 305

empreendera e Marx eontinuou (a SCll modo), a saber: a auto­supress(w da teoria do conhecimento como auto-recusa da re­flexao .

mundo, sempre tambem uma pOf<;ao respeito perante a autoridade(bons) co~tumes: a. moralid.ade foi sacrificada em seu todo. Quem,contrapartlda, a qUlser reaflrmar, deve saber evitar que os sucessosuma tal reafirma<;ao) nao se tornem conlro!aveis".!19

dosem(dc

"Desconfiado em extremo dos dogmas da tcoria do conhecimento, euapreciava espiar ora desta, ora daquela janela, cvitava comprometer-mecom llIIl deles, os considerava noeivos totlos des; e, finalmentc: c ve~

rossimil qne urn instrumento possa criticar sua pr6pria utilidade? EnatcIltava muito - rna is para 0 fa to de que jamais surgira um eeticismote6rico-cognitivo ou uma dogmiitiea que nao contivesse scgundas inten­<;6es -- que tal ceticismo ou dogmittica possui, na verdade, um valorseClmd{lrio desdc que se considere a que, no fun do, os obrigOll a tomaressa posic;;ao. Ponto de vista fundamental: tanto Kant quanto Hegel eSchopcnhaucr, tanto a postura cet,ica da 6poca quanto a atitude histo­rista ou pesslmista possui uma origcm moral. "us

Nietzsche rccorre ao argumcnto que Hegel utilizou contraKant para justificar sua recusa de entrar na area da teoria doconhecimento; de fa to, porem, sem disso tirar a conseqiiencia deque nao c possivel limitar-se a metodologia; pelo contnlrio, cle­nao deixa de entrar em contato com uma auto-reflexao dasciencias, mas sempre apenas com urn (mico objetivo: subtrair-sea ambas, a crftica nao menos do que a cicncia.

Par autro lado, Nietzschc comparliJ1Ja com 0 positivismo (}conceita de cicncia. Tao-soJlJentc ;\s infofma<;clcs que corrcspoll­clem aos crit6rios clos resultados das cicllcias cxpcrimclltai's po­clem, cm sentido estrito, ler a valiclaclc quc convcm ao conheci­mento. Com isto se estatui um parametro frente ao qual a tra­dic;ao em seu todo decai ao nivel cla mitologia. Com cada ctapado progresso cielltifico as concepc;6es arcaicas de mundo, as per-­cepg6es religiosas e as interpretag6es filos6ficas perdem teneno.As cosmologias, bern como a conjunto das mundividencias pre­cientfficas, as quais possibilitam orientac;6es e justificam norma&no plano da a<;ao, perdem sua credibiliclade a medida que limanatureza objetivada e reconhecida em suas conex6cs causais esubmetida ao poderio da disponibilidadc tccnica:

"Na medida em que 0 sentido da causalidadc aumenta, 0 raio de influ­encia do reino moral se rcduz: pois sempre que se entendcll os efeitosnccessiirios e se e capaz de pensa-Ios separados de todos os possiveisacasos isentos dos ocasionais falos posteriores (post hoc), anilJuilou-se­com urn scm numero de callsa/idades faillasticas; nelas se acreditou atehoje como Se fossem 0 fundamcnto dos (bons) costumes -- 0 mundoreal e, porcm, bern menor do que 0 fantasiaclo - e cada vez lim poueade angustia,' uma .frac;;ao ainda que infima de coen;ao foi varriUa dt)

Igual a Comte, anteriormente, Nietzsche compreende as con­seqliencias crfticas do progresso tecnico-cientffico como superac;aoda metaffsica; como Max Weber, posteriormente, ele entende asconseqiiencias pr<iticas de tal processo como uma racionalizac;aoda atividade e uma subjetivac;ao daquelas autoridades de crenc;acapazes de orientar a ac;ao. Teorias cientfficas podem anular apretensao de validade das interpretac;6es transmitidas por tradi­c;ao que, mais ou menos encobertas, sao sempre tambem interpre­tac;6es que afetam a praxis; nesse sentido tais teorias sao crfticas.Mas elas devem deixar livres 0 espac;o aberto das interpretac;6es.revidadas, eis que estas teorias nao sao aptas a estabelecer umarelac;ao com a praxis: nesse sentido elas sao apenas destmtivas.As teorias cientificas possuem, como conseqiiencia, um saber quee tecmcamente aplicavel, mas nenhum saber normativo, 0 quatpoderia orientar a ativiclade pnltica:

"A ciencia sonda 0 eurso da natureza, mas jamais podc dar orclens aohomcm. 0 que denominamos de inclinac;;iio, amor, prazcr, dcsprazcr, cxal­ta<;iio e cSllIorceimcnto, isso tudo a cicncia descol1lIccc. Aqui[o que 0

hOlriclIl viyc (' vivCllcia, isto c;c prccisa ill!crpretar a partir de algo dis­pOlllYc1 e (assim) aprcncll'r a cscolhcr".l2i)

o processo do esclarecimento, possibilitado pelas ciencias, eerftico; mas a remac;ao critica dos dogmas nao liberta, mas deixaindiferente: ela nao e emancipat6ria, mas niilista. Fora do raioque abarca a pertenc;a de teoria e praxis, 0 qual as ciencias rom­pem sem poder substitui-lo satisfatoriamente por uma conexao deteoria c tecnica, as informac;6es nao tern "sentido". Nietzschesegue, primeiro, as pegadas da compulsao imanente do ilumillis­mo positivista; deste 0 separa, porcm, a conscicncia da illtenc;aoabanc1011ada, a qual algum dia ja cstivcra comJ.;ometida com 0

conhecimento. Nietzschc, 0 fi16sofo que naOi!'l::iS 0 pode ser,nao esta cm condic;6es de subtrair a memoria "que sempre foipressuposto que da intelecc;ao da origem das coisas devesse de­pender a salvagao do homcm"; ao mesmo tempo ele ve

"que agora, pelo contriirio, quanto mais perseguimos a origem tanto me­nos participamos (desta pesquisa) com os nossos intercsses; de fato, quetodas as nossas apreciac;;iies valorativas e nossas 'veleidades', as quais pro-

Page 52: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

"a·creditam. que 0 sentido da existencia chegara scmprc mdhor· a lu'l a'medida ,que 0 processo avanp; e1es olham para tras com a unica finalida-

jctamos nas coisas, come<;am a pcrder seu senticlo; c isso nn medida emque retrocedemos sempre mais com nosso conhecimento enos aproxima­mos das coisas como tais". 121

o conceito positivista de ciencia torna-se particularmente am­bivalente pela maneira como Nietzsche 0 avalia. Por urn ladoconcede-se a ciencia moderna um monop6lio de' conhecimento;este 6 conobarado pela desvaloriza9aO e descr6dito da metaffsica.Por outro lado, 0 conhecimento monopolizado 6, por sua vez,desacreditado pelo fato de dispensar necessariamente 0 elo coma praxis, algo espedfico a metaffsica, e perder com isso uossointeresse. De acordo com 0 positiyismo, nao pode haver urn saberque transcenda 0 conhecimento met6dico das ciencias experimen­1ais; mas Nietzsche, ao aeeiUi-Io, nao consegue convencer-se deque um tal saber mere9a 0 designativo do conhecimento. Pois,atravcs da mesma metodologia que garante certcza a seus co­nhecimentos, a ciencia 6 alienada daqueles interesses que, {mica'e exclusivamente, seriam capazes de darem sentido a estes seusconhecimen tos. Frente aos objetos que suscitam urn interesseque vai a16m da disponibilidade tccnica, a "ciencia cultiva umasoberana ignodincia, um sentimento de que 0 'saber' nao oconejamais, de que foi uma especie de orgulho sonhar em algo assimcomo 0 conllccimento; mais aillcla, de que n~lO conseguimos ]Jrc­scrvar Hem 0 mais illfjrllO eOllccito 0 qual nOs pllllessc lcgilimarquc 0 'saber' nos vale algo, ncm que fossc a mera possilJilidadede saber".122

Ja em sua "Segunda considera9ao intcmpestiva" Nictzschehavia exposto, quanto a hist6ria, uma reserva anilloga aquclafrente a "insianificflllcia" das ciencias naturais. Tambcm as cien-

b .

