jÜrgen habermas 60 anos. revista tempo brasileiro

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  • 5/16/2018 J RGEN HABERMAS 60 Anos. Revista Tempo Brasileiro

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    Diretor:EDUARDO PORTELLA

    A contrtH'en;a cultural dos noss(}S diasNurne ro s monog ra fi co s l ancados

    Estrut uralismo A crise do pensumento moderno . I A crise do pensamenlo moderno . 2 A crise do pensamento moderno , 3 Vanguarda e modernidade Epist emiologiu . I Epistemiologia, 2 A l ingu is ti ca hoje Cultura . arte. literatura As instituicoes e os discursos A historia e os discursos A que s tao da arte na idade daciencia 0 texto, a leitura Poesia brasi leira hoje Pisicanalise . 2 Poeti ca, on tem e hoj e 0 pensamento . a his tor ia Literatura brasileira: vertentes Ciencia e consciencia Martin Heidegg er A poesia, a critiea Semiotica e cri tica l iteraria Lingidstica e ensino do vernaculo Prome teu e a critica A violencia na literatura Funcao da cri ti ca Generos e literariedade Sobre a parodia Literatura infanto-juvenil Razoes da invenri io 0discurso liberal Si gno s da tecnica Culturaltlomunicacao Passagens da modernidade Em torno de Freud Ref lexao e Participacao: 20anos Tea tro sempre Novo humanismo Jorge Amado. Km 70 Saber/Poder Ident idades do moderno Quest iia e Refo rma Agra ri a nos anos 80 Sociolinguist ica e ensino dovernaculo Perfis/Problemas na literaturabrasileira Literatura e historia Modos de interpretac ao Poesia sempreModernidade e pos-modernidade Cidades, Ficcoe s lnformacoo cultura esociedade Memoria e historic A travessia do espelho-reflexao sabref ilosof ia da ciencia e da tecnica na. modernidade 0 negro e a abolicao Ciencia e hiea ldent idade e memoria Jurgen Habermas: 60 anos Cosmopolitismo e diferenca As Rept1blicas daRepublica Cidadaniaidmancipacdo Feminino e Literatura

    IIII

    T E M P O B R A SI lE I RO98JULHO - SETEMBRO DE 1989D ir eto r: E DU A RD O P ORT EL LACon se lh o Co n su lt iv oC AR ID S C HA GA S F IL HOE MM AN UE L C AR NE IR O L EA OJOAO CAB RAL DE M EUD NEW

    J OR GE A MA DOJOSE PAUlD M OR EIR A DAFONSECARA FA EL G U TIE RRE Z G IRA RD OTCom is s ao Ed it or ia lA NG EL A M AR IA D IA SCA RI DS S EP UL VE DAE DU ARD O COU TI NH OF EL IX D E A TH AY DEGUSTAVO BAYERK AT IA D E C AR VA LH OL UC IA lD BAWMARC IO TAVARESD 'AMARALM UN IZ S OD REP ED RO L YR AR ONALDES DE M ElD E SO UZA

    A editoracao desta Revista, desde 0mirnero 80, es ta entreg ue aoColegio d o B ra si l ( ORDECC ).R e vi st a T ri me st ra l d e C u lt ur a

    Os artigos a ss in ad os s ao d a inteirar es po ns ab il id ad e d e s eu s AuroresD i re it os Re se rv a do s a sE DI (: OE S T EMP O BRAS IL EI ROLTDA.F RA N CO P ORT EL LADiretor-Presidente

    M AN UE L A NT ON IO D E C AST ROD i re to r Ed it or ia lRedafao e Adminis t ra faoR ua G ago C outinho, 612 2 .2 2 1 - L a ra n je ir asR io de Janeiro - R J - B rasilTe l efone: 20 ) -)949

    J UR G EN H A BE RM A SE ste n um ero d a n ossa re vista e

    d ed ic ad o a [iirg e H ab erm as, p orocasiso do se u 60.0 al li vers i ir io. Fo-mos n os q ue lan fa mo s o spnmeirost ex to s d e Habermas no Bras il .E ago-ra reummos artigos qu e discutem,certamente no inte rior de um a e ti-c a d a d is cu ss ao , a s f orm es c ia razdonas c ur ua s da modern idade .

    Graeas a persereranca d e Ba rb a-r aF r e ita g, e a s s u as fo rmu la fo e s mo -btlizadoras, [iage Habermas no sco nc ed e u ma e ntre uista exclusioaque, reconbecidamente, publicamosaqei . A e la se juntam os e nsaios (e"diiilogos" impr evi si ve i s) qu e , nes-te n um e ro m on og tiific o, r ec or ta m,com precisiio, 0perfil e 0 lu ga r d e}urgen Habermas n o m ais enraiza-d o p e ns am en to c on tempo ri in e o.

    ",

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    Ficha Caralografica elaborada pela Equipede Pesqui sa da ORDECC

    Revista Tempo Brasileiro, v. 1 - n? 1 - 1962 - Rio deJanei ro. Tempo Brasi leiro, ed.Trimestral.l. Filosofia 2. Literarura 3. Tempo Brasileiro

    CDU 130.182

    S UM ARI O- jurgen Habermas fala a Tempo Brasileirol

    Entrevista por BARBARA FREITAG 5Etica Iluminista e Etica DiscursivalSERGIO PAULO ROUANET 23a Conflito Moral!BARBARA FREITAG 79Verdade e .Consenso - IIIGUIDO ANTONIO DE ALMEIDA 125Encontros e Desencontros no Caminho daInterdisciplinaridade: G. Gusdorf e J. HabermaslFLAvIa B. SIEBENEICHLER 153

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    JU R G EN H A BE R M A S F A L A AT EM PO B RA SIL EIR O

    Entrevista por B AR BA RA F RE IT AG

    B.F.: Parisesta se enfeuando para festejar, no 14 dejulho pro-ximo, 0Bicentendrio da Revolufao Francesa. M a r . x exaltou acapacidade dos franceses para a revolufao poiitica e dos ingle-ses para a revolufao economica, satinzando, em contraparti-da, nas duas direfoes, a incompetencia alema: enquanto osingleses Jazem dos homens chapius, osalemaes Jazem dos cha-pius idiias; enquanto osfranceses fazen: a Revolufao, os ale-maesJazem a contra-reoolucso, ou no maximo a revolu(iao emsuas cabefas. Como 0 Senbor avaliana hoje as competenciaspoliticas e econiimicas dos alemaes?J.H.: Os alernaes ocidentais destacaram-se, nestes ultimos de-cenios, mais por sua produtividade economic a que intelectual.Mas no conjunto, uma guerra perdida, uma derrota, que aba-la os fundamentos morais, pode tambern abrir uma oportuni-

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    dade. 40 anos depois da fundacao da Republica Federal da Ale-manha, podem observar-se algumas constantes em nOSS?de-senvolvimento p6s-guerra: uma integracao tenaz ao Ociden-te, ligada ~ flexibilidade e a abertura face aos paises do Leste- sem reavivar os classicos sonhos "centro-europeus", Essaabertura para os pafses do Leste tern como premissa a paz (esimplesmente do nosso interesse assegurar 0 desarm~en~o ereduzir esses arsenais idiotas em territ6rio alemao); por lSS0mesmo a nova abertura esta de algum modo desvinculada dequalquer revanchismo nacional. A integracao no Ociden~e sig-nifica a rernincia a todas as pretensoes de grande potencia, oumesmo de soberania, por pane da Alemanha Federal. Ela com-preendeu que os alernaes somente podem contin~ar agind?como fermentos, inseridos num contexto supranacional matsamplo. Tudo issome parece racional. Pela primeira vez nos tor-namos uma parte integrante aparentemente normal da comu-nidade Ocidental.

    Verdade e que este processo realizou-se inicialmente no pla-no economico e politico e depois, em parte, tambern no pla-no cultural. Este processo soment~ se tomara irr~verslvelquandoa "ocidentalizacao' tiver permeado a mentalidade de toda apopulacao. Para que isso aconteca, e preciso haver, ~o pla~ointelectual, uma apropriacao diferente de nossa tradicao h1S-t6rica nacional, isto e, uma apropriacao critica, capaz de ex-plorar os conteiidos daquela tradicao a luz da hera~~a ~o Ilu-minismo europeu, que durante 0 seculo XIX e a pnmeira me-tade do seculo XX s6 foram aceitos com restricoes. Isso tam-bern pode ser chamado de "revolucao nas cabecas",

    No mundo ocidental, hoje em dia, ninguern mais e "re-volucionario' no sentido estritamente marxista. Os jovens daRepublica Federal da Alemanha perderam, por outro lado,aquele "rnofo" autoritario que Marx observou entre seusconternporaneos.B.F.: A s fe stivid ad es d o Bicensensrio p od e m sig nifica r d ua scoisas: por um lado, a com em orafao de um capitulo e nce rra-d o da h ist6 ria fra nce sa , o u m elb or; m und ia l (c om o 0v e ! ran-fO t'sFure t }; por ou tro, a l embranfa das promessas n a o realizadas6 Rev.TB, Rio deJaneiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989

    dos i de a is c ia R evo lufa o, e m su a v erte nte jac obin a, re me te n-do a um proce sso hist6nco abe rto, no qual ainda hi lugar pa-ra n ov as r ev olu fo es . C omo 0S en bor se situa face a e ssa ques-ta o? A td eia d a r ev olu fiio p re cis e se r a rq uiv ad a c omo r em in is-c en cia r oman tic a d e um p atnmo nio e uro pe su pe ra do o u a in t/apode to mar-se virule nta como p ara dig ma d e fu tu ras m uda n-fas sociai s?J.H.: Nao partilho nem a opiniao de EFuret que com grandeenfase declara querer "acabar com a Revolucao", nem a opi-niao dos marxistas ortodoxos contra os quais Furet se volta: arevolucao bolchevista expele dissidentes que nao se rebelamcontra outra coisa senao a propria Revo lu ca o, 0 que nos rest~e 0 Iuto pelo fracasso de urn projeto do qual nao se p ode abnrmao. Voce pergunta pelas promessas nao realizadas dosideais da Revolucao, A Revolucao Francesa deixou uma heran-~a aberta a rmiltiplas interpretacoes, Ao Estado democra~iconacional associavam-se muitas ideias: 0 nacionalismo do cida-dao de uniforme, a ideologia de justica de uma sociedade fun-dada no trabalho 0 ethos da racionalidade instrumental in-corporado no Est~do centralizado, etc. Nada dissonos entu-siasma hoje em dia. 0que continua se~do e~em~la: :ao a d~-mocraria e os direitos humanos, que eXlgem msntuicoes poll-ticas livres. Mas tais institukoes serao constantemente desmen-tidas pelo cotidiano da injustica social, da repressao e da rni-seria, se nao for posslvel instituir uma politica da renovacaoduravel, ancorada na cultura politica, i.e, nos coracoes de umapopulacao habituada a liberdade. Em ultima instancia, vej?como uma das conquistas duradouras da Revolucao osurgt-mentode uma mentalidade nova.A consciencia revolucionaria que surgiu na epoca e 0 ber-~o de uma nova mentalidade, que hoje e ~ forca-motriz, naorevolucionaria, dos processos de democratizacao, Uma cons-ciencia hist6rica que rompe com 0 tradicionalismo das conti-nuidades aceitas de modo cego e fatalistico, uma compreen-sao da pratica politica sob 0 signo da autodetermi~a~ao e ~aauto-realizacao e, finalmente, a confianca em urn discurso pu-blico racional capaz de legitimar a domina~ao politica, fa-Rev. TB, Rio deJaneiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989 7