cias do espirito ficarao, no momento em que obedecerem aoscriterios do metodo cientifico, alienadas do complexo da vida. Aconscicncia hist6rica s6 e util para a praxis da vida enquanto seapropria de uma tradi9ao e a continua elaborando sob a pers­pectiva do presente. A hist6ria viva faz com que 0 passado e 0

cstranho sejam elementos constitutivos de um processo atualizadode format;ao. A fonnat;ao hist6rica constitui 0 parametro da"fort;a pl<lstica", pela qual urn homcm ou uma cultura se torn ahansparente a si mesmo no momento em que presentifica 0 pas­sado e 0 estranho. Aqueles que pensam histaricamente

306 CONHECIMENTO E INTERESSE

'1I

!I

I(

'r

I

CRITICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E lNTERESSE30T

de. de compreenderem. melhor 0 presente, considerando 0 proeesso an-,~enor e pDdercm (asslm) aprcnder a clesejar 0 futuro de forma maisl~t~nsa; eJes nao chegam nem a saber, apesar de todo 0 seu saber hls­tonco, 0 quanto pens~m e a~cm de maneira nao-hist6riea e atc que pontoa seu estucl.o da hlstorra esta a serVl<;O da vida e nao 6 comanclado paruma neccsslclade de conhecimento puro". 1~3

Nietzsche acredita poder identificar urn momento do nao­hist6rico ~a reflexao utilizada pela praxis da vida, nesta que pro­cede da Vida, e que retorna a sua praxis, pelo fato de tal "cons­telac;ao .~a .vi~~ e da hist6ri.a:' se transformar logo que esta setome ClcnCIa. Para 0 sUJelto cognoscente fieam sem COnse­qUencia os objetos de lIma hist6ria universal que, quais raridadesenclausuradas em urn museu, se objetivam numa fictfcia simul­taneidade P?:a a consci~ncia que apenas frui a contempla9ao .Uma vez relfIcada metodlcamellte, a tradi<;ao e precisamente neu­tralizada como tradi9ao, e nao pode mais fazer parte do processode trallsfarma9ao: "0 saber. " cessa de agir como um fator detrans[orma9ao, como um impulso que leva 0 motivo a se exte­riorizar, e permanece (assim) escondido em um determinadomuncio ca6tico clo interior" .125

A polCmica de Nietzsche contra 0 6cio mimaclo dos virtuo­scs do JlistorislllCl de sen tempo csta fnnclada em UIJla critiea ciacicnIiJicizar;(!o da liistoria. 0 objetivisll1o ainda nao e flaoraclo

N· , . b

por ic:zscne como uma enanea autocompreensao cientificista,mas aceito com.o a inescus{lvel implica9iio cla ciencia do espirito.Nietzsche acrcdita, par cOllseguinte, que uma hist6ria "a servi90da vida" neeessita dos clos pre-cientificos COm 0 nao-hist6rico eo supra-hist6rico. 12G Tivesse ele, por ocasiao de sua critica ascicncias do espirito, retomado 0 conceito da "interpretac;ao", de­senvolviclo dois anos antes em sen ensaio "Sobre a verdade e a11lentira em sentido extramoral", nao teria sido possivel mantertal confronta9ao por mais tempo. A categoria da interpreta9aosc tcria cntao, muito mais, imposto como fnndamento cllcobertodo metodo bistorico-filoI6gico, e 0 objctivismo se teria revelaclocomo a falsa consciencia de um metodo inevitavclmente ligadoao processo de forma9ao do sujeito cognoscente.

o embara90 de Nietzsche frente as ciencias do espfrito eidcntieo aquele frente as ciencias naturais: ele nao pode prescin­dir das reivindicat;6es do conceito positivista de ciencia e, aomesmo tempo, nao e capaz de dispensar 0 conccito mais exigentede uma tcoria que possui signi/icQriio para a vida. No que con­cerne a hist6ria, Nietzsche reeone a evasiva, sugerindo que ela

Page 53: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

308 CONHECIMENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 309

se despoje da camisa-de-forc;a da metodologia, nem que seja acusta de sua possivel objetividade. E ele gostaria de se apazi­guar, considerando que "0 que caracteriza nosso seculo XIX naoe 0 triunfo da cU;ncia mas 0 triunfo do metodo cientlfico sobrea ciencia".12' Nao era, porem, possivel aplicar e~ta f6rmula ascicncias da natureza. Frente a ela, a exigcncia analoga de rOm­per as cadeias do pensar met6dico se teria condenado a si pr6­pria. Caso quisesse ter unificado as heranc;as incompativeis dopositivismo e da filosofia classica, Nietzsche teria sido obrigadoa criticar aqui, de forma imanente, 0 objetivismo das cienciascomo uma falsa autocompreensao, a hm de trazer a tona 0 liamesecreto com a praxis da vida.

A teoria do conhecimento de cunho nietzscheniano, por maisaforisticas que suas formulac;5es sejam, consiste na tentativa decompreender a molclura categorial das ciellcias da natureza (es­pac;o, tempo, evento ), 0 conceito de lei (causalidade) e a baseoperacional da experiencia (medida), bem como as regras da16gica e clo ca1culo, como apriori relativo de um munclo de apa­rencia objetiva, 0 qual foi engendrado com 0 fim de dominar anatureza e assegurar, assim, a conservac;ao da exiStellcia humana:

"Toelo u ap:lrc:lho-elo-conhceimclllo C: lIJIl al'arclbo de abstras;i"lO cdr,; sim­plifica\';lo, voltaelo niio para 0 conhecimcnto, mas para a elomilla\';\O clascoisas: 'fim' c 'mcjo' cstfto ti"IO dislantcs da esscllcia (clas coi:,as) comoos 'conccitos'. Com 'fim' e 'meio' apossamo-nos do proccsso (invcIlta-s~

11m proccsso que seja perceptiveJ), com 'conceitos' apodcramo-nos, po­rem, oas coisas que constitucm 0 processo", 128

Nietzsche entende cicncia como a atividacle pcla qual traus­formamos a "natureza" em conceitos, com 0 objetivo de domillara natureza. Sob 0 rigor coercivo cia exatidao logica e da peru­nencia empirica, a imposic;ao do interesse pela l1lanipulac;ao t6c­nica dos processos objetivados da natureza se torna cogente, e apura forc;a se il1lp6e como uma lei de cOJJscrvac;ao da vida atraves:cle tal coerc;ao:

"Nao importa 0 quanta nosso intelccto scja uma cOIlseqi"lcIlcia das condi­~Oc.s de existencia, nos nfio 0 teriamos se nfio tivessemos necessidade dele,e niio 0 teriamos assim, caso nao fosse assim que dele neeessitassemos,meSIllO se pudessemos viver de forma diferente".1...'>9

'''Niio convem compreender esta imposir;ao que temos em formar coneei­tos, generos, formas, fins, leis ('um lnundode casos idcnticos') __ comosc-' com isso estivcssemos em condi~oes de fixar 0 mjJIldo verdadeiro, mas

)

I

jII

como necessiclade imposta. a saber, nos retoear lim mundo de tal ma-neira Que nassa existencia s t (I ) ,corne ne e possIVel - Com isso nos cria,mos urn mundo que nos e previslvel, simplifie,1do, inteligivet, etc.". 130

Esta frase poderia ser entendida nos termos de urn pragma-tismo 16gico-transcendental. 0 interesse a orientar 0 conhecimen-to para a d?n:i~ayao da n~tureza fixaria, ele proprio, as condiy6e:ode uma obJetJVldade possIVel do conhecimento da natureza. Emvez de suprimir a diferen<;a entre ilusao e conhecimento esteinteresse ,iria, pelo cont:ario, primeiro determinar 0 quad;'o noqual aqmlo que denommamos realidade e para nos obJ'efva-

1 ' l' "Imente con 1eclve. Com ISto a pretensao critica de urn conhe-cimento cientifico permaneceria, por urn lado de pc frent 'f' - ,eameta ISlca Dl~S, por outro, a reivindicayao monopolista da cienciamodernz sena, tgualmente, posta em questao: ao laclo do inte­res~~ tecnico poderia haver outros interesses que orientassem elcgltlmaSSe~l1 0 con.hecimento. Esta nao e, muito provavelmente,a conc.epc;ao de NIetzsche. A reduC;ao metodol6gica da cienciaa um 1.J)ter~sse ,P?la autoconservac;ao nao esta a servic;o de umadeterm!napo log~co-transcendental de um conhecimento possivelmas, Slm, C\ serVH;O cia negay~lo cia propria possibilicladc de secOllhe::ccr: "Nosso aparcJho cognitivo nflo csta organizado parao 'sabcr'''YIl 1\ reflcxao acerca clo llOVO critcrio clcscnvolviclo~cla cjcnci~1 moclerna, continua apresentanclo raz6es' para uma crf­tlca clas tnterpretac;6es tradicionais de l1lunclo mas a meSmacritiea abarca tambem a ciencia enquanto tal. Metafisica e cien­cia procluziram ambas, clo mesmo modo a ficc;ao cle um mundoprevisfvel de casos identicos; a ficc;ao cI~ apriori cientifico reve­lou-se, de qualquer forma, mais digno de credito. 0 clescaminhoobj~t.iv!sta, este.,qU,e Nietzsche, l11otivado pela antocompreensaopOStt!vlsta da ClenCla, prova ser uma propriedade filos6fica, e 0