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    tude; ate mesmo os partidos socialistas se resignaram, r~nun-ciando aos objetivos mais ambiciosos de uma dernocratizacaoefetiva da sociedade. Nessas sociedades a maioria vive comoantes as custas da rnarginalizacao de grandes contingentes dapopulacao, pauperizados e excluidos da co~unica~a? cultu-ral. Por outro lado, essas mesmas sociedades industriais passa-ram, depois da Segunda Guerra Mundial, a adotar politicasde bern-estar social, que podem ser compreendidas c.om.oumaauto-correcao e urn aprendizado por parte .do capltahsm?~Eu tenderia a compreender 0 desenvolvimento na. V.maoSovietica e os parses do Leste como uma etapa do soclahsII?oburocratico em que tal aprendizado, ou seja, u.m cO~pro~IS-so equivalente ao realizado nas sociedades ocidentais, aindaesta por acontecer. .Quanto as ocorrencias recentes na China, nao ouso fazernenhum julgamento.B.F.: Em que medida a sua teoria da afao comunicativa rueprocure enfatizar a razao comun~cativa, o.dialogo eman.czpa-torio um discurso teorico e prdtico questionador do exzsten-te, p~de ser encarada como uma versao moderna dos ideaisda flustrafao que desembocaram na Revolufao Francesa, oumais especificamente do fluminismo kantiano que insiste naemancipafao e autonomia do sujeito (sapere aude!)?J.H.: A teoria da a\ao comunicativa e mais ~pla que umateoria da moral. Ela e diferente da filosofia pranca como a co-nhecemos de Arist6teles e de Kant. Ela nao fundamenta sim-plesmente normas morais ou ideais politicos. Ela tern, adicio-nalmente, urn sentido descritivo, identificando na pr6pria pra-tica cotidiana a voz persistente da r~zao com~nicat~va, mesmoem situacoes em que essa esta subjugada, distorcida e desfi-gurada. Insisto nos potenciais de racionalidade. ~a A ' '~bens-welt" (do mundo vivido), em que as fontes da resistencia con-seguem regenerar-se, mesmo sob condicoes desesperadoras: I~sonada tem a ver com otimismo. 0 pessimist a ainda se distin-gue do cfnico pelo fato de encarar as cois~ de forma estereos-c6pica. ou seja n a o somente a partJ.!_ de urn. lado_Rev. TB , Rio de Janeiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989 9

    zem parte dessa mentalidade. Sao as caracteristicas de um con-ceito intra-mundane do politico, que em nada perdeu de suaatualidade.B.F.: No percurso da Revolufao Francesa delinearam-se pelomenos duas vertentes: a encarnada por Mirabeau, que insistiana Declarafao dos Direitos Humanos, enquanto expressso ma_ispura dos ideais iluministas; e a outra, representada pelos Ja-cobinos (Robespierre), os "sans-culottes" e osproto-socialistas(como Babeuf), a quallutava pela concretizacso dos direitossociais e da igualdade economic. Esta ultima parece ter pre-dominado no seculo xx, onde assumiu, nos 'paises do Lestee nas revolufoes do TerceiroMundo, formas autontands. A ou-tra corrente, depois de se ter concretizado parcialmente nasdemocracias ocidentais parecia teresgotado, neste seculo, seupotencial dinamico. .Seria possioel, em sua opiniao, interpre tar os movzmentospoliticos na Polonia (Soltdariedade), na Uniso Souietica (Glas-nost) ou ate mesmo, recentemente, na.China (are~oltf! estu-dantil na P r a o a dd Paz) como uma reatzvafao da pnmetra uer-tente, baseada na Declarafao dos Direitos Humanos?J.H.: Na medida em que a Revolucao Francesa se inspirou e~Rousseau, ela se distinguiu da americana na questao dos di-reitos humanos. No caso frances, esses direitos nao eram ante-postos, como filtros, a pratica autonorna da legislacao, mas d~-corriam naturalrnente dessa Iegislacao. Para Rousseau, os di-reitos humanos constituern as estruturas e os pre-requisitos dopr6prio processo dernocratico de formacao das vontades.Cornpreendendo-os assim, evita-se a leitura seletiva do Iibe-ralismo. Desaparece, assim, a contradicao entre os direitos hu-manos, compreendidos a partir da 6tica individualista, e osobjetivos da ernancipacao social. Por isso eu nao concordariacom a dualidade pressuposta em sua pergunta.'Iambem nas sociedades industriais ocidentais os direitoshumanos ainda nao foram concretizados em toda sua pleni-

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    ja era esse 0 sentido de uma "Dialetica do Iluminisrno' queprocura desvendar, de Hegel a Adorno, 0processo da moder-nizacao em toda a sua ambivalencia e em suas duas dimen-soes: como urn aumento progressivo dos potenciais de liber-dade, os quais, no entanto pod em reverter-se em forcasdestruidoras.

    quanto a sua conduta foram marginalizadas ate a revolt aestudantil.

    B.F.: Heidegger foifestejado como grande fi/osofo alemao den-tro e fora das fronteiras da Alemanha mesmo depots da Se-gunda GuerraMundial, apesar de sua atitude inequioocamente"pro-nezissa". A filosojia modema epos-modema da Franfa(mas tambem do Brasil) foi dectsivamente influenciada poressa recepfao fovoravel de Heid eg ge r p or parte de S artre e a, 'esquerda pos-estruturalista': 0Senhor, no entanto, foz par-te daqueles criticos implacavets, que de sde os anos 50 ja de-nunciavam a "genialidade ambfgua" do autor de Sein undZeit. Em se u e nsa io so bre Heidegger no Discurso filosofico daModemit/ade (1985) 0Senhor se mostra "imtado" com a re-cusa de Heidegger de admitt" 0 seu equiooco em relafao aopertodo nazista. Como 0Senbor explica 0foto de que 0 livrode Far ias sobre Heidegger (1987) atuo como "uma bomba':desencadeando uma controversia sparentemente nova?

    B.F.: 0 /ivro de Fariassublinhou mais uma vez a relafao exis-tente entre a obrafilosofica de urn grande pensador e suas con-vicfoes politicas (incluindo as afoes que de/as decorrem). 0Senbor obviamente pertence aqueles pensadores que nao es-tao dispostos a descuitrar a atitude politica de Heidegger comsua obrajilosofica, postu/ando uma ajinidade e/etiva entre am-bas. Como, no entanto, 0Senbor explicaria 0foto de que au-tores criticos como Sartre, Marcuse, Hannah Arendt e ou tr os ,os quais decldidamente se opuseram ao nazismo, se d_eixaraminfluenciar pela obra de Heidegger; apesar de sua atltude fa-voravel ao nazismo?

    J.H.: Acredito que todo esse teatro tenha uma causa relativa-mente trivial: depois da Guerra, Heidegger foi apropriado deforma "a-historica" tanto na Franca quanto nos Estados Uni-dos, assumindo aqui uma imagem por assim dizer "desnazi-ficada", como se entre Sein und Zeit (1927) e a Carta sobreo Humanismo (1946) nada tivesse acontecido. Em verdade, essacarta tinha como objetivo apagar os vesngios politicos do pro-cesso genetico no qual se originou a filosofia tardia (Spatphi-losophie) de Heidegger. Ao que tudo indica, de alcancou es-se objetivo no exterior. Mas na Alemanha Federal conhecia-seperfeitamente 0 papel desempenhado porHeidegger durante 0nazismo, nao havia como disfarca-lo, Noentanto, tambern entre nos, uma gera~ao influente de disci-pulos heideggerianos conseguiu assegurar, ate meados dos a~os60 , a influencia academics do rnestre; as duvidas politicas

    J.H.: Nos iiltimos tempos foram publicados tantos textos dosanos 30 que se torna facil acompanhar os diferentes passos da,'ideologizacao' ,(Verweltanschaulichung) do pensarnentodeHeidegger a p~rtir de 1929. T:ntei demo~strar e~ !llmha ~m-troducao a edicao alerna do livro de ~af1asque .e Imp~sslvelcompreender a genese da filosofia tardia (S~atphdosophle) ~eHeidegger se nao se leva em conta 0esf~r~omcessante do filo-sofo para reagir a s novas tendencias politicas e adaptar-se a.elas.Isso nao afeta a importancia inovadora de Sein und Zeit, daqual em momenta algum duvidei;. .o pensamento de Heidegger so foi contarninado em suasubstancia nos anos 30, periodo em que elefoi arrastado peloredemoinho dos diagnosticos neoconservadores de seu tempo.Considerando-se 0 peso e 0 potencial inovador inacreditaveisde Sein und Zeit, nao e de admirar que estudantes como Han-nah Arendt e Herbert Marcuse, emesmo urn intelectual taoa-politico como 0 era Sarrre naquela ocasiao, isto e, antes de1933, necessariamenre se sentissem atraidos por essepensamento. ..(Entre parenteses, ate eu fui, como jovem estudante do pos-guerra, temporariamente heideggeriano, ate ler, em 1953 a "In-troducao a Metafrsica"). .

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    Essainfluencia marcante nao cegou Marcuse, como demons-tram as suas cartas recenternente publicadas. Marcuse conde-nou 0 comportamento de Heidegger com uma clareza filos6-fica.e uma a.gudeza politica inexcediveis, considerando a Spat-p hilosop bie urn verdadeiro "nonsense' '. 'Tarn bernH~nnah Arendt evitou tomar partido em favor de Heideggerate a m~rte de se~ mestre Karl] aspers. Suas ligacoes pessoaiscom Helde~ger tinharn contudo raizes tao profundas que alevaram, apos a morte de] aspers, a fazer uma tentativa de se-p/arar0~16sofo Heidegger do homem, politicarnente irrespon-savel. Nos pertencemos a outra geracao, e nao temos nenhu-rna necessidade de imitar essas acrobacias.

    lizacao da situacao. Sempre tivemos na Alemanha Federal urnpotencial de 10 a 15% de eleitores autoritarios, absorvidos aternuito recenternente pelos partidos conservadores. Por essa so-lucao pagamos urn preco muito alto. Gracas a capacidade deintegracao desses partidos eles passaram a ser envenenados pordentro. As tendencias fascist6ides, ate entao registradas, naoeram encontradas junto a uma "lunatic fringe", mas na aladireita dos partidos cristaos estabelecidos, envolvendo inclusi-ve suas liderancas. Agora essa mentalidade, liberada de suasconsideracoes pragmaticas, torna-se pela primeira vez publi-camente palpavel , Isso tern uma razao muito simples.Compreendendo-se 0 atual Presidente, Richard von Wizsac-ker, como urn simbolo de integracao do centro (Mitte), perce be-se claramente que 0foeo da integracao politica deslocou-se paraa esquerda. Ha pouco tempo arras, ate 0 inicio do governoKohl, a forca integradora do sistema politico nao ia alern doslimites da centro-esquerda do partido social demoerata, de mo-do que a esquerda da Alemanha Federal nunca se sentia efeti-vamente representada. Agora a linha divis6ria passa pela di-reita da CDU e CSU, fato que se deve a rnudanca da politicada lideranca da CDU, que depois do escandalo deBitburg havia compreendido que as geracoes mais jovens so-mente pod em ser conquistadas ou mantidas solidarias com urnperfil mais liberal do partido.

    B.F.:/ 0Senh~r p_articzP?u, enquanto intelectual mas fora desua area academ~ca habztual (' 'nebenberuflich' ,), de um de-bate atual e deltcado, a chamada "polemica dos historiado-res'; tambem conhecido como "a controuersia habermasiana' :Neste debate 0 Senhor se voltou contra aqueles historiadores(mas tambem politicos de Bonn e da Baviera) que querem poru~.J:0nto final no recente passado nazista alemao. Que pos-szbtlzdades 0 Senhor ve hoje de uma superafao real e conscientedo passado, sem escamotear os aspectos dolorosos da bistoriarecente, levando-se em conta os resultados eleitorais em Ber-lim e Frankfurt (onde os "republicanos", partido obviamen-te neonazista, obtiveram 8% dos votos, assegurando a sua pre-senca nas Camaras de Vereadores locais)?