mesmo ao qual tambem a ciencia sucumbe:

"0 descaminho da. filosofia deve-se ao fato de que, em vez de ver na logi­ca e nas categonas da raz,'io meios de organizar 0 mundo em vista de~ir~s lItilizav.eis (portanto, 'basicamente' em vista de uma falsijicar;iioHtd), aeredltava possuir na logiea e nas categorias da razao 0 criterioda verdade ou a (propria) realidade. 0 'criterio da verdade' era de faton.a~a :.nais do que a utilidade biol6gica, pr6pria a urn tal sistel:a de fal~slju:a~ao fundamental: e como uma especie animal nao conhece nada der:lslmportante do que SD ~anter. em vida, legitinlO seria aqui, de fato,a ar de verdade. Mas a mgenllIdade consistia apenas nisso: tomar a

Page 54: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

310 CoNHECIMENTO E INTERESSE CRiTICA COMO UNlDADE DE· CONHECIMENTO E INTERESSE 311

icJiossincrasia antropocentrica como medida das coisas, como criterio in­dicativo do 'real' c do 'irreal' - em suma. a de haver absolutizado umanorma condicional".132

a interesse que se encontra na raiz do conhecimento afeta apossibiIidade do conhecimento enquanto tal. Como a satisfa<;aocle todas as necessidades e abarcada pelo interesse da autoconser­va<;ao, qllalqller illlsao, por mais arbitniria que seja, pode pre­tender possuir a mesma validade, basta que nela se manifeste,por mfnima que seja, lima certa necessidade de interpreta<;ao demundo. A conexao de conhecimento e interesse, entendida sobo visor naturalista, remove por certo a aparencia objetivista emtodas as suas formas mas nao 'sem, novamente, justifica-Ia soburn ponto de vista subjetivista: "Na medicla em que 0 termo'conhecimento' possua como tal um senticlo, 0 mundo e conhe­dve!: na verdade, porem, ele e passivel d,e v6rias interpretat;i5es,ele nao guarda por detras de si urn sentido, mas urn sem nllmerode sentidos (diferentes) - 'perspeetivismo'. Sao as nossas ne­cessiclades, as que interpretam 0 mUlldo; nossas pu!s6es, 0 ser­contra e 0 ser-a-favor clestcs impu!sos".133 Nietzsche conc1ui dis­to':H quc a tcoria clo c:onllC'cimGnlo cleva, no futuro, ser substi­tuida por uma cloutrilla lJue lCi!lcc a perspcc(iva clos afetus. NavGIclac!::; nao c cliflc:il eonstatar quc Nietzsche !laO tcria chcgadoao pers~ectivislllO, caso nao houvesse, desde 0 inicio, desacredi­taclo a teoria do conhecimento como uma alternativa impossfvel.

Pelo fatode Nietzsche encontrar-se aprisionado de tal ma­neira no positivismo, a ponto de nao lhe ser mais possive! rec?­nhecer que slla crfLica da autocompreensao objetivista da ciencIachegava a constituir' uma critica do conhecimento, ele foi neces­sariamenle obrigado a entender mal, isto e, entenc1er segundocriterios naturaIistas, 0 interesse orientador do conhecimento, como qual se havia deparaclo.

Tao-somente quando intcresse c pulsao [orem, clireta e ime­diatamente uma e mesma realidade, as condi<;6es sllbjetivas daobjetividad'e do conhecimento possive!, postas pelo interesse, po­dem afctar a diferen<;a como tal entre ilusao e conhecimento.Mas, nada ha que force uma interpreta<;ao empirista do interesseorientador do conhecimento enquanto a C'tuto-reflcxao da cicncia,a qual se apossa da basc do interesse, nao for, por sua vez, malentendida em termos positivistas, a saber, enquanto for negadacomo c~ftica. f: exatamente a isso que Nietzsche se ve obrigado.