    Essa questso nao deixa de ter certa atualidade no Brasil.o,!de as .n::t~ciasda prisao do ex-nazista wagner (e seu poste~nor suicidio), da descoberta do (suposto) cadaver deMen~ele ou do lOO.~a_niversanode Hitler deram margem amant~staf6es 'Ie Optntiio ~voraveis a tese do "ponte final';pro~urando ate mesmo salientar os aspectos ''fovoraveis'' doregime nacionalsocialista.

    Nestes termos, 0 conflito dos historiadores pode ter rela-~ao com 0 exito dos "republicanos", No dia 10 de novembrodo ana passado, por ocasiao do cinquentenario dos pogromsde 1938, 0 comportamento simb6lico de nossa elite politicamostrou que agora tambern a democracia crista (CDU) aban-donou a estrategia do recalque hist6rico, praticada a partir deAdenauer ate recentemente. Depois dessa reviravolta, tornou-secada vez mais dificil controlar as forcas da ala direita. Atemes-mo 0 jornal de centro "Frankfurter Allgemeine Zeitung"manifesta-se recenternente em tons radicais que tornam maistransparentes os potenciais autoritarios ja antes existentes. As-sim pelo menos, sabemos com quem estamos lidando.

    J.H.: ~ exi~o dos "republicanos" que nas pr6ximas eleicoesfederais multo provavelmente conseguirao entrar no Bundes-tag (0 Parlamento), precisa ser encarado com sobriedade. Esseexito tam bern pode ser interpretado como uma certa norma-12 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989 13

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    J.H.: Como em todas as rnodas intelcctuais mais serias, e pre-ciso distinguir os aspectos que constituern simples reacoes da-queles que abrem novos horizontes. Esse tam bern e 0caso dopos-rnodernismo, .Pelo que tudo indica, ha uma certa correspondencia entreos escritos mais ou menos esorericos de intelectuais comoFoucault e Derrida, os de maior substancia na area, e a atmos-fera difusa da opiniao publica. Essa atmosfera encontra umarepercussao cultural no movimento pos-estruturalista, sendode dificil analise. Em parses como a Alemanha Federal e osEstados Unidos, tal atmosfera talvez seja sintomatica para 0que se denominou 0 fim do periodo apes-guerra. Este perlo-do foi determinado economicamente por uma conjuntura deprosperidade e ideologicarnenre pela predominancia de con-cepcoes tecnocraticas. 0 climacaracterizava-se pela confiancana viabilidade e no potencial evolutivo de processos sociais li-neares, pela crenca na ciencia, pelo modernismo na arte, porcorrentes analiticas na filosofia, pelo "international style" naarquitetura. Em suma, predominavam 0 racionalismo, a so-briedade, a abstracao e a autoconfianca. No inicio dos anos70, ja por razoes econornicas, esse c1ima tinha sido superado.A esquerda decepcionou-se, adicionalmenre, com 0 fracassoda revolta estudantil, com as experiencias que apontavam pa-ra os Iirnites do reformismo administrativo e para os efeitosdisfuncionais dos programas da Socialdemocracia. Aparente-mente Max Weber ficava com a razao, desmentindo Marx, jaque agora as forcas autonomas da burocracia tambem se fa-ziam sentir e nao somente asforcas instrumentais do mercado.E claro que essas pinceladas nao substituem uma verda-deira analise; e1asservem apenas para circunscrever 0contextoque explica essa rnudanca de Marx para Nietzsche: a polernicacontra os "rnestres pensadores' " a valorizacao da narrativa em. lugar da teoria, a desconfianca contra 0universalismo, a revol-ta da periferia contra 0 centro, etc, etc.Certos impulsos de esquerda bern como velhos ressenti-rnentos anti-rnetafisicos contra os traces autoritarios do idea-lismo platonico sao, sem duvida, absorvidos nesses estereoti-pos da p6s-modernidade. Por isso nao nos surpreende que a

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    BF.: 0 Senhor encontra-se nas vesperas de uma viagem aoBra-stl que, entre nos, vem sendo esperada com grande expectati-ua. 0que pensa 0Senhor sobre 0Brasil? Que lugar eie ocupano contexto de sua teoria daevolufao? Quais asperspectivasda America Latina na virada do'seculo?

    J.H.: Venho pela primeira vez a America do SuI. 'Iambem des-conheco as condicoes do Brasil. Antecipo com grande curiosi-dade essa viagem. S6 Iarnento ter de dar conferencias e pales-tras, 0 que pode eriar uma falsa impressao, Em verdade, ve-nho para aprender. Nao me sinto de modo algum em condi-~oes de dar conselhos in loco a quem quer que seja.B.F.: No Brasil, a discussao sabre a moderniiade e pos-modernidade /oi alimentada por tres/ontes: afrancesa (de Fou-cault ate Deleuze), a americana (de Bell a Berman) e jinal-mente a alema (de Sloterdijk a Kemper). 0Senhor conheceprofundamente todos esses debates, defendendo a tese de quenao se deve reagir aspatoiogias da modernidade com uma re-jetfaO integral da modernidade enquanto tal. Ao contrdno,o Senbor insistiu na necessidade de mterpretar a modernida-de como um processo cujos potenciais de racionalidade aindaniio tiveram oportunidade de realizar-se integralmente. Em vezde colaborar com a "destrUtfao da razao" seria mais constru-tivo refletir as dimensoes ainda nao reaiizadas do ideal da ra-zso, abandonar 0 beco sem saida da jilosojia da conscienciae avanfar para uma raziio comunicatioa mediante a qual os"nicbos da razao" podenam ser melhor explorados e amplta-dos. EssapOstfao permitiu esclarecer alguns aspectos da dis-cussso sabre a pos-modernidade, travada aqui no Brasil.Seria 1[6tIO,em sua opiniao, banalizar a jilosojia pos-moderna como um simples' 'mal-estar da moderntdade'; ven-do nela uma mera [aceta da hosttlidade contra 0mundo mo-demo que sempre acompanhou a propna modernidade, ouencerra ela riscos novos e mats graves?

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    filosofia antiplatonica de Heidegger e Wittgenstein encontremnovamente grande ressonancia. A tomada de partido em fa-vor do nao-integrado, do desviante, do periferico, do exclui-do, em favor do particular, do iinico, do concreto, do multi-plo, do contextual, e assim por diante, pode estar refletindoo movimento habitual de urn pendulo intelectual ou urn mo-mento da dialetica do movimento intelectual.Entre -os imitadores, no andar de baixo, por assim dizer,o p6s-modernismo se esgota nesses reflexos. Mas este nao e 0caso dos pensadores originais. Os seus escritos precisam ser le-vados a serio. Neles ha algo mais que 0 habitual "rnal-estarda modernidade". Foucault e Derrida concretizam 0 distan-ciamento de uma autocompreensao da modernidade que con-tinuava dependendo dos conceitos basicos da filosofia do su-jeito. 0 fato de que estejamos cada vez mais longe das origensda modernidade, no seculo 18, nao significa que possamosdesprender-nos dos seus conteiidos normativos. Se0horizon-te da modernidade se desloca, isso ainda nao quer dizer queestejamos fora dele. A critica da modernidade vivedos padr6esdessa mesma modernidade. Do ponto de vista filos6fico os pen-sadores produtivos do p6s-estruturalismo, aosquais eu acrescentaria, nos Estados Unidos, 0 meu amigoRichard Rorty, sao interessantes. Eles radicalizam a "destrans-cendentalizacao' de uma razao equivocadamente centrada nosujeito, ja iniciada por Dilthey e os pragmatistas, 0 que .per-mite estudar as consequencias aporeticas de urn certo antipla-tonismo, em condicoes de laborat6rio. Ioi 0que tentei demons-trar no Discurso Pilosofico da Modemidade, urn livro que jase encontra traduzido para 0 espanhol e portugues.

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    "Platzanuieiser' das ciencias ou dejuiz sobre a ciencia, a mo-ral e a arte. Os tradutores espanboi: e brasileiros tiveram umaceria dificuldade com esse conceito, introduzindo 0 termo de"vigiiante' (para 0 Platzhalter) que a meu ver nao traduz asua intencao. 0Senhor podena caractenzar um pouco melhoressepapel dafilosofia (especialmente depots de sua publica-fao, em 1988, de Nachmetaphysisches Denken, 0 pensamen-to pos-metafisico, ainda nao traduzido para essaslinguas)? Co-mo a sua tese da "guardia do lugar' pode ser relacionada coma tese defendida na Teoriada afao cumunicativa (1981) de quea soci oi og ia s e ri a a herdeira natural da filosofia?J.H.: Em Conhecimento e Interesse (de 1968) eu efetivamen-te manifestei a tendencia de dissolver a substancia do pensa-rnento filos6fico na teoria da sociedade. Na Teoria da afao co-municativa (de 1982) essa ja nao era mais a minha posicao,como fica evidente no ultimo capitulo. Contudo, defendo aposicao de que a filosofia nao deveria esquivar-se a umacertadivisao do trabalho, no campo que the e pr6prio (ou seja noestudo das condicoes gerais do conhecimento, da linguageme da a~ao) com certas ciencias empiricas que se ocupam, deoutro angulo, da mesma problematica da racionalidade, co-mo e 0 caso de Piaget, Max Weber, Freud ou Chomsky.Com a teoria da racionalizacao da sociedade, de MaxWeber, que teve, atravesde Lukacs, uma certa influencia so-bre 0marxismo ocidental, a "racionalidade" transforma -se emurn conceito chave da teoria da sociedade. Esseexemplo ja mos-tra que as disciplinas filos6ficas nao tern condicoes de mono-polizar 0 tema da razao. Os esforcos de delimitacao !lao dei-xam de ser urn tanto comicos. Por essa razao defendi, na pa-lestra que voce cita, a tese da dupla funcao da filosofia como,'Platzbalter' e interprete.No contexto do sistema das ciencias a filosofia precisaafirmar-se lado a lado e.em cooperacao com aquelas cienciasinteressadas em questoes universalistas (como ~or exemplo aquestao da formacao do julzo,. da aquisicao da h.~gu~gem, ~acornpetencia para a~ao). Ocasionalrnente essas crencias se dis-sociam, como disciplinas especializadas, dessa liga~ao com aRev.TB, Rio deJaneiro, 98: 5/21, jul.-set., 1989 17

    B.F.: Em sua paiestra para a Associacao Internacional deHegel (de Junho 1981), reproduzida em Consciencia Moral eAfao Comunicativa (Tempo Brasileiro 1989),0 Senhor fala dafilosofia como "Platzhalter"* para as teorias empincas comaspirafoes de universalidade, negando-Ihe 0 papel de* Habermas faz na referida palestra urn jogo de palavras entre "Platzhalrer" e"Platzanweiser", sendo Platz = lugar, Halter = guardiao e Anweiser = aqueleque indica (0 lugar).

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    filosofia. Retrospectivamente percebe-se que a filosofia desern-penhou urn papel de "guardia do .lugar' '. N~ ~uturo, ela con-tinuara exercendo esse papel, se rninha suposicao se confirm~rde que as ciencias humanas precisam tornar-se cada vez rnaisfilosoficas, em vez de ado t ar falsos modelos baseados naciencia natural. Esse papel cooperativo da filosofia no con~ex-todo sistema cientffico a protege, por outro lado, das aspira-~oes fundamentalistas na linha de Kant ou de aspira~~es tota-Iitarias, defendidas, no final, por Hegel. A filosofia nao P?demais entrar em cena como "figura chave" ("Schliisselattttii-den' ') segundo 0 exprimiu A~nold Gehlen, como se ela co- ,nhecesse as solucoes para os enigmas do mundo. Mas esse fatonab a dispensa de seu papel de ir:lterprete com r ela ca o a o ~~n-do vivido (Lebenswelt). Ela continua ~ manter u~a. relacao u~-rima com 0senso comum, esta especialrnente proxima daqui-10 que intuitivamente sabemos de anternao, subvettendo,. aomesmo tempo, 0 cham~do "born .senso" ..~:tou "co~venC1dode que os filosofos devenam assumu, na opmla,o p ub lica ~ p a-pel de intelectuais. Neste .ca~o,porem, os filosofo: precrsampartilhar com outros especialistas, a tarefa da reflexa? e do es-clarecimento (Aufklarung) de nossa cultura sobre SI mesma.B.F.: Em 1983 duaspublieayoes importantes abordaram a ques-tao da moralidade, numa otica kantiana. Trata-se!p~r um la-do de seu livro Consciencia moral e ariio comumcattsa e, porodtro do trabalho de Kohlberg e eolaboradores Moral Stages:A cu;'ent formulation and a response to critics. A argumen-tariio de Kohlberg se calca napsicogenese; seus trabalho~ J;~o-curam demonstrar empiricament a eonstrufiio dos enteno!do julgamento na crianca. No caso do "imperativo categori-co" niio se trata de algo inato, mas do resultado d~ um~ eons-trufiio por etapas, eujo ultimo patama: po~e ser.zdentijieadocom a razao prdtica de Kant. A sua itzea discursiua, ProfessorHab.cr?1UlJesta ealeada na teoria da afiio. A soluriio de umdzJema m~ral niio epossivel individual, u. mo~ologiea~e.n-te, mas pressupoe 0 diiilogo, ou me/hor um discurso prattcopublico, capaz dejustifiear a OPfiio adotada. Apesar do esfo~-fO declarado de ambas as partes, as duas abordagens nao

    operam com um denominador eomum. Na tentativa de inte-grar os argumentos do outro, ()eOTTeem verdade um desen-eontro, ja que a diseussiio se apoia em argumentos, em gran-de parte superados, do interlocutor respective.Nessa argumentayiio um apar:enteparadoxo fica, a meu uer ;sem soluriio: A itiea diseursiva so_mentepode concretizar-seenquanto "discurso pratieo" quando todos ospartieipantesda sit1!ariiodialogiea tiverem atingido 0 nivel 6 da escala damoralidade proposta por Kohlberg. 0atingimento desse ni-vel pressupoe, por sua uez, a existeneia da pratiea diseursivanas situafoes dialogietlS. As. ultimas publieafoes de Kohlberg(The measurement of Moral Judgment, 1987/88) niio forne-cem, em minha opiniiio, uma SOIUfiioao problema. 0Senhorpodena esclarecer essa questiio?}.H.: Nao vejo tanta diferenca entre minha posicao e a deKohlberg. Foi ele quem fez a jun~ao das duas cornpetencias:a do julgarnenro moral e ada perspectiva social-cogniriva (deSelman), em outras palavras, a cornpetencia para assumir a pers-pectiva do outro, em urn contexto interacional. Eu me limiteia aprofundar es sas ques toes , que rernontam a George HerbertMead. Voce tern razaoquando diz que no decorrer de nossaforma~ao precisamos adquirir a cornpetencia para os julgamen-tos morais pos-convencionais, caso que ira rnos part ic ipa r de ar -gumentacoes morais. Ao faze-lo precisamos admitir(o que emgeral nao corresponde aos fatos) que nos encontramos em umasitua~ao comunicativa, na qual queremos eonveneer urn ou-tro ou na qual nos deixaremos convencer; ou seja, na qual sovale a forca do melhor argumento. Aconrece que as condicoesfactuais muitas vezes nos.impedem de resolver tais discussoescom todos os participantes ou ate mesmo todos os envolvidos.Mas mesmo quando substituirnos essediscurso efetivo por umareflexao individual sobre as caracterfsticas de tal discurso e so-bre os argurnentos 'que nele seriarn urilizados,somos compelidos a colocar-nos, na rnedida do posslvel, na si-(Ua~ao, na forma de vida e na consrelacao de interesses de to-das as outras pessoas, por mais estranhas que elas nos sejam.

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    Mesmo quando urn discur~ ~ exercitado in foroJn_terno, 0 pro-cedimento discursivo se distingue de urn pnnClplO moral quecomo 0 imperativo categorico esta voltado para uma aplicacaornonologica.B.F.: Em Mo ra /iliJ t u nd Sitt/ichkeit (1986) 0 S en bo r e nc er rao se u artigo com a constatafiio de que a te oria m ora l c~nte m-p ortm ea , e m e sp ecia i a su a e tica d isc ursiv a, te m c on dtfiio . d efu ndam entar e e xplicar 0ponto de vista m oral, d~ .e luctdaro ceme de nossas intuifoes morais e de refutar 0cettasmo do !vaiores. A teoria m oral porem e impotente fa ce lis quatro bi-potecas pol it ic o-mo ra is qu e p e sam s obre nos sa exi !te '!c ta: a fo-m e, a to rtu ra ; 0 desempre~o, 0 r e a" !1amen to a tom tc o ..1~uve t; um a contribuifiio m ator pode na se r dada pe las ctenctasso cia is e peia bisttiria. Como?J.H.: As teorias morais kantianas, inclusive a etica discurs~va,tornam-se abstratas, num mau sentido, justificando as cri~lcasdos hegelianos e neoaristotelicos, se esquecermos .duas C~lSas.Em primeiro lugar, a aplicafiio de no~mas validas a situa-~5es isoladas exige uma outra forma de discursos e pontos devista que a fundamenttJfiio dessas normas. Enquanto esta ocorrena otica do que todos poderiam querer, a situacao c~:mcret.ada aplicacao das normas exige algo difer~nte de t~l universali-zacao, Os discursos voltados para a ~plIc.a5a? e:C1ge~que sepondere qual das normas prima facie utilizaveis e Ja pressu-postas como validas se adequa melhor a situacao, de modo tantoquanto possivel exaustivo e descrita em todos os seus .tra~~snorrnativarnente relevantes. Adequacao e nao generahza~aovern a ser 0 criterio decisivo, atraves do qual a razao praticase torna efetiva.Em segundo lugar, e isto ainda e mais important~, e pre-ciso levar em conta a reserva decorrente de uma prerrussa sema qual as normas nao poderiam se,r~ceitas com.o~lidas. A ob-servancia de uma norma moral valIda que resisnu ao teste dageneralizacao so pode ser exigida de pessoas que _porsu~ vezpodem ter a expectativa de que essa norma tam be m se ra e fe -

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    tiuamente seguida por todas as outras pessoas. No mundo, co-mo nos 0 conhecemos, muitas vezes isso nao ocorre. Por essarazao tornam-se necessarias as normas juridicas e a introducaodo poder politico, que podein sob coacao assegurar a realiza-~ao de urn ato considerado legftimo, 0 comportamento obti-do por essas duas vias so e legitirno se por sua vez 0 direitoe as instituicoes politicas atendern aos criterios de legitirnida-de. Deus sabe que isso ainda e mais raro.Foi neste contexto que falei das grandes hipotecas moraise politicas, a s quais voce se refere. A luz dessa constelacao, queparece ser especialmente drastica na America Latina, nao bas-ta uma consciencia moral abstrata. 'Iornam-se necessarias ana-lises emplricas e avaliacoes normativas que abranjam as insti-tuicoes polfticas, as normas juridicas e politicas isoladas. So-mente em relacao a urn Estado que reivindica legitimidade,pode surgir a questao de se e quando as injusticas evidentesdas relacoes existentes justificarn a desobediencia civil ou a re-sistencia, A olho nu a moral e impotente diante da sequenciade acoes entrelacadas de forma an6nima e obviarnente intrans-parente. Ate mesmo a substancia moral do direito e da politi-ca, que mediatiza as interacoes face a face ja nao pode rnaisser avaliada, neste mundo cornplexo, sem microscopic, sernda-dos cientificamente elaborados, sem analises minuciosas dasociedade.B.F.: Muito o bn ga da p eia e ntre uista ;

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    E TIC A IL U M IN IS TA EE TIC A D IS C UR SIV A

    Sergio Paulo RouanetCop e n hague , julho de 1989

    Ln r ro du c a oPretendo explorar, nesre artigo, a possibilidade de redefi-nir 0 pensamento moral iluminista a luz da teoria etica deHabermas.Comecarei recapitulando essa teoria. Peco desculpas pelaaridez do resumo, mas espero ser mais legfvel na sequencia daexposicao.Muito esquematicamente, a moral, para Habermas, tem

    suas raizes na Lebenswelt, no mundo vivido. 0 mundo vividoe 0 lugar das relacoes sociais espontaneas, das certezas pre-reflexivas, dos vinculos que nunc a foram postos em duvida.Ele tem tres componentes estruturais: cultura, sociedade e per-sonalidade. A cultura e 0 estoque de saber da comunidade,que contern os conteiidos sernanticos da tradicao, onde os in-dividuos se abastecern dos modelos de interpretacao necessa-rios ao convivio social. A sociedade, strictu sensu, e compostados ordenamentos legitimos pelos quais os membros da (0-munidade regulam suas solidariedades. A personalidade e umRev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 23

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    conjunro de cornpetencias que qualificam urn individuo paraparticipar da vida social.As relacoes sociais que se dao no mundo vivido assurnem,caracteristicamente, a forma da a~ao comunicativa: urn pro-cesso interativo, lingiiisticamente mediatizado, pelo qual osindividuos coordenam seus projetos de a~ao e organizam suasl igacoes r eciprocas .Essa coordenacao e possivel gracas a dupla estrutura da co-rnunicacao lingiifstica. Ela perrnite, por urn lado, uma cornu-nicacao entre dois ou mais atores sobre pessoas, coisas e pro-cessos, e estabelece, por outro lado, 0 tipo de intersubjetivi-dade em cujo contexte se desdobramas coisas ditas. A lingua-gem contern sentencas com urn determinado conteudo des-critivo e prescritivo,e contern as condi~ges de aplica~ao extra-Iinguistica dessas sentencas, que modularn a cornpreensao ede certo modo condicionam 0 cornportamento dos atores. Amesma sentenca p, por exemplo, tern urn sentido pragmatico(extra-Iinguistico) distinto, conforme seja verbalizada como afir-macae, como ordem, como promessa, ou como crenca, Enquan-to a lingufstica limita-se a estudar a sentenca p, uma teoriapragrnatica da cornunicacao a estuda enquanto enunciado, is-to e , em sua conexao com 0 contexto concreto em que ela eformulada. Na essencia, e a teoria dos atos lingiifsticos, deAustin. 0 ato Iinguistico e aquele ato gracas ao qual a senten-ca se transforma em enunciado. Ele consegue efetuaressa me-tamorfose gracas a Sua propria estrutura, que inclui uma par-te performativa e uma parte proposicional. No enunciado "pro-meto que,," a primeira parte constitui 0elemento performa-

    tivo, e 0 segundo 0 conteudo proposicional. A parte perfor-mativa esta sempre presente em qualquer tipo de comunica-~ao Iinguiscica, mesmo implicitamente. 0to lingiifstico e ,literalmente urn ato: a parte performativa permite ao locutorexecutar, ao mesmo tempo que fala, a a~ao a que se refere 0elemento performativo. No enunciado "prometo que p," 0locutor ja esta ao mesmo tempo realizando a a~ao a que serefere a sentenca, isto e , fazendo a promessa. 0 locutor e aomesmo tempo urn ator, 0 que permite a transitividade prag-matica do enunciado, simultaneamente linguagem e a~ao.