II

\

I,I

iI

Sempre de novo ele exp6e 0 meSillO argumento contra a possi­bilic1ade de uma teo ria do conhecimento:

"Devcr-sc-ia. saber, ( ... ) 0 que e cc,rteza (moral), 0 que e conhecimento.e assirn por diante. Mas, como nos nao 0 sabcrnos, uma critica da [acul:dadc do conhecimento nao faz sentido: de que maneira 0 instrumento{lcvcria ser capaz de se criticar a si proprio, se apenas disp6e de si mesmopara esta critica? El e nao esta nem em condic;:6es de se definir a siproprio!" 1'35

Hegel havia recorrido a este argumento contra Kant, com 0

Dbjetivo de for<;ar a eritica do conhecimento a fazer, por sua vez,uma critica de seus pr6prios pressupostos, e levar assim adiantelIma anto-reflexao interrompicla. Nietzsche, pelo contn1rio, adotacste argumento para se assegurar da impossibilidade de tocla eqllalquer auto-reflexao.

Nietzsche partilha a cegueira de uma era positivist a face amlto-reflexao; ele nega que a memoria critica de uma aparenciaalltoproduzida mas independizada frente ao sujeito, que a auto­reflexao de uma falsa eonsciencia seja conhecimento: "Sabcmosqne a dcstrui<;ao cle uma i!usao nao perfaz ainc1a uma verc13c1emas represcntil Uio-somcnte lima [Jor~:{w il mais de ignoriincia, mn<llargamento c1e IlOSSO 'espayo vazio', um alllIlcnto cle nossa 'soli­d50'.13G Nao ha dllvida de que esta rccusa da rcflcx~lo elll Nie­tzsche nao resulta, como em seus contemporfllleos positivistas, de.um eneantamento do investigaclor atraves da aparcncia objetivis­ta da eiencia, essa que precisa ser prMica intentione recta. Nie­tzsche, c isso 0 distingue de qualquer outro, denega a for<;a criticada reflexao, unica e exc1usivamente, com meios inerentes it propriareflexao. Sua critica da filosofia ocidental, sua critica da ciencia,sua crftica da moral dominante sao urn atestado inconfunc1fvel deuma pesqllisa do conhecimento atravc.s da auto-reflexao e somen­te com base na anto-rdlexao. Nietzsche sabe c1isso: "Nos somos,desde sempre, seres ilogicos e, em consequeIicia, injl1stos c somoseapazes de 0 reconhecer: esta e lima das maiores diserepancias daexistencia, impossivel de ser removida"J37 Mesmo assim Nie­tzsche esta a tal ponto preso as convicc;6cs positivistas basicasque nao pode reconhecer, de maneira sistematica, a fun<;ao cog­nitiva da auto-reflexao, da qual paradoxalmente vivc como autorde textos filosoficos. A ironica contradi<;ao de uma auto-recusada reflexao e, na verdade, tao tenaz que nao pode ser desfeita por

Page 55: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)

312 CoNHECIMENTO E INTERESSE

NOTAS:

3)

4)5)6)7)8)

9)10)

a I)

, 12)

I13)

I 14)I

I 15)

I16)17)

I 18)19)

I 20)

21)

22) ..1I

II

argumentos mas apenas atenuada por meio de esconjuros. A re­flexao que se auto-aniquila nao pode contar com a recurso de umaregressao complacente; cIa necessita da auto-sugestao para ocultara si mesma aquilo que, ininterruptamente, nao pode deixar deexercer, a saber: a critica:

"Nos, psicologos do futuro, nao temos boa vontade suficiente para nosobservar a nos mcsmos; nos achamos inclusive quc 6 um sinal de dege­nera~iio quando urn instrumcnto procura 'conhecer-se a si proprio'; nossomos fcrramcntas do sabcr e gostariamos de possuir toda a ingenuida­de e toda a prccisao de um instrumento; por conseguintc, nos nao deve­mos analisar a nos mesmos, nos 'conhecer"'. 138