    Gracas ao aro lingufstico, a fala e ao mesmo tempo a~ao, e arelacao Iinguistica transforma-se em a~ao comunicativa.o papel dos uerbos performativos se torna assim estrategi-co, porque sao eles, mesmo quando so aparecem implicitamen-te, que geram 0 vinculo comunicativo e definem sua nature-za. Essa natureza sera diferente conforme os verbos performa-tivos sejam (a) cons ta ti vos - afirmar, descrever, narrar, expli-car - isto e , os que exprimem 0contetido das proposicoes re-lativas aos fatos; (b) r eg ul at io os - comandar, ordenar, proi-bir - isto e , os que explicitam por meio de normas 0 sentidoda relacao entre osinterlocutores; ou (c) r e pr e se n ta ti oo s - ad-mitir, confessar, negar - isto e , aqueles pelos quais urn inter-locutor se auto-representa diante do outro, manifestando suasintencoes e vivencias subjetivas.A caracteristica desses verbos performativos e que eles en-volvem, necessariamente, pretensoes de val idade. Num enun-ciado constativo, 0 locutor esta alegando, implicitamente, quesuas afirmacoes sobre fatos e acontecimentos sao verdadeiras;num enunciado regulativo, que a norma pressuposta pelo atoIirrguistico e justa; num enunciado representative, que a ex-pressao dos seus sentimentos e veraz.Na cornunicacao normal, as tres pretensoes de validade(Geltungsansprueche) se entrelacam, 0 processo comunicati-vo se vincula sempre a tres "mundos" - 0mundo objetivodas coisas, com relacao ao qual cabem pretensoes de verdade(Wahrheitsansprueche); 0mundo social das normas e institui-~oes, com relacao ao qual sao invocadas pretensoes de justica(Richtigkeitsansprueche); e 0mundo subjetivo das vivenciase sentirnentos, com relacao ao qual se alegam pretensoes deveracidade (Wahrhaf tigke i tsansprueche) .A coordenacao comunicativa entre os interlocutores, esta-belecida gracas a dupla estrutura da linguagem, se da atravesda expectativa de que se necessario cada interlocutor poderajustificar essaspretensoes de validade por meio de provas e ar-gumentos. Na a~ao comunicativa habitual, as pretensoes devalidade, sempre pressupostas, nao sao contestadas, ou nao 0sao de modo fundamental. Em certos momentos, entretanto,elas sao postas em diivida. No caso das pretensoes de veraci-

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    dade, a confianca so podera ser restabelecida na propria co-rnunicacao normal, quando 0 ator provar, pela consistencia en-tre suas palavras e0eu cornportamento, que nao estava men-tindo. A situacao e outra no caso da validade das proposicoesque se pretendem verdadeiras ou das normas que se preten-dem justas. Sua problematizacao requer 0 abandono do con-texto interativo espontaneo e 0 ingresso num tipo de comuni-ca~ao sui-generis, 0 argumentative. 0 ator abandona 0mun-do vivido, e penetra no discurso.As pretens6es de validade correspondentes a verdade dasproposicoes sao problematizadas nos discursos teoricos, e ascorrespondentes a justica das normas, nos discursos praticos.Nos dois casos, os participantes se distanciam do rnundo vivi-do, e assumem uma atitude crftico-hipotetica de investigacaoimparcial do que antes era experimentado como nao-problematico, Nos dois casos, a argumentacao discursiva terncomo ponto de partida a suspensao radical da crenca na vali-dade do que havia sido afirmado. Ela e posta entre parente-ses, ate que se concIua, pelo consenso, 0processo de discussaodiscursiva, que pode levar a confirmacao (mas tam bern a ne-ga~ao) dos fatos apresentados como verdadeiros, e a justifica-~ao (mas tambem a refutacao) das normas apresentadas comojustas.Nos dois casos, impoem-se principios mediadores, queHabermas chama de Brueckenpn'nzipien, principios-pontes,que permitem 0 transite do particular para 0 geral. 0 princi-pio mediador e a induyao, no caso do discurso teorico, e a uni-versa/izllfiio, no caso do discurso pratico, Os fates singularesque 00 marco de urn sistema teorico geralmente aceito naosao suficientes para justificar essa passagem, nao servem paravalidar hipoteses cientfficas. Do mesmo modo, interesses nao-universalizaveis nao podem servir de base para a justificacaodas normas.E esse 0 fundamento da etica discursiva. Ela supoe que asnormas sao racionalmente validaveis, que as proposicoes nor-mativas sao t a o wahrheitsfoehig, .tao susceptfveis de serem fal-sas ou verdadeiras, quanto as proposicoes descritivas, E sup6eurn principio de valida~ao. A.snormas serao validas quando

    tiverem sido objeto de urn consenso, como result ado de urndiscurso pratico. Mas 0consenso s6 sera fundado quando 0dis-curso tiver sido conduzido segundo uma regra de argumenta-~ao - 0criterio da universalizacao, que Habermas denominao principio U .Eo seguinte 0 enunciado do principio U: "todas as nor-mas validas precisam atender a condicao de que as conse-quencias e efeitos colaterais que presumivelmente resultaraoda observancia gerai dessas norm as para a satisfacao dos inte-ressesde cad individuo possam ser aceitas nao-coercitivamentepor todos os envolvidos.'As condicoes expressas no principio U sao ideais, pois ra-ramente se atualizam em discursos concretos. Ao mesmo tem-po, precisam ser pressupostas como reais, porque sem elas ne-nhum interessado participaria de uma argurnentacao moral.o principio nao e assim nem real, no sentido de Hegel, por-que nenhuma sociedade historica permitiu ate hoje a concre-tizacao de discursos organizados segundo esse modelo, nemrneramente urn princfpio regulador, no senti do de Kant, por-que em cada argumentacao discursiva ternos que pressupor 0modelo como ja efetivo.o principio U nao e pois contingente, mas necessario, Es-sa necessidade pode ser fundamentada. Ele deriva dos pressu-postos pragrnaticos de toda e qualquer argumentacaodiscursiva.Atingido 0consenso sobre a validade da norma, dentro dodiscurso pratico, conduzido segundo a regra de argumentacaoexpressa em U, cessa a epocbe discursiva, e inicia-se 0processode aplicacao da norma considerada valida. A aplicacao exigecriterios de "adequacidade" a situacoes concretas, e nao maisde validade. Validada - a norma, e iniciada a aplicacao,restabelece-se 0 vinculo com 0mundo vivido, rompido pelodiscurso.Resumi de modo rnuito laconico a teo ria etica deHabermas, mas espero preencher mais tarde as lacunas. 0 re-sumo ja basta para darmos inlcio a nossa investigacao. Seriapossivel utilizar essa teoria para uma reformulacao plausivelda filosofia moral da Ilustracao?

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    Tentarei responder essa pergunta a partir de tres caracte-risticas centrais da erica iluminista: 0 cognitivismo, 0 -indivi-dualismo e 0universalismo. Examinarei separadamente cadaurn desses temas, mostrando, em primeiro lugar, como de fun-cionou durante a Ilustracao, resumindo, em segundo lugar, ascriticas que the foram diri~idas por corrent~s te,oricas p~s~e-riores, e tentando, em terceiro lugar, redefini-Io a luz da encadiscursiva.

    CognitivismoChamo de cognitivista a filosofia moral que considera pos-sivel fundamentar a norma etica em principios gerais e abstra-tos, de carater secular, e que em tese nao postula qualquer di-ferenca categorial entre 0 conhecimento dos fatos do mundofisico e os do mundo moral.Foi sem duvida 0caso do pensamento moral da Ilustracao.Ela foi resolutamente secular, porque todo 0proselitismo dosfilosofos tendia a mostrar que oshomens podiam ser virtuosossem a religiao revelada, e que esta, pelo contrario, estimulan-do 0fanatismo e a intolerancia, tinha sido a principal respon-savel pelos crimes da humanidade. Bayle tinha chocado a Eu-ropa, no seculo anterior, formulando 0 "paradoxo" de queuma sociedade de ateus podia ser mais etica que a fundadana religiao, Esseparadoxo transformou-se em lugar comum dasInzes. Os filosofos citavam incessantemente os moralistas pa-

    gaos, como Socrates e Seneca, para provar a tese de que a ~ir-tude e separavel da religiao, Inversamente, os maiores delitosda historia como 0 massacre de Sao Bartolomeu, foram co-metidos em nome da religiao, Alguns dos homens mais incre-dulos foram tam bern os mais virtuosos. Voltaire inclui nessacategoria La Mothe Le Vayer, Bayle, Locke, Spinoza, Shaftes-bury. E tambern a opiniao de Diderot. Num dos seus dialogosmais saborosos, de diz que urn incredulo que recebeu umaeducacao justa e se da conta de que sera mais feliz neste mu~-do fazendo 0 bern que 0mal, tera urn comportamento mats

    etico que urn cristae intolerante que queira convener os ho-mens pela violencia . ..Mas, destronada a Revelacao, nao ficana a moral pnvadade alicerces? Para 0 cristianismo, 0 fundamento da moral e suaconformidade com a lei divina. Em que outro fundamento po-deria basear-se a moral? Grosso modo, a Ilustracao propos tresrespostas. A norma se funda em sua conformidade com a leinatural, com 0 interesse e com a propria razao.A primeira resposta supoe a crenca na objetividade de umalei natural, anterior a qualquer lei positiva, e que dita sobera-namente os criterios do bern e do mal. Ela "grava em todosos coracoes' esses criterios, e qualquer homem de boa vont~-de consultando sua consciencia, encontrara uma solucao evi-de~te para os seus dilemas morais. E assim que para Rousseau"existe em nossas almas urn principio inato de justica e de vir-tude, com base no qual, e apesar de nossas proprias maxirnas,julgamos nossas acoes e as dos outros como boas ou mas' '.A segunda resposta e empirista. Ela rejeita a primeira res-posta, porque ela implica em aceitar a existencia ~e nocoesmorais inatas, hipotese absurda, a luz da epistemologia de Loc-ke e Condillac, para a qual todas as ideias, e portanto tam-bern as ideias morais, sao adquiridas pdos sentidos. A expe-riencia nos fornece sensacoes, que no plano etico se resumema s sensacoes de dor e de prazer. 0 homem e naturalmente mo-vido a buscar 0 prazer e ~ fugir da dor, e niss~ c

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    frequenternente invoca, como fundamento, 0 principio do in -teresse , que esta na raiz de todas as virtu des da sociabilidade.Kant introduz uma terceira variante: a propria razao, E elaa verdadeira fonte da moralidade. Minha vontade nao e de-terminada por nenhuma instancia externa. Ela nao se fundana natureza, porque esta e regida por urn determinisrno in-flexivel e portanto e incompativel com a liberdade moral, nempelo interesse, porque este pertence ao dominic do meramenteernpirico, do contingente, e portanto a esfera da heteronornia.o fundamento da lei moral e dado por urn procedimento in-terno a razao, que me permite saber quando uma "maxima"individual ....e a~ao e susceprivel de transformar-se numa nor-ma etica. E 0 imperativo categorico, que Kant fotmulou emvarias versoes, em Funclamentayao c ia Me taf is ic a do s Cost ume se na Critica d a Ra za o Prdtica, mas que e sintetizado na seguintevariante, extraida desse ultimo livro: "age de modo a que amaxima de tua vontade possa em cada momenta valer ao mes-mo tempo como 0 principio de uma legislacao universal."

    As tres respostas supoern uma homologia entre os dois ti-pos de conhecimento: 0 que tern como objeto 0mundo fisicoeo mundo moral. Os jusnaturalistas acham que a lei naturale a mesma, nos dois casos. Citando Newton, para quem a na-tureza e se mpe r sibi consona, sempre igual a si mesma,Voltaire diz que a lei moral se aplica a todos os homens, comoa lei da gravitacao se aplica a todos os astros. Para os ernpiris-tas, 0mesmo princfpio esta na origem dos dois tipos de co-nhecimento. As mesmas sensacoes que na serie te6rica sao res-ponsaveis pela ciencia - sensacoes crornaticas, sensacoes decalor e de frio - sao responsaveis, na serie pratica, pela moral- sensacoes de dor e prazer, do agradavel e do desagradavel,Enfim, se para Kant a razao pratica funciona de urn modo di-ferente da razao teorica, e a mesma razao, ora compreendidaem seu uso teorico, ora em seu uso pratico, 'Iarnbem para Kanto mundo etico e regido pela razao, e nao apenas 0mundo fisico,Cada uma das tres respostas atinge 0 objetivo de funda-mentar a norma, independentemente da Revelacao , Ass im, parao cristianismo, 0fundamento do preceito "nao roubar" e sim-plesmente sua conformidade com 0 setimo mandamento.

    A moralidade racional da Ilustracao substitui esse fundamen-to por outros, puramente seculares. Para os teoricos do direitonatural, a norma pertence ao repertorio das regras que inte-gram 0 "fundo comum" de todos os homens. Ela se fundana lei natural. Para os empiristas, ela deriva do interesse pro-prio bern compreendido, pois 0 roubo expora 0 individuo aprisao ou a censura social. Para Kant, enfim, a norma se en-raiza na propria natureza da razao, Posso transformar 0 enri-quecimento ilicito em maxima subjetiva das minhas ~oes, masnao posso elevar essa maxima ao estatuto de lei moral, semcontradicao interna, porque se ela for adotada por todos naopoderei conservar a posse do bem furtado.o cognitivismo iluminista foi criticado por correntes con-servadoras, seja por razoes religiosas, pois so 0cristianismo po-deria assentar a moral em fundamentos seguros, seja em no-me da etica comunitaria, a unica susceptivel de orientar 0 in-divfduo em situacoes concretas. 0 fundamento da moral seriaseja a lei divina, seja a lei da cidade, 0 que envolve uma re-gressao ou a moral teologica ou a moral antiga, que nao ultra-passava os limites da tribo ou da polis.Mais influentes foram duas correntes eminentemente mo-dernas. Refiro-me ao positivismo e ao racionalismo critico. 0primeiro contesta a possibilidade de validar proposicoes de ca-rater normativo. 0 segundo contesta a possibilidade de legiti-mar os proprios principios de validacao,o positivismo abole a distincao entre a razao teorica e arazao pratica, e so admite a primeira. Com 0desaparecimen-to da razao pratica, 0 reino das normas e dos fins deixa de setacessivel a razao, pois esta, reduzida a razao cientffica, so terncompetencia sobre as proposicoes analiticas da logica e da ma-ternatica e sobre as proposicoes sinteticas relativas ao mundoobjetivo dos fatos. As proposicoes normativas escapam a essasduas esferas. Elas nao sao nem empiricas nem rautologicas, eportanto nao podem ser fundamentadas a luz da unica ins-tancia racional que sobreviveu a dissolucao da razao kantiana- a razao teo rica.Mas nao podem as proposicoes normativas ser fundamen-tadas a luz de determinados fatos, como fizeram os empiristasRev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23/78, jul.-set., 1989 310 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23/78, jul.-set., 1989

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    . Assirn, mesmo que eonseguisse superar a barreira do posi-tIVlSmO,mostrando que as proposicoes normativas podem servalidadas, 0 cognitivista nao poderia veneer 0 obstaculo da irn-P?ssibilidade logica de qualquer fundamenracao, Em qualquerhipotese 0homem estaria eondenado ao decisionisrno, a a~aomoral sem fundamentos, ao arbitrio de orientacoes eticas in-decidiveis. Na pratica, esse resultado so poderia ser evitado seele regre~isse a solucoes pre-ilurninistas, buscando na religiao,ou na sociedade os fundarnenros da norma. Abdicarfarnos, comisso, da conquista mais valiosa da modernidade, a da a~ao au-ronoma e nao-turelada - 0sapere aude, de Kant. So escapa-rlarnos do niilismo e da anomia, pressupostos pelo positivis-mo e pelo racionalismo critico, se aceitassemos, de novo, a tu-tela da autoridade, ou religiosa ou social. Entre uma Iiberda-de normativa nao fundada na razao e uma fundamenracao he-teronoma que priva 0 individuo de toda liberdade, e todo 0~~pulso ernancipatorio d~ etica ilurninista, baseada numa a~aoenca ao mesmo tempo livre e racional, que desabaria com 0colapso do cognitivismo.Poderia a etica discursiva ajudar-nos em nosso impasse? Emtodo caso, eum carninho promissor. Pois vimos que como aseticas iluministas, ela considera as normas validaveis desafian-do, com isso, 0 positivismo. E mais ambiciosa que' a Ilustra-~ao, julga-se apta a validar 0 proprio principio de validacao,desafiando, com isso, 0 racionalismo critico.o argumento positivista de que as proposicoes normativassao invalidaveis deriva de uma epistemologia envelhecida, quepostula como criterio de verdade a correspondencia com arealidade ~ adaequatio rei ad intel/ectum. Aceita essa teoriado conhecimento, segue-se que so as proposicoes factuais saovalidaveis, porque so~ente elas podem ser post as a prova peloconfronto com a realidade. Uma lei fisica e verdadeira porquea verificacao ernplrica mostrou que ela corresponde a realida-de externa. Muito diferente e uma proposicaodo genero "riaornataras' '. 0 confronto com a realidade somente podera mos-trar que essa norma e aceita de facto por uma determinadasociedade, ou mesmo por todas, e nao que ela e verdadeiraem si mesma, independentemente das opini6es subjetivasRev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 33

    e utilitaristas do seculo 18 - 0 fato da sociabilidade humana,o fato de que 0 homem e urn ser movido por impulsos, pai-xoes e interesses? Nao, Pois 0 positivismo e assombrado porurn espectro, 0da "falacia naturalista": nao e possivel derivaro Sol/en do Sein, proposicoes normativas de proposicoesdescritivas.Nao podendo ser legitimadas nem em si mesmas nem emfatos que as sustentern, as proposicoes normativas sao invali-daveis, Elas tiao sao, simplesmente, wahrheitsfiihige, suscepti-veis de serem falsas ou verdadeiras. A moral e privatizada, re-duzida ao foro Intirno de cada urn. E a expressao de ernocoese preferencias pessoais. Esta entregue ao contingente, ao irra-cional, ao subjetivo. A moral pulveriza-se em mil orientacoesindividuais, 0que Weber denominou 0 "politefsmo dos valo-res' '. Nenhuma delas pode ser considerada mais valida queas outras, a luz da ciencia, pois esta so pode definir os melho-res meios para atingir os fins, e estes sao fixados segundo op-~oes subjetivas sobre as quais a razao nao tern competencia.De bono non est disputandum.o racionalismo critico vai urn passo alern. Ainda que fossepossivel desafiar 0grande interdito positivista que pesa sobreo mundo normativo, mostrando que 0 abismo entre 0 Seineo Sol/en e imaginario, 0cognitivista nao teria nada a ganhar,porque nao ha fundamentos ulrimos capazes de escapar aoprincipio da falsificacao. Para 0 falibilista consequente, nema validacao jusnaturalista, nem a empirista, nem a kantiana,nem nenhuma outra, podem fugir a jurisdicao do falsificacio-nismo. 0 popperiano B.H.Alben tenta mostrar que qualquertentativa de fundamentacao ultima leva a urn impasse logicoque ele caracteriza como 0"trilema de Miinchausen' '. Segundoesse trilema, 0 exerdcio de fundarnentacao conduz (a) seja auma regressao infinita, porque 0 proprio axioma precisa serde novo deduzidoem urn sistema axiomatizado de proposi-~oes, (b) seja a urn circulo Iogico, quando a deducao se baseiaem proposicoes que precisam elas proprias serem fundamen-tadas, (c) seja a interrupcao dogmatics do processo de funda-mentacao, pela selecao arbitraria de certas premissas.32 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23/78, jul.-set., 1989

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    dos homens. No caso da norma, 0maximo que podemos di-zer e que ela tern Geltung, vigencia efetiva, ao passo q.ue nocaso da lei da gravidade, ela tem realrnente vahdade,Gueltigkeit. As proposicoes descritivas sao pois v alid av eis -comprovaveis pela correspondencia com a realidade - mas naoas normanvas.A situacao muda se rejeitarmos as teorias da corresponden-cia e aceitarmos uma teoria consensual da verdade, como Ha-bermas. Para ele, a epistemologia positivista se baseia numequivoco categorial, confundindo a objetividade da exper~en-cia com a validade das afirrnacoes feitas sobre essa experien-cia. Uma coisa e a constituicao de um dominic de objeto esua percepcao a partir de observacoes individuais ou intersub-jetivas, e outra a validade das proposicoes forrnuladas pa~a darconta teoricamente desse dominic de objetos. POlSa vahdadedas afirmacoes so pode ser determinada pela argumentacao,visando a formacao de um consenso. No curso desse processo,a experiencia (Erfohrung) pode e deve ser aduzida - as pro-vas de que uma nova lei da natureza foi gescoberta, de quefoi encontrada uma nova particula subatornica - mas ela apa-rece apenas como suporte material da argumenta~ao, e nao co-mo criterio que permita em si mesmo validar a afirrnacao.Mas nesse caso, desaparece 0 abismo entre as proposicoesdescritivas e normativas. Urnas e outras estao sujeitas a argu-mentacao discursiva, e a validade de ambas depende de umconsenso fundado. 0 Sol/en das proposicoes normativas e taovalidavel como 0Sein das proposicoes descritivas. 0 fantasmada "falacia naturalista" e exorcizado. Nao e verdade que osfates nao sirvam para fundamentar normas. Sem diivida, a va-lidade nao brota imediatamente dos fatos, e sim dos argumen-tos sobre esses fates, mas e rambern 0que ocorre com as pr~-posicoes deseritivas. Se e assim, a validade da n?rma nao ~e~l-va deles, mas sem eles os argumentos nao senarn plauslvels.E evidente que 0 consenso so servira para a validacao dasnormas ser for um consenso fundado, e ele so sera fundadose a argumenta~ao discursiva river sido organizada segundo um.aregra de procedimento correta. Conhecemos essa regra: 0en-terio da universalizacao, contido no principio U.34 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989

    o principio da validacao discursiva assume assim a heran-ca dos sugeridos pelas eticas iluministas, principalmente a deKant, que propoe, com a exigencia de universalizacao contidano imperativo categorico, urn modelo ao qual Habermas se fi-lia expressamente. A diferenca e que enquanto para a Ilustra-~ao 0principio em si ja servia para validar a norma, por umareflexao rnonologica que permitia decidir, a priori, sea normaera Iegitirna a luz do direito natural, da utilidade ou da razaopratica, nao e 0prindpio V em si que justifica a norma, e simum discurso publico, conduzido, a posteriori, de acordo comesse principio,

    Mas qual a legitimidade do proprio princfpio V?Habermas e mais exigente, nisso, que os filosofos da Ilustra-~ao, que se limitavam a pressupor a validade dos seus princi-pios de justificacao, sem fundamenra-los. Essa critica se aplicaao proprio Kant, que com todo 0 seu rigor teorico nao funda-mentou 0 imperativo categorico, limitando-se a dizer que elese fundava num Faktum der Vernunft, num fa to da razao. Emc~)fitraste,~ ric~ discursiva considera necessario e possivel jus-tificar 0principio U. 0 adversario, aqui, nao e mais 0positi-vismo, mas 0 racionalismo critico, que como vimos sustentaa impossibilidade de qualquer fundamento ultimo.Mas essa impossibilidade so existe se aceitarmos a tese deque toda fundarnentacao tern que se dar no interior de urnsistema logico-forrnal, no qual proposicoes sao deduzidas deproposicoes. A rica discursiva rejeita essa limitacao. Ela con-sidera viavel recorrer a uma fundacao pragmatico-Iingufstica,e nao logico-formal. Ela afirma, consequenternente, que 0ptin-cipio V deriva dos pressupostos necessaries de toda e qualquerforma de argumentacao, teorica e pratica. Para demonstrar es-sa tese, recorre ao conceito de "contradicao performativa" de-senvolvido por K.O. Apel. 'A contradicao performativa ocorre sempre que urn ato lin-gufstico de natureza constativa se baseia em pressupostos nao-contingentes, cujo conteiido proposicional contradiz a afirma-~ao feita.Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 35