A hist6ria da dissolU<;ao da teoria do conhecimento em me­todologia constitui a pr€-hist6ria do positivismo rnais recente. FoiNietzsche quem redigiu 0 seu ultimo capitulo. Como virtuose deuma reflexao que se del/ega a si mesma, ele ao mesmo tempoelaborou a pertenga recfproca de conhecimento e interesse e ainterpretou mal ao nivel empirieo. Para a mais recente versao dopositivismo, Nietzsche pareceu haver provado que a auto-reflexaodas cicncias nao leva senao a psicologizagao de relag6es que, en­quanta 16gicas e metoclo16gicas, nao devem ser colocaclas nomCS/l1O plano com as rclac;6cs clllpiricas. A "aut()-rcrlcx~lO" c1asci0ncias podia, assil\1, apareecr COIllO lim rcnovaclo cxc111plo parao paralogismo naturalista, tao freqi.iente e tao rico em conseqlicn­cias na hist6ria cla filosoIia modcrna mais recente. Acreclitou-se,assim, que bastava renovar 0 hiato basico entre os problemas davalidade e aqudes da genese de enunciados cientificos; e com issose achava estar em condig6es de poder confiar a teoria do conhe­cimento a psicologia da pesquisa, inclusive esta que se desenvol­vera de forma imanente a partir da 16gica das ciencias da natu­reza e das cicncias do espirito. Foi sobre este fundamento, entao,que 0 positivis1110 mais recente construiu uma metodologia pura,purificada sem duvida daqueles problemas que, a rigor, consti­tuem as questocs-de-interesse por excelencia de uma metodologiacientifica.

1) KANT, I. - Kritik der Urteilskraft (Critica do juizo). Werke edWeischedel, v. 5, p. 280 et seqs. ' .

2) KAr::r, I. - Grundlegung der Metaplzysik der Sit ten (Fundamen­ta~ao da metafisica dos costumes). Gp. cit., v. 4, p. 42 (nota). Emuma outra passagem Kant precisa a distin~ao entre urn interesseempfrico e urn interesse puro; ibidem., p. 97, (nota).KANT, 1. - Metaplzysik der Sitten (lv!etaflsica dos costumes)Gp. cit., v. 4, p. 317. .IV, p. 101.Ibidem, p. 98.Ibidem.Ibidem, p. 99.

KANT, 1. - Kritik dcr Praktischen Vernunft (Critica da razlio pnj ..tica). Gp. cit., v. 4, p. 249.Ibidem, p. 250.Ibidem, p. 752.T(ANT, 1. - - l·'·~r{·t{·!,· ('C R' J/ f ( ,.. . . .r ('{lien erillin I .Cotlen eln !'a/JIO pura).v. 2, p. 677.

KANT, 1. - Kritik der /'raktischell VemUllft (Crilica da raziio pnl'tica). v. 4, p. 251.

FlCHTE, J .G. - Ausgew. Werke (Text os Scletos). Ed. Medicus:. 3. Zweitc Einleitung in die Wissenschaft der Logik (Segund~tntrodu~ao a eiencia da logica), p. 43 et seqs.FlCHTI, J. G. - Erste Ein~eitung in die Wissenschaft der Logik(Primeira introdll~ao 11 cicncia cIa logica). Gp. cit., V. 3, p. 17.Ibidem.Ibidem.KANT, I. - Kritik dcr R' V f (C"el/lcn ermJll t ntlca cia razao pura).v. 2, p. 440 et scqs.Ibidem, p. 450.

FICl-ITE, J. G. - Erste Einlcitung in die Wissenschaft der Logik(Primeira introdu~ao a ciencia da logica). Gp. cit., v. 3, p. 17et seqs.

FIef-ITE, J. G. - Zweite Einleitung in die Wissenschaft der Lo"ik(Seguncla introdu~ao a ciencia cia logica). Gp. cit., v. 3. p. 56."FIC~TE,. J.? - Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik(PnmeIra mtrodlI~ao a ciencia cia logica). Gp. cit., v. 3, p. 18.AI'EL, K. 0 - "Die Entfaltung der sprachanalytischen Philosophieund das Prob!em der Geisteswissenschaften" (0 desenvolvimento da

Page 56: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 57: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)
Page 58: Jürgen Habermas - Conhecimento e Interesse (Parte III)