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    pod em introduzir qualquer argumento no debate, 0 de quenenhum pode ser coagido, etc. Nao importa que essas condi-\oes sejam frequentemenre contra-factuais, ist? e, que nao es-tejam sempre presentes em processos cornunicarivos concre-tos: des sao apenas pressupostos, que pod em ou nao realizar-se, mas sao pressupostos necessiirios, porque sem des 0ingressona argumenta\ao e impossivel.Obtidos esses pressupostos de todo discurso, a etica dis-cursiva pode fundamentar 0prindpio de universalizacao, apli-cavel aos discursos praticos. Ele deriva, simplesmente, dessespressupostos gerais e necessaries. Cada pessoa que ingressa numdiscurso pratico se obriga intuitivarnenre a aceitar procedimen-tos que equivalem ao reconhecimento implicito do principioU. Nao posso, sem contradizer pressupostos gerais da argumen.ta\ao, aceitar, na argumenta\ao moral, que alguns interessa,dos sejam excluidos, que alguns panicipantes sejam coagidos,que outros nao tenham a possibilidade de argumentar em de-

    fesa dos seus interesses, que outros se arroguem 0 direito denao seguir a norma. 0 principio da universalizacao estafundamentado.Mas nao podern os "falibilistas" popperianosabalar a so-lidez desse fundamento? Mais prudente que Apel, Habermasadmire que a forma especffica que de propoe para a recons-trucao dos pressupostos argumentativos seja falsificavel.Mas nem Habermas nem Apel admitern que sua estrategia defundamenta\ao seja refutavel em seu conjunto, porquequalquer esforco de refutacao exporia os proprios falibilistasa contradi\oes performativas. Formulando sua refutacao doprincipio U, 0 critico teria que utilizar necessariamente os pres-supostos da argument~ao em geral, nos quais sefunda 0prin-cfpio, 'Iambern os falibilistas, argumentando contra a etica dis-cursiva, acabariam demonstrando que ela e verdadeira.o cognitivismo da etica iluminista parece ter sido salva-guardado. Como a filosofia moral da Ilustracao, a etica dis-cursiva sustenta que a norma e validavel, e propoe urn criteriopara isso. E mais rigorosa que a etica iluminista,a discursivafundamenta 0 proprio criterio.

    36 Rev.TB,Rio de Janeiro, 98: 23178, jul-ser., 1989 Rev.TB, Rio deJaneiro, 98: 23178, jul-set., 1989 37

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    IndividualismoDizer que a moral da Ilustracao era individualista nao sig-nifica que ela desconhecessea importancia do interesse coleti-vo. Ao contrario, para fil6sofos como Helvetius e Holbach essaimportancia era tao grande, que alguns autores viram nelesclaras tendencias autoritarias, Para os utilitaristas, com efeito

    (pelo menos os do continente) caberia a legisladores pruden-tes condicionar os homens, pda educacao e pela forca, utili-zando os dois mecanismos fundamentais - 0 prazer e a dor- para que seus desejos e paixoes coincidissem com os inte-resses da sociedade como urn todo. A teoria da vontade geral,de Rousseau, foi interpretada como uma total alienacao daconsciencia etica do individuo no todo social, 0que levou Tol-man a considera-lo urn dos precursores da "democraciatotalitaria' '.E no entanto, continua sendo exato dizer que de modo gerala moral da Ilustracao foi individualista. Ela partia da hipotesede homens isolados, atomisticos, com seus interesses e impul-sos individuais, que se uniam por razoes utilitarias para for-marem a sociedade civil. Antes do contrato, 0homem e pre-social: urn grupo de individuos dispersos. Depois do contrato,ele pode estar sujeito a leis tao severas quanto as do Estado-Leviata, mas a sociedade continua sendo pensada como umaagregacao mecanica de individuos e nao como uma comuni-dade organica. No estado de natureza como no estado civil,o hom em s6 existe como indivfduo.Consequentemente, a moral da Ilustracao nao visa os ho-mens em sua insercao cornunitaria, mas em sua existencia in-dividual, 0que gera duas consequencias. Por urn lado, a eticailuminista deixa de acentuar os deveres e obrigacoes sociais dohomem, deslocando a enfase para sua felicidade e auto-realizacao como individuos. Por outro, ela os coloca numaposicao de exterioridade com relacao ao mundo social,transformando-os em criticos e juizes de sua propria sociedade.

    Com a importantissima excecao de Kant, de modo gerala etica iluminista foi hedonista e eudemonista. Os fil6sofos38 Rev.TB, Rio de Janeiro, 98: 23/78, jul.-set., 1989

    romper.am co~ 0 rig?rismo mo~al do cristianismo, e propuse-ram a liberacao razoavel das paixoes, dentro dos limites com-pa.tfv~lscom 0 convfvio social. A Ilustracaoliberou 0 prazer,pnr:clpalmente ~ pr~~r sensual. Sem duvida h1:toda urna gra-dacao, desde 0 sibaritismo amavel de Voltaire ao niilismo ab-s~luto de Sade, mas de modo geral a Ilustracao usava a oposi-~ao entre o.esta?~ de ~atureza e 0 estado civil para justificar,por ser mars proxima a natureza, a livre sexualidade sem ostabus impostos pela civilizacao, 0 texto exemplar e 0'Suppli-ment ~~ Voyage de Bougainville, de Diderot, em que urn ve-lho tal~l~no defen~e a totalliberdade sexual, justifica 0inces-to, e cnnca a moralidade repressiva dos europeus. Mesmo quan-do 0 praz~r sensual nao e considerado 0mais importante, anota dominance e a procura da felicidade. Felicidade terres-tre, a~r~ndo mao dos falsos absolutos e das promessas incertasda feh~ld~~e na outra vida. Como disse Maupertuis, "existeurn pnncipio na natureza, mais universal ainda que 0 que sechama a luz natural, mais uniforme ainda para todos os ho-mens, tao forte no homem mais esnipido como no mais sutilqu~e~ 0 desejo ~e ser feliz: . . Se encontro urn sistema que sej~o uruco susceptfvelde satisfazer meu desejo de ser feliz, naodevo ~ec~nhece-l() como verdadeiro?" A Declaracao da Inde-pendencia, dos Estados Unidos, estava exprimindo oessenciald? l?ens~ento etico da Ilustracao quando incluiu, entre osdue nos mates do homem, "the pursuit of happiness' ', A pa-lavra de ordem, na Ilustra~ao, e a auto-realizacao do indivi-duo, sua felicidade ~ seu praz~r: relegando a segundo planoo velho elenco das virtudes SOClalS,das obrigacoes com a cida-de, . caracterfsticas das antigas eticas cornunirarias daAnttgUldade.

    Outra consequencia do individualismo etico foi 0aumen-~o d~ autonomi~ e autodeterminacao do sujeito com relacaoas leis de sua sociedade. Dorado de uma consciencia moral au-tonom~, ~ i~divfdu,? pode submeter asnormas vigentes ao crivodos pnncrpios gerais. Descentrado, ele se coloca acima de to-dos os contextos cornunitarios concretos, e os julga. Sob seuolhar "moralizante' ',as instituicoes do ancien regime seRev.TB, Rio deJ~neiro, 98: 23178, juf.-set., 1989 39

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    relativizam, perdendo sua evidencia e sua naturalidade. Se aperspectiva etica fosse 0 jusnaturalismo, 0 enrico via as insti-tuicoes existentes como urn simples produto da hist6ria, co-mo a sedirnentacao irracional de prijuges, que nao podiamsustentar-se segundo os criterios de justica embutidos na leida natureza. 0mesmo resultado podia ser obtido a partir deuma perspectiva empirista. Nada mais evidente que as insti-tuicoes feudais constituiarn obstaculos para a satisfacao do in-teresse individual e para 0 entrosamento entre seu interesseeo da sociedade. 0mesmo valia, finalmente, para uma ricade tipo kantiano. Urn sistema normative fundado na autori-dade externa e incompatfvel com a autonomia da razao, e san-cionando 0privilegio e a desigualdade, na o pode ser justifica-do por urn procedimento que supoe a adesao livre de todos,pois as normas que exprimem interesses particularistas - deordem, de classe, de estamento - nao sao, em prindpio,generalizaveis . .

    Essasduas consequencias do individualismo da Ilustracaoforam severamente criticadas no seculo 19 e 20.Seu hedonismo foi evidentemente rejeitado pelos contra-iluministas do seculo passado e continua sendo ate hoje de-plorado pelos neoconservadores. Ele estaria na origem dos va-lores contraculturais contemporaneos, e seria responsavel pelapromiscuidade dos costumes e pela dissolucao do ethos do tra-balho e pelo relaxamento da disciplina social:o descentramento individualista foi igualmente questio-nado, tanto numa perspectiva conservadora como critica.Do lado conservador, esse descentramento e consideradoabstrato e potencialmente destrutivo de toda vida social.o paradigma dessa posi~ao e a critica de Hegel a filosofiapratica de Kant. Para Hegel, essa filosofia fornece 0 exemplopuro da Mora/itaet, da moralidade subjetiva desvinculada damoldura comunitaria, em oposicao a Sitt/ichkeit, a moralida-de objetiva encarnada na sociedade. Na 6tica da moralidadesubjetiva, 0 individuo e visto como livre e racional, mas so-mente ao preco de uma separacao rigida entre a esfera da in-terioridade, em que se tomam decisoes marais soberanas, e aesferasocial, externa,aleat6ria e irracional.De urn lado, a razao,

    reino dos fins e da liberdade absoluta, do outro a hist6ria, reinoda contingencia e da heteronomia. Para Hegel, essa separacaosupoe um conceito inadequado da razao pratica individual,uma razao rigorosa, mas abstrata e vazia; da realidade social,desprezada como algo de alheio a razao; e da relacao entre asduas, pois esse conceito nao permite mediar entre a razao ea pratica, tornando insuperavel 0fosso entre 0Sol/en da cons-ciencia moral e 0 Sein da realidade dada historicamente. Emcontraste, a moralidade objetiva, a Sittlichkeit, designa 0 lu-gar em que a razao pratica ja se realizou, nao na interioridadedo sujeito erico mas em habitos, costumes, instituicoes, for-mas de vida, que fornecem criterios concretos, objetivos e du-raveis para a fundamentacao do comportamento moral.

    Essa crftica do individualismo e em geral seguida por to-das as variantes do pensamento conservador. foi 0caso de Com-te, e de Durkheim, que via no grupo social a fonre de todasas nocoes morais e de todos os criterios de julgamento moral.E e 0 caso, recentemente, de uma corrente neo-conservadoraalerna que vem sendo chamada de neo-aristotelica.

    A designacao nao e clara, mas parece aludir a crltica dePlatao feita por Arist6teles, de cerro modo semelhante a deKant feita por Hegel, e pela qual Arist6teles acennrava a im-portancia da experiencia pratica, dafronesis, de urn saber pru-dencial meramente aproximativo, em contraste com as preten-s oes s ocr at ic o -p la ton ic a sde a lc anc ar urn saber absoluto do Bern.Em ultima analise, a "experiencia' que constituio pressupostoda a~ao moral vern do ethos, do mundo vivido, das leis e ha -biros da polis.

    Para os neo-aristotelicos, nao e possivel fundar a etica ernprincipios abstratos, mas somente nas U~blichkeiten (praticashabituais) da sociedade em que se vive. E ela que proporcionaos criterios de a~ao e julgamento moral, e que nos leva a agirno mundo quotidiano sem qualquer reflexao sobre a validadedas normas. Essareflexao pode ocorrer excepcionalmenre, atra-yes de instituicoes como 0Parlamento, mas em todo caso (abe

    40 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 Rev. TB , Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 41

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    ao critico 0onus da prova, a obrigacaode mostrar por que de-terminadas normas precisam ser mudadas. Para 0cidadao co-mum, esse exercicio reflexivo nao e possivel nem necessario.~ao se p~de estend~r.a todo 0 s~stema institucional 0 princi-PIO cartesiano da diivida metodica, considerando 0 existentesuk judice ate que sua validade possa ser comprovadaracionalmente.

    Coerentemente, os neo-aristotelicos perfilham a critica deHegel a Kant. 0 ponto de vista da moralidade subjetiva e va-zio e destrutivo. 0 ponto de vista da moralidade objetiva, aocontrario, e 0 unico compativel com a humana conditio, coma finitude de urn h?~em relativo, que nao pode aspirar a cer-teza de normas legitimadas por uma razao absoluta. Em suapureza desumana, as eticas do tipo kantiano exprimem a ar-rogancia de intelectuais que se julgam com 0 rnonopolio daverdade, maitr~s-penseursque se arrogam 0privilegio de co-locar sob suspeita todo 0 sistema insstitucional ate que as "rna-xi~as" e~trardas do mundo vivido tenham passado 0 teste dauniversalidade. 0 homem comum se contenta com as intui-\oes morais espontaneas objetivadas em sua comunidade, e emvez da razao pratica opera, no dia a dia, com 0 born senso,com a Klagbeit, versao alema da fronesis.o intelectual kantiano, Ionge da vida, nao se preocupa coma realizacao, pela vida, das verdades morais que ele descobreem seu esplendido isolamento. Sua etica e pois a da convic-\ao, no sentido de Weber - fiat justitia, per eat mundus-e n~o a da responsabi~idade, que considera os danos que po-deriam res~ltar ...~ aplicacao :st~ita da norma. Mais urn passo,e os neo-aristotelicos.denunciariam Kant a policia, acusando-o de ter inspirado as a\oes terroristas da Frafaodo Exercitovcr-mel'!o - Gudrun Ensslin como uma Andgona enlouqueci-da, invocando contra Creonte, nao a lei da cidade, mas umalei mais alta, obtida pelo imperativo categorico, que acabaralevando a destruicao de Tebas - ou de Bonn.o outro campo, 0marxista, tam bern condena 0 individua-lismo iluminista. E uma deformacao burguesa, que inventa umaseparacao irnaginaria entre individuo e sociedade, semperceber que essa ilusao e ela propria socialmente condiciona-42 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989

    da, e que julga possivel romper no plano do pcnsarncnto gri-lhoes reais que so pod em ser quebrados pela a~ao coletiva, Nofundo, via Hegel, os marxistas acabam coincidindo com os con-servadores na oposicao entre a moralidade subjetiva e a obje-tiva. Tarnbern Marx sonha com a bela harmonia de uma vidacornunitaria nao-antagonistica, com a diferenca de que paraos hegelianos e neo-aristotelicos a Sittlichkeit ja esta incorpo-rada no mundo tal qual e,e para os marxistas ela ainda precisaser criada pela praxis revolucionaria.Muitas dessas criticas sao justas. 0 individualismo erico daIlustracao se baseava efetivamente numa separacao ilus6ria entreindividuo e sociedade e nao colocou com clareza a relacao en-tre a auto-realizacao do individuo e 0 interesse coletivo. Masestariamos condenados necessariamente a perder, com 0 fimdo individualismo, duas de suas consequencias mais valiosas:o direito a felicidde, sacrificado ao bern-esrar da sociedade, eo julgamento moral autonomo, absorvido na moralidadeobjetiva?

    A etica discursiva nao aceita 0 individualismo, mas podeoferecer urn caminho para preservar essas duas conquistas doindividualismo.o individualismo e incompativel com a teoria da a\ao co-municativa. Para ela, 0homem e urn ser plural. Ele nasce nu-rna comunidade Iinguistica, e organiza as relacoes com seussemelhantes sobre 0pano de fundo de urn mundo vivido in-tersubjetivamente compartilhado.Mas se a teoria discursiva nao e individualista, ela esta longede atribuir a comunidade urn poder de tutela. Isso significa,entre outras coisas (a) que 0 individuo tern direitos cornple-mentales aos da comunidade, e (b) que as normas e institui-\oes da comunidade nao podem evadir-se a 'urna investigacaocritica.o individuo so existe em interacao, mas essainteracao pres-supoe 0 reconhecimento da dignidade e integridade de cadaparticipante. Em cada processo cornunicativo, Ego e Alter as-piram a ser reconhecidos como individualidades unicas e in-substituiveis. 0 hom em tern direitos como individuo, que naopodem ser cancelados pelos direitos da comunidade.Rev.TB, Rio deJaneiro, 98: 23178, jul.-set., 1989

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    Entre esses direitos do homem como indivfduo, e naQ ape-nas como membro da comunidade, como homme, naoapenas como citoyen, na terminologia da Ilustracao, esta 0di-reito a auto-realizacao, segundo seu proprio estilo e suapropria concepcao de felicidade.Haberrnas esta tao consciente desse direito, que se afasta,nesse ponto, do modelo kantiano. Sem ?uvida, .c?m todo 0seu pietismo, Kant nao negou que 0desejo de felicidade Fosselegftimo, Ele simplesmente negou que ela pudesse ser urntelos para a ~ao moral. Nao era uma quesrao susceptivel deser regulada pelo imperativo categorico, que se ocupa apenasde preceitos aplicaveis a todos os ho~et_ls. As concepcoes defelicidade variarn de individuo para individuo, e nao podemser universalizadas.Nao obstante, e certo que ha elementos de austeridade ex-cessiva na etica kantiana. A separacao radical entre a esfera dodever e a da inclinacao, entre a razao e a sensibilidade, ternalgo de desumano. 0 conceito de autonomia exclui a repres-sao externa, mas irnplica uma repressao auto-imposta.Conseqiientemente, Habermas abandona esses elementos.Os desejos e afetos, excluidos por Kant, sao readmitidos pelaetica discursiva, sob a forma dos interesses generalizaveis. 0conceito monologico de autonomia e substituido por urn con-ceito intersubjetivo, segundo 0qual 0 livre desdobrarnento dapersonalidade de cada urn depende da liberdade de todos osoutros.Isso nao basta, evidenternente, para incluir a questao dafelicidade no ambito da etica discursiva. Nisso, ela segue 0mo-delo kantiano. A auto-realizacao e estritamente individual, elida corn uma esfera que nao e acesslvel a etica discurs~va: ados valores. Qualquer esforco de interferir nessa area rena ca-rater repressivo e dogmatico. A felicidade nao pode ser dedu-zida de nenhum imperativo categorico, 0 que ela pode fazere delirnitar 0 espaco dentro do qual podem desdobra!-se. osprojetos de auto-realizacao de individuos e grupos de .1ndIV~-duos. Esses projetos nao podem violar os elementos uruversaisde moralidade contidos no princfpio da universalizacao,

    como a igualdade de direitos de todos os homens. Essa lim i-ta~ao nao exlui as experiencias contraculturais, as formas al-ternativas de vida, a livre sexualidade. Mas exclui aqueles pro-jetos de auto-realizacao que violem 0 prin~ipio kan!ia~o ?etratar os homens como fins e nao como meios - a violencia,a intolerancia, a opressao, e mesmo 0 desrespeito a esforcosde auto-realizacao tentados por outros .grupos. de indi~i~uos.

    Em seu papel de limite, e nao de mstancia prescnuva, aetica discursiva pode assim acolher urn dos grandes ternas daetica. iluminista: a busca da felicidade individual.Quanto ao segundo legad.odo .indiv.idu~lism? ilumini~ta

    - 0 descentramento - a etica discursiva 0 aceita, definin-do-o ern termos nao-individualistas. Esse descentramento euma consequencia necessaria dp\proprio proc~sso comunic~ti-vo, que compocta pretensoes devalidade cuja problematiza-~ao requer a entrada no discurso.' A argumentacao moral sus-pende a validade dos contex~os esp~nta~e_osde a~ao e subrne-te a critica 0 sistema normanvo, As intuicoes do senso comumsao desativadas. As evidencias cornunitarias sao postas entreparenteses. 0 que era inquestionado,se_ torna hipotetico, ascertezas culturais se tornarn problernaticas.Ern sum a, 0 olhar "discursivo" pode ser tao.objetivantequanto 0 iluminista, mas nao e mais u~. olhar individ~al: esim inrersubjerivo. 0 descentrarnento e imposto pela logicade urn processo essencialmente social, em que a critica nao re-sulta da decisao solitaria de urn individuo, mas e uma virtua-lidade encrustada nas proprias estruturas da a~aocornunicati-va. A comunicacao normal ja e potencialmente critica, e essapotencialidade se atualiza sempre que a interacao espo~t:ineae perturbada pela problernatizacao das pretensoes de vahdade.o conceito discursivo de descentrarnento retern 0 essen-cial do descentramento iluminista, sem se expor aos mesmosmal-entendidos. Ele nao postula uma separacao rigida entrea razao e a sociedade, entre a moralidade subjetiva e a objeti-va, porque 0 processo discursivo me~gulha suas raizes no pro-prio mundo vivido. 0 discurso e 0 sl~ples prolongarnent~ dacornunicacao normal, com outros meios e outros fins. Alem

    44 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 Rev. TB, Rio de Janeiro, 98: 23178, jul.-set., 1989 45

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    disso, uma vez validada a norma, 0 "desengate" com relacaoao mundo vivido precisa ser revertido pela re-contexrualizacao.As normas tern que ser aplicadas, 0 que supoe a reinsercaona vida social e em parte 0uso daquelas categorias que os neo-conservadores tanto admiram - a prudencia, a fronesis.Como virnos, n~o ha nenhum rigorismo na etica discursi-va. Ela nao seexpoe a s criticas weberianas a etica de Kant, por-que se apresenta, de saida, como uma etica da responsabili-dade, e nao da conviccao, Para Weber, 0que distingue a eticada responsabilidade e a consideracao das consequencias da apli-ca~aoda norma, ao contrario das eticas kantianas, que se inte-ressam apenas pelo cumprimento rigoroso do dever, quaisquerque sejam as consequencias, 0 principio U incorpora explici-tamente esse tema:todos osparticipantes precisam consideraras "consequencias e efeitos colaterais" da observancia danorma.Os traces autoritarios apontados por Hegel e pelos neo-conservadores estao excluidos in limine de uma moldura teo-rica que exc1ui de todo 0 pape1 do sujeito individual,substituindo-o por uma intersubjetividade voltada para 0 de-bate livre, sern exclusao de ninguem, e com base na igualda-de de direitos de todos os participantes.A acusacao de que modelos desse tipo sao construcoes deintelectuais que desejam tutelar a vida social e grotesca. A eticadiscursiva e formalista exatamente porque supoe que osconteiidos emanarao da propria vida, serao trazidos a moldu-ra argumentativa pelos proprios interessados, e nao pelos es-pecialistas das .quesroes morais. Nao e exato, tampouco, dizerque toda a vida social esta sob suspeita ate "provar sua ino-cencia' ' , Ao contrario, ela e considerada valida ate ser proble-matizada. A etica discursiva nao aplica a sociedade inteira 0principio da diivida metodica, porque sabe que a totalidadede uma forma de vida jamais pode ser submetida a exame.Ela destaca do mundo vivido somente aque1as questoes prati-casque sejam susceptfveis de tratamento argumentativo, dei-xando intacto 0 restante.

    Feitas todas essas reservas, Habermas destaca enfaticamentea necessidade do descentrarnento discursivo. Nao podemos, semregressao, renunciar ao privilegio maximo da modernidade, 0de examinar norm as e instituicoes a luz de principios gerais,transcendendo os limites de toda comunidade especffica. Nascondicoes de complexidade e diversificacao ds sociedades rno-dernas, estamos condenados, quer queiramos ou nao, a assu-mir a perspectiva pos-convencional, de Kohlberg, que exigea superacao da moralidade da "lei e da ordem", circunscritaao ambito de uma comunidade nacional.o grande merito da etica iluminista foi ter apontado 0ca-minho para 0estagio pos-convencional.e nao podemos recuarpara etapas pre-kantianas sem nos demitirmos